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quinta-feira, 9 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24130: Prova de vida (7): A. Marques Lopes (ex-alf mil, CART 1690, Geba, e CCÇ 3, Barro, 1967/68), o hoje cor inf ref, DFA, que não esquece o duelo de morte com a professora de Samba Culo, em 7 de julho de 1967


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Geba > CART 1690 (1967/69) > O A. Marques Lopes em 1967, com duas beldades locais. Em 21 de Agosto de 1967, seria ferido com gravidade na estrada de Geba para Banjara na sequência da explosão de uma mina A/C e, uma semana depois, evacuado para o HMP, em Lisboa. Voltou ao CTIG , em Maio de 1968, para acabar a sua comissão,  tendo sido colocado então  CCAÇ 3, em Barro.

Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2005). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Com 265 referências no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, o A. Marques Lopes é um histórico da Tabanca Grande, foi um dos primeiros dez a entrar, em 14 de maio de 2005, já lá vão 18 anos... Foi, além disso, um dos nossos mais ativos colaboradores, como autor, nos primeiros anos do blogue. 

Fez ontem mais  um aninho, já fizemos um oferenda ao irã do poilão da nossa tabanca para que ele o proteja e o ajude conservar-se entre nós por mais uns aninhos, pelo menos até aos 100, que é uma idade bonita para a gente arrumar as botas e... o computador (!) e fazer as pazes com o mundo.(*)

Homem da escrita, publicou com grande sucesso um livro notável com as suas memórias da juventude. Satisfaz-nos saber que já chegou ao Brasil: "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", foi publicado em 2015, sob a chancela da Chiado Editora (hoje Chiado Books), e sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira. Tem 582 pp., que se devoram num ápice.

 Já lhe mandámos os parabéns e um abraço fraterno, com votos de melhoras: como muitos de nós, lá vai lidando com as suas mazelas (fez uma cirurgia ao estômago, de que está recuperar), mas garantiu-me, ao telefone, que tem ganas de chegar aos 100. Continua a trabalhar as suas memórias da Guiné, terra que o continua a fascinar. 
 
2. Ontem também foi dia de fazer "prova de vida" (**)...O mesmo é dizer, de  lembrar e de saudar o aniversariante, agora mais ausente do nosso blogye. Como ele faz sempre anos no Dia Internacional da Mulher, a 8 de março,  também não podíamos  deixar de evocar esta efeméride... 

Com discrição, mas não sem emoção, temos falado aqui sobre o papel da mulher, na Guiné e na nossa terra, no tempo da guerra do ultramar / guerra colonial. Honra-nos a presença, na Tabanca Grande, de alguns dessas mulheres, camaradas, muito poucas, e companheiras e amigas, algumas mais.

Muito em particular, não podemos deixar de evocar  o papel pioneiro das nossas camaradas enfermeiras paraquedistas, para quem temos sempre uma dívida  de enorme gratidão.  Na realidade, foram as as únicas camaradas de armas, no feminino, que tivemos. (Isto, sem esquecer as outras umlheres, "paisanas", que ficaram na nossa retaguarda e que nos apoiaram, de uma maneira ou de outra: mães, esposas, noivas, irmãs, amigas, namoradas, colegas, madrinhas de guerra e, por que não ?!, senhoras do Movimento Nacional Feminino).

Mas, no caso do inimigo de há meio século atrás, também não podemos deixar de lembrar aquelas que  foram não só enfermeiras, como também professoras e até combatentes nas suas fileiras.  Do lado do PAIGC, houve por certo mulheres que lutaram, mataram e morreram nesta guerra. Não sabemos quantas, não temos estatísticas,

A propósito corre-nos relembrar a história da professora de Samba Culo.   O nosso amigo e camarada A. Marques Lopes, alf mil da CART 1690 (Geba, 1967/68)  
estava no sítio errado, em Samba Culo, em 7 de julho de 1967, uma sexta-feira.  Tal como a jovem professora, da "barraca" de Samba Culo. que morreu nesse dia com uma rajada de G3.  

Foi um duelo de morte, coisa que era raro acontecer naquela guerra de guerrilha e contraguerrilha.  O A. Marques Lopes foi mais rápido a puxar pelo gatilho. Mas a  morte da professora marcou-o, para o resto da vida, como ele nos confessou, aqui no blogue (***). E como transparece no seu livro de memórias, em que conta a história  de vida do seu "alter ego", o António Aiveca. Essa pungente história de Samba Culo pode ser lida nas páginas 391 e ss. (os nomes são fictícios):

(...) Quando avançaram todos rapidamente, quase em corrifa, Aiveca  e os seus entraram de rompante na barraca. Os do Lindolfo, do outrro lado, já tinham começado às rajadas. Viu logo que era uma escola. Uma rapariga que estava ao pé do quadro,  tirava uma kalashnikov que estava lá pendurada . Levantou a mão esquerda ao alto para ninguém disparar.

- "Tá quieta! Firma lá!", gritou-lhe.

Mas ela não. Com a arma já empunhada meteu o dedo no gatilho. Disparou instintivamente. Ela caiu para trás e as balas da kalash furaram o capim do tecto.

Ficou extático de olhos esbugalhados fixados nela. A cabeça  escaldava-lhe e o coração parecia querer soltar-se. Os soldados puseram-se à volta dela a observar e comentar. A sua rajada acertara-lhe  na barriga e no peito. Era bonita  e devia ter vinte e poucos anos. 

(...) Veio a si quando ouviu a confusão ao lado. Os soldados à volta da rapariga morta, uns riam-se desabridamente, outros gritavam. Levantou-se e chegou-se a eles. O que viu quase lhe fez sair os olhos das órbitas. O Cosme  estva em cima da rapariga puxando-lhe a saia para cima e com a mão já nas cuecas. Atirou-se a ele.

- "Eu dou cabo de ti, grande cabrão!" (...)

(...) (pp. 391/393).


Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) (Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3, Colecção: Bíos, Género: Biografia).


3. Trinta anos depois, em 2008, o A. Marques Lopes (cor inf ref, DFA)  voltou lá, a Samba Culo, na margem esquerda do Rio Canjambari,  no antigo regulado de Banjara, para fazer contas com os fantasmas do passado.  E deixa-nos, em prosa poética, um texto que é revelador dos valores e princípios de um grande ser humano e de um militar português com sentido de honra e consciência  moral.

Há muito que elegemos esta história como uma das  melhores, já aqui publicadas, no nosso blogue.  A maioria dos nossos leitores, mais recentes, não a conhece, nomeadamente nesta versão em prosa poética (***). Não  voltamos a reproduzi-la, mas a título de prova de vida do seu autor, vamos recordar as circunstâncias em que decorreu o "duelo de morte" entre o A. Marques Lopes (que comandava um Gr Comb da CART 1690,  no decurso da Op Inquietar II,  4-7 de julho de 1967) e a professora de Samba Culo. 

(...) Na Op Inquietar II conseguiu-se o objectivo: a base de Samba Culo foi mesmo destruída... Mas há coisas que não vêm relatadas: diz o relator que "junto à base de patrulhas pelas 14h20, um grupo IN que seguia em coluna por um trilho,  detectou as NT abrindo fogo e tendo ferido um soldado, pondo-se em fuga pela reacção das NT. Pelas 14h45 saiu um grupo de combate em patrulhamento ao longo do Rio Canjambari e regressou sem contacto".

Não foi assim. O que sucedeu foi o seguinte: o IN encostou-nos ao Rio Camjambari, não podendo nós cambá-lo, porque era muito fundo, nem podendo dali sair porque estávamos cercados. O comandante da operação disse-me:

- Ó Lopes, a minha companhia já está aqui instalada, por isso, você, que tem um grupo autónomo, vá ver se consegue furar o cerco. 

E lá fui, não só uma mas duas vezes, sem sucesso. Na segunda vez, fiquei sob fogo cruzado do PAIGC e da companhia do comandante, tendo um soldado meu levado um tiro nas costas, dado pelos dos nossos.

Quando o comandante me disse, pela terceira vez, para tentar furar o cerco, disse-lhe que não ia. Que chamasse os T6, o que ele acabou por fazer, e foi assim que dali saímos. Mas o que mais me impressionou nesta operação foi o seguinte: Samba Culo tinha uma escola; quando lá chegámos, vi escrito no quadro preto, em perfeito português: "Um vaso de flores". Tinha desenhado, a giz, por baixo, um vaso de flores.

E o que nunca mais esquecerei na minha vida: quando atacámos a base, uma jovem dos seus 18 anos ficou com a barriga aberta por uma rajada de G3. E mais (coisas terríveis desta guerra!): o "Bigodes", o Armindo Correia Paulino (que foi, depois, feito prisioneiro pelo PAIGC e que acabou por morrer em Conacri), quis saltar para cima dela. Tive que lhe bater. 

Esta é uma situação que nunca me sai do pensamento... e da minha consciência. Tinham muitos livros em português, que era o que estavam a ensinar aos alunos (miúdos ou graúdos?). Trouxemos também (imaginem!) uns paramentos completos de um padre católico! Lembranças que se me pegaram para toda a vida. (...) (****)

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Itálicos / Negritos:  LG]


Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) (Escala 1/50 mil) > Detalhe > Posição relativa de Samba Culo, na margem esquerda do Rio Canjambari, a sudoeste de Canjambari, afluente do rio Farim, e aonde havia, em 1967, uma "barraca" do PAIGC, com uma escola.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24127: Parabéns a você (2150): Cor Art DFA Ref António Marques Lopes, ex-Alf Mil Art da CART 1690/BART 1914 (Geba, Banjara e Cantacunda, 1967/69)

(**) Último poste a série > 15 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23785: Prova de vida (6): Nem todos os balantas eram... "turras" (Manuel Joaquim, ex-fur mil arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67)

(***) Vd,. postes de:


29 de novembro de 2005 > Guiné 63/74 - P301: A professora de Samba Culo (A. Marques Lopes)

(****) Vd. poste de 7 de junho de 2005 > Guiné 63/74 - P49: Samba Culo II (Marques Lopes)

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23168: Agenda cultural (807): Seminário Internacional de História Militar - "As Forças Armadas e a Guerra Colonial (1961-1974): Adaptações, Evoluções e Impactos", a levar a efeito no próximo dia 4 de Maio de 2022 na Amadora

SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA MILITAR DA ACADEMIA MILITAR

“AS FORÇAS ARMADAS E A GUERRA COLONIAL (1961-1974): ADAPTAÇÕES, EVOLUÇÕES E IMPACTOS”

Portugal, Amadora, 04 de Maio de 2022


A Academia Militar organiza e desenvolve o Seminário “As Forças Armadas e a Guerra Colonial (1961-1974): Adaptações, Evoluções e Impactos”, em maio de 2022, com o objetivo principal de promover a divulgação científica deste tema central da História de Portugal mais recente.

O Seminário pretende reunir investigadores, académicos, estudantes e outros interessados nesta área da História de Portugal, de forma a proporcionar uma oportunidade para a divulgação de estudos e o debate de ideias no domínio da História da Guerra Colonial.

O evento será organizado no âmbito de uma parceria que reúne as sinergias da Academia Militar e do ISCTE-IUL, tal como tem vindo a ser feito no âmbito do Doutoramento em História Defesa e Estudos de Segurança, com o envolvimento da Comissão Portuguesa de História Militar.

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23136: Agenda cultural (806): Salgueiro Maia - O Implicado, filme de Sérgio Graciano (Portugal, 2021, 1h 55m), a estrear nos cinemas no próximo dia 14

sábado, 19 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23094: A galeria dos meus heróis (44): O "mô camba" Jorge Levi, natural de Luanda, levado por engano pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial... Um filho de pai ausente, que foi quase tudo na vida, não se achava mau ator de todo mas que, afinal, não sabia como sair de cena... (Luís Graça)

 

Angola > Luanda > Ilha de Luanda > Esplanada do famoso Restaurante Coconuts > 19 de Setembro de 2004 > Em cima da praia, praticamente privativa. Com seguranças, em todos os lados. O apartheid do dinheiro, como em qualquer outra parte do mundo não inclusivo.  Um ou outro russo, com dentes de ouro... Dos cubanos, não se dá conta...Um almoço de peixe grelhado com vinho ficava então, no mínimo, entre 40 a 50 dólares (o equivalente ao salário mínimo na função pública, em Angola nessa época!)... Estive em Luanda, pela primeira vez,  em setembro de 2003.  Ainda no tempo das "vacas gordas": 1 dólar equivalia a c. 85 kwanzas. O cacete (tipo de pão) custava cerca de 20 kwanzas (julho de 2004). Hoje, em 19 de março de 2022,  1 dólar equivale a 455,99 kwanzas (5,4 vezes mais). E 1 euro vale 504,07 kwanzas. Nesse tempo ainda eram raras as caixas de multibanco. Comprávamos  kwanzas na rua às  quínguilas que puxavam um maço de notas sebentas do farto peito que servia de cofre. A grande maioria da população activa de Luanda (três quartos) estava então na economia informal ou paralela.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2004). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




O autor, em Contuboel, c. junho/julho de
 1969.  Foto: Luís Graça

A galeria dos meus heróis >  O "mô camba" Jorge Levi, natural de Luanda, levado por engano pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial

por Luís Graça


– O que é que se leva desta vida ?!... Boa pergunta, a tua, mas, se queres que te diga, não sei, não sei mesmo responder-te... Assim, de chofre, tenho dificuldade em responder-te… Enfim, para te dar uma resposta, digamos, que não seja politicamente correta...

– Prazeres terrenos, coisas boas da vida que não haja no céu… Não é a tal pergunta de um milhão de dólares!...


– Sim, mas... o que me apetecia logo responder-te é aquilo que me parece mais óbvio: não levas nada, "mô camba" [meu amigo], fica cá tudo!… Mas tudo mesmo!... Casas, chácaras, automóveis, iates, contas bancárias, amantes, mulheres, filhos, netos, amigos, camaradas, memórias, vaidades, tainadas... 

E deu uma das suas saudáveis gargalhadas, que me vieram confirmar que aquele era mesmo o "mô camba" Jorge Levi

 Eh!, mano, lembrei-me dos iates, mas ficas a saber que não tenho (nem quero ter) nenhum.

– Talvez a pergunta seja cretina… E, depois, a verdade é que...ainda não saiste de cena, como tu gostas de lembrar!

Aí o Jorge,  um "caluanda" de alma e coração,  deu um murro na mesa, querendo talvez, com esse gesto (que não era de irritação),  exprimir um misto de espanto e de alívio, e quase fazendo saltar as chávena do café e os respetivos pires mais os balões da aguardente DOC Lourinhã:

– Porra, ainda não morri, nem sequer arrumei as botas!...É verdade, estou vivo e ainda sou capaz de vir contigo à Ericeira comer uma caldeirada... Já não vinha cá, ao "Puto", há muitos anos!... Sou mais velho do que tu, mas ainda não me acho com idade para encerrar para balanço, fazer o deve e o haver da puta da vida...


Infelizmente ele tivera  de voltar à terra dos seus avós não pelas melhores razões, mas sim por motivos de saúde... 


– Bem, ainda sou cidadão português... e europeu. Às vezes esqueço-me deste privilégio, que em Angola ou no Brasil vale ouro... Eu costumo dizer, tenho o melhor de dois mundos...Nasci em África, o berço da humanidade...  

Procurei tranquilizar o meu amigo, o "caluanda", com quem convivera no Seminário Maior, durante dois anos, antes de irmos para a tropa e depois, para a guerra na Guiné. Voltara a encontrá-lo em Luanda, há uns largos anos atrás, em 2004. E, mais recentemente, em Lisboa, onde ele, de passagem,  me procurou no sítio onde eu trabalhava.


Em 2015, ele viera expressamente de Luanda, onde também tem casa, na Maianga,   para ouvir em Lisboa a opinião de um reputado urologista, que o tranquilizou, relativamente à gravidade do seu carcinoma da próstata,  e o encaminhou para uma conhecida clínica em São Paulo. Embora reservado, o prognóstico não era assim tão mau quanto se temia no início. 

– Não vou morrer desta merda, mas tenho que submeter-me a  um tratamento rigoroso em São Paulo  – disse-me ele,  descontraído, nesse fim de semana, já não me lembro qual, do mês de setembro de 2015, no fim do verão, em que o convidei-o para almoçar comigo. 

Escolhi uma coisa que eu sabia que ele gostava, uma caldeirada de peixe em terras do Oeste estremenho, na Ericeira, que tinha a vantagem de ficar às portas de Lisboa, e que ele conhecia do tempo da tropa, quando passara por Mafra, no Curso de Oficiais Milicianos. No dia seguinte, ou no princípio da semana, partiria para São Paulo (onde, de resto, já residia a maior parte do tempo e tinha o grosso dos seus negócios).

Quis, também, de certo modo, retribuir a hospitalidade com que ele me recebera na ilha de Luanda, nesse ano já distante de 2004. Eu estava alojado numa casa de hóspedes, ternurenta, de estilo colonial, dos anos 20 do séc. XX, a Soleme, dirigida por umas simpatiquíssimas e adoráveis senhoras, manas de um conhecido general, próximo do Edu. Mas foi na rua, na Maianga, no sítio mais inverosímil do mundo, que eu me cruzei com o Levi, e foi ele que, espantosamente, me reconheceu.

– Bolas, estás na mesma! – interpelou-me ele, descaradamente.

– Só com... quarenta anos a mais!

– Dá cá um "candando", um abraço do tamanho da distância que nos separa no tempo e no espaço! 

Agora na Ericeira,  com o grande oceano Atlântico à nossa frente, retomámos a nossa  longa conversa na ilha de Luanda.  
 
– O que é que se leva desta vida ?... Perguntas tu, e bem, e eu volto a responder-te: Nada. 

– Se ainda fosses cristão... – acrescentei eu.

– Sim, se eu ainda fosse cristão, remeteria isso para o juízo final. Aí, sim, todos temos de prestar contas, crentes ou não crentes. E eu já tenho o bilhete comprado para a última 
viagem... Só não fiz a mala... nem pus de lado os mantimentos para a viagem, como faziam os antigos egípcios.

Não tinha perdido  o sentido de humor que eu sempre lhe conhecera, apimentado com o gosto da linguagem vernácula. E eu retorqui-lhe:

– Temos todos bilhete comprado ou reservado para o barco de Caronte... Mas acreditas nessa, do além ?


– Já não tenho idade para voltar a acreditar... Perdi a fé, na altura de ir para a tropa... Ou fizeram-ma perder.  Fui batizado, em criança,  por força do lóbi materno, com grande desgosto do meu avô e do meu pai, que eram militantemente ateus ou agnósticos, nunca soube qual era a diferença...

– Somos todos cristãos, de uma maneira ou de outra, até os ateus e os agnósticos. Todos temos uma matriz cristã... Não há como fugir ao nosso caldo de cultura judaico-cristã... Gosto de repetir que somos todos cristãos, 
 socioantropologicamente falando, uns "cristãos velhos", outros "cristãos novos"... E tu deves ser "cristão nivo", pelo apelido de família... Vá lá,  responde  à pergunta... – disse-lhe eu, em tom de mais de  galhofa do que de proviocação.

– Não  me conheces o suficiente, tivemos muitos anos afastados. E eu mudei, como todo o mundo... E mudei muito, Hoje sou como a enguia, refugio-me em subterfúgios, silogismos, desculpas mal esfarrapadas... Se calhar sou demasiado cobarde para te responder com franqueza…

E aí contemporizei eu, mais uma vez:

− Também não quero ser o teu confessor. Se invertêssemos os papéis, eu também ficaria  à rasca para te dar uma resposta brilhante, sincera e sobretudo convincente... Iria refugiar-me, como tu, nos lugares comuns... Mas hoje sou eu o entrevistador. Ou o santo inquisidor, se preferires...

E acrescentei, para lhe lisonjear o ego que eu sabia que era bem maior do que o meu:


− De qualquer modo, quero aqui deixar expresso o meu agradecimento pelo tempo de antena que me concedes... ainda por cima num mau momento da tua vida que, felizmente,  há de passar...  Sei que abriste uma exceção... no ano [, 2015,] em que fazes os setente anos e decides tirar uma sabática... Passas os teus negócios a um dos teus filhos "brasileiros", é isso ?!...


− Mais brasileiros do que angolanos ou portugueses, os meus filhos. Nenhum deles conhece Portugal, para desgosto meu... E de Angola, só Luanda e o Mussulo.... Nisso, fui um mau pai, os meus filhos pouco ou nada  sabem das minhas raízes... Tive pouco tempo para eles....

E depois de um gole da aguardente DOC Lourinhã, acrescentou: 

− Quanto aos meus negócios, no Brasil, estão agora limitados ao imobiliário, em S. Paulo, onde investi umas massas valentes na boa altura. Com a crise,  é bom ter património.  E se tens grana, compra... Quanto à minha sabática, se queres que te diga,  é apenas uma forma de ganhar tempo ao tempo, como se tal fosse possível... É uma corrida onde estou em desvantagem.

− Estamos todos em desvantagem, Jorge,  na corrida contra o tempo!...

E eu prossegui, explicando-lhe uma das razões de ser do nosso "almoço de trabalho"... A outra razão era de "saudade" e de "amizade".

− Acredita, estás aqui por uma boa causa... E alguém há de pagar o almoço... Já te expliquei, por email, a natureza do meu trabalho de investigação sobre histórias de vida de gente que andou no seminário e fez a guerra colonial...

– Pois seja, como queres. Mas não vejo onde e a quem o meu caso possa interessar.  Sou um caso atípico, deixa-me prevenir-te. De resto, continuo a ser um gajo porreiro, mesmo acabado, ou à beira do fim de prazo de validade... 

– Qual quê ?!... Somos velhos amigos, condiscípulos e só depois camaradas de armas, se bem que eu não goste da expressão. Por outro lado, nunca nos encontrámos na Guiné. Espantoso: vamo-nos encontrar em Luanda, estava eu a caminho do Hospital Josina Machel / Maria Pia, aonde eu fazer uma visita de estudo. Estava em Luanda num curso de administração hospitalar... Lembras-te  do nosso encontro ?!

Ele fez que sim com a cabeça, e eu prossegui:

– É verdade... São demasiadas cumplicidades para uma conversa íntima sobre o sentido último da vida... Passei grande parte da adolescência à volta desta estúpida questão existencialista... Anos que, afinal, não vivi!... Mas tu é que foste o sortudo, tu é que tiveste uma vida aventurosa, cheia de emoções, em pelo menos três continentes, entre o Velho e o Novo Mundo...

Depois de uma breve pausa, para molhar os lábios com a nossa aguardente DOC Lourinhã, no final da refeição, o Jorge Levi disparou:

– É muita bondade tua. Dás-me uma dica. Vou começar por aí... Nunca tinha pensado nisso, se calhar vivi uma vida por empréstimo, esta vida que eu vivi talvez não fosse minha mas dos personagens que criaram para mim… 

– Quem ? O destino ?

– Não sei quem, só sei que tudo  é teatro, afinal, citando o Machado de Assis do "Dom Casmurro"...

– Como assim ?!... É verdade, todos temos várias máscaras, desempenhamos vários papéis, podemos até ter vários heterónimos, como o pobre diabo do Fernando Pessoa que ouvia vozes e acabou por morrer a falar sozinho, entre duas bicas e um bagaço…

– Quero eu dizer: não escolhi, foram mais as vezes que eu segui a única picada que me apareceu pela frente. Noutras deixei-me levar pelas circunstâncias. A única exceção terá sido a entrada no seminário, na altura em que nos conhecemos...  

– Exceção ?... – perguntei-lhe eu. – Sempre me pareceste muito autodeterminado, mais seguro do que eu dos "caminhos do Senhor"... De resto, no Seminário Maior, eras o nosso herói, secreto, invejado: uma "vocação tardia", algo de muito bem amadurecido, e ainda por cima vinhas de um meio social favorecido... Até se dizia, ao ouvido, que o "caluanda" (a tua alcunha) era afilhado do Cerejeira... Havia gajos que te invejavam por detrás e adulavam pela frente... Muito mais importante para nós, “sotainas negras”, tinhas mundo, tinhas viajado, tinhas conhecido gajas... Nenhum de nós tinha mundo, e seguramente a maior parte eram virgens...

– Fazes-me rir!... 


– Mais tarde, muito mais tarde, voltei a encontrar-te, em Luanda, homem de negócios, até então de sucesso no plano empresarial, profissional, social e até amoroso... E ainda bem que não chegaste a padre, tinhas estragado muitas famílias... Sempre foste um sortudo com as gajas...

– Não me lixes! – intimou-me o Jorge. – São mais as vozes que as nozes. E depois não confundas sucesso com dinheiro. Ganhei muita grana com os negócios no Brasil e até em Angola, no tempo das vacas gordas... Mas também perdi, estupidamente, muito dinheiro... Calotes, casinos, festas, investimentos errados, desvalorização da moeda, subornos, luvas, prendas, "gasosa"... Sobretudo muitas luvas e muitas prendas. Sou realista, dirás tu que sou cínico:  o dinheiro compra tudo, menos a felicidade...

– Por favor, não digas isso aos pobres... E os negócios do coração ?

– Da cama, queres tu dizer... Vou-te ser franco, tenho pouco a esconder nesta altura do campeonato: tive gajas porque tinha dinheiro...

– ... E lábia!... Muita lábia, disseram-me!

– Seja, dinheiro e lábia ! – concordou o Jorge.

– Não é preciso mais – anui eu. – E alguma "tusa", vamos lá...Mas até isso agora se compra na farmácia.


– "Cumbú", dinheiro,  graveto, meu menino, sobretudo dinheiro para poder sustentá-las!... Não há "fodas" de borla, só por amor... O meu avô paterno, que eu ainda conheci bem, era um mulherengo, eu segui-lhe o rasto... Mas só gosto de brasileiras, dengosas, com cheirinho a cravo e canela...

– "Gabrielas"?!... Mas, já agora, quem era esse teu avô ?

E lá fomos mergulhar na história da família paterna... Esse avô, esse "pretoguês",  era um alentejano de Elvas, “um português das Arábias”:

– Levou o meu pai, aos quinze anos, a Badajoz, aos touros e às "putas"... Não fiques chocado: eram outros tempos... Estamos a falar do início da década de 1930. E pôs ao meu pai o nome de Amato Lusitano... Ainda estou a tentar saber porquê... mas cheira-me que tenha a ver com a sua, nossa, costela de judeus sefarditas, e depois cristãos-novos à força...

– O Amato Lusitano foi o médico português mais famoso do séc. XVI, João Rodrigues de Castelo Branco, descendente de judeus sefarditas, nascido em Castelo Branco, ao tempo de Dom Manuel I, o "Venturoso"... 

Falou-me com afeto e admiração desse avô, republicano dos quatro costados,  com quem ele ainda conviveu, em vida, em Angola, e que era "o seu ídolo de infância". Quando era "candengue", miúdo, viveu algumas temporadas com esse avô paterno em Nova Lisboa.

Esse avô era um homenzarrão, de barba pelo peito, e grande bigodaça, maçónico, anticlerical, professor primário. Deixara crescer a barba quando foi mobilizado para Angola, durante a I Grande Guerra. Participou nas "campanhas de pacificação do sul de Angola", onde foi ferido.

O Jorge sabia pouco desse período, sabia que o avô tinha estado integrado nas forças expedicionárias, sob o comando do general Pereira d’Eça (1852-1917), que combateram e derrotaram não só os alemães como o rei dos cuanhamas, o célebre Mandume (1894-1917) cuja bravura e carisma ele, de resto, passou a admirar. A sua paixão por Angola viria, ao que parece, desse tempo.

– O que te lembras mais desse teu avô ?

– Era uma rabo de saia, tinha olho azul como eu, impetuoso como eu, ainda mais garanhão do que eu, seguramente muito mais feliz e otimista do que eu... Melhor ser humano, seguramente, do que eu. Um homem com princípios e valores, que eu tentei seguir, mas que perdi ou atropelei nas trapalhadas da vida...

– ...Portanto, posso concluir que os amores são daquelas coisas que se levam desta vida...

– Amores e desamores – atalhou o Jorge. – Acho que não tive nenhum grande amor na minha vida... Nem as mães dos meus filhos... Gajas, sim, mas cansava-me delas depressa... porque eram possessivas, ciumentas, intriguistas, sacanas...

– Todavia, casaste ?!...

– Sim, como quase todo o mundo… Não há cão nem gato que não se case e descase... Em Angola, tal como no Brasil, é de bom tom ter uma "legítima" e uma amante. Ou duas, porque a uma delas  já estás a pòr os patins... Mas eu suportava mal a rotina do casamento e das relações estáveis... Ao fim de quinze dias a comeres bife, com batatas fritas e ovo a cavalo, já suspiras por umas ostras ao natural com um bom champanhe francês ou por uma feijoada mineira, acompanhada de umas caipirinhas...

– Tudo na vida é rotina! – comentei eu. – E o casamento tem muitas armadilhas, ao retardador.


– Casamento ? O casamento mata a paixão e o amor, e gera o ciúme... O casamento é só para dares uma mãe e um pai ao teu filho... 

– Ou é o preço que se paga para reproduzires os teus genes egoístas ?!...

– Ou isso !... No meu caso, de vez em quando voltava a casa, tipo caixeiro viajante, para "marcar o ponto"... pelo menos, na época em que viajava muito, França, Brasil, Angola, África do Sul... Por favor, não graves isto... E desculpa-me esta linguagem rude, franca, machista, como diriam as feministas, portuguesas ou brasileiras, mas eu sou desse tempo...

– Ficou por Angola, o teu avô Levi ?...


– Não, foi ferido, no célebre "quadrado de Mongua" em agosto de 1915 e penosamente evacuado para Luanda, onde se restabeleceu. Milagrosamente... 

– Regressou  a Lisboa, não ?!

 Sim, sim... Dedicou-se depois ao ensino e á divulgação do mutualismo e do cooperativismo. Assistiu, entretanto, com grande desgosto, à progressiva decadência da República e ao triunfo da Ditadura Militar em 1926 e à consagração do Estado Novo, já com Salazar. Por desgosto ou saudade, ou as duas coisas, retorna a Angola, instala-se em Nova Lisboa [hoje Huambo], como professor primário, na primeira metade dos anos 30. A minha avó ficará, nos primeiros anos,  na capital do Império com as raparigas. Era também professora. O meu pai era o único rapaz, o mais velho…

– Fala-me do teu pai…

– Esse seguiu também as peugadas dos meus avós. Depois do curso do magistério primário, foi para Barcelona tirar belas artes. Era o artista da família... Em 1936, com 22 anos, alistou-se nas milícias da República. Era anarquista. Louco. 


– Esteve na guerra civil espanhola ? – indaguei eu.

– Sim, e foi ferido. Ironicamente, não em combate contra os franquistas, mas sim numa "rusga" punitiva realizada pelos comunistas, imagina!... Matavam-se uns aos outros, aqueles filhos da mãe! 

– Safou-se ?

– Por um triz! – continuou o meu interlocutor. – Escapou à justiça dos "rojos" e dos "blancos"... Antes da queda de Barcelona, e logo depois dos bombardeamentos aéreos da cidade, o meu pai, que tinha passaporte português, pirou-se para França, creio que por volta de abril ou maio de 1938. Daqui para a Bélgica e depois depois Holanda e finalmente Angola. Eu nasceria seis anos mais tarde, já no final da II Guerra Mundial, em 1945.

– Passou incólume pela teias da PIDE ? 


– Não me perguntes como... A PIDE ou a sua antecessora (tinha outro nome, de que eu já não me recordo)...

– A "Pevide", até 1945, a PVDE, Polícia de Vigilância e Defesa do Estado.

– Olha, não sabia... Tinha pouca ou nenhuma implantação em Angola, essa "Pevide",  à época do meu avô... E mesmo a PIDE. Isto antes da guerra colonial... O território era vasto e os do "reviralho", sobretudo brancos e mestiços, mas também os negros "assimilados", estavam dispersos... e não incomodavam ninguém. Lisboa ficava bem longe. Alguns eram velhos desterrados por razões políticas ou de delito comum. Olha, tens o exemplo do Zé do Telhado, ainda hoje lembrado com respeito em Angola...

– A prova é que PIDE não previu nem preveniu, como lhe competia, os trágicos acontecimentos de 1961...

E eu emendei:

– Prever, devia ter previsto. Prevenido, era mais difícil, não era tarefa que llhe competisse.

– De resto, havia mais liberdade em Angola, que era uma colónia,  do que na capital do Império... – acrescentou o meu amigo.
– E éramos mais liberais nas ideias e nos costumes.

– O teu pai chega a Angola, quando ?... – pergunto eu.

– Talvez em finais de 1938 ou princípios de 1939, já não posso precisar. Em Amesterdão, apanhou um navio inglês, misto de carga e passageiros, que fazia a rota do Cabo. Os avós maternos do meu pai, que viviam em Lisboa, com alguns meios de fortuna própria (o sogro do meu avô era médico, também republicano), devem-lhe ter mandado dinheiro, "cumbú",  depois que fugiu de Barcelona. 

– Chega a Angola... e depois ?

– Desembarcou em Luanda, onde o navio inglês se reabastecia, e foi visitar os pais, em Nova Lisboa, decidindo depois percorrer Angola, de lés a lés, de Cabinda ao Cunene.

O Jorge conta-me que o pai, Amato Lusitano, para sobreviver e custear a expedição, fez de tudo um pouco: fotografia, pintura, ilustração, jornalismo. E até safaris. Era um bom aguarelista. Ganhou dinheiro a vender aguarelas e retratos a carvão aos fazendeiros ricos e até aos sobas, aos administradores, aos caçadores profissionais e aos missionários, que só conheciam a sua região. 

– Pelo caminho teve várias ocupações de ocasião, fez contactos e amizades.  E se calhar filhos... Era um sedutor nato. Conheceu a minha mãe numa fazenda de café do Uíge. E cantou-lhe a canção do bandido... Foi caçador no Leste, mestre escola em missões protestantes no Sul, capataz de fazendas de café no Norte , e boémio em Luanda. Acabou por se perder em Luanda... Álcool, sexo, droga, sabes como é... A decadência.

Enfim, escreveu para jornais em Luanda e até em Lisboa, sob pseudónimo, notas etnográficas sobre os usos e costumes dos diversos povos de Angola. Havia então uma grande curiosidade sobre a África negra, que viria a ser reforçada, em 1940, com a Exposição do Mundo Português, "de que foi comissário um grande africanista, o capitão Henrique Galvão, se não estou em erro, e que o meu avô conheceu", acrescentou o Jorge.

Depois da eclosão da II Guerra Mundial, o pai do Jorge, o Amato Lusitano, fixou-se em Luanda, na Maianga. Como tinha o curso do magistério primário, e havia falta de professores, não lhe foi difícil arranjar emprego. Mas não gostava de ensinar.

– Era uma homem de ação, e um gajo da noite, o meu pai. Não tinha pachorra para os putos da escola nem para os inspetores escolares  nem muito menos para os filhos. Por outro lado, amava os grandes espaços, as chanas e os desertos... Eu nasci, como te disse, antes do final da guerra…

– Um pai ausente ?!... – insinuei eu.

– Sim, em boa verdade, cresci sem pai, sem o afeto, o colinho, de um pai. A minha mãe sofreu muito com as escapadelas e as infidelidades dele... Ela, sim,  era uma verdadeira matriarca, uma mulher de forte personalidade, uma verdadeira angolana... Fiz o 7º ano no antigo Liceu Salvador Correia. E depois vim para Lisboa, para casa dos meus tios-avós maternos, que tinham um palacete na avenida da República, e que eram muito católicos. Viviam bem. Um deles era cónego da Sé e muito influente junto do Cardeal Cerejeira. Em contacto com a malta do colégio Pio XII e da JUC, aproximei-me da Igreja. E, de repente, no meu 2º ano de agronomia, tive uma coisa parva, daquelas que não têm explicação, uma crise mística, senti que Deus me chamava para padre e me confiava a grande missão de salvar a humanidade...

– Porra, uma vocação tardia?!... – interrompi eu.

– Sim, se quiseres... Entrei com facilidade no Seminário Maior, com a bênção do tio-avô cónego e do Cardeal Cerejeira, que me tratava por "meu filho"... Ainda me lembro de ter ido lá ao palácio dele, o palácio do patriarcado,  ali no Campo de Santana,  se não erro,  fui ao beija-mão com o meu tio-avô cónego...

– Mas foi sol de pouca dura, não ?!... Refiro-me à crise mística...

– Fiz dois anos de teologia, como sabes. Nas férias grandes, não resisti ao pecado da carne. Andei enrolado com uma gaja francesa que, ainda por cima, me pregou um valente "esquentamento". 

– Acontecia aos melhores. E depois ?...

– Já não era o primeiro, para quem, como eu, nascera e  crescera em África... Lá havia maior liberdade de costumes. Ou, se quiseres, maior promiscuidade sexual... Andava-se nos musseques com segurança, pelo menos até ao final de 1960...Enfim, perdi a vontade de salvar a humanidade, deixei de ouvir a voz de Deus a chamar-me, senti-me expulso do Paraíso como o  Adão,  ao ver o meu diretor espiritual a apontar-me o dedo e a por-me fora do seu gabinete... Fiquei especado no meio do corredor!... Ingénuo, havia lhe contado tudo, desculpando-me que  a carne era fraca, que eu era pecador, para mais impenitente, incapaz de mostrar arrependimento.... 

– Estou a imaginar a cena!... Foi aí que saíste.

– Não me expulsaram, tinha boas cunhas. Eu é que tomei a iniciativa de sair, fiz as malas e nem disse adeus àquele ninho de lacraus, de mentes perversas e falsos moralistas... Foi aí, que começou a debandada, poucos do meu tempo chegaram a padre, se é que chegou algum, com os ventos do Vaticano II a soprarem já forte. Claro, passei por uma crise de identidade, andei na noite de Lisboa e, para curar-me, acabei por ir para a tropa e alistar-me como voluntário nos paraquedistas. Mas chumbei. E foi um duro golpe na minha autoestima...

– Abreviando a história, foste para a Guiné como alferes miliciano...

– De cavalaria, imagina!

O Jorge, depois de mais um gole, da segunda rodada de aguardente DOC Lourinhã, explicou-me o que eu já adivinhava: o tio-avô cónego, a rogo da sua avô materna (em Lisboa) e da sua mãe (em Luanda), conseguiu "dar um jeitinho", através de capelão-mor das Forças Armadas.

– Afinal, cunhas sempre as houve... – atalhei eu.

– Acabei por ir, em rendição individual, não já para um esquadrão de cavalaria, que era em Bula ou Bafatá, não me lembro, e ficar no Quartel Geral, na Amura, a lidar com mapas e papéis... Um tédio, como deves imaginar, para um gajo que sonhava com os paraquedistas!... O que me valia era a 5ª Rep, o Café Bento, onde passava uma boa parte do dia... Ainda te lembras, do Bento, junto à Amura ? Era o maior "mentidero" da Guiné...

E continuou a sua narrativa:

– Fui de férias em julho de 1970, e aproveitei para dar um salto a Luanda, para matar saudades da minha cidade, da minha mãe, restante família e amigos, incluindo alguns dos antigos condiscípulos do liceu, que ainda restavam, poucos, por lá, e que eu não via há vários anos, desde que fora para Lisboa estudar... Uns estavam na tropa, outros na guerra, de um lado ou do outro... Um ou outro, mestiço, iria  chegar mesmo a general nas FAPLA na segunda guerra da independência.

Bissau, comparada com Luanda, nessa época, era uma vilória. Luanda crescera com a guerra e sobretudo com o notável desenvolvimento económico dos anos 60, coincidindo com a guerra (que não chegava lá). Era das cidades mais prósperas e animadas de toda a África...


– Devias ter conhecido Luanda nessa altura!...– fez-me ele inveja.

Foi então que o Jorge Levi travou conhecimento com uma brasileira do Rio de Janeiro (ou de São Paulo, já não posso precisar), a Zinha, que tinha vindo de Paris, com o Maio de 68 no currículo. E um curso de ciências sociais, creio que etnologia, mal tirado na Sorbonne.

Embora fosse filha de "coronel" (o pai era um grande fazendeiro no Nordeste), a Zinha lutava contra a ditadura militar, como de resto muitos dos jovens universitários, artistas e intelectuais brasileiros dessa época. Em trânsito por Luanda, a brasileira queria viajar para o sul de Angola e para a Namíbia, para fazer um trabalho de pesquisa sobre os ovambos, com uma tradição histórica de resistência à colonização europeia, alemã,inglesa e portuguesa... Mas as autoridades portuguesas e sul-africanas cortaram-lhe as asas e as veleidades…

– Mal a conheci, fiquei seduzido pelo seu "canto de sereia". Passei com ela um mês maravilhoso na ilha de Luanda e no Mussulo... Chamava-lhe a "garota de Ipanema", estava então na moda a canção do Tom Jobim e Vinícius de Morais... 

– Estou a ver o filme... Acabadas as férias...

– Quando chegou a hora de voltar a Bissau e ao tédio da minha Rep, na Amura, ela conseguiu convencer-me a acompanhá-la até Durban, onde dizia que tinha amigos, de origem indiana, ativistas políticos. Queria conhecer o pulsar da luta contra o apartheid... Tomámos um avião e acabámos por aterrar... no Rio de Janeiro, onde ela possuía um apartamento, ainda do tempo de estudante. 

Pôs a mão na testa, e exclamou:

– Porra, eu devia estar muito bêbado!... E estava. Sem me dar conta, acabava de me tornar desertor do exército colonial... Que leviandade!... Há amigos e familiares meus que nunca acreditaram nesta história do arco da velha, e continuam a pensar que eu desertei por razões políticas.

– A sério ?!... Não tiveste noção da gravidade dessa tua levi...andade ? Durban ou Rio de Janeiro, a distância era a mesma de Bissau.


– Em boa verdade, eu era um puto mimado... nesse tempo. Acredita, não tinha qualquer intenção de desertar, nem tinha razões para isso: estava em Bissau, no bem-bom, na chamada guerra do ar condicionado... Nunca tinha saído de Bissau, fora de Bissau só conhecia a estrada para Bissalanca... Nem sequer cheguei a ir a Nhacra comer ostras e camarões...

– Em conclusão,  um acidente de percurso.

– Nem mais: enganei-me no avião!

– E os teus pais e restante família ?

 Claro, a minha mãe, quando o soube, ficou fula comigo. O meu pai, esse, nem chegou a saber. Estava já separado da minha mãe e era-lhe indiferente saber o que eu fazia ou deixava de fazer. Recordo-me de ele me dizer quando fiz os meus 18 anos: "Agora és maior e vacinado, toma bem conta de ti, que eu não duro para sempre".  

E prosseguiu:

– O meu avô, paterno, esse, teria ficado radiante, se ainda fosse vivo. O meu avô materno, por seu lado, mal o conhecia, pouco íamos à fazendo dele no Uíge, por causa da distância... Deixámos de lá ir depois de 1961, com a guerra... O meu avô vinha a Luanda, uma vez por outra, mas aborrecia-se logo. Ele não era da cidade, era um homem do mato. E tinha, à boa maneira angolana, várias famílias... e eu terei ainda, seguramente, por lá, largas dezenas de tios e primos...

– E como foi depois a vida no Brasil ?

– Um ano depois, ou nem tanto, a minha fogosa companheira passou à clandestinidade... Desapareceu, pura e simplesmente... Deixou-me um bilhetinho na porta da geladeira: "Amo-te muito, mas mais a liberdade do meu Brasil. Ti cuida. Ciao”.

– Tiveste que ir à vida... ou melhor, ir à procura doutra  "garota de Ipanema"...


– Não gozes, tem pena de mim... Tive uma enorme dor de corno, porque o PCB, o Partido Comunista Brasileiro,  roubara-me a namorada... Talvez tenha sido..."a mulher da minha vida", se bem que eu nunca casaria com ela... A pobre da Zinha será encontrada, mais tarde, penso que já em 1973, morta com um tiro na nuca, nua, violada, na lixeira de uma favela... Pelo que consegui apurar, mais tarde, fora executada por um esquadrão da morte.

– Porra, lamento muito!... 

E depois de uma pausa:

– Foi então que te mudaste para São Paulo...

– Mudei de ares, e em boa verdade precisava de ganhar dinheiro... O
 patacão da guerra e a mesada da mamã (na realidade do avô do Uige, que cedo recuperou a fazenda depois dos trágicos acontecimentos do 15 de março de 1961 e montou um grupo de milícias de autodefesa)  haviam-se acabado há muito... Mudei-me para São Paulo... Lá conheci gente, portugueses, que se opunham ao regime do Estado Novo e à guerra colonial, incluindo alguns marinheiros que haviam desertado em França... Um deles abriu-me as portas do mundo dos computadores..., coisa de que eu nunca ouvira falar.

Nessa altura estava já em grande expansão, a mecanografia, as "main frames" e a informática de gestão. O Jorge Levi encontrou emprego numa conhecida multinacional, de origem francesa. Depressa aprendeu o essencial do negócio ... Acabou por abrir uma empresa de importação de equipamentos informáticos... Mais tarde, negociaria também em armamento, e em equipamentos eletrónicos para fins militares (carros de combate, transmissões, sistemas de defesa anti-aérea, etc.). Tudo de origem francesa. 

   Um salto de gigante, Jorge, temos de concordar.

Não se abriu comigo sobre esse período mais "obscuro" da sua vida, em que, segundo me deu a entender, terá chegado a vender a alma ao diabo... Pudor ? Má consciência ? Sigilo ? 

– Sabes como é, o segredo é a alma do negócio e em países como Angola os negócios de guerra são segredo de Estado... Posso só acrescentar que fiz algumas coisas que envergonhariam o meu avô paterno (para não falar do meu pai, que esse deixou cedo, em Barcelona,  a bandeira preta da revolução, o gajo era anarquista, como te disse)... Negociei com ditaduras militares latino-americanas... mas também com os cubanos, os angolanos, os franceses e por aí fora...

Muitos anos depois, vou encontrá-lo, ao Jorge Levi,  no centro de Luanda, por um bambúrrio, por um feliz acaso da sorte.  Combinámos um encontro no Coconuts, no outro  dia  
As suas feições não tinham mudado muito, apesar do tempo decorrido...

– Como o Mundo é Pequeno!...

Dessa vez, na praia à frente ao Coconuts, pus-me a mirá-lo de perfil, e reconhecê-lo por detalhes como o  nariz aquilino e o olho azul, de judeu sefardita, com provável ascendência holandesa… Os seus antepassados, cristãos-novos, terão ido para Amesterdão no séc. XVII. Alguns, poucos, ainda regressariam a Portugal, duzentos e tal anos depois, na segunda metade do séc. XIX, com o triunfo do liberalismo...


Embora discreto nesta matéria, dava então a entender que tinha bons conhecimentos no MPLA e até na "entourage do Edu" (ou do "nosso mais velho", como se dizia respeitosamente nessa época, em Luanda)... Tinha também boas ligações aos franceses e até aos russos, depois da queda do muro de Berlim. Não tinha, de resto, grandes preconceitos, de natureza político-ideológica, cultural, ética ou religiosa, quando se tratava de "negócios... sujos", mas "chorudos" como os da indústria da guerra.

– Que o meu avô me perdoe!– e levantava as mãos aos céus, esquecendo-se que o avô era ateu ou agnóstico..


Nunca mais voltara a Portugal, a não ser a seguir ao 25 de Abril, para regularizar a sua situação militar e pedir um passaporte. Beneficiou da amnistia aos refractários e desertores. Tinha tripla nacionalidade, angolana, portuguesa e brasileira... Era tratado como VIP na terra onde, de resto, nascera... 

Fez questão de lembrar que dois generais, que se notabilizaram na tal segunda guerra da independência, andaram inclusive com ele no liceu Salvador Correia... Um deles ajudou-o a recuperar a casa da mãe, na Maianga, ocupada a seguir à Independência ou ao 27 de Maio de 1976...

No dia seguinte ao nosso encontro, ele ia deslocar-se ao Huambo para prestar uma discreta homenagem ao seu saudoso avô. Apesar da guerra, e da destruição da cidade, os seus ossos ainda lá estavam, no cemitério local. Mandara compôr e ajardinar a campa que, milagrosamente, escapara à sanha dos homens da UNITA. Tinha lá um antigo empregado que zelava pela boa memória do patrão Levi...

– Ele era do MPLA, o teu avô ?

– Se sim, nunca mo disse abertamente... Era um nacionalista, isso sim.  Se quiseres, era o que se chamava um "compagnon de route", um companheiro de estrada... Mas como era branco, "tuga", e era funcionário público,com uma boa casa e uma boa horta, e tinha uma família numerosa para sustentar, incluindo criados (que ele considerava como parte integrante da família), nunca tomou posições públicas que o comprometessem aos olhos das autoridades portuguesas, e nomeadamente da PIDE, que certamente o vigiava, embora discretamente, em Nova Lisboa. Claro, apoiou Norton de Matos, Humberto Delgado...

E esclareceu:

– Nunca fui (nem já irei) à Torre do Tombo, tendo estado a viver fora de Portugal estes anos todos, mas é bem possível que o meu avô tivesse ficha na PIDE... Apesar de ser um herói da I Guerra Mundial, com uma cruz de guerra... Mas era amigo de muitos futuros nacionalistas angolanos... Ele ensinou a ler e a escrever a alguns dos melhores quadros e dirigentes, da região do planalto, não só do MPLA como da UNITA...

Em tom de desabafo, e com toda a sinceridade, o Jorge confidenciou-me:

– O meu querido avô não chegou (e ainda bem) a conhecer a independência da terra que ele tanto amava e que fez sua. Muito menos passou pela provação da devastadora guerra civil que se seguiu...  Morreu cedo, ia fazer setenta anos, em 1965. Teria morrido de desgosto, se visse os angolanos a matarem-se uns aos outros, com russos, cubanos e sul-africanos pelo meio. E se soubesse que o seu neto querido também havia contribuído, indiretamente, para isso...

– E o teu pai ? Os teus pais ? 


– Do meu pai perdi-lhe o rasto, disseram-me que se tinha radicado na África do Sul, logo a seguir ao 25 de Abril ou já depois da Independência, ninguém me soube dizer ao certo. Vivia com uma "cabrita"... As nossas relações sempre foram distantes, para não dizer difíceis. Para mim, morrera há muito... Na realidade, ele  já morreu  há uns bons anos atrás
, na África do Sul, mais ou menos com a idade que eu tenho hoje...  Nem sequer o vi, quando estive de férias da Guiné, em 1970. A minha mãe, essa, é retornada, não é assim que vocês dizem, aqui no "Puto" ?!... Ainda é viva, com 90 anos feitos, vive com uma das filhas... Uma grande senhora! Eu chamava-lhe a "rainha do Congo"... Portuguesa dos quatro costados, saudosa do império, salazarista, católica, apostólica, romana!... Mas uma santa, com lugar garantido no céu!

– E tu ?... Afinal, o que vais levar desta vida ? Ou contar ao São Pedro, à hora de lhe bateres à porta ? 
– insisti eu, com humor e ironia.

– Depois da nossa conversa, longa mas agradável, aqui à beira-mar, na Ericeira (de que já não me lembrava de nada), e depois da tua aguardente, que não fica atrás do "cognac" dos franceses, cheguei a esta conclusão definitivamente provisória ou provisoriamente definitiva....

– Fiquemos pelo definitivamente provisório...

– Como queiras... Eu é que não consigo imaginar outro guião para o filme da minha vida. Fui de tudo um pouco: santo e canalha, herói e cobarde, místico e safado, rico e pobre... Já não sou o gajo que  tu conheceste nos anos sessenta e tal, e que voltaste a encontrar em 2004 ... Depois disso, a vida tem-me corrido mal, a começar pela saúde, pelo amor e pelos negócios... Se a história fosse outra, eu hoje não saberia dizer quem sou ou quem fui... Estaria no divã do psiquiatra, com uma tremenda crise de identidade... É pena que um gajo não tenha uma segunda oportunidade...  Aí juro-te, que seria santo!

 Afinal, a vida é uma peça de teatro  e não somos nós que a escrevemos – tentei eu amenizar a conversa.

 –  E eu, sem nunca ter sido um gajo genial, acho que até nem  fui mau ator de todo...

– Não, não fostes nenhum canastrão! – arrematei eu. – A não ser porventura daquela vez em que foste levado pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial... O maior problema de pessoas como tu, com uma vida 
– como eu hei de dizer ? 
,  tão cheia, tão preenchida, é como saber sair de cena, sair do palco e das luzes da ribalta, com dignidade, discrição, estilo, humanidade... e humildade.

E em jeito de conclusão, ainda meti a minha colherada:

Aliás, é o nosso problema, meu e teu: como é que a gente aprende a despedir-se, com tempo e vagar, da Terra da Alegria, para citar o meu poeta preferido, o Ruy Belo, que também era das Católicas, acho até que foi da "Opus Dei" ?!...

– Não concluis nada, porque esse vai ser privilégio meu... Não me levas a mal, mas eu faço questão de pagar  a conta, mesmo estando tu na tua casa, que também é minha... Foi a conversa mais agradável e inteligente que eu já tive nestes últimos anos. E a caldeirada estava deliciosa. Estou-te muito grato por isso!  Deste-me vida e ganas de voltar a viver.

E não esteve com meias medidas, sem me dar tempo de reagir, puxou de um maço de notas, gesto que eu já tinha  visto em 2004, no Coconuts, pagou a conta e deixou uma boa gorjeta. 

Não voltei a vê-lo, ao Jorge Levi. E o meu último mail, enviado para a caixa de correio da sua conta no Brasil,  foi devolvido há uns largos meses atrás, sinal de mau augúrio. Onde quem quer que ele agora esteja,  espero que ainda me possa ler, e se ria das "baboseiras" que aqui escrevi a seu respeito, uns anos depois... 

Mas juro que é a verdade e só a verdade, mesmo que nomes de pessoas e de lugares possam eventualmente estar trocados, para respeitar o direito,  do  "mô camba", meu amigo, condiscípulo e camarada Levi, ao esquecimento... É o último direito, que ele e eu temos, o direito ao esquecimento.

© Luís Graça (2022)

Lourinhã, agosto de 2019. 
Revisto, 3 de março de 2023.
_________________

Nota do editor:

Último poste da série > 29 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22497: A galeria dos meus heróis (43): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - III (e última) Parte (Luís Graça)

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22489: A galeria dos meus heróis (41): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - Parte I (Luís Graça)


Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, onde se integrava o Paulo Raposo, frente ao Convento de Mafra. O Paulo Enes Lage Raposo, que nada tem a ver com a história que a seguir se conta (ficcionada, mas onde os factos são verdadeiros),  foi alf mil inf, MA, CAÇ 2405 / BCAÇ 2852 ( Mansoa, Galomaro e Dulombi, Guiné,1968/70), e o organizador  do histórico  I Encontro Nacional da Tabanca Grande (Ameira,  2006). A sua companhia perdeu 17 militares na travessia do Rio Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de fevereiro de 1969 (Op Mabecos Bravios). 


Foto (e legenda): © Paulo Raposo (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A galeria dos meus heróis > De companheiros de infortúnio a amigos para a vida 

- Parte I (Luís Graça)



1. Conheci o Bacelar em Mafra. 
Em finais de novembro de 1972.
Um mês antes do Natal.
Numa tarde fria e chuvosa...
E logo em Mafra. Logo ali, na ”Máfrica”,
como eu e outros que por lá passámos na tropa,
chamávamos àquela terra desgraçada.
Tudo por causa da EPI, 
a Escola Prática de Infantaria,
que se tornara a principal fábrica
de oficiais milicianos, alferes e capitães,
comandantes operacionais
com destino à guerra de África.


Ainda me soava aos ouvidos a frase  de uma canção de protesto, de um gajo de Coimbra, estudante de medicina, que deve ter chumbado a meio do curso, e que era do “reviralho”, cantava bem e tocava viola sofrivelmente : “Muita chuva, muito vento, muita merda… e um convento!", cantarolava ele na caserna, enlameado e estafado, depois do crosse semanal...

Por aqui passara eu, cerca de quatro anos antes, como “feijão-verde”.  Eu, o meu antigo capitão miliciano e outros camaradas de que já havia perdido o rastro.  Para mim, "criminoso" contra a minha vontade, era como voltar ao “local do crime” Foi dos regressos ao passado mais penosos da minha vida. Ao sítio onde não fora feliz, nem nunca o poderia ter sido. Foi aqui que recebi a trágica notícia da morte do meu pai.  Prematura, sem ter completado os sessenta anos.

Não me autorizaram sequer a ir despedir-me dele. Morrera na véspera do meu juramento de bandeira. Mandaram-me, da agência funerária, um telegrama em cima da hora. O tenente da minha companhia de instrução chamou-me ao gabinete e disse-me, seco e perentório, em resposta ao meu pedido para ir a Mértola, ao funeral: “O senhor soldado-cadete pode ir, o pai é seu, mas perde o juramento de bandeira, chumba no COM, vai parar ao CSM, a Tavira, às Caldas ou a Santarém, atrasa o seu embarque para o Ultramar em mais alguns meses… Enfim, a escolha é sua!”…

Sim, o pai era meu, mas a pátria era deles... Enfrentei,  nesse fim de tarde, um terrível dilema, dividido entre o meu amor filial, o meu dever de ir prestar a última homenagem ao meu pai, e a tomada de consciência,  naquele preciso momento, de que passava a estar, doravante, na “linha a frente” e, ao mesmo tempo, a ser o sustento da minha família, da minha mãe e da minha irmã, mais pequena. Por outro lado,   dava-me conta da impossível escapatória  daquele sistema totalitário, que era a “Máfrica”, representado pela nudez e a cruza daquelas paredes que me encarceravam. Não ficara em França, não ía agora fugir do meu país...

Confesso que chorei lágrimas de sangue no dia seguinte, enquanto jurava bandeira, na praça frente ao palácio, com o povinho mudo e calado ao largo… Trágica ironia, jurava defender a minha Pátria (se necessário, “até à última gota do meu sangue”), no preciso momento que descia à terra o corpo do homem que me dera o ser.

Passado pouco tempo estava em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, a meio caminho de casa, e mais perto também da minha irmã mais velha, que vivia em Almada e cujo marido, soldador,  trabalhava na Lisnave. Fui lá fazer a instrução de especialidade. Aproveitei uma licença de alguns dias  para dar um salto à minha terra e depor um ramo de flores silvestres  na campa, rasa, do meu velhote, morto pela silicose que lhe destruíra os pulmões.

Mas o Bacelar não tinha nada a ver com isto, com o meu passado recente e muito menos com os meus dramas de consciência. Ele era apenas mais um “companheiro de infortúnio”  que eu tivera o azar de encontrar em Mafra, desta vez no mesmo emprego. Claro que eu não o conhecia de lado nenhum. E, muito provavelmente, não  iria voltar mais a vê-lo,  a partir do dia em que cada um de nós fosse à sua vida, uma vez colocados noutros sítios. 

 Por estranha coincidência (ou, supersticioso  como eu era,  seriam mesmo coisas do destino ?!), tínhamos chegado, eu e o Bacelar, no mesmo dia, ao fim da tarde, com uma hora de diferença. Numa tarde fria e chuvosa, anotara  na minha agenda. Ainda a tempo, contudo, de podermos “tomar posse” (era assim que se dizia na época) do lugar do quadro do pessoal  da repartição de finanças local. Como se o lugar fosse nosso, "de pedra e cal", e para o resto da vida...

Mas eu devia estar, se não feliz, pelo menos aliviado por arranjar um emprego na função pública, com as habilitações literárias que tinha, o 7º ano do seminário que só dava equivalência para a tropa e o funcionalismo público.  Mas não!... Logo por azar meu, as finanças estavam instaladas naquele pavoroso convento, o mesmo onde funcionava, nas traseiras,  a “Máfrica”, de triste memória para mim.

Eu tinha chegado em cima da hora. O chefe da repartição, que me pareceu, à primeira vista, boa pessoa, afável, educado, com sotaque açoriano, foi quem nos apresentou um ao outro, e ao restante funcionalismo.

Mas, dado o adiantado da hora, fez questão de deixar a cerimónia da tomada de posse para a manhã do dia seguinte, com a promessa de, no respetivo termo, constar a data da véspera. Ele era a amabilidade e a calma em pessoa. E fez questão de nos dizer, no seu saboroso sotaque, que não nos queria, em caso algum, prejudicar a “antiguidade”. E carregava na penúltima sílaba com evidente deleite.

Percebi logo que também aqui, tal como na tropa, a “antiguidade” era um posto. Lixei-me com essa da "antiguidade", tive de substituir o capitão, na Guiné,  depois de ele ter sido evacuado para a “metrópole”, por motivo de doença,  que, segundo suspeitávamos, seria do “foro mental”. 

Nunca fomos chegados, eu e o meu capitão, falávamos apenas das coisas estritamente indispensáveis de serviço. Ele também não era de grandes falas. Sei que tomava algumas drogas para o sistema nervoso, almoçávamos juntos na messe de oficiais. Tínhamos uma messe só para nós, o capitão e os quatro alferes milicianos. Na prática, a messe era igual, para oficiais e sargentos, mas havia uma divisória, uma espécie de biombo, a separar as duas classes.

Alguém da companhia ainda o encontrou em Bissau, no HM 241, na “psiquiatria”. Era um verdadeiro  labéu para a reputação de um militar uma baixa psiquiátrica. Um tipo podia ser “apanhado do clima”, que se lhe desculpava tudo (ou quase tudo). Um gajo podia apanhar uma borracheira, daquelas de caixão à cova, que logo lhe acrescentavam mais uns pontos no currículo de macho. Um gajo podia até ser "cornudo", coitado, que isso não acontecia só aos outros. Um gajo podia ser “maluco”, mas nunca podia dar “parte de fraco”, "dar baixa", neste caso ir parar à “psiquiatria”… Muito menos sendo um comandante operacional.

Antes de saírem para o conforto dos seus lares, os novos colegas das finanças, solícitos, se não mesmo afáveis mas algo premonitoriamente distantes, deram-nos  indicações sobre onde  jantar e pernoitar. Que no dia seguinte logo se arranjaria melhor sítio para se ficar por uns tempos, já que quartos para alugar não faltavam naquela terra "acolhedora e hospitaleira" (sic). Confesso que não gostei da cara de alguns, que pareciam os verdadeiros “donos da baiuca”.

 


1 A. Conheci hoje o Ravasco. “Ravasco, que raio de nome!”,
pensei eu quando ele me estendeu a mão,
rugosa, de cavador…
”Será nome ou alcunha ?”,
tive a indelicadeza de lhe perguntar.
”Apelido, de família”, respondeu-me,
secamente, com cara de poucos amigos.
Na minha terra, dizia-se 
de um homem libertino, "putanheiro"...


Dormimos, nessa noite, numa pensão, rasca, numa das  ruas que atravessavam o casario frente ao canvento,  e que o meu novo colega logo reconheceu. E que cheirava a grelhados, a serradura e a mijo de gato.  Ele fizera aqui a tropa há quatro anos atrás, segundo me confidenciou. E ficara, desde então,  com um asco a Mafra.

Em conversa com ele, ao jantar, descobrimos que ambos tínhamos regressado, ainda relativamente há pouco tempo, da guerra do Ultramar. Eu de Angola, ele da Guiné. Éramos da mesma colheita, 1947, embora eu fosse mais novo uns meses.  Mas cada um, afinal, com diferentes memórias, experiências e até expectativas. As recordações que eu trazia eram até boas, as dele nem por isso, segundo percebi logo de início. 

Eu evitei, deliberadamente, falar em demasia desse passado recente que nos aproximava. Talvez por pudor. E também porque não conhecia o Ravasco, ou melhor, tinha acabado de o conhecer  há umas escassas horas. E, em boa verdade, não tinha a certeza de poder confiar nele. Tive até o pressentimento que muitas coisas nos podiam separar. Nunca fui pessoa de fazer amizades logo à primeira vista. Sempre foi uma das recomendações da minha mãezinha que era uma mulher sábia e com um formidável sexto sentido: nunca se enganava no primeiro juízo que fazia dos estranhos. Tirava-lhes logo a "pinta", pelas primeiras frases e gestos...

Para começar, o Ravasco era, seguramente, de famílias humildes. Em contrapartida, era um antigo camarada de armas, se bem que eu ainda não valorizasse muito essa condição. Agora era meu colega de trabalho. Mas eu, ao princípio.  atrapalhava-me, tratava-o ora por colega ora por camarada. Com alguma cerimónia.

E apercebi-me logo que ele não gostava de tocar na tecla da Guiné. Eu pus-me então a imaginar que ele teria passado um tempo pior, na Guiné, do que o meu, em Angola. Talvez tivesse até apanhado uma porrada, ou coisa parecida. Toda a gente sabia que a Guiné era um duro osso de roer. Mas os gajos da Guiné também gostavam de cantar o "fado da desgraçadinha", como se em Angola e em Moçambique nós tivéssemos só andado a brincar aos índios e cobóis. 

Percebi logo, também, que éramos diferentes, se calhar irredutivelmente diferentes, oriundos de diferentes regiões do País, e até de meios sociais  distintos. Eu, do Norte, ele, do Sul.

O Ravasco era alentejano de Mértola, e eu minhoto de Ponte de Lima. Do Alentejo eu só conhecia meia dúzia de anedotas, estúpidas, direi hoje. E nenhum de nós conhecia a terra um do outro. O que não admirava: naquele tempo,  há meio século atrás, ainda era fraca a mobilidade espacial dos portugueses, viajávamos pouco, dentro (e fora) do País, embora eu já tivesse carro. Mas o mais longe aonde já tinha ido, a Sul,  era até Lisboa, quando prestei serviço no RI 5, nas Caldas da Rainha.

O Ravasco confessava que o mais a Norte aonde já tinha ido fora a Aveiro. Fora lá, de comboio, com uns camaradas, mobilizados para a Guiné, comer um ensopado de enguias. Um deles era da Murtosa ou coisa parecida.

Estivera menos de dois meses no Campo Militar de Santa Margarida, a formar companhia. Fora mobilizado para a Guiné pelo RI 2, o Regimento de Infantaria 2, em Abrantes. E não teve pejo em dizer-me que não sabia exatamente onde ficava Ponte de Lima, “lá no mapa do Minho”. O que para mim era imperdoável...

De facto, para mim, o Minho era a “joia da coroa” deste país à beira-mar plantado, o meu país. Era no Minho que começava Portugal, o Portugal do Minho a Timor, como havia aprendido na escola. Sempre tive muito orgulho no meu Minho e, claro, no meu torrão natal, Ponte de Lima, que, segundo me ensinaram os meus avoengos maternos,  era a terra, a vila,  mais antiga de Portugal.


2.Vi logo que o Bacelar era mais viajado do que eu. 
Viera de Mini, de Viana do Castelo até Mafra, 
um dia inteiro a conduzir. 
Tinha um Mini Morris 850,
com jantes especiais, em segunda mão. 
Mas também não fazia a mínima ideia 
onde ficava Mértola, a minha terra natal. 
Disse-lhe que ficava na margem direita do rio Guadiana, 
e que já vinha do tempo de fenícios, romanos, visigodos e mouros. 
Não mostrou curiosidade em saber mais.


Na primeira noite, em que nos conhecemos, por sinal desagradável por causa do frio e da chuva, falámos sobretudo do tempo- Falar do tempo é sempre uma solução airosa quando um gajo  não  tem assunto para conversa, ou não está afim de conversar, ou não quer mostrar logo o jogo, a sua maneira de ser e de estar, a sua história de vida, os seus pontos fortes e fracos… Falámos pouco das nossas terras e das nossas andanças pelo país que nos calhara na rifa.

Simpático, o Bacelar mandou vir duas aguardentes velhas de vinho verde, que fez questão de pôr na sua conta. E estivemos ali os dois a falar, afinal amenamente, evitando, todavia,  tocar  em assuntos da tropa  e da guerra. O que era dfícil, convenhamos...

Na realidade, era como se estivéssemos ainda em África, a resguardarmo-nos do paludismo e a contar as noites e os dias que nos faltavam para a “peluda”. Em geral, eu era muito reservado, nunca ou raramente falava da tropa e, muito menos, da Guiné. Por outro lado, sempre nos tratámos por você, até pelo menos até ao 25 de Abril de 1974. Ele também era cerimonioso, talvez mais por educação do que eu. 

Fiquei depois com a ideia de  que lhe ficara o "bichinho de África" e que hoje ainda estaria arrependido de não ter aceite uma boa oferta de trabalho em Luanda. No Banco de Angola, gabava-se ele.  De resto, não terão faltado outras propostas de emprego, menos aliciantes,  como por exemplo a de escriturário numa fazenda de café, em Camabatela, se não erro. 

Não me explicou as razões por que voltou para a santa terrinha, ele que se gabava de ter alguns “grandes africanistas” na sua ascendência, do lado materno, um dos quais, militar,  ainda conhecera o Zé do Telhado no exílio, em Luanda, a caminho de Malanje. 

Mas as saudades, às vezes, falam bem mais alto do que a razão. Disse-lhe que fizera bem, que haveria de continuar a fazer a sua vida na sua terra, e que o futuro de Angola era incerto, tal como o de toda a África Austral, últio reduto dos brancos, o mesmo era dizer, do colonialismo. E não me enganei, o velho “apartheid” branco haveria de ruir em 1994, tal como já tinha antes ruido o muro de Berlim  e tudo o que ele representava, dividindo o mundo em duas partes como uma laranja…

Deitámo-nos cedo, estávamos ambos cansados, o Bacelar tinha vindo a conduzir desde Viana do Castelo. Eu viera de mais perto, de Almada, onde pernoitara na casa da minha mana mais velha. (Era casada com um operário da Lisnave, como já atrás referi. Tinham-se casado há pouco, estavam a montar a casa, viviam com dignidade mas com muito aperto, como as famílias operárias da época.) Vim de cacilheiro para Lisboa para depois apanhar, na Rua da Palma, uma camioneta da Mafrense, se bem recordo, ao fim destes anos todos.

Tínhamos guia de marcha para nos apresentarmos até às cinco horas da tarde desse dia, para a “tomada de posse”. Reparei no olho azul do Bacelar. Soube, mais tarde,  que era oriundo de uma família de pequenos senhorios, donos de terras de um antigo morgadio com direito a brasão. 

(Sempre invejei, diga-se de passagem, quem tinha algo de seu, casas e/ou terras. O meu pai construíra uma casinha de paredes de tabique no couto mineiro. Nada a que ele pudesse chamar seu. Nós, os do Sul, não tínhamos raízes telúricas e muito menos “pedigree”, brasão, árvore genealógica... E quem não tem raízes na terra nem árvore genealógica para mostrar aos outros, é mais propenso às depressões, ouvi essa teoria ao alferes miliciano médico do meu batalhão, que deve ter seguido psiquiatria, era mais “apanhado do clima” do que nós, operacionais.)

O primeiro emprego que o Bacelar arranjara, depois do regresso de Angola, fora numa repartição de finanças do distrito de Viana do Castelo. Um tio (ou tio-avô, materno, não fixei o grau de parentesco) tinha (ou tivera) um cargo importante na Direção Distrital de Finanças do Porto. Teria sido, ao que parece, condiscípulo de diretor-geral das contribuições e impostos, o dr. Vitor Duarte Faveiro. Por isso, no gozo, eu chamava-lhe  “filho de Ansião”… E o apodo ficou, quando os outros sacanas dos colegas mafrenses descobriram… “Dor de corno!”, pensei eu. Quem tinha “cunhas” para entrar na DGCI, era logo apodado de “filho de Ansião”, a terra do director-geral que toda a gente reverenciava e temia, sendo tido como um grande fiscalista. 

Eu não lhe disse, por vergonha,  que também tivera uma cunha, essa eclesiástica. De um cónego do cabido da sé-catedral de Beja. Meu antigo professor. De qualquer modo, tanto eu como o Bacelar, havíamos feito, com sucesso, um concurso de provas públicas, como era norma do Estado Novo.  Éramos já “concursados”… Consolava-me a ideia de ter entrado, por mérito, não tendo roubado o lugar a ninguém. (Ou roubara ?... É uma dúvida que, então, se não me dilacerava, pelo menos me incomodava um pouco.)

O Bacelar tinha a secreta esperança de ainda poder ser chamado para o Banco Nacional Ultramarino ou para o Banco de Portugal, se bem percebi. Ou de vir a ficar mais perto de casa, no caso de  continuar nas finanças.

Se ele tinha defeitos que saltassem logo à vista, era essa de se gabar do seu “capital de relações sociais”, como se diz hoje…. A matriz  da sociedade portuguesa era ainda na época muito clientelar, nada se conseguia (empregos, negócios, casamentos, tropa, etc., ou um simples internamento nos Hospitais Civis de Lisboa…) sem “conhecimentos”, o mesmo era dizer, sem “cunhas”. Mas não precisava de ser “cunha” de gente muito importante, às vezes até parecia que quem mandava mais neste país era a criada, o motorista, a amante, o sargento, o sacristão, o caseiro, o feitor, o maioral, enfim o chefe do pessoal menor… Nas zonas rurais, o feitor era um tipo poderoso, tal como o sargento na tropa… Eu via por Mértola e Beja, onde os latifundiários, a viver na capital, raramente lá punham os pés, a não ser na época  das colheitas e da caça.

Ambos arranjámos um quarto, amplo, com duas camas, numa casa sita no centro da vila deMafra. Vivia-se, naquele tempo, do aluguer de quartos a professores primários, funcionários públicos e militares da Escola Prática de Infantaria, incluindo soldados-cadetes que tinham algum poder de compra. Era simpática, a velhota, a dona da casa, viúva de um sargento, se bem me lembro ainda.

Os quartos já não eram baratos na época e eu, tanto como o Bacelar, nos convencemos, estupidamente, que estávamos ali de passagem. Mais ele do que eu. A nossa ideia era, logo depois da tomada de posse do lugar do quadro, pedir  de imediato transferência. Eu, para Beja ou para Almada (estava indeciso), o Bacelar para Braga ou Viana do Castelo. Acabaríamos por ficar mais de 21 meses naquela "vida de ciganos", a que passei a chamar Máfrica Dois.

Confesso que detestava a Máfrica, como eu chamava  àquela terra, tomando a parte pelo todo. Estava farto da tropa. E se calhar as pessoas  de Máfrica Dois também estavam, tirando as velhotas simpáticas que viviam do aluguer de quartos. 

 O meu tenente-coronel, comandante do meu batalhão,  na Guiné, ainda me fez a cabeça para meter o chico. Deu-me um louvor, imaginem! 

(E se eu tivesse metido o chico ? Não me livraria de voltar à Guiné, agora como capitão. Secretamente, a ideia não me desagradava de todo, teria hoje um melhor pé de meia. Mas também lá podia ter deixado a meia, o pé ou até a vida. Mas os galões dourados de capitão não me deixavam indiferente, a mim que, não passando de um simples alferes miliciano,  experimentara, por breves meses, a secreta  volúpia do poder, que tinha como contrapartida o angustiante desafio de comandar 150 homens num teatro de guerra, e o risco de perder alguns. Eu que antes nunca estivera à frente de nada, nunca fora ninguém, nem sequer chefe de turma ou capitão de equipa de futebol!...)

Tínhamos apenas um reposteiro a separar as duas camas, como nos quartos de hospital. A minha cama tinha um colchão de palha (!) onde me afundava com os meus 90 quilos. (Engordei, estupidamente, depois que passara à peluda.)


2A. Para o meu gosto, feitio e educação, 
o Ravasco tinha um tipo de humor um pouco brusco e mordaz. 
Não sei se era um humor tipicamente alentejano. 
Afinal ele era o primeiro alentejano com quem eu ia trabalhar. 
E não me lembrava de ter lidado na tropa 
com alentejanos ou algarvios. 
Nós, os do Norte, já na altura os tratávamos por “mouros”. 
Por sorte, a minha companhia em Angola 
só tinha angolanos, minhotos e durienses. 
E demo-nos todos bem.


Não me importei de partilhar um quarto, com o Ravasco, afinal ainda estávamos habituados, tanto um como o outro,  ao ambiente de caserna, aos seus maus cheiros, à sua bagunça, ao seu ar opressivo, à sua promiscuidade... O meu quartel no leste de Angola também era uma espelunca, dormíamos com cobras e ratos....Sempre poupávamos algum dinheiro e, dentro em breve,  estaríamos de volta a casa. Ou, pelo menos, era essa a minha  secreta esperança. 

Vi que o Ravasco era poupado, se não mesmo forreta. Usava roupa fora de moda. O seu único luxo eram os jornais e um ou outro livro. Percebi que andava a preparar-se para fazer o exame do 7º ano do  liceu. O 7º ano do seminário não lhe valia de nada. Queria seguir letras, julgo que direito. Tinha uma obsessão pelo direito. Se calhar, era-lhe mais fácil por causa do latim. Queria aproximar-se de Lisboa para poder entrar na universidade.

Acabámos também por tornarmo-nos, se não íntimos, pelo menos mais próximos, por força das circunstâncias, como os prisioneiros que estão na mesma cela e estão condenados a, minimamente, entenderem-se. Fiquei a saber que ele tinha deixado noiva em Beja. Ora eu, nesse aspecto, estava mais à vontade, era livre como um passarinho.

Fui conhecendo-o, a pouco e pouco. Fomo-nos conhecendo. Dei conta de que, debaixo da sua aparente bonomia, e do seu verbo fácil, fluente, alegre e até folgazão, havia um homem reservado, subtilmente amargo e revoltado com a vida e com a sorte que lhe coubera a ele e à sua família e à gente da sua terra. Não esquecia a injustiça da doença e da morte do pai. E tivera uma infância difícil, segundo percebi. “Criado a migas, a toucinho de porco e a ervas do campo que agora vão à mesa do rico”, rosnava ele, mal humorado.

Tanto quanto pude apurar das nossas conversas em Mafra, onde ambos estávamos “desterrados” (a expressão era dele),  o Ravasco era neto de ganhões, e filho de mineiro, e que tirara o 7º ano do seminário, graças a uma bolsa de estudo da diocese de Beja. Julgo que por detrás dessa obra benemérita haveria uma senhora devota, de uma família de grandes proprietários agrícolas, muito conceituados na região. Foi o que ele me deu a entender, sem entrar em pormenores. Era uma bolsa para estudantes pobres, oriundos do Baixo Alentejo. 

Quiseram-no encaminhar para o sacerdócio, mas ele terá percebido, quando acabou filosofia, o 7º ano, que “não tinha vocação”. Ou talvez pior, para um cristão: terá perdido a fé ao lidar (mal) com as injustiças de que o pai fora  vítima, ainda em vida, nunca lhe tendo ocorrido que Deus poderia estar a  pô-lo à prova. Como me pôs á prova a mim, quando deixei pai e mãe e fui para Angola, não para o “bem-bom”, mas para a guerra.

No verão, o Ravasco ia sempre para França, para a região de Bordéus, fazer a campanha  das vindimas. Entretanto dera  o nome para a tropa, mas beneficiava de uma licença militar para se poder ausentar temporariamente do país. Nunca lhe passou pela cabeça não voltar a casa e ficar em França, tornando-se refratário.  Sempre se considerou um homem de palavra. E patriota. E aí a minha consideração por ele aumentou, apesar de eu o continuar a chamar “mouro”. Não levava a mal. Tal como eu, também não, quando no gozo me chamava “morgadinho” e, depois do 25 de Abril, "pequeno-burguês". 

Ainda chegou a ser “aliciado” por um comité luso-francês, católico, contra a “guerra colonial” que dava apoio a desertores e refratários portugueses na região de Bordéus. Mas ele nessa altura não queria saber nada de “política”. E era agarrado à família. E, em boa verdade, temia represálias contra o pai, já doente, se ele  não regressasse de França. O que, sabendo o que sabemos hoje, não houve represálias contra as famílias de exilados, desertores e refratários. 

Segundo ele me contará, mais tarde, o pai tinha sido mineiro nas minas de São Domingos, entretanto definitivamente encerradas  em meados dos anos 60. Vem a morrer quando ele estava aqui, em Mafra, a fazer o COM. De silicose, ao que parece, uma doença  então muito comum entre os mineiros. Mas só tardiamente fora diagnosticada e reconhecida, ao pai, essa doença profissional, com direito a reparação médico-legal, segundo ele me explicou.  De pouco lhe terá valido a “miserável pensão de invalidez” que lhe fora atribuída, a expressão era do Ravasco.

Eu ainda comentei que no Norte ainda era pior, os rendeiros e os pequenos lavradores, ao fim de um vida dura de trabalho, morriam de miséria num catre, numa cabana de madeira,  só com a ajuda da família, quando a tinham.  E chamavam o médico só na hora da morte. Ele endureceu a expressão do rosto e respondei-me com veemência: “É porque você não sabe o que é um ganhão nem nunca engoliu o pó de uma mina!”… E eu aí tive que reconhecer que ele tinha razão, eu sabia lá o que era um ganhão e muito menos uma mina ou um mineiro e essa coisa da silicose. Nalgumas coisas eu tinha sido um privilegiado da sorte, embora nunca tendo sido rico, fiz questão de lhe frisar. 

O Ravasco tinha ajudado a família com o vencimento de alferes miliciano de artilharia, enquanto estivera na Guiné. Era frugal, não se metia em tainadas. Bebia  de vez em quando o seu uísque. Não fumava. Nem sequer veio de férias para poupar o dinheiro da passagem. Saberei mais tarde, quando ganhámos mais confiança, que terá optado por ir uma semana a Bubaque, nos Bijagós.  Tencionava arranjar um pé de meia para se poder casar. Mostrara-me, ao fim de uns meses,  uma fotografia da rapariga que lá deixara em Beja. Não fixei o nome. Só reparei que não era lá muito bonita: era trigueira, de olhos de cor de azeitona, não fazendo o meu género. 

Senti, isso sim, que a morte prematura do pai, antes dos sessenta  anos, deixara-o muito abalado e revoltado. Percebi logo que ele era do “contra”, como diria o senhor meu pai. Não gostava de Salazar nem de Caetano. E referia-se à guerra do Ultramar como “guerra colonial”, expressão que era então proibida nos jornais. E, pior,  também não frequentava a igreja. Fazia-me confusão, sendo ele um ex-seminarista.

Depois de vir da guerra, começou a interessar-se pela política e lia o “Diário de Lisboa”, além do “Comércio do Funchal”, de que eu nunca tinha ouvido falar antes. Era um jornal cor de rosa. Cheguei a dar uma vista de olhos, mas não me despertou a curiosidade.

Em suma, as nossas afinidades eram puramente acidentais ou circunstanciais. Fôramos parar àquela terra que, tal como a conhecemos hoje,  não existiria se o nosso  Dom João V, para mim de boa memória,  não mandasse ali construir aquele monumental palácio e convento, um dos mais grandiosos da Europa,  que o Ravasco teimava em qualificar de “monstruoso”. 

A repartição de finanças estava lá instalada, tal como a EPI, e julgo que mais repartições públicas, já não me lembro ao certo, até por que convivia com pouca gente da terra, sempre que podia dava uma escapadela pelos arredores, sobretudo ao fim de semana.  

No inverno rapava-se frio de rachar. Eu, que vinha do Norte, onde também faz frio, lembro-me de ter de usar ceroulas no inverno e grossas camisolas de lã em Mafra. Eu e o Ravasco dávamo-nos mal com aquela humidade marítima que nos chegava do Atlântico e se entranhava nos ossos. Não havia aquecimento central, nem uns simples aquecedores a gás.  Mas Mafra tinha belas praias, com destaque para a Ericeira. Comecei a gostar da Ericeira, e da Foz do Lisandro, e sobretudo das miúdas estrangeiras que começavam a parar por lá.


3. Bom, lá fomos tomar posse no dia seguinte, logo de manhã. 
No gabinete do chefe, que mandou chamar o resto do pessoal 
para assistir à cerimónia. 
Ficou só um funcionário, ao balcão. 
Para o caso de chegar algum contribuinte por causa da “décima”... 
Mas nessa manhã estava tudo muito calmo.

 

O termo de posse já estava pré-preenchido, com os dados de cada um de nós, era só precisa a nossa assinatura, no final,  depois de lido o famigerado juramento de lealdade ao Estado Novo.

 Repeti mecanicamente a fórmula, como quem rezava o Padre Nosso, no último ano do seminário, depois de ter perdido a fé e a vocação. Olhei, com um misto de temor e de desdém, para os retratos,  pendurados na parede, dos três mais altos magistrados da Nação (os vivos, Américo Tomaz e Marcelo Caetano; e o morto, Salazar, o “pai da Pátria”, ou o “refundador da Nação”, que ainda ninguém tivera a coragem de mandar retirar) e disse, firme e em voz bem alta:

 “Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela constituição de 1933, com ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas”. (Dizem-me que o juramento dos funcionários públicos fora  aprovado pelo decreto-lei nº 27 033, de 14 de Setembro de 1936, mas eu nunca chegara a ler esse diploma, tal como nunca lera a Constituição de 1933.)

E, de repente, lembrei-me do meu juramento de bandeira na “Máfrica”  e indignei-me por, na altura, nem sequer ter questionado as palavras que, mesmo em voz baixa, atabalhoadamente e a medo, proferi na parada… Regressado de uma guerra, repugnava-me ter aceite, no passado,  o dever absurdo de jurar “obedecer cegamente aos meus chefes”. Afinal, eles poderiam ser todos cegos, conduzindo todo um povo, também de cegos,  à beira de um precipício… 

Tivera um pesadelo nessa noite. Voltaria a tê-lo quatro anos depois...

(Continua)


© Luís Graça (2021)

Nota do autor: Neste conto, os nomes são fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

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Nota do editor:


Último poste da série >  27 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21585: A galeria dos meus heróis (40): O meu amigo Doc - II (e última) parte (Luís Graça)