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sábado, 9 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19564: A Galeria dos Meus Heróis (24): Cirurgião no Hospital Militar de Bissau - II (e última) Parte (Luís Graça)


Luís Graça, CCAÇ 12, CIM Contuboel,
 c. jun/jul 1969


A Galeria dos Meus Heróis >

Cirurgião no Hospital Militar de Bissau, 1968/70 - II (e última) Parte  (Luís Graça)


(Continuação)




Recordo-me da péssima disposição com que me levantei, nessa sexta-feira, dia 26 de fevereiro de 2010 (*). Era o meu último dia de trabalho. Segunda feira era já o início de outro mês. Costumo dizer que só faço anos de quatro em quatro anos, nos anos bissextos.

Nessa semana eu atingia o limite legal de idade para trabalhar na função pública, neste caso no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Já me podia ter reformado alguns anos antes, acumulando os anos de função pública com o tempo da tropa. Mas não quis. Chamavam-me o “dinossauro” do Hospital. 


É uma imposição estúpida: sentia-me ainda, aos 70 anos, em boa forma, física e mental, com forças para continuar a dirigir o serviço de ortopedia. É certo que já não operava há uns tempos. Ou melhor: ia fazendo uns “biscates” para não perder a firmeza da mão… Enfim, umas coisas mais leves: fraturas simples, joanetes, uma ou outra artroplastia da anca…

De qualquer modo reconheço que um tipo, aos 70 anos,  já não tem o mesmo treino de mão, a mesma agilidade, a mesma paciência, a mesma resistência e os mesmos reflexos de quando era mais novo. E sobretudo a mesma pachorra para aturar os diretores clínicos e os administradores hospitalares e as suas folhas de excel, enfim, para lidar com a burocracia e a numeracia da saúde. Um hospital, público ou privado, é uma fábrica e é cada vez mais gerido como uma fábrica.

A maior parte dos meus colegas reformam-se do público, logo que preenchem os requisitos legais, na expetativa de virem a poder trabalhar na privada. Alguns até aceitam ser penalizados na contagem de tempo. Mas é uma ilusão. No privado são esmifrados até ao tutano. E têm que alimentar todos os setores da fábrica, da imagiologia ao bloco operatório, da hotelaria aos cuidados médicos e de enfermagem, do nascer ao morrer...


Nunca pensei em vir a trabalhar na privada, quero eu dizer, numa clínica ou num hospital fora do SNS. E muito menos depois de acabar a carreira no público. Afinal estava cansado de aturar doentes cada vez mais reivindicativos, para além dos constrangimentos impostos pela direção técnica e o conselho de administração, da escassez de recursos humanos e materiais, das birras dos anestesistas, dos narizes empinados das senhoras doutoras enfermeiras… 

Acho que fiz bem em pôr um ponto final na minha aventura terrena no domínio da saúde… Na próxima encarnação, serei o que  Deus ou o Diabo quiserem…

Estava em regime de exclusividade, o que era raro na minha especialidade. De qualquer modo, aos 70 anos,   punha-se o dilema: o que vais fazer agora, com todo o tempo do mundo à tua frente ?!... Cedo me apercebi, depois de reformado,que o tempo é, afinal, depois da saúde e da liberdade, o recurso mais precioso que temos, e que o gerimos mal... Afinal, desperdiçamos uma boa parte da vida. E, de ciência certa, só se vive uma vez.

Não era escritor nem pintor como alguns dos meus colegas médicos, mais talentosos. Vivia em Lisboa e tinha perdido as minhas raízes em Setúbal e no Alentejo. Perdi completamente o rasto aos meus parentes de Grândola e de Estremoz. Também nunca tive o culto da família. E infelizmente também nunca tive um filho. A minha vida conjugal não foi feliz. Casei-me, descasei-me, e acho que fiquei ou estou a ficar cada vez mais... misógino.

Mas,  voltando ao meu almoço de despedida e à minha retirada de cena…

Desde o início do ano de 2010, tinha o sacana do meu adjunto à perna, a contar os dias do calendário, sempre  à espera do "grande dia" em que o "o filho da puta do velho" (sic) arrumasse de vez o bisturi… Se ele não o dizia, bem o pensava: “O filho da puta do velho”…

Reconheço que eu era o último obstáculo para ele subir até ao topo da hierarquia do serviço… Para isso, era preciso "matar o pai"…

Mas eu não o condeno… No lugar dele, eu faria o mesmo. De certo modo, aconteceu-me o mesmo com o meu "patrão" no Hospital anterior, onde comecei a minha carreira. Desisti de esperar que ele arrumasse as botas, tinha mais três ou quatro rivais à frente… O que fiz foi concorrer para outro hospital, que ia abrir e que tinha vagas para ortopedistas. Aliás, fui eu que, aos quarenta e tal anos, fui montar o serviço… 


Em suma,já estava ali, no último Hospital em que trabalhei, há um eternidade… Enfim, chegara a vez do render da guarda, por muito que isso me custasse.

Mas voltando ao meu sucessor: e se eu fui um pai para ele!... Recebi-o de braços abertos, ajudei-o a fazer o internato da especialidade e, se ele hoje é um grande ortopedista, muito melhor do que eu,  talvez o melhor ou o segundo melhor do Hospital, a mim também o deve. Pelo menos em parte. O resto é mérito dele e da estrelinha da sorte que o levou até ao estrangeiro onde aprendeu novas técnicas que eu não dominava... Em contrapartida, ele foi o filho que eu nunca tive.


Reconheço igualmente que eu fui uma espécie de pai tirano. Fui muito mais exigente e menos condescendente com ele do que com qualquer outro dos internos que por cá passaram. Porque ele era melhor do que os outros, ou tinha que ser o melhor. Provavelmente ficou-me a odiar… Mas nunca o deixou transparecer. É apenas o meu “feeling”…

Em suma, tínhamos então, na véspera da minha passagem à reforma, uma relação de amor-ódio, latente.

No almoço, nesse tal sábado, foi ele que fez o discurso da praxe… E que discurso! Deixou-me sensibilizado, quase até às lágrimas… É difícil, se não impossível, saber se foi sincero, ele era um homem, ainda jovem, de verbo fácil, de grande inteligência e um sedutor nato, um "charmoso",  bendito entre as mulheres.

Foi ele e a minha secretária clínica que organizaram tudo… Apareceu quase toda a gente, médicos, enfermeiras, assistentes técnicas e administrativas… O mulherio em peso, não tanto por mim mas mais provavelmente por ele, que era o meu sucessor. 

Veio também o meu colega de Ortopedia B, que nunca foi meu amigo, mas era um colega leal, e mais alguns médicos, esses, sim, amigos, dos poucos que eu tinha no Hospital. Nunca fui um homem muito sociável mas sempre foram vinte e tal anos passados neste Hospital. Acho que era respeitado e até estimado.

O Hospital, ou seja, o conselho de administração, ofereceu-me uma salva de prata com o meu nome gravado, e duas linhas de blá-blá de cujo teor já não me lembro; e o pessoal do serviço, incluindo os participantes no almoço, tiveram a gentileza de me presentear com um “voucher” para eu fazer um cruzeiro à Grécia, com visita ao sul da Itália (Vesúvio,Nápoles, Pompeia...), e uma excursão ao templo de Asclépio, em Epidauro, no Peloponeso, na Grécia, onde começou a aventura da medicina ocidental de que eu, embora insignificante ator, fazia parte.



Não sei porque é que estou agora a recordar o meu passado. E depois, camarada (posso tratá-lo por camarada ?!), a conversa é como as cerejas. Tem piada, há séculos que não falava do meu passado como alferes miliciano médico, entre 1968 e 1970, na Guiné de má memória. Em boa verdade, desde que regressei em 1970... 


Confesso que não tenho saudades desse tempo, a não ser pelo que aprendi como médico e como ser humano.

Com os primeiros tempos de Spínola, logo em meados de 1968, tenho a ideia de que a guerra se agravou, de um lado e do outro. Chegavam feridos graves e muito graves ao Hospital de Bissau, bastante politraumatizados, que era preciso tratar de imediato. O meu maior orgulho foram as muitas vidas que conseguimos salvar, embora alguns tenham ficado deficientes para o resto da vida. 


A Guiné era pequena, aí do tamanho do Alentejo, a Força Aérea chegava a todo o lado, nomeadamente os helicópteros, os Al III, que faziam as evacuações Ypsilon. Eram as nossas ambulâncias, o nosso 112, que estavam equipadas com bom material de suporte de vida, e enfermeiras paraquedistas que prestavam logo, "in loco", no mato, os primeiros socorros, essenciais para manter o fio da vida até Bissau.

Elas eram poucas, mas desdobravam-se em múltiplas missões e foram uma mais-valia para os serviços de saúde militares. Eram muito jovens mas corajosas e competentes. Já não me lembro do nome de nenhuma delas, nem sequer da cara. Sei que, às vezes, ao domingo, chegávamos a almoçar juntos, os médicos do HM 241 e elas. Se bem recordo, os oficiais paraquedistas e os pilotos de Bissalanca guardavam-nas com algum ciúme... patológico. Na realidade, elas pertenciam à Força Aérea, se bem que não dormissem na base de Bissalanca.


Do mato, propriamente dito, tenho poucas recordações. Fotos, devo ter, mas não sei onde param. Uma das situações que me marcou, talvez pela positiva, foi a receção que me fizeram em Bambadinca, ao tempo do batalhão de artilharia, já não me recordo o número do número, talvez o 1904,se a memória não me atraiçoa. 

Eu já estava avisada que os gajos mais velhos gostavam de pregar partidas aos "periquitos"… Mas nunca mais me lembrei desse precioso "lembrete", que já trazia de Mafra… (Ou Máfrica, não era?!)

Recordo-me de ter chegado a Bambadinca, por volta de meados de março de 1968, ainda na estação seca, a de maior atividade operacional, de parte a parte. Creio que o quartel nunca tinha sido atacado, nem nas proximidades havia atividade inimiga, a não ser a norte do rio Geba e ao longo da margem direita do rio Corubal donde o PAIGC nunca fora desalojado...

Fui de avioneta, pelo que nunca cheguei a conhecer o Xime e a temível picada que seguia até Bambadinca. Era a porta de entrada na zona leste. Conhecerei o Xime mais tarde.

Mal acabara de arrumar os meus pertences, num quarto partilhado com mais dois alferes, no edifício do comando, oiço alguns rebentamentos e rajadas de armas automáticas. E depois um profundo silêncio… Nem tive tempo de ficar acagaçado, veio logo um militar chamar-me à pressa, porque tinha havido uma emboscada com mina anticarro, ao fundo da pista, ali a menos de um quilómetro… Havia “manga de mortos e feridos”!…

Logo as Daimlers e o piquete que estava de serviço, partiram a toda a velocidade pela pista fora, ao longo do arame farpado…

Um dos majores, talvez o segundo comandante, já não posso precisar, eufórico, quase histérico, apareceu, equipado a rigor (, o que me surpreendeu, já que tinha estado com ele, há meia-hora!), a conduzir um jipe, mais o furriel enfermeiro, com a bolsa dos primeiros socorros… Os maqueiros já tinham seguido com o piquete, garantia-me o furriel. Havia uma grande excitação no ar, com gente a correr pelo corredor que ia dar à messe, atropelando-se uns aos outros...

O major deu-me ordens, com voz grossa (mas que me pareceu... teatral), para eu subir para o jipe… Eu não sequer estava fardado, de camuflado, nem tinha nenhuma arma de defesa distribuída… Fiquei sem pinga de sangue, devo confessá-lo, mas veio ao de cima o meu sentido do dever hipocrátrico, mais forte do que o do cagarolas do militar "periquito"… Peguei no meu estojo, ali à mão, e lá seguimos a todo o gás…

Só faltavam os helicópteros para as evacuações… Até apareceu uma "enfermeira paraquedista", vinda de não sei donde, de calça de camuflado e T-shirt branca, que, para minha vergonha, era bem  bem expedita do que eu, no socorro aos "feridos"… Eles eram tantos que eu não sabia para onde me virar…


Ainda levou uns bons minutos até eu perceber que tinha caído… na esparrela!... Fora praxado, para gáudio daqueles malandros todos, que estavam a escassos meses de acabar a comissão!... Disseram-me depois que os oficiais "periquitos", de rendição individual, eram todos praxados à chegada... Mas nem todos gostavam da brincadeira!...

A encenação estava tão bem feita que até o sangue era sangue mesmo, embora de galinha ou de vaca, não era mercurocromo, como nos filmes … Soube mais tarde que a "enfermeira paraquedista" era a esposa de um dos furriéis ou dos alferes da CCS, e o que o furriel enfermeiro tinha sido o "cérebro" da brincadeira, com a cumplicidade do major…

Não levei a mal, mostrei o "fair play", fomos para o bar, paguei logo uma rodada de uísque a toda a malta, atores e figurantes… Em boa verdade, duas rodadas, que me custaram o equivalente a duas ou três garrafas!

Pronto, meu caro, são estas as histórias de que ainda me lembro do meu passado, da infância, da juventude, e da guerra, ou das guerras, a da Guiné e dos hospitais onde, num caso como noutro, procurei sempre fazer (e dar) o meu melhor…

Espero que o camarada faça também tão bom uso destas histórias como eu fiz da minha vida (sem falsa modéstia).

© Luís Graça (2019). Revisáo; 5/8/2023
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Nota do editor:

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17736: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (12): O enfermeiro (Costa), o atirador (Nascimento) e o armas pesadas (Soares): uma partida... de Carnaval



Guiné > Região de Bafatá > Setor L12 (Bambadinca) > Xime > CART 2520 (1969/70) >  José do Nascimento em Madina Colhido (à esquerda) e o fur mil enf Costa (à direita) [Augusto Tavares Ribeiro Costa]



Guiné > Região de Bafatá > Setor L12 (Bambadinca) > Xime > CART 2520 (1969/70) > Saída  para o mato, o fur mil at José Nascimento (à esquerda) e o fur mil enf Costa (à direita) [Augusto Tavares Ribeiro Costa, de seu nome completo, já falecido].



Guiné > Região de Biombo > Quinhamel  > CART 2520 >   José do Nascimento como Costa à direita


Guiné > Região de Bafatá > Setor L12 (Bambadinca) > Xime > CART 2520 (1969/70) > Hora do jantar


Guiné > Região de Bafatá > Setor L12 (Bambadinca) > Xime > CART 2520 (1969/70) > No cais em construção, o José Nascimento (à direita) e o Costa (à esquerda)



Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Xime > CART 2520 (1969/70) > 1º srgt Vaz à direita, furriéis Soares e Nascimento à esquerda. [O Manuel Soares era fur mil armas pesadas.]



Fotos (e legendas): © José Nascimento (2017). Todos os direitos resevados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do José Nascimento (ex-Fur Mil Art, CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) com data 17 de junho último:


Aos camaradas da Tabanca Grande, ao Carlos Vinhal e em especial ao Luis Graça.

Muitos dos combatentes esquecem ou ignoram os especialistas que também estiveram no Ultramar Português, como é o caso dos mecânicos, condutores, transmissões e enfermeiros. Alguns foram autênticos heróis no desempenho das sua missão, como é o caso do furriel enfermeiro Costa, de seu nome completo Augusto Tavares Ribeiro Costa, infelizmente já não pertencendo ao mundo dos vivos, a quem dedico esta pequena história, embora noutro contexto. Estávamos com três ou quatro meses de comissão e os intervenientes são: O Costa. o Nascimento e o Soares.


Leiria, Monte Real > Palace Hotel Monte Real > XII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 29 de abril de 2017 > Uma agradável surpresa:  Manuel Viçoso Soares (hoje empresário, no Porto), ex-fur mil armas pesadas, ma mesa com o  Fernando Sousa (exº cabo aux enf, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) (e que vive  na Trofa)... O Manuel Soares ia ter o encontro da sua companhia, CART 2520 (Xime e Quinhamel, 1969/71) em 20 de maio, em Almeirim. Na mesma mesa, ficou o nosso editor, Luís Graça.  O Manuel Soares ficou convidado para integrar formalmente a nossa Tabanca Grande.

Foto: © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



2.  Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (12) >O Costa, o Nascimento e o Soares.




À memória de Augusto Tavares Ribeiro Costa, ex-fur mil enf


Augusto Costa era o furriel responsável pela equipa de enfermeiros da CART 2520. Além de cuidarem do estado de saúde do pessoal da Companhia, também faziam tratamentos à população do Xime, tais como pensos e injecções. Um médico não faria melhor.

Quando chegou à Guiné este especialista já tinha mais de dois anos de experiência como enfermeiro em Hospital Militar.

Uma divisão de uma antiga quinta de um ex-fazendeiro alemão acolhia a enfermaria de que era responsável, sempre apetrechada com os equipamentos possíveis e os armários com os medicamentos necessários, por isso clientela não lhe faltava, a seringa manejava com perícia, com as agulhas suturava as feridas. Todos foram tratados com grande desvelo e cuidado.

Numa outra divisão mesmo em frente à enfermaria habitava o José Nascimento, furriel. A sua especialidade era de atirador, pertencia ao 3º. pelotão da CART 2520, quando chegou à Guiné já tinha quase ano e meio de serviço militar. Preferia ter que correr para um abrigo em caso de ataque inimigo e residir com mais algum conforto e privacidade neste compartimento.

No abrigo virado para a bolanha do Xime e para a estrada de acesso ao rio Geba, morava o Manuel Soares, furriel e operacional de armas pesadas. Pertencia ao 3º. pelotão da CART 2520, também com vários meses de serviço militar cumprido antes de chegar à Guiné e desde sempre granjeando da amizade dos outros camaradas. Jogava à defesa e, como o seguro morreu de velho e cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém, dava preferência a um abrigo em caso do inimigo resolver atirar com algumas ameixas.

Com alguma frequência o Nascimento enfiava-se na enfermaria, conversava e assistia a alguns tratamentos. Outras vezes era o Costa que procurava dialogar e deixar correr o tempo. Devido a esta proximidade não foi difícil estabelecer uma grande amizade e também alguma cumplicidade.

Uma noite, já tinha escurecido havia algumas horas, o silêncio do quartel era apenas cortado pelo roncar do gerador eléctrico, quando em serviços diferentes e por mero acaso os dois se encontram. Depois de uma troca de palavras lembraram-se de fazer uma "partida" a um camarada, apesar do Carnaval ainda demorar a chegar.

A "vítima" foi escolhida. Dirigidos à enfermaria foram preparados os adereços, seguiram depois para o objectivo. Sob a luz ténue do abrigo e resguardado pelo mosquiteiro o sacrificado dormitava a ganhar forças para combater as agruras do dia e da semana seguintes.

Quando é levantado o mosquiteiro, o Soares vê na sua frente o seu camarada de pelotão, de braço ao peito e a cabeça envolta em ligaduras tintas de sangue, (na realidade não passava de mercurocromo). De olhos escancarados, completamente surpreendido pergunta:
- O que aconteceu?
- Fui passar ronda e caí numa vala, amanhã vais sozinho com o pelotão para a ponte -foi a resposta, (o pelotão iria sem alferes e sem o outro furriel para o rio Udunduma no dia seguinte.)

À entrada do abrigo ficou um expectador atento ao desenrolar dos acontecimentos. A cena saíra perfeita, o Costa mijava-se a rir.

Na manhã do dia seguinte o Soares dá de caras com o Nascimento completamente são que nem um pero e pronto para seguir viagem, mas quem pagou pela brincadeira foi a sua mãe, que a milhas na Metrópole pedia a Deus a protecção para o seu filho ausente na Guiné. Ao percebar que tinha caído que nem um passarinho, em tom áspero o Soares, furriel, solta um impropério:
- Ah filho da puta e eu que não dormi nada a noite inteira!

Para todos os camaradas da Tabanca Grande, um grande abraço

José Nascimento

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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17111: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (11): Enxalé, a outra margem do Geba

Postes anteriores:

19 de novembro de 2016 >  Guiné 63/74 - P16737: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (10): A música das nossas vidas: "Isabelle Isabelle Isabelle Isabelle Isabelle Isabelle Isabelle, mon amour"... ou o braço de ferro entre o fur mil Renato Monteiro e o nosso primeiro Vaz, cuja amada esposa se chamava Isabel e vivia a 5 mil km de distância, em Vila Real, Portugal...

23 de setembro de 2016 >  Guiné 63/74 - P16518: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (9): "Rã Teimosa", a última Operação da CART 2520

17 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15870: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (8): Quem não se lembra do antigo ditado que diz: "em tempo de guerra não se limpam armas"

13 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15742: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (7): O Soldado João Parrinha, natural de Cabeça Gorda, Beja

14 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15490: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (6): A Bandeira

27 de julho de 2015 Guiné 63/74 - P14936: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (5): Idas a Bafatá para comprar vacas

24 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14517: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (4): Primeiro dia no Xime

31 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14422: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (3): Eu e o malogrado fur mil mec auto Joaquim Araújo Cunha, da CART 2715, em Amedalai, em junho de 1970, de bicicleta a pedal

14 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14362: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (2): Viagem até Mansambo

10 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14341: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (1): Os Cabos também faziam Planos de Operações

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17061: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XVI Parte: Cap VIII: Brincadeiras no mato... ou a praxe em tempo de guerra


Mário Fitas, de alcunha "Vagabundo", alentejano de Vila Fernando, Elvas,  o fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas" (Cufar, 1965/67), que gostava de praxar os periquitos...


Foto: © Mário Fitas (2016). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67.

Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. [Foto abaixo à esquerda, março de 2016, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais.]




Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XVI Parte > Cap VIII - Guerra 2 (pp. 51-52)

por Mário Vicente 


Sinopse:

(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),

(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra");

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandandante  militar, pelo "ronco" da Op Saturno;

(xiii) chega a Cufar o periquito fur mil Reis, que é devidamente praxado.



Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XVI Parte: Cap VIII: Brincadeiras no mato (pp. 51-52)


Dia de correio, hoje a Dornier deve poder aterrar. O céu está aberto e as chuvas, embora já começassem, ainda são leves e a pista está boa. Segundo notícias do comando, deve chegar mais um reforço, o furriel periquito Reis, que vem substituir o evacuado Zé Luís.

Paolo, embora um pouco fleumático, gosta por vezes de entrar na brincadeira com a malta, e, desta vez é ele que tem a ideia e trama a safadeza. Entra na messe de sargentos onde a malta de folga conversa ou vai jogando uma partida de loto. Desafia:
– Eh,  malta, não se faz a recepção ao periquito?
– Boa!
Clamam todos em uníssono!...
– Como vamos fazer?
– É pá, eu posso fazer de capelão. Não fui padre mas acho que tenho jeito para isso – diz Vagabundo.
– Óptimo! Espera!... Boa ideia!...
– Tu fazes de padre, eu de colega furriel e o Chico Zé faz de capitão, comandante da com­panhia. Vamo-nos preparar que a avioneta está a partir de Catió, a outra malta que não se desmanche.

E aí temos Vagabundo de calças e camisa de caqui, com o dólmen da mesma fazenda todo engelhado porque retirado à pressa da mala, a boina preta enterrada na cabeça para dar um efeito pouco militar e a correr à procura do médico, tenente obstetra para lhe emprestar os galões. Paolo enfiou as divisas de Carlos Manuel, correu para o comando e pediu a Carlos os galões para o Chico Zé, dando-lhe a conhecer a brincadeira. Tambinha, Humberto e António Pedro informariam e controlariam a maralha para o bicho não desconfiar. Tudo a postos. Paolo, Chico Zé e Vaga­bundo no comando esperam pela chegada do periquito.

O Serra, furriel das transmissões, recebe a informação de que a Dornier levantou de Catió, e a secção do Carlos Costa, de piquete, avança no Unimog atrás da auto metralhadora Daimler para o fundo da pista, para a segurança. O Gasolinas conduz ele próprio o jeep, para trazer o correio e o seu colega arrivante.

Tudo normalíssimo. O periquito é um rapaz alto, simpático, dentinhos de coelho, bem-falante, mas não calcula a recepção que o aguarda. O Gasolinas pára o jeep e informa o Reis que é ali a messe, pelo que pode descer, ele voltará já. O Reis desce e é recebido com pompa pelo Jata, Madeira, Antó­nio Pedro, Tambinha e restantes. Estavam nestas apresentações e primeiras conversas de malta que está no mato, querendo saber notícias do outro continente, quando Paolo aparece, apre­sentando-se como o colega furriel Chico Zé, e dispara:
– Eh, pá! Então tu chegas com um mês de atraso, vens logo para aqui e nem te apresentas ao comandante da companhia? Anda lá apresentar-te e com cuidado que o gajo hoje está com mau humor e ainda é capaz de te dar uma porrada.

Reis, abando­nando bagagem e tudo, acompanha Paolo e dirigem-se para o comando onde Chico Zé ocupa a secretária de Carlos, ostentan­do nos ombros os galões do mesmo. Reis, um pouco tímido, pede licença ao improvisado capitão e vai entrando. Chico Zé levanta a cabeça e, com cara de mauzão, olha para o furriel metralhando:
–  Mas que merda é esta? Isto são maneiras de um militar se apresentar?

Paolo segreda a Reis:
– Eh, pá, tens de pedir licença como deve ser, fazer a continência e as praxes habituais.

Reis volta a trás e faz como Paolo diz. Da porta faz continência e pede licença. Chico Zé secamente manda entrar, Reis bate o pé e dá três passos em frente. De imediato, o improvisado capitão, sem levantar a cabeça grita:
- Porra para isto! Já viu padre!? Só me mandam mer­da desta para aqui! Faz favor de voltar a trás, arranje-me essas meias como deve ser e apresente-se como um verdadeiro mili­tar. Reis já um pouco nervoso volta a trás, dá um toque nas meias e na boina repetindo o pedido de licença. Chico Zé manda entrar novamente. Vagabundo, o improvisado capelão presente na sala, e Paolo estão prestes a rebentar e a desmancha­rem-se a rir, mas aguentam a teatralização. O falso capitão levanta a cabeça e pede autoritário:
–  A guia de marcha e a documentação?
Aí o Reis mais nervoso ficou e já tremia todo. Tinha a papelada na bagagem, gaguejando informou o comandante disso. Este, com ar de enjoo, virou-se para Vagabundo e disse:
– Padre, faça-me um favor, leve-me este gajo daqui quando não eu perco a paciência e dou-lhe uma porrada.

Vagabundo entrou em cena. Meteu suavemente o braço sobre o ombro do Reis e disse:
–  Pronto meu filho, acalme-se, vamos lá, vamos lá buscar a papelada. Oh,  meu capitão, desculpe o rapaz, está um pouco nervoso! Nós já vimos, sim?!...

Dirigiram-se para a rua mas o Reis já não ouvia, já não via nada, estava no fundo do poço. Tremendo, foi de braço dado com Vagabundo,  capelão, para a messe buscar a papelada que tinha na bagagem. O simulado capelão, com palavras meladas, ia-lhe dan­do mais cabo da cabeça. Fazia-lhe perguntas que o irritavam. Perguntava-lhe se era muito pecador, se o seu estado era ainda virgem ou se caso contrário, tinha pecado muito em Bissau, se visitara muitas vezes o Pilão. Reis queria era uma G3 para dar cabo daquela merda toda e dele próprio.

Entretanto, no comando, Carlos o verdadeiro capitão, ocupava a sua secretária.

Quando Reis regressou acompanhado de Vagabundo, chegando à sala do comando e vendo outra pessoa sentada à secretária, perguntou:
–  Onde está o nosso capitão?
Carlos olhou para ele calmamente e respondeu-lhe:
–  Oh, nosso furriel, que eu saiba aqui em Cufar sou eu o único.
Completamente desorientado, o furriel estava prestes a rebentar e a chorar mas, gaguejante ainda soletrou:
–  Mas... o outro tinha barbas?! ...
–  Barbas, eu? Oh, homem você deve ter apanhado sol. Vá à messe de sargentos, beba qualquer coisa fresca e depois falare­mos.

Entretanto Vagabundo já se havia escapulido e, passando pelo abrigo da sua secção, pediu ao cabo Cigarra para fazer entrega dos galões ao tenente médico, dando o dólmen ao impe­dido Amadu. Pela porta de trás entrou na messe onde Chico Zé e Paolo, já nas suas verdadeiras personagens de furriel e alferes, aguardavam com a restante malta o desenrolar dos aconteci­mentos.

Reis voltou desorientado à messe de sargentos. Ao reentrar olhou para a malta e reconheceu o trio que estava senta­do na mesa do canto. Respirou fundo e pensou: foram aqueles cabrões que armadilharam isto tudo, gozaram comigo. E saiu­-lhe da garganta com uma voz já aliviada:
–  Olha os sacanas do padre e do capitão!

Toda a gente riu. Assim, na sã camaradagem, lema daqueles jovens transformados em homens guerra, se deu a integração da vítima Reis na vivência dos Lassas.

Era assim?... Não!... Tinha que o ser! Era a forma de passar o tempo esquecendo o vagaroso relógio, no seu tic... tac... arrastante dos segundos e minutos, das horas e dos dias, eterni­dade do amanhã que nunca se sabia como iria ser.

______________

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16432: Manuscrito(s) (Luís Graça) (94): Salvé, minha safada, pequena, bela Helena, hiena, de Bafatá!

Salvé, minha safada, pequena, bela Helena, hiena, de Bafatá!

por Luís Graça (*)






Amorosa Helena,
pequena fula dengosa,
salva das garras do Islão
por zelosos missionários,
católicos, apostólicos, romanos…
Mas não da faca da fanateca,
que te extirpou, na festa do fanado,
o teu belo clitóris,
para te tornares o colchão de todas as camas,
a Vénus negra de batalhões inteiros,
a iniciadora sexual de tugas,
mancebos que as sortes vieram arrancar às saias das mamãs,
a alegre,
a divertida,
a traquinas
companheira de muitas farras de caserna,
correndo, nua e lasciva,
do regaço de tropas bêbedos que nem cachos,
para o abrigo mais próximo
quando às tantas da madrugada
soava o canhão sem recuo,
estoirava o morteiro 82,
disparava o RPG
e silvava a bala da Kalash!...

Bela Helena de Bafatá,
minha hiena,
que sabias pôr na ordem
os bravos e truculentos paraquedistas de Galomaro
que te batiam à porta a pontapé,
quando eu estava contigo,
deitado na tua esteira,

de palha de capim,
e me dispensavas pequenas gentilezas:
um ronco de missangas, vermelhas,
uma noz de cola,
uma cantilena da tua infância,
um punhado de mancarra seca ao sol,
uma talhada de papaia que trazias do mercado…
sempre que eu ia a Bafatá
e procurava a tua companhia,
na melhor das hipóteses, uma vez por mês,
no dia de folga dos guerreiros de Bambadinca…
Tu e as tuas amigas de Bafatá,
do Bataclã,

a Fatumata, a Ana Maria, e outras 
cujo nome já não lembro,
que tanto trabalho deram
ao competentíssimo furriel enfermeiro Martins,
que nunca punha os pés fora da sua morança,
e que eu duvido que alguma vez tenha ido a Bafatá,
o nosso querido Pastilhas,
que vivia 24 horas por dia dentro do arame farpado,
no perímetro militar de Bambadinca,
trabalhando incansavelmente,
de bata branca,
em prol de uma Guiné Melhor,
que nos aturou mil e um travessuras,
bravatas,
praxes,
esperas,
serenatas,
tainadas,
emboscadas,
partidas de mau gosto,
brincadeiras estúpidas e perigosas,
bebedeiras de caixão à cova
...e que sobretudo nos curou
de alguns valentes esquentamentos!

Destes e doutros males de amores,
dos milhões de unidades de penicilina
com que tu subtilmente te vingaste dos machos,
estás perdoada,
Helena, hiena,
abelha do ferrão e do mel…
Afinal, quem vai à guerra, dá e leva…
Tu curavas-nos dos males da alma,
o Pastilhas, das mazelas do corpo…

Entretanto, quando a guerra acabou,
para mim e para os demais tugas da CCAÇ 12,
por volta do mês de março de 1971,
não tive tempo de te devolver
a pulseira de missangas vermelhas,
nem sequer de te dizer uma palavra,
um adeus, até sempre,
um adeus, triste,
com morabeza e saudade,
essa coisa que os tugas nunca te souberam explicar,
essa palavra saudade,
um adeus sem regresso,
e uma lágrima mal engolida,
que Lisboa estava ali,
tão longe e tão perto.
à nossa espera...

Prometi guardar de ti
a doce lembrança,
das tuas estridentes e saudáveis gargalhadas de hiena,
da tua voz rouca e sensual,
da tua fala encantatória,
do cheiro exótico do teu corpo,
das tuas sagradas funções de sacerdotisa
do amor em tempo de guerra…

Imagino que a tua vida não tenha sido fácil
depois da independência,
se é que lá chegaste,
com vida e saúde…
Se sim, não sei como viveste esse dia,
24 de setembro de 1974,
não sei te raparam o cabelo,
se te insultaram,
chamando-te cadela dos tugas,
ou se te apedrejaram,
amarrada a um poilão,
ou se te violaram
ou se te renegaram para sempre,
que a pior das mortes é a morte social.

Nunca mais tive notícias tuas,
mas, quarenta e muitos anos depois,
revendo mentalmente
a minha primeira viagem, por terra,
em pleno chão fula,
do Xime até Contuboel,
onde nos esperavam os nossos queridos nharros, 

da futura CCAÇ 12,
ao longo do interminável dia 2 de junho de 1969,
o teu nome,
o teu rosto,
a tua voz,
o teu odor,
o teu corpo,
a tua púbis,
e as tuas gargalhadas, quiçá magoadas,
vieram-me à lembrança…
E essa lembrança tocou-me.

Lembrei-te de ti,
da história que se contava sobre ti,
muito provavelmente lenda,
passada em Ponta Coli,
entre os rios Geba e Udunduma,
frente à vasta bolanha de Samba Silate,
agora seara inútil de capim alto,
com o cadáver do furriel vagomestre do Xime
nos braços...

Lembrei-te de ti e das minhas/nossas escapadelas a Bafatá…
Ia-se a Bafatá,
a bonita e alegre Bafatá colonial,

a princesa do Geba,
para limpar a vista,
entrar no café da Dona Rosa,
ver as manas libanesas,

dar um mergulho na piscina,
comprar umas bugigangas da nossa civilização, 
cristã e ocidental,  
nos armazéns da Casa Gouveia,
comer o bife com ovo a cavalo
na Transmontana,
dar um salto ao Bataclã,
mudar o óleo, dizíamos, nós, machões,
cheios de testosterona no corpo e angústia na alma…
e passar, por fim, pelo café do Teófilo,
para o último copo, de despedida,
antes de apanhar o último Unimog,
de regresso a Bambadinca,
ao fim da tarde...

Eram os únicos momentos do mês
em que éramos donos do nosso tempo,
em que a nossa liberdade não estava cerceada,
cercada de arame farpado,
nem pensávamos na emboscada de ontem,
nem na operação de amanhã,
nem na puta da mina que nos podia matar
ou amputar um pé...

Também foste, à tua maneira,
uma heroína daquela guerra,
minha impossível amiga colorida,
separada pelos papéis
que nos obrigaram a representar
no teatro da tragicomédia daquela guerra…

Daí figurares,
contra toda a ortodoxia,
do teu povo, fula,
dos teus missionários, cristãos,
que te queriam a alma,
dos tugas, putos de vinte e poucos anos,
que apenas te queriam o corpo,
contra o blá-blá dos revolucionários do PAIGC
que não te terão perdoado
o teu colaboracionismo com os tugas,
para mais sendo tu conterrânea do pai da pátria,
o pobre do Amílcar Cabral
tantas vezes morto e remorto à traição,
ao longo destes anos todos,
daí figurares, dizia eu,
na minha galeria de heróis e de heroínas da Guiné…
Por direito próprio,
com todo o direito,
com o direito que ganharam as mulheres do teu país,
pobres,
as mais pobres dos mais pobres,
mas sempre dignas e corajosas,
apesar de ofendidas e humilhadas,

excisadas,
exploradas,
violentadas pelo sistema,
pela guerra,
pela dominância dos machos,
pelo imperativo da sobrevivência,
pela lotaria da geografia e da história…

Aceita esta pequena homenagem,
tardia, singela, mas sincera,
da minha parte,
e da parte  todos os demais meus camaradas
que dormiram contigo, na tua cama,
e em contrapartida,
dá-me o derradeiro prazer,
esse prazer tão terno,
de te ouvir soltar as tuas gargalhadas de hiena,
minha safada, pequena, bela Helena de Bafatá,
onde quer que estejas, 
...na terra,
no céu
ou no inferno!

Se ainda estiveres viva,
contra todas as probalibilidades
da estatística demográfica da tua terra,
... que Deus, Alá e os bons irãs te protejam!

Versão 6 | Lourinhã, 20 agosto 2016 (**)


____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16425: Manuscrito(s) (Luís Graça) (93): A vida, de fio a pavio

(**) Vd. poste de  12 de janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - P424: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá (Luís Graça)

Sobre o tema (o sexo em tempo em tempo de guerra...),  aqui vai uma lista (necessariamente incompleta, provisória, quiçá arbitrária) dos postes que publicámos (até março de 2009):

21 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4065: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-Quedistas (7): Os tomates do Capelão da BA 12, Bissalanca... e outras frutas (Miguel Pessoa)

5 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3025: Os nossos regressos (7): Perdido, com um sentimento de orfandade, pelos Ritz Club, Fontória, Maxime, Nina... (Jorge Cabral)

1 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3546: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (14): Em Junho de 69 havia bajudas a alternar no Tosco, na Conde Redondo (Jorge Félix)

19 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2556: Estórias de Bissau (16) : O Furriel Pechincha: apanhado ma non troppo (Hélder Sousa)

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2290: Estórias de Bissau (14) : O Pilão, a menina, o Jesus e os pesos que tinha esquecido (Virgínio Briote)

19 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2281: Estórias de Bissau (13) : O Pilão, a Nônô e o chulo da Nônô (Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)

14 de Novembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)

28 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1554: As mulheres que ficaram na rectaguarda (Luís Graça /Paulo Raposo / Paulo Salgado / Torcato Mendonça)

3 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1490: Favores sexuais furtivos em Mampatá (Paulo Santiago)

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

1 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1483: Blogoterapia (16): Males de amores ou... Tenho um lenço da minha lavadeira ali guardado na gaveta (David Guimarães et al)

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1476: Blogoterapia (15) : Mulher tua (Torcato Mendonça)

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação (Vitor Junqueira)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)

20 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P974: Estórias cabralianas (12): A lavadeira, o sobretudo e uma carta de amor

4 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P936: Estórias cabralianas (11): a atribulada iniciação sexual do Soldado Casto

18 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLV: Teresa: amores e desamores (Virgínio Briote)

17 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 -DXLVI: Estórias cabralianas (5): o Amoroso Bando das Quatro em Missirá

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14701: (Ex)citações (275): Hospitalidade, brejeirice e ... instinto de sobrevivência das mulheres e bajudas fulas de Nhala, na receção aos "periquitos", em 29/4/1973 (António Murta, ex-alf mil inf MA, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)



Vídeo (1' 02'' ). Alojado em You Tube > ADBissau
(Cortesia do nosso saudoso Pepito, 1949-2014. Gravação feita em Gadamael Porto, em setembro de 2013, cinco meses antes de morrer)



Vídeo (0' 44'' ). Alojado em You Tube > ADBissau 

(Cortesia do nosso saudoso Pepito, 1949-2014. Gravação feita em Gadamael Porto, em setembro de 2013, cinco meses antes de morrer)


1. Excerto do poste P14691 (*), da autoria do nosso camarada António Murta, ex-alf mil inf MA, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74) [foto à esquerda]

(...) À chegada da coluna a Nhala, e ainda antes de termos descido das viaturas, num ápice, formou-se uma pequena multidão vinda da tabanca, sobretudo mulheres e crianças, que nos receberam com palmas, cânticos, enfim..., se não em apoteose, pelo menos com grande euforia.

Fiquei entre contente e surpreso, a achar tudo um bocado exagerado. Seria sempre assim? Não foi preciso passarem muitos dias para ter uma explicação, plausível, para aquele acolhimento tão efusivo.

E cantavam acompanhando com palmas:

Periquito vai pró mato / Ó lé, lé, lé!, Velhice vai no Bissau / Ó lé-lé – lé-lé!. 

Esta cantilena, soube depois, era conhecida em quase todo o território da Guiné (**). E eram-lhe acrescentados outros versos, que só aprendi mais tarde, muito brejeiros e, pareceu-me, ao sabor da inspiração do momento:

"Mulher grande cá tem cabaço, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dele / Ó lé-lé – lé-lé"
"Mulher grande cá tem catota, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dela / Ó lé-lé – lé-lé"


E voltavam ao princípio com o Periquito vai pró mato, etc. etc. (...)

A população de Nhala é Fula. Os adultos parecem muito indiferentes em relação a nós, ou mesmo frios. Dependem muito da tropa, mas estão fartos de tropa. As mulheres e as bajudas atravessam o aquartelamento para se deslocarem à fonte que fica a pequena distância, num baixio. Está sempre alguém a passar para um lado e para o outro com bacias à cabeça e com a roupa que nos lavam. (...)

As bajudas, algumas bonitas, e toda a criançada são uma simpatia. É contagiante a alegria delas e um bálsamo para a nossa saúde mental. Ainda assim, como já disse, os “velhinhos” de Nhala parece que já não beneficiam desse bálsamo. Aproveitando as recomendações deles, vamos escolhendo as nossas lavadeiras. A oferta é grande, de modo que se fazem “contratações” despreocupadamente.

E em matéria de sexo, como é? Já em Bolama aprendemos que há lavadeiras “que lavam tudo” por pouco mais que a mensalidade da roupa lavada. «Desiludam-se!». As fulas são muito reservadas e pouco permissivas.

Contam-nos um caso ou outro de envolvimento com militares, mas excepcionais e por questões de afecto. A tropa em geral vai brincando, mais ou menos inocentemente, com as bajudas mais velhitas, mas sem consequências nem gravidade. De vez em quando, por ocasião da entrega da roupa lavada aos soldados, lá vem uma delas fazer queixa:
- Alfero, o soldado Manel do teu pelotão apalpou minha mama!

E eu perguntava:
- Ai, sim? E não lhe deste uma estalada?

E estava o caso resolvido. (...) (***)

2. Comentário do editor LG:

A propósito da conferência “Filhos da guerra”, no âmbito do Festival Rotas & Rituais (Lisboa, Cinema São Jorge, 22 de maio de 2015), tomei nota no meu canhenho:

 “Temos dificuldade em abordar em público este problema, o das nossas relações com as mulheres guineenses no tempo da guerra colonial. Pior ainda, num público feminino ( e senão mesmo feminista), português e africano, ou de origem africana… Somos, os homens, facilmente “suspeitos de cumplicidade” uns com os outros… Os homens são todos iguais, em toda a parte, defendem-se uns aos outros, dizem elas…

"A intervenção, longa e incisiva,  do Jorge Cabral, em tempo de debate, acabou por provocar algum sururu na sala. Disse ele, em síntese:

- Defenderei até à morte a honra do soldiado português na Guiné. Nós não eramos  nenhum emprenhadores compulsivos. Mais: atrevo-me a dizer que 80% a 90% dos soldados portugueses na Guiné não tiveram quaisquer relações sexuais com mulheres africanos… E se querem falar de prostituição organizada (que no meu tempo praticamente se restringia a Bissau e, em pequena escala, a Bafatá), pois tenho a dizer que é muito maior hoje, só na capital da Guiné-Bissau, do que no meu tempo"…
__________

Notas do editor:


quarta-feira, 18 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14385: Notas de leitura (693): "Neste mar é sempre inverno", romance de Tibério Paradela (edição de autor, 2014) (Parte II): a pesca do bacalhau e o paralelismo com a tropa e a guerra... (Luís Graça)




Elementos icónicos da primeira página, na Net, da Fundação Gil Eanes, com sede em Viana do Castelo...  (Reproduzidos com a devida vénia)...

No romance "Neste mar é sempre inverno", o navio hospital que apoiava a frota bacalhoeira chama-se "Angelisse" (pp. 155 e ss). Nome fictício, claro, para designar o Gil Eanes... (que representava para a tripulação dos navios da "frota branca", o que de certo modo representava, para nós, na Guiné, o Hospital Militar de Bissu)... 

Hoje o Gil Eanes é um navio-museu que merece a nossa visita...


[À esquerda: Imagem da capa do livro de Tibério Paradela, "Neste mar é sempre inverno" > Ficha técnica: ed. autor, agosto de 2014, Aveiro. Depósito legal: 379001/14. Tiragem: 500 ex. 262 pp. Capa de José A. Paradela. O livro pode ser pedido através do mail: paradela.tiberio@gmail.com ]


Mais algumas notas da minha leitura do livro do TibérioParadela (*):


Já desde 1927, do tempo da  Ditadura Militar, havia legislação que veio  promulgar medidas de incentivo ao desenvolvimento da pesca do bacalhau, e nomeadamente facilitar (e tornafr mais atrativo) o recrutamento do pessoal (vd. Diário do Governo, 1.ª série, Decreto n.º 13441, de 8 de Abril de 1927). 

Uma dessas medidas era a dispensa do serviço militar aos pescadores e marinheiros que tivessem cumprido um mínimo de seis campanhas de pesca consecutivas na frota nacional bacalhoeira. 

Noutros casos, os mancebos apurados para o serviço militar podiam beneficiar de adiamento até aos 26 anos. Além disso, a falta à junta de recrutamento podia ser relevada desde que os faltosos fizessem prova de que estavam embarcados... Em suma, a pesca do bacalhau na Terra Nova e na Groenlãndia era um desígnio nacional...

Pode todavia perguntar-se se havia algum paralelismno entre a vida a bordo e a tropa (e a guerra colonial) ? Nas notas que tomei, assinalei algumas notórias semelhanças, físicas, simbólicas e culturais:

(i)  Os pescadores, em geral recrutados pelo capitão do navio (ou por recrutadores a seu cargo, e por conta do armador), eram divididos em duas categorias em função da antiguidade (que, tal como na tropa, era um "posto" ou dava "estatuto"): os maduros (com uma ou mais campanha na pesca do bacalhau, em geral de seis meses); e os verdes, diríamos nós os "periquitos"... Competia aos maduros praxar os verdes, mas ao mesmo tempo apadrinhá-los, enquadrá-los, apoiá-los...

"O primeiro bote [dóri] a ser alcançado foi o número 8, o Fangueiro. (...) Sendo a primeira vez que arriava no bote, talvez de algum medo lhe estivesse a pulsar o coração. Quando o Nova Esperança passou à sua ilharga, o verde Fangueiro parou de alar, endireitou-se e rodou, todo ele, na contemplação da sua grande casa ali que, como se o ignorasse, se afastava sorrateiramente" (p. 87).

Mas não ficavam isolados os "verdes".. Por perto havia sempre um "maduro" que enquadrava,  supervisionava e, de algum modo, protegia:

 (...) "Não muito longe dali, o ti Armando Poveiro, o seu maduro, tinha-o debaixo de olho como as feras têm as suas crias. Não só para [o] proteger,mas também para o ensinar... e incitar" (p. 87)

(ii) As alcunhas, tal como na vida militar... Todos ou quase todos têm alcunhas,  em geral ligadas à sua proveniência geográfica ou terra natal, ou a alguma particularidade biográfica;

"Cá em cima, o Nazareno, o Farol [ilhavense,] , o Mira, o Poveiro, o Penicheiro, o Esquimó e também o Francisco, aliás, o Serrano" (p. 74)...

"O Francisco já se tinha apercebido de que as alcunhas tinham uma relação directa, nuns casos, com as terras de origem, noutros com o aspecto físico. O Nazareno, o Mira, o Penicheiro, o Poveiro, o Esquimó, o Chino. Outro tomara a alcunha da mãe, era o Gila. O Francisco estava agradado com o seu crisma. Ser da serra parecia que agora lhe dava um orgulho que nunca tinha sentido por não ser motivo para isso nascer-se no meio de cabras e de cumes" (p. 53).

(iii) O navio era a "grande casa", a caserna, o quartel, onde também havia segregação socioespacial... Por exemplo, não era habitual, os oficiais (capitão e imediato) entrarem, a não ser em situações excecionais, na área reservada ao pessoal (pescadores e moços de convés)... 

No bacalhoeiro "Nova Esperança", esse espaço, de "entrada reservada", chama-se rancho (que, segundo o gossário publicado no fim do livro, é o "espaço interior debaixo do castelo da proa", integrando a cozinha, refeitório e dormitório, p. 262).

Um dia, em que os homens andavam na faina na pesca (cada um com o seu dóri, e os devidos apetrechos), o velho Imediato lembrou-se de ir cozinha e pediu ao cozinheiro um café para ser servido no rancho, que o autor descreve sugestivamente nestes termos:

"Quando entrou no rancho o velho Oficial sentiu-se envolvido por um bafo agradavelmente morno mas acre de vinho e  cachaça. Noutro espectro odoroso, o fumo do cigarro feito na hora, o chulé e os restos de hálitos  não tratados. Tudo isto flutuva no ar havia uma hora, desde que os pescadores tinham partido para a faina" (p. 70)...

E onde não faltavam os calendários eróticos, com lindas raparigas com o corpinho à vela, tal como nas nossas casernas na Guiné, calendários que no caso de um navio balançam de maneira ritmada, "numa dança lasciva, sensual, convite à volúpia estonteante,  interminável" (p. 72)...

Perante o raparo do cozinheiro ("Não sei se eles [,os pescadores,]  iam gostar"), o velho Imediato comentou:

"Eu sei que os soldados não gostam que o Oficial de Dia lhes entre na caserna. Normalmente fazem-no mira de que haja algum desalinho para depois desferirem o castigo. Eu não vim aqui para isso, cozinheiro. Vim, simplesmente para tomar um café ao pé de si. Tenho uma enorme admiração pelos pescadores, mas não tenho menos por si, cozinheiro (...) Você sabe que a comida é motivo de muitas discórdias e guerras (...) (p. 71).

(iv) O mar é o mato... E só ao fim de quarenta dias depois de partirem de Lisboa, é que os homens do "Nova Esperança" , agora a caminho da Groenlêndia, voltam a pisar terra, neste caso o mítico porto de St. John's... 

"Bastaram quatro [dias] no porto de St. John's para lhes retemperar os corpos e tonificar os espíritos, porque pisaram terra firme, encontraram amigos de outros barcos, deambularam pelas ruas da cidade, farejaram o odor dos perfumes das mulheres nas lojas e centros comerciais desafiando as suas sexualidadesd reprimidas" (p. 106)...

(v) Mas o mar (e a pesca à linha do bacalhau) também é a solidão e a violência (dos conflitos, da fúria do mar, da dureza da vida a bordo, do risco de acidente e de naufrágio)... Haveremos de falar disso noutro poste, com mais tempo e vagar...

"Um homem sozinho, assim, num bote, no meio do mar, sente a paixão da liberdade e, ao mesmo tempo, o peso do abandono. É o que eu sinto. Mas o pensamento ninguém mo tira! A minha pobre Rita!"... [Fala do Tio Quico, o mais velho, que tem um filho em França, na emigração, e outro, o mais novo, apanhado na fronteira, recambiado para a tropa e agora nas Áfricas...] (p. 42).

(vi) Refira-se também a importância do correio...

"Agora têm pela frente cinco dias sem faina de pesca [a caminho da Groenlândia]. Só navegar. (....) E nas horas de descanso, sentados nas locas ou deitados nos beliches, a relerem as cartas que tinham recebido das famílias e amigos em St. John's" (p. 106).

(Continua) (**)

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Notas do editor:


terça-feira, 4 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13845: In Memoriam (201): Coronel Piloto Aviador Manuel Bessa Rodrigues Azevedo (1938-2014): "Blé, eu sei que, lá por onde andas, estás em boa companhia, com os amigos pilotaços Brito, Moura Pinto, Mantovani, Gil e as enfermeiras Manuela e Piedade" (António NMartins de Matos, ten gen pilav). …


Cor pilav Manuel Bessa Rodrigues de Azevedo (1938-2014)


1. Mensagem do nosso camarada da FAP e membro da Tabanca Grande António Martins de Matos

Data: 3 de Novembro de 2014 às 23:42
Assunto: Coronel Piloto Aviador Manuel Bessa


A notícia apanhou-me de surpresa, … morreu o "Blé" [, no passado dia 30 de outubro; tinha 76 anos].

O "Blé" era o Coronel Piloto Aviador Manuel Bessa Rodrigues de Azevedo, amigo de longa data e companheiro de muitas das missões mais arriscadas que executei na Guiné.

Para a maior parte dos militares que combateram no Ultramar o seu nome não deve dizer nada de especial e no entanto alguns devem tê-lo visto em voos picados, alguns dos que regressaram à Metrópole sãos e salvos certamente a ele o devem.

Eis a sua história da Guiné:

Quando em Abril de 1973 o aparecimento repentino dos Strelas produziram os efeitos que são do conhecimento geral, constatou-se que apenas restavam 4 pilotos aptos a voar o FIAT-G91, 2 na Esquadra 121-Tigres e outros 2 com o estatuto de "adidos", o Comandante da Zona Aérea e o Comandante da Base, ambos Coronéis.

Pelas suas funções, estes últimos apenas podiam participar em voos pré-planeados, não assegurando as missões de pedidos de apoio aéreo.

Nesta situação de emergência, a solução encontrada pelo Estado Maior para minorar a escassez de pessoal foi nomear 2 pilotos da Base de Monte Real para um destacamento imediato e de 2 meses.
O então Cap Pilav Bessa foi um dos escolhidos, tinha regressado de uma comissão em Moçambique, estava qualificado em FIAT G-91 mas nunca tinha estado na Guiné.

Um segundo piloto foi igualmente nomeado mas …. nunca chegou a aparecer.

No meio de toda aquela situação crítica em que nos encontrávamos,  ainda havia um pouco de "humor" que nos fazia sorrir e avançar no dia-a-dia, os 2 pilotos da Esquadra (o Pipoca e o Batata) foram esperar o "Blé" ao aeroporto de Bissau mesmo à porta do Boeing da FAP:  eu levava um "braço ao peito", o outro piloto tinha a "cabeça entrapada", logo lhe dissemos que a guerra não podia esperar, havia um alerta imediato para sair e naquele momento nós estávamos inoperacionais, tinha que ser ele a efectuar a missão.

Completamente atrapalhado,  ainda balbuciou algumas desculpas, não conhecia o terreno, logo lhe aprontei um mapa, a missão era lá para o Leste, "vais sempre a direito, não há nada que enganar", não tinha capacete, demos-lhe um (que nem lhe servia…), …..

Passado o efeito desta praxadela com muitas risadas e palavrões à mistura, logo nos dias seguintes o "Blé" passou a acompanhar-nos em todas as missões, sempre a número 2 não fosse o caso de se perder, ainda estávamos na época seca e de visibilidade reduzida, depois de largarmos o nosso armamento era só dizer-lhe onde ele devia largar a sua carga, mais à frente, atrás, direita, esquerda, aos poucos lá se foi começando a ambientar com o território, com as manobras anti-míssil e com o armamento (bem diferente do que tinha usado em Moçambique).

Foi assim que, apenas chegado a terras da Guiné, logo o "Blé" executou missões em todos os locais onde a intervenção dos FIAT-G91 foi solicitada, no Guidaje, Cufeu, Choquemone, Cantanhês, Guileje, Gadamael,…

Foi ele que inúmeras vezes me protegeu a retaguarda…

Foi ele que me alertou de 2 dos mísseis com que o PAIGC me quis presentear…

Foi ele um dos que presenciou (ao vivo) os acontecimentos de Guileje, até ficou registado num livro que escreveram sob o tema.

Foi ele que, com o seu espírito alegre e brincalhão, transformou os nossos jantares até então tristes e monótonos,  em alegres cavaqueiras, capazes de nos fazer esquecer todos os maus momentos daquela época.

- Blé, eu sei que, lá por onde andas, estás em boa companhia, com os amigos pilotaços Brito, Moura Pinto, Mantovani, Gil e as enfermeiras Manuela e Piedade. … Um dia, os do grupo que ainda estamos cá "em baixo", vamos visitar-te. Vamos recordar todas aquelas aventuras, desventuras e travessuras que fizemos! Prepara-te, vai ser uma festa de arromba!!!! (*)

Até sempre,  companheiro! (**)

António Martins de Matos [ex-ten pilav, BA 12, Bisslanca, 1972/74]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13815: In Memoriam (201): Bruna Durães (26/3/2003 - 28/10/2014), a neta mais velha do nosso querido amigo e camarada Benjamim Durães, ex-fur mil op esp. CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72)... O corpo estará ao fim da tarde em câmara ardente, na capela do Socorro, junto ao Mosteiro de Jesus, em Setúbal. O funeral será amanhã às 11h.

(**) Vd. aqui a sua biografia na página da Associação de Combatentes de Avintes > 31 de Outubro de 2014 > BLÉ - aqueles que da lei da morte se vão libertando

(i) Nasceu no lugar de Montes, freguesia de Olalhas, concelho de Tomar, distrito de Santarém, a 21 de Junho de 1938:

(ii) O "nickbname" Blé foi-lhe pela mana, ligeiramente mais velha;.

(iii) Por volta dos cinco anos, os pais, professores do ensino primário, mudaram-se para Avintes, concelho de Vila Nova de Gaia;

(iv) Depois do liceu no Porto, frequentoui a Academia Milita em Lisboa onde tirou o curso de aeronáutica;

(v) Foi escolhido para integrar o grupo dos Falcões, elite dos pilotos da FAP,  localizado na Base Aérea de Monte Real, voando então no F-86 Sabre, caça supersónico, monolugar e monomotor, avião da Nato;

(vi) Com a giuerra do do Ultramar, teve de mudar para o Fiat G 91, "similar ao Sabre mas não tão bom":

(vii) A sua primeira comissão foi no Norte de Moçambique, seguindo-se a Guiné e depois Angola; estava destacado em Cabinda quando ocorreu o 25 de Abril.

Para saber mais clicar aqui


sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Guiné 634/74 - P13501: A propósito de praxes e do Polidoro Monteiro que eu conheci, em Bambadinca, quando fui instrutor de mílícias: "O médico está preso!" (Paulo Santiago, ex-alf mil, cmdt, Pel Caç Nat 53, Saltinho e Bambadinca, 1970/72)

1. Um texto do Paulo Santiago, já de 26 de fevereiro último, mas que esteve em "stand by", por decisão dos editores já que fazia referência explícita a um camarada nosso, que ainda está vivo, e que foi alf mil médico... Omite-se o seu nome, de acordo com as nossas regras editoriais. Não faz parte da Tabanca Grande. (LG

Polidoro Monteiro, em Bissorã, 1971.
Foto de Armando Pires (2014)
Assunto: Polidoro

Luís:
Ainda a propósito do poste do Armando Pires (*), e também do muito que se tem falado de praxes (**), lembrei-me de uma história do Polidoro [, ten cor inf, último comandamte do BART 2917, Bambadinca, 1970/72, e entretanto já falecido], aflorada em tempos, muito pela rama. Se achares interessante, publica.
Paulo Santiago.

2. O Polidoro Monteiro que eu conheci:  
"O médico está preso!"

Quando em outubro de 1971 cheguei a Bambadinca, havia lá um médico que conhecia de vista e de nome, melhor de alcunha...

No meu tempo, na Escola Agrícola de Coimbra, não havia praxes, tinham sido proibidas uns anos antes no seguimento de uma situação que tinha corrido mal. Os alunos dos liceus, e os caloiros da Universidade de Coimbra, ao contrário, viviam num certo "terror", evitando ter encontros, após o toque  da "cabra" com os "praxadores mores". Nestes, os mais conhecidos, e mais temidos, eram o nosso futuro médico, e o "Mata-Gatos", assim chamado por maltratar gatos, naqueles dias em que se sentia frustrado por não efectuar "rapanços".

Foi o ex-praxador coimbrão  que eu fui encontrar em Bambadinca como médico.

Um dia, estava a fazer um "cross" com a companhia de milícias, repentinamente caí redondo. Meio reanimado, trouxeram-me para o posto médico. Diagnóstico: tensão arterial situada em 4-7,5. O clínico manda uma caralhada, diz que estou bastante fodido, e receita-me... whisky, em bastantes tomas durante o dia. Também aconselhou descanso.

Pedi ao ten cor Polidoro para me dispensar de duas ou três formaturas matinais, mas não lhe disse qual tinha sido a receita para a subida da tensão arterial. Esta normalizou ao fim de uns dias e, claro,  bebi mais que aquilo que já bebia. Soube mais tarde que não faltavam medicamentos para a baixa tensão.

Num dia de novembro, há uma coluna de abastecimentos ao Xitole, e um Unimog 411 vira-se. O condutor, um militar da CCAÇ 12, suicida-se dando um tiro na cabeça. Trouxeram o corpo para a capela de Bambadinca, onde numa pseudo autópsia aconteceu algo que não devia ter acontecido.

Pela mesma altura, o Pelotão Daimler foi rendido. O alferes médico em questão tinha lá a mulher (a primeira) mas quase todos os dias à hora de jantar, deixava-a no quartel e vinha comer e beber (bastante) para casa do gajo da PIDE/DGS, ou para casa do Rendeiro [, comerciante,] de quem era conterrâneo.

Na primeira noite de serviço dos "periquitos" do pelotão de cavalaria, o soldado de sentinela no posto, ao cimo da rampa, vê a altas horas um civil, branco,  a aproximar-se, manda-o parar e pede-lhe a identificação. O civil era o médico, vinha bem "carregado" e pôs-se a disparatar com o militar. Felizmente, apareceu o sargento de dia, que informou o soldado:
- É o nosso alferes médico.

Tudo acalmado, o nosso alferes médico vira-se para o soldado de sentinela, dizendo:
- Andas com uma cor muito pálida, amanhã passas no posto médico para te dar um medicamento.

"Periquito", ingénuo, cumpridor da ordem de um superior, no dia seguinte lá estava no posto médico. Neste existia um soldado maqueiro, bruto, meio sádico... Quando o médico  topou o militar de sentinela na noite anterior, disse:
- Oh Fulano Tal, este gajo necessita levar cinco ampolas de Vitamina C, subcutâneas dadas como tu sabes, e hoje leva duas e nunca mais vai esquecer a minha cara.

Diziam que aquelas injecções eram extremamente dolorosas, o certo é o militar ter ficado cheio de dores, nem sentado, nem deitado podia estar durante mais de um dia.

Acabou o curso de formação de milícias, fui passar o Natal e Ano Novo ao Saltinho. No dia 6 de janeiro de 1972, fui de heli para Bissau e,  passados três ou quatro dias, regressei de avioneta a Bambadinca, juntamente com o 2.º comandante, o major Anjos de Carvalho. Na pista, à nossa espera, estava o ten cor  Polidoro:
- Só vim aqui para vos dizer que o médico está preso. Está no quarto, a mulher foi embora e ele,  quando terminar os dez dias, vai recambiado.

O pelotão de cavalaria, no fim do ano, fez uma festa convidando o comandante. Veio à baila a cena das injecções de Vitamina C. Parece que a tampa do Polidoro saltou, já havia os rumores da "autópsia" e outras cenas pouco edificantes. No dia seguinte, arranjaram transporte para a mulher do médico, e na Ordem de Serviço saiu a punição...

Julgo que ninguém ficou admirado com o sucedido.

Paulo Santiago

[ex-alf mil, cmdt, Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72. instrutor de mílícias em Bambadinca; engenheiro técnico agrícola reformado; natural de Águeda]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 19 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12742: Furriel Enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (12): Chegou Polidoro, "O Terrível"

(**) Vd. poste de 15 de agosto de  2014 > Guiné 63/74 - P13498: "Francisco Caboz", um padre franciscano, natural de Ribamar, Lourinhã, na guerra colonial (Horácio Fernandes, ex-alf mil capelão, BART 1913, Catió, 1967/69): Parte III: Um periquito praxado com pornografia à mesa do comandante... E as primeiras impressões (más) de Catió e do destacamento de Ganjola...