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domingo, 5 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20527: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (2): o elogio do arroz de lingueirão do "100 Pratus - White Sand Club", restaurante e bar de tapas, Praia da Areia Branca, Lourinhã


Lourinhã > Praia da Areia Branca > O Arroz de lingueirão do "100 Pratus - White Sand Club"




Lourinhã > Praia da Areia Branca >  O elogio do Arroz de lingueirão do "100 Pratus - White Sand Club"


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2019) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Em fevereiro de 2018, já lá vão quase dois anos, inaugurámos uma nova série: "No céu não há disto...Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande"... 

Com muita pena minha, vejo que os nossos "vagomestres' andam falhos de inspiração ou, mais provavelmente, "cansados da guerra"... Como nós todos!... Esperavam-se sugestões, para a construção do roteiro gastronómico da Tabanca Grande... Mas não vieram. Fartos de coer "estilhaços de frango" ou "esparguete de cavala" estamos nós...

Lembrei-me desta série porque há dias, no último dia do ano, levei os meus cunhados do Porto, o Gusto e a Nitas,  a visitar a Quinta da Bacalhoa -. Adega / Museu + Palácio,  logo de manhã, às 10h00, e no regresso fomos comer um peixinho grelhado (garoupa e linguado) no "Baluarte de Sado" (*)...

Às vezes, a nota da "segunda vez" não é tão boa como a da "primeira"... Neste caso, repito o elogio que fiz no poste que inaugurou esta série (*)..

2. O que me traz aqui hoje, quase dois anos depois, é um  "arroz de lingueirão", que comi num  restaurante da minha terra, daqueles todos envidraçados que agora crescem como cogumelos ao longo da nossa costa... Neste caso, junto à foz do Rio Grande, na Praia da Areia Branca, na Lourinhã, "capital dos dinossauros".

Chama-se, algo pomposamente, "100 Pratus - White Sand Club"... Nem é rigorosamente um "restaurante", mas mais um bar de tapas e saladas, que também serve  refeições de faca e garfo, no interior e na esplanada...Tem página no Facebook, lincar aqui:

Confesso que ultimamente sou fã da "comidinha" do "100 Pratus"... Simples, caseira, apetitosa, bem apresentada e bem servida, em qualidade e quantidade...E a preços perfeitamente razoáveis, Além de ser um dos meus locais preferidos para a cavaqueira de sábado de manhã, com os meus amigos de tertúlia, e de ter gente a servir, amabilíssima, simpática e professional, e, ainda, de ter uma localização privilegiada, à beira mar, é já também uma surpreendentemente agradável referência em termos de restauração. 

Nos últimos tempos já lá comi dois pratos muitíssimo bem confeccionados; uma cachupa (que bem merecia uma morna!) e uma feijoada de choco... E ontem, sábado, comi um arroz de lingueirão que se soube pela vida, como se costuma dizer por aqui!... 

Enfim, foram três "pratus" de chapa 100!..A minha forma de apreço e gratidão é,. muitas vezes, a de escrever umas quadras populares, ou até um soneto, na toalha de mesa de papel ou até no guardanapo. E foi o que fiz ontem, e que hoje aqui reproduzo.

Tenho duas expressões para elogiar as nossas fabulosas comidinhas portuguesas, do tempo das nossas mães e avós, e que alguns restaurantes, incluindo alguns da nossa querida terra, conseguem "replicar"... Uma dessas expressões, usava-a com o meu velho pai, quando o levava a almoçar, já estava ele, com a minha mãe, num lar: "Coma, pai, que no céu não disto!"... (Sem ofensa, para os crentes)... Outra expressão que eu uso, para fazer uma elogio às nossas comidinhas, seja em casa ou no restaurante, é a seguinte: "Ó Avilez, não tens cá disto ?!"... (Sem ofensa, para o grande "chef" Avillez...).

Elogio do arroz de lingueirão do "100 Pratus"

1

Mas que arroz divinal,
O de lingueirão, do "100 Pratus",
Por aqui não há igual,
Nem argumentos contra factos.

2
Parabéns à cozinheira,
Vou cá voltar outra vez,
Isto é comida caseira,
Disto não tem o Avillez.

3
Com cebolinha, cremoso,
Sem areia, nem uma pontinha,
Podia estar mais caldoso,
Diz a minha Alicinha.

4

Para mim, estava perfeito,
Comi que nem rei nem duque,
E prometo, logo que der jeito,
Pôr um "gosto" no Facebook!



Luís Graça (Lourinhã),
Praia da Areia Branca,
Restaurante "100 Pratus",
4/1/2020, 14h30


PS1 - Já lá pus um "gosto" no Facebook do "100 Pratus"... E deixei lá estas quadras. Aliás, deixei lá o manuscrito com as quadras...É  uma forma de praticar a arte do  dom de dar, receber e retribuir... Devo acrescentar o que me disse  a gerência: fazem o arrozinho de lingueirão, sempre que há matéria-prima, lingueirão fresco, na praça. Por acaso hoje havia, vi-o nas bancas da praça da Lourinhã a 11,99 € o quilo. A cachupa é também quando calha, uma vez por mês... Mas o melhor é consultar a respetiva página do Facebook. O prato do dia é anunciado na véspera.

PS2 - Declaração de conflito de interesses: não sou dono, nem sócio, nem amigo do dono do restaurante...Nem   nenhum familiar ou amigo meu trabalha no "100 Pratus"... Sou apenas cliente, quando lá vou, em geral ao fim de semana, à Praia da Areia Branca, Lourinhã. É um dos meus locais de tertúlia.

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19084: A galeria dos meus heróis (9): o "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - Parte I (Luís Graça)


Luís Graça, Contuboel, c. junho/julho de 1969
Texto, em duas partes, escrito, no fim do verão, para a série literária "A galeria dos meus heróis", do nosso editor Luís Graça.


O  "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017)



1. Conhecemo-nos, por um mero acaso, num casamento em Braga, a terra dos arcebispos (um dos quais, o lourinhanense Dom Lourenço Vicente, do séc. XIV, meu conterrâneo). 

A sua história já me tinha sido contada, muito por alto, pelo pai do noivo. Antigos camaradas da Guiné, tinham estado ambos no mesmo batalhão, colocado no setor de Teixeira Pinto (hoje Canchungo), na região do Cacheu. Estavam em diferentes companhias de quadrícula, a uma distância de 20 a 30 km, um do outro, mas encontraram-se, algumas vezes, na sede do batalhão. Foram e vieram no mesmo navio: para lá no "Niassa", para cá no "Uíge"...

Por nascimento e residência, eram de concelhos vizinhos, do Norte. Conheceram-se na tropa e ficaram amigos desde então. O pai do noivo era do Marco de Canaveses, filho e neto de ferroviários, ele próprio maquinista da CP, já reformado.

Eu é que vinha do Sul e sentia-me ali um pouco deslocado, apesar dos laços afetivos que criara (e que mantinha) na região do Vale do Tâmega, desde há cerca de 40 anos, berço, juntamente com o Vale do Sousa, deste pequeno, belo, velho e cansado país que se chama Portugal.

Eu fazia parte do grupo dos convidados da noiva. Tinha sido orientador da sua dissertação de mestrado, na área da gestão em saúde, na Escola Nacional de Saúde Pública / NOVA. Acabámos por estabelecer relações de convívio e até de amizade. Conheci o Jorge, o noivo, por ocasião da discussão, em provas públicas, desse trabalho académico.

O Jorge era médico, interno de medicina geral e familiar. Não tive pretextos nem argumentos  para recusar o insistente e amável convite da Clara (e, por extensão, do Jorge) para ir a Braga ao seu casamento. 

Confesso que nunca gostei de bodas e batizados, e muito menos de funerais. Mas neste caso não consegui arranjar desculpa consistente e convincente para declinar o convite.

Mas não vou falar mais dos noivos, jovens, simpatiquíssimos e felizes, nem da festa, belíssima, que deram num hotel de charme, nos arredores de Braga, rodeado de vinhedos e de carvalhos.

A figura do padrinho do noivo, ou melhor, a sua história de vida, é que me prendeu a atenção, logo de imediato. Encorpado, de estatura meã, olho azul, verbo fácil, sotaque tipicamente nortenho, bom copo – e, no passado, "melhor garfo" −, simpático, sedutor, bem humorado, às vezes também sarcástico e truculento, pareceu-me logo à partida que ficaria bem na minha série dos "Contos com mural ao fundo".

−"Felgueiras", um seu criado! – e estendeu-me a mão, em gesto franco, amistoso e descontraído.


Gostei logo da sua apresentação, sem pompa nem circunstância. Fiquei a saber que "Felgueiras" era "nome de guerra", como de resto já o suspeitava.

−Na tropa e, depois, na Guiné, éramos conhecidos, não pelos apelidos paternos – os Silva, os Ribeiro, os Magalhães… − mas pelos nomes das terra donde provínhamos: o Alenquer, o Peniche, o Setúbal, o Paranhos… Eu era (e continuo a ser) o Felgueiras.

−Então hoje já aqui estamos pelo menos três antigos camaradas da Guiné – respondi eu, beneficiando da cumplicidade do pai da noiva que fez as despesas da minha apresentação.


No contexto festivo de uma animada, ruidosa e farta boda nortenha, o topónimo "Guiné" funcionou logo como uma espécie de senha ou palavra-passe. A par do Alvarinho que foi servido com os aperitivos, ajudou de imediato a quebrar eventuais barreiras.

−Então, à saúde dos noivos! – atalhou logo o "Felgueiras".

− À saúde dos noivos! – repeti eu. – E também à nossa, aos velhos camaradas da Guiné que, como tal, tratam-se por tu! – acrescentei logo de seguida, sabendo que o tratamento por tu, noutras circunstâncias forçado, deslocado, indelicado e até deselegante, contribuiria aqui para criar um clima propício à confidência, à desinibição, à cumplicidade e à partilha de memórias entre três veteranos de guerra.

−Então, à saúde da noiva e do noivo, e dos seus convidados!... E, já agora, à memória dos rapazes que por lá ficaram naquelas terras de Cristo! – brindou o Arlindo, o pai do Jorge, o noivo.

− Mouros e morcões, somos todos iguais, todos portugueses! – brincou comigo o "Felgueiras", visivelmente bem disposto e feliz.

Tinha-se dado o clique para, ganhando a confiança dos meus interlocutores de ocasião, poder explorar melhor (e até aprofundar) a história, algo insólita, do "Felgueiras". Um pouco de fora ficava o pai da noiva, que não tinha feito o serviço militar (ou esteve na tropa já depois o 25 de Abril), sendo mais novo do que nós os três.

Ao longo do dia, e sobretudo depois do copioso e demorado almoço, com as diversas iguarias da mesa minhota, fomos dando uns dedos de conversa, enquanto o "Felgueiras" fazia sala com o noivo e os seus convidados, como lhe competia. Mas, de tempos a tempos, vinha ter comigo e com o Arlindo, puxava-me o braço e retomávamos o fio à meada, entre uns golos de uísque velho que foi o nosso digestivo com o café.

Enfim, com o "material" recolhido nesse dia e com mais umas conversas posteriores, com ele e com informantes privilegiados que o conheciam, a começar pelo Arlindo, pude traçar um primeiro retrato-robô do "Felgueiras", de resto uma figura em tempos conhecida e até popular, na região do Vale do Tâmega. Os mais novos, naturalmente, já não se lembrarão dele.

Não confessei a ninguém, como me convinha, a minha intenção de pôr o "Felgueiras" na "galeria dos meus heróis". Para o leitor, também não preciso de justificar a minha escolha. No final, fará o seu juízo crítico. Por mim, trata-se de uma figura tão digna como as outras que lá estão, afinal seres humanos como eu, com as suas pequenas misérias e grandezas, tendo como traço de união a guerra que um dia se travou na Guiné, entre 1961 e 1974, "guerra colonial", para uns, "guerra do ultramar", para outros, "guerra de libertação" para os militantes e simpatizantes do PAIGC.

O nosso camarada tinha sido 1º cabo de infantaria e estado na Guiné, entre finais de 1966 e princípios de 1969. Passo por cima de detalhes mais concretos, porque ainda há muita gente viva desse tempo e dos lugares por onde passou o "Felgueiras" (bem como o Arlindo e demais camaradas aqui citados).

Era apontador de armas pesadas de infantaria mas, por "azar", não fora colocado num pelotão de morteiros, como ele tanto gostaria. Coube-lhe, isso sim, integrar o 4º pelotão de uma companhia de caçadores, pelotão esse que só tinha 2 furriéis. Na prática, iria comandar uma seção de atiradores, ao substituir um 2º sargento do quadro permanente que ficara em Lisboa com uma úlcera no estômago, a primeira "baixa" da companhia.

− A Dona Úlcera no Estômago foi uma boa madrinha de guerra para alguns safados − atirou o "Felgueiras".

Na realidade, o "Felgueiras" não dera as habilitações literárias corretas, aquando da inspeção militar. Não era caso virgem, outros o fizeram antes e depois dele... Apresentou apenas o diploma da 4ª classe da instrução primária e indicou como profissão a de operário fabril. Queria, intencionalmente, safar-se do Curso de Sargentos Milicianos (CSM), e de uma mais que provável mobilização para o ultramar como "furriel atirador"… 


Ainda teve a veleidade de sonhar com uma especialidade que o tirasse do mato: cripto, escriturário, ou até mesmo sacristão, mecânico ou estofador… "Condutor auto, nem pensar", por causa das colunas logísticas e das minas. "E enfermeiro, ainda pior: sempre tivera horror ao sangue". Mas orgulha-se de não ter posto cunha a ninguém, muito menos ao seu patrão, o industrial José Joaquim Gonçalves de Abreu, político de peso do regime, presidente da câmara local, futuro deputado e comendador.

E, no entanto, o melhor que lhe coube na rifa foi o posto de 1º cabo atirador de armas pesadas de infantaria.

−Vou ficar no quartel, pensei. Ele haverá lá um morteiro 81, um canhão sem recuo…

− Seguramente uma Breda, ou uma Browning… −acrescentei eu.

 Santa ingenuidade!, fui logo parar à 'tropa-macaca', a que saía para o mato! – lamentou-se o "Felgueiras". 

E explicou:

− Azar o meu: quando cheguei ao quartel, o morteiro 81 já tinha dono, havia lá uma secção de um pelotão de morteiros, uns gajos já velhinhos, completamente 'apanhados do clima'…

Mas lá conseguiu convencer o capitão de que tinha outras competências, da vida civil, que valeria a pena aproveitar e pôr ao serviço da companhia…

Acabou por ficar no quartel com a responsabilidade da horta e do espaldão da Browning 12.7, tendo para o efeito um abrigo "privativo", cheio de cunhetes de munições até ao teto, incluindo balas tracejantes. 

− Ainda fiz o gosto ao dedo, num dos grandes ataques ao quartel. Era um arma do carago, a Browning!... Devo ter despachado uns gajos mais cedo, com carimbo para o inferno, nesse ataque, em que eles vieram quase ao arame farpado...

Enfim, foi o início de um "período de mordomias" que ele nunca teria se fosse um simples "furriel atirador"…

Tinha de facto alguns conhecimentos (básicos) de hortofruticultura. Quando miúdo, ajudava o pai e os irmãos mais velhos na quinta que trabalhavam, de renda, na Lixa, em Felgueiras, em regime da parceria agrícola, versão moderna da servidão da gleba. O pai chegou a estar emigrado em França, onde tratava de cavalos num "château" da região do Loire.

Com as remessas de dinheiro, "suado e poupado", que mandava de França, lá conseguiu pôr o filho mais novo a estudar, primeiro no seminário menor da diocese do Porto, e depois num colégio privado em Amarante.

O "Felgueiras", "mau aluno, cábula",  não chegou a acabar o almejado 5º ano do liceu, para grande desgosto do pai que lhe desejava melhor sorte do que a de "filho de rendeiro". E este não teve outro remédio senão o de dar ordens terminantes à mãe para pôr o filho a trabalhar na Tabopan, logo que completasse os 16 anos. Tinha lá um tio materno que era encarregado e que o podia, de algum modo, proteger.

A Tabopan, na altura, era uma das grandes fábricas da região, dava trabalho a muita gente e era o sustento de muitas famílias de Amarante e arredores. Isto ainda antes da febre da indústria do calçado que, no caso do concelho de Felgueiras, irá enriquecer alguns e desgraçar muitos, sobretudo depois da entrada do País na CEE, em 1986, e da vinda de pipas de massa para a modernização das empresas… 

De facto, de um dia para o outro o pobre "sapateiro remendão" deu lugar a um "garboso industrial" que se pavoneava de Ferrari vermelho, entre Felgueiras e a Foz do Douro… As máquinas que os "sapateiros" (alguns, não generalizemos...) compraram, foram os famigerados Ferraris, que puseram Felgueiras no mapa…
 
− Por más razões...− reconheceu o "Felgueiras", quando eu abordei este tema... delicado para os felgueirenses.

Para o nosso cabo, a Tabopan foi uma das suas "faculdades da Universidade da Vida" (sic), a par da tropa e, depois, da Guiné.

−Abriram-me os olhos!

Self made man, gosta muito de evocar a "escola da vida" em que se formou e não esconde o seu desdém pelos "doutores de Coimbra".

−Mais vale um ano de tarimba do que dez de Coimbra!... Era o que se dizia até à reforma do Marquês de Pombal… − contemporizei eu.

−No meu caso, valeram mais os quatro anos de Tabopan e outros tantos de tropa, Guiné e, depois, Angola. (Fiquei a saber que ele também tinha passado por Angola, depois de vir da Guiné.)

Na Tabopan, com as boas graças do tio que procurou puxar por ele, o "Felgueiras" percorreu quase todas as secções, desde a produção à distribuição, do armazém ao escritório, onde aprendeu a escrever à máquina no teclado HCESAR.

−Quando assentei praça, já era um homem feito e vivido. Mas já que estamos aqui entre amigos e camaradas, juro que nunca fui um gajo 'putanheiro' e muito menos… 'azeiteiro'.

−O que é bem diferente de dar uma facadinha no matrimónio, de vez em quando – acrescentou, timidamente, entre dentes, o Arlindo, olhando em redor, não fossem as senhoras ouvi-lo...

−Ora… quem as não deu?! –interrogou-se o “Felgueiras”.

−Jesus Cristo, que, tanto quanto se sabe, não era casado…− galhofei eu.

Sete ou oito meses depois, lá vai o 1º cabo "Felgueiras" (mais o furriel Arlindo) no T/T Niassa a caminho da Guiné.

Mas passemos por cima dessas peripécias da pequena história pátria: não se deu mal com as novas funções que lhe foram atribuídas, a de 1º cabo hortelão da companhia (uma especiaidade que, diga-se de passagem não existe na tropa).

A horta cresceu e ajudou a equilibrar as "finanças" da companhia.

−Não sei se havia essa categoria no exército, a de 1º cabo hortelão… Não me lembro –repliquei eu.

−Os furriéis, que eram quase todos do Norte, chamavam-me o "Pencas", os alferes que eram do Sul, puseram-me a alcunha do "Couves"… Os meus camaradas, soldados e cabos, esses, tratavam-me, como sempre me trataram, desde o IAO, por "Felgueiras"… E foi essa alcunha que vingou.

− "Pencas"… mas porquê ?

− Imaginem que no segundo Natal que passámos no mato, em 1967 (e ainda haveríamos de passar um terceiro…), eu apostei com o meu capitão, que era nortenho, que ele iria ter pencas (a couve "tronchuda"…) na noite da Consoada, a acompanhar o bacalhau…~

−Meu capitão, arranje-me o bacalhau e as batatas, que eu trago-lhe as pencas. Para si, para mim e para o resto do pessoal.

Ele não acreditou e perdeu a aposta (100 pesos, ainda se lembrava o "Felgueiras"=…

−No primeiro Natal, mal chegámos, em finais de 1966, comemos uma merda liofilizada, uns grelos, um desconsolo.

O clima da Guiné não ajudava a criar pencas, a couve portuguesa, devido às temperaturas elevadas… Por outro lado, não fazia frio nem geada, muito menos neve, para "cozer" as "tronchudas", antes do Natal… Mas a verdade é que o "Felgueiras" conseguiu obter sementes pelo correio… mais uns "pozinhos de perlimpimpim" (sic). Em dezembro, afinal, fazia frio de rachar, à noite!... 


Com o "Paranhos", seu "ajudante de campo", conseguiu operar "o milagre das pencas" lá na região do Cacheu. Primeiro, fez um viveirinho de plantas. Depois, plantou-as e pôs, a toda a volta, no talhão das couves, uma rede em tecido camuflado para as pencas não apanharem o sol direto (ou em excesso) e evitar a passarada… 

Ninguém acreditava, até o comandante de batalhão foi lá um dia visitar a horta… 

− Sim, senhor, nosso cabo... Bela horta!

Enfim, "houve bacalhau com batatas e tronchudas na noite de Natal, se calhar pela primeira vez na Guiné!"...

− Foi uma alegria, sobretudo para a rapaziada do Norte, do Minho e do Douro Litoral… Sim, porque os gajos de Trás-os-Montes têm a tradição do polvo, e vocês, os alfacinhas, a mania do peru recheado... Com a tua licença, uma merda afrancesada...

Foi um sucesso, a horta. E as "tronchudas" ficaram na memória de todos, mesmo que nem todas vingassem. A horta cresceu e multiplicou-se para gáudio do capitão, do 1º sargento e do furriel vagomestre…

O nosso cabo tinha especial habilidade para descobrir talentos, tendo desde logo garantido o concurso do tal "Paranhos", que também trabalhara num quinta do Porto, antes da tropa.

− No tempo em que ainda havia quintas no Porto, justamente em Paranhos… Hoje o betão e o alcatrão tomaram conta de tudo – esclareci eu que ainda conheci o Porto… "rural", em 1975.

− E consegui depois arranjar mais dois ou três civis de uma tabanca próxima. Tinham em tempos trabalhado na horta das missões católicas do Cumeré, se não me engano. Eram manjacos, cristãos, falavam razoavelmente o português. Foram-me recomendados pelo capelão do batalhão, um gajo do Norte, também porreiraço. Eram pagos em patacão e em géneros. Formávamos uma bela equipa, tenho saudades deles, confesso... Chamavam-me o "irmão hortelão". O meu braço direito era o "Paranhos", que sabia muito mais de horta do que eu.

Foi aproveitada uma antiga "ponta", abandonada, que pertencera em tempos a um cabo-verdiano, da Ilha da Brava. A terra era fértil e a água doce abundante. Até tinha um poço com uma nora, desconjuntada.

− Na realidade, a "ponta", com uns bons hectares, não tinha sido totalmente abandonada. De facto, uma parte, junto à casa, continuara a ser cultivada por uma família manjaca, cristã, que trabalhava para o cabo-verdiano, ainda antes da guerra.

− O que é que lhe aconteceu, ao dono ? − perguntei eu.

− Nunca soube ao certo, contavam-se várias versões da história. Dizia-se que era compadre do Amílcar Cabral e que estaria em parte incerta. Uns juravam que tinha ido para Conacri. Outros garantiam que tinha sido morto em 1962, quando se deslocava na sua camioneta até Canchungo. Também era comerciante de arroz e mancarra.

− Não seria um tal Brandão ?

− O nome já não me lembro, nem para o caso aqui interessa. Era conhecido dos meus manjacos, e não seria mau tipo: deixou boas recordações.

Veio-se a descobrir, mais tarde, por finais de 1964 ou princípios de 1965, graças ao "trabalho de sapa" do agente da PIDE de Teixeira Pinto, que o tal manjaco, que fora empregado do cabo-verdiano, e que desde 1962 tomava conta da "ponta", fazia parte de uma "célula civil" do PAIGC… Foi acusado de ajudar (e até de abastecer) os "turras do Choquemone".

− Acho que se chamava Gomes e ainda por cima era o sacristão da igreja local, o sacana… – acrescentou o "Felgueiras" – mas isso não era do meu tempo… nem da minha conta.

Foi preso, interrogado, torturado e, com sorte, deportado, sem julgamento, para a Ilha das Galinhas, nos Bijagós. Um ano antes teria ido parar ao Tarrafal.

− Houve quem, por menos, tivesse acabado numa vala comum ou na bolanha com um balázio na testa – confidenciou o "Felgueiras"... – Pelo menos os meus manjacos contaram-me algumas merdas que a polícia administrativa  de Canchungo terá feito no início da guerra.

− A polícia ou a milícia do régulo…? Como é que ele se chamava ?

− Não me lembro, mas adiante… Disseram-me que mais tarde o Gomes foi solto, já a gente tinha acabado a comissão. Deve ter sido por volta de 1969, por ordem do Spínola.

O administrador do Canchungo acabou por tomar conta da propriedade e, em data posterior, cedeu-a à tropa. Tinha uma bela casa de sobrado, de traça colonial, que foi logo ocupadas pelos alferes.

A mulher e os filhos do Gomes foram recambiados para a ilha de Pecixe, donde eram originários. A casa e a horta foram cercados de arame farpado, passando a ser integradas no perímetro do quartel que, de resto, confinava com a tabanca.

A "ponta" sempre dera boa e abundante fruta tropical como a banana, o mango, a lima, a papaia, o abacate, o abacaxi… O nosso cabo introduziu culturas hortícolas europeias, adaptadas ao clima e ao terreno, graças a sementes que conseguiu obter da granja de Pussebé onde, por ironia, tinha trabalhado o engº Amílcar Cabral, e outras que encomendou à Intendência ou mandou vir da metrópole, pelo correio, através de um antigo colega, mais velho, do colégio de Amarante, que se formara como regente agrícola. 


Os terrenos, por sua vez,  foram lavrados e estrumados. Bosta era coisa que não faltava na "vacaria" do quartel… Como estavam de pousio, começaram logo a produzir em grande.


A produção de frutas e legumes dava para abastecer não só a companhia como o pessoal da CCS  e a outra unidade de quadrícula que estava em Teixeira Pinto. Para gáudio do médico do batalhão que, logo de início, alertara o comando para as insuficiências nutricionais que os militares iam sofrer ou já estavam a sofrer. Havia muita falta de "frescos", frutas e legumes, as companhias eram abastecidas, com alguma irregularidade, quer por colunas terrestres quer por avioneta (que também trazia o correio).

Com os restos do rancho e com as sobras da horta, o nosso cabo montou uma pocilga (uma "corte") e um galinheiro. Passados escassos meses, a companhia já era autossuficiente em galinhas, frangos, ovos e até leitões.

Quando o furriel vagomestre foi evacuado
 para o Hospital Militar 241, em Bissau, e dali para a Metrópole, com uma hepatite (o raio de uma doença que "toda a gente queria apanhar", já  que dava, na altura, direito a evacuação imediata para o Hospital Militar de Belém, especializado em doenças infecto-contagiosas…), o capitão, por sugestão do 1º sargento, achou que o "Felgueiras" era o homem certo para o lugar certo. Para já, não havia nenhum sargento ou furriel disponível para o lugar de vagomestre e, quanto ao substituto, já pedido, só viria lá para as calendas gregas. 

Interinamente, o nosso cabo, "até porque tinha estudos", ficaria a desempenhar o cargo de vagomestre. Como, de resto, ficou, até ao fim da comissão, "a contento de todos".

− A ganhar como 1º cabo, estás a ver?!

Por outro lado, o 1º sargento ia também, muito em breve, deixar a companhia para frequentar, em Águeda, a Escola Central de Sargentos. Tratava o "Felgueiras" de modo algo paternal, e os dois sempre tiveram uma boa relação desde a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional). De resto, a companhia irá ficar sem sargentos: um outro 2º sargento do quadro permanente,que era operacional, teve um problema disciplinar, e acabou por ser colocado em Bissau. O 1º sargento não chegou a ser substituído em tempo útil. Na prática, foi o capitão quem assegurou o serviço de secretaria com o 1º cabo escriturário.

O "Felgueiras", que sabia escrever à máquina, e era voluntarioso, também ajudou a montar a secretaria da companhia e até chegou a fazer alguns trabalhos, a "stencil", quando o "escritas", o 1º cabo escriturário, não dava conta do recado. E os dois, o 1º sargento e o "Felgueiras" lá se entendiam com a "contabilidade criativa" da horta e da pecuária, incluindo a vacaria que tinha sempre meia de dúzia de cabeças de gado vacum, que o "Felgueiras" ia comprar aos fulas de Sonaco.

− Foi um pai e um mestre, para mim! – disse-me o "Felgueiras", já no fim da tarde, quando os mais novos, na festa do casório,  se divertiam ao som de uma banda de música rock… − Nunca mais o vi. Pena que t
enha morrido, cedo, com o posto de capitão SGE, ao que me disseram. 

Para o comandante da companhia, capitão de infantaria, miliciano, 33 anos, solteiro, "homem bom", antigo seminarista, professor de português num colégio particular, a "horta", a "corte", a "vacaria" e o "galinheiro" da companhia foram uma bênção do céu. Resolveram uma grande parte dos problemas de abastecimento e de segurança alimentar da companhia (e até do batalhão). 


O capitão ficou, por outro lado, bem visto pelos seus superiores hierárquicos, pelo empenho e apoio que deu a estas iniciativas. E até os comandantes das companhias em redor não lhe regateavam elogios. Mas "ninguém mexeu uma palha para seguir o seu exemplo"...

Por outro lado, com a "contabilidade criativa" do 1º sargento, a companhia passou a ter um "histórico superavit". Não cabe aqui contar, neste espaço, como é que o capitão reinvestiu esse patacão em obras para a melhoria do bem-estar dos militares (camaratas, casas de banho, campo de futebol…) e da população civil (posto escolar, centro médico, chafariz…), juntamenente com o patacão que vinha do batalhão para a "psico-social". Até deu para fazer obras de ampliação e beneficiação da pequena igreja local, para contentamento do capelão.

− Um homem com H, um grande capitão, mesmo que já não tivesse grande jeito (nem idade) para alinhar no mato e comandar tropas… 

− Voltaste a encontrá-lo ?

− Sim. Estivemos, pelo menos,  em dois encontros, em convívios anuais da companhia, que eu organizei por aqui perto, um em Fafe, e outro no Marco de Canaveses. 

− No Marco ?

− Sim, na tua terra... Ainda hoje, vinte e tal anos depois, a malta fala da grande almoçarada que eu proporcionei: a vitela assada à moda de Fafe, em Fafe, num ano; e logo, a seguir, num outro ano, o anho assado com arroz de forno,  lá no Marco… Até convidei o Ferreira Torres, de quem eu era amigalhaço, mas o homem nessa data tinha outros compromissos. Mas, mesmo assim, foi lá de propósito só para me dar um abraço e saudar a rapaziada.

− E essa história da padaria e dos leitões assados, de que me falou aqui o nosso camarada (e teu compadre) Arlindo ?

− Foi a cereja no bolo, camarada! – respondeu o "Felgueiras", orgulhoso. − Vim no "Uíge", fizeram-me uma festa de despedida, fui car
regado em ombos… Até parecia que eu era um herói de guerra, carago!

− Conta lá como isso foi, camarada. Se me deres licença, quero tomar boa nota dessa história.

− Pois, foi assim … Quando substitui o vagomestre (que Deus nosso Senhor o tenha em bom descanso!), havia muitas queixas das nossas praças, em relação ao pão que era servido às refeições. Até então, andava tudo de bico calado… Quando eu assumi funções, não houve cão nem gato que não reclamasse. "O casqueiro está uma merda, ó Felgueiras!"… 

− O costume, dá a mão ao vilão, morde-te logo a mão! − atalhou o Arlindo que estava a seguir a conversa.

− Bom, tive que tomar providências imediatas. O capitão deu-me carta branca. Arranjei um rapaz do Carregado, o "Alenquer", que andava a coçar o cu pelas tabancas, e promovi-o a ajudante de padeiro. Já era padeiro na vida civil. Em contrapartida, o padeiro da companhia era um básico, que nasceu sem jeito para nada a não ser para a sornice. Melhorámos a mistura das farinhas, fizemos obras no forno, começamos a fazer pão com chouriço e torresmos ao fim de semana… E às tantas um leitãozinho. E não é que a coisa pegou ? 

E depois, já com um brilhozinhonos olhos, o "Felgueiras" arrematou:

O Schulz, não, mas o Spínola, ainda "periquito", chegou a lá ir atrás do cheiro, ainda em 1968. Ele adorava o nosso pão… O leitão, às tantas, não chegava para as encomendas. Começámos também a "trabalhar para fora", até para restaurantes em Bissau… A rapaziada fazia umas "horas extraordinárias", mas todos comíamos da 'gamela'… 

− Queres dizer... ?

− Isso mesmo, ao fim do mês, havia mais patacão para cada um poupar ou gastar… Tudo com o "ámen" do capitão que nestas coisas tinha vistas largas... Pergunta ao "Paranhos", se um dia o encontrares lá nessa tal Tabanca de Matosinhos, de que me falaste, e que eu não conheço, mas um dia ainda tenho mesmo que lá ir… Almoço à quarta-feira, é isso ?

− Sim, vou-te dar os contactos e as coordenadas... Vais adorar, há lá malta do teu tempo e da região do Cacheu.

(Continua)




Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Missirá> Pel Caç Nat 52 > c. 1973/74 > A horta,  Não havia quartel ou destacamento que não tivesse a sua horta... E hortelãos diligentes e trabalhadores, na maior parte dos casos mal aproveitados...

Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18949: A galeria dos meus heróis (8): os seminaristas (Luís Graça)

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18290: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (1): Em Setúbal, o restaurante "Baluarte do Sado", peixinho grelhado, pois claro!...(Hélder Sousa / Luís Graça)


Setúbal > Mercado do Livramento > 3 de fevereiro de 2018 > É uma festa"... Inaugurado em 1930, e construído em estilo "art déco", é um dos ex-libris da cidade... O mercado do peixe, ao sábado, em especial, é uma espectáculo ao vivo!... Em primeiro plano, uma das esculturas de Augusto Cid, a vendedeira de criação (aves e ovos).


Setúbal > Mercado do Livramento > 3 de fevereiro de 2018 >  Um dos painéis de azulejos da entrada principal.


Setúbal > Mercado do Livramento > 3 de fevereiro de 2018 >  Painel de azulejos, da parede do fundo, junto às bancas de peixe. Cenas do mar, do estuário do Sado e dos campos...



Setúbal > Mercado do Livramento > 3 de fevereiro de 2018 >  Percebes do alto mar... Ao sábado os preços inflacionam-se, devido à procura externa... Aqui há de tudo, do camarão de rabo azul à lagosta e ao lavagante, mas o que ainda mais enche o olho é o peixe fresco, dos salmonetes às cabeças de cherne!...



Setúbal > Mercado do Livramento > 3 de fevereiro de 2018 >  Sapateiras  vivinhas da costa...



Setúbal > Mercado do Livramento > 3 de fevereiro de 2018 >  O espadarte...


Setúbal > Mercado do Livramento > 3 de fevereiro de 2018 >  As mangas sem fios... que não são seguramente de Setúbal nem da Guiné...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Vamos inaugurar uma nova série: "No céu não há disto...Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande"...

A ideia ocorreu-me há dias, quando me convidaram para ir a Setúbal para um almoço de aniversário... Fazia anos (, vinte e seis, ) o filho de um casal nosso amigo, meu e da Alice. Setúbal é peixe e marisco, pois claro, mesmo que o rapaz seja da geração do "fast food", das batatas fritas e dos hambúrgueres (sic) (assim é que se escreve, em bom português)... 

O rapaz é aquariano, como eu, tem a sorte de não fazer anos no píncaro do verão, altura em que eu fujo da ponte 25 de Abril, da Caparica, de Setúbal, da canícula e de tudo o que aponta para o sul, o sal, o sol... (A2, A12...). 

Foi no sábado passado, não era de prever uma enchente, mesmo com sol de inverno,  mas, pelo sim, pelo não, era conveniente reservar mesa para sete. Em que restaurante, Zé António ? Os meus amigos ainda estavam em Lisboa, quando eu e a Alice chegávamos à terra do Bocage. Pois que escolham à vontade, queremos é peixinho do bom, a saber a mar, e não a aquário... 

Os meus amigos acabavam de me passar a bola, e eu não os queria dececionar. Ainda por cima gente da Costa Nova... Falo do Zé António Paradela, meu amigo, meu "mano" e nosso grã-tabanqueiro. Mas eu não tinha sequer feito o trabalho de casa, o TPC, como costumo fazer antes de ir almoçar ou jantar fora: ver na Net os sítios mais convenientes para se comer, as comidinhas, a relação preço/qualidade, o que fazer depois do almoço, os percursos, etc. 

E para mais não tinha trazido comigo o meu PC!...  Não gosto de fazer consultas à Net através do telemóvel... Sou um tosco com o telemóvel... detesto o telemóvel... Bem, a solução, ali à mão de semear, era chatear o meu amigo, camarada e ilustre régulo da Tabanca de Setúbal, o Hélder Sousa...

Por azar, não tinha o número dele no meu telemóvel, tinha havido,  há uns tempos atrás,  uma troca de cartões entre mim e a Alice. Eu fiquei com a lista dela, e ela com a minha!... O telélé da Alice tinha, felizmente,  na lista o número do Hélder... Fizemos então uma chamada, ainda  dentro do carro... E nada, silêncio do outro lado da linha. Às 11 e picos já são horas de estar de pé, para mais em terra de gente laboriosa, mesmo ao sábado que é o dia de descanso do Senhor... Podia, o senhor engenheiro estar a tomar o seu duche de sábado de manhã... Ter ido ao SPA... Estar a dar formação... Ir à missa era menos provável... Bem, volta a ligar-se dentro de minutos...

E desta vez ele atendeu mesmo,  mas com a voz baixa: eh!, pá, estou em Lisboa, num reunião da secção regional sul da Ordem dos Engenheiros Técnicos...Já me esquecia que ele pertencia a uma lista candidata aos órgãos sociais da sua Ordem... Eh!, pá desculpa lá, não estou a reconhecer este número!... Como já estou meio surdo, gritei-lhe: é o número da Alice, do Luís Graça, da Tabanca Grande, desculpa tu o mau jeito... Tá-se mesmo a ver que o nosso camarada Hélder estava longe de me imaginar, a mim e à Alice,  por aquelas bandas e àquela hora...

E lá fomos trocando uns mimos, até eu chegar à questão central: onde é que se come à maneira na tua terra ?...E onde é que tu e a Alice estão? Eh,pá, aqui parados, estacionados, por detrás do mercado do Livramento e do Pingo Doce...Não precisas de ir mais longe, tens já aí o "Baluarte do Sado"... Peixinho  fresco, grelhadinhos, sardinha assada no verão...Boa relação qualidade / preço... Pronto, não digas mais, não te maces, vou já lá marcar uma mesa para a 1 da tarde, redonda, 7 pessoas... E desculpa lá qualquer coisinha... Talvez a gente ainda se veja logo à tarde, quando regressar de Lisboa... Obrigado, mas não precisas, estou numa festa de anos, fica para a próxima...

Como havia tempo de sobra, fomos visitar o mercado do Livramento que é um regalo para os cinco sentidos... É um dos pontos obrigatórias de qualquer visita a Setúbal, exceto à segunda feira que está fechado, como todos os mercados tradicionais...De preferência, venham ao sábado, e cedo... Ao meio dia já começam a desmontar a tenda, os vendedores de peixe, feito o negócio...

Fui ver as bancas do peixe e marisco, fotografei os azulejos todos, apreciei o vaivém de gente que entra e sai, procurei não perder pitada da "idiossincrasia" dos/as setubalenses que ali ganham a vida...Mas, ó querida, essas mangas sem fios não serão transgénicas ?... Ó cavalheiro, vê-se mesmo que é turista!... Não me venha cá estragar o negócio!... Qual transgénicas, qual carapuça, chupe-me aqui este mel... e deu-me um bocado de manga sem fios na ponta de um palito...Enfim, gente autêntica, que tem sempre a resposta pronta na ponta da língua, afiada, com todos os ss e rr... E diz a filha ao lado: Ainda tenho muito que aprender com a minha mãe...(que a punha a filha a um canto, medida de alto a baixo...).

Mas vamos ao almocinho, que já são horas, depois de algumas comprinhas feitas... O que é vamos pedir ? Para entrada uns camarões à guilho (num molhinho com pão frito) e depois uma cataplana de peixe para 3 pessoas, um sargo grelhado para mim e uma posta de cherne também grelhadinha para a Alice, que está meio adoentada... E para os nossos jovens (o aniversariante e um amigo), o costume, umas "febras" de porco com arroz e batatas fritas e uma saladinha... No fim, temos um bolinho de anos, que é para cantar os parabéns a você, que o rapaz faz 26 primaveras e é do Benfica...

Ó queridos, mas a gente aqui faz tudo na hora!... Podiam ter pedido a cataplana na altura em que reservaram a mesa,,, É coisa para demorar 40 a 45 minutos... Venha a cataplana, até lá, vamos petiscando. E, oiça, mande-nos um "Terras do Pó", branco, fresquinho, da Ermelinda Freitas, que é cá da terra, isto é, da península...

E pronto, a cataplana chegou "just in time", eu e a Alice fomos para os grelhadinhos... A banca de peixe do restaurante é um regalo para a vista, variada e colorida, como não se vê em muitos restauarantes XPTO do "Boa Coma e Boa Mesa" do Expresso, rapaziada que come com garfo e faca, nunca lhe passou seguramemte  pelos dentes a "bianda" da Guiné nem conheceu os "petiscos" dos nossos "vagomestres"... 

O serviço é simpatiquíssimo e eficiente, a casa estava cheia (2 salas, uma delas para fumadores), o ambiente é familiar,  ruidoso como convém, onde há povo, onde há "tugas"... As moças andam todas numa fona, mas a cozinha despacha bem e depressa... Nada de requintes, as próprias instalações têm o ar típico de muitos restaurantes à beira mar, de "design" popular(ucho)... O peixe do dia anda na casa dos 40 euros /quilo (com exceção do cherne que ontem estava no "super" do Corte Inglês a 60 e tal, e chega aos restaurantes dos ricos a centos e tais...).

Não sei quanto é que o meu amigo Paradela pagou mas não deve a extravagância do rebento aniversariante ter ultrapassado os 20 euros por cabeça, sem sobremesa... ( A sobremesa foi o bolo de anos, revestido com o emblema do Benfica, coitada da Helena, que nos serviu, e que é ferrenha do Setúbal, nunca lhe tinha acontecido fazer um frete daqueles, atravessar a sala com a "águia nas mãos"!...O que uma mulher faz para ganhar a vida!).

O "Baluarte do Sado" (com cerca de duas dezenas de anos de existência)  está provado e aprovado, camarada e amigo Hélder, engenheiro de energia e sistemas de potência, cistagano de nascimento, transtagano por casamento...  Sei que não há conflito de interesses, gostas de lá ir e recomendas aos teus amigos, com o único senão do verão, em que o povo faz bicha à porta do "Baluarte do Sado"...

Para os nossos leitores aqui ficam as coordenadas do "Baluarte do Sado":

O que se recomenda: cataplana de peixe / caldeiradas, choco frito, peixe grelhado (, afinal, a comida mais primitiva do mundo, mas o "grelhar peixe"  tem os seus segredos...);
Horário: das 10h00 às 17h00 (isto quer dizer, que não há jantares!);
Localização: Praça da República, 1, Setúbal 2900-587, Portugal;
Parque de estacionamento: público;
Multibanco: tem;
Telefone +351 265 238 780;
Tem página no Facebook.

PS - Uma chamada de atenção para o incauto turista que vem do Norte:  o "choco frito" é uma das especialidades da terra, mas o choco que aqui se frita e come não é de cá, é da... África do Sul e de Marrocos... Duro que nem cornos, servido em pedaços industriais... No "Baluarte do Sado" não sei como é... Prefiro o "choquinho frito" do meu amigo Vitor, do Peraltabar, na praia da Peralta, Lourinhã (108 km a norte), a quem, de resto,  já dediquei em tempos uns versinhos (*)... Mas nisto de comes & bebes, as paixões não se discutem: eu detesto peixe cru, outros lambem-se por lampreia, outros ainda dão a volta ao bilhar grande só para comer peixe seco... Os fãs do "Choco Frito" de Setúbal também direito à mesa... Logo, nossos companheiros e confrades são, que no céu não há disto... (dizem que há outras "iguarias", eu não sei, afinal nunca ninguém lá foi e voltou)...


2. Quanto aos nossos "vagomestres", aqui chamados à colação... Deixem-me recordá-los: tínhamos com eles uma relação de amor & ódio... 

Dar de comer a milhares e milhares de homens em guerra, no TO da Guiné, entre 1961 e 1974, não era tarefa fácil... Eram escassos os frescos, a carne era um luxo, e o peixe... resumia-se ao bacalhau, seco e feio, que nos chegava, de vez em quando, pela Intendência... Não havia câmaras frigoríficas, só coisas em lata e pó...

Em suma, passava-se fome na Guiné, nos nossos aquartelamentos e destacamentos, já não falo nas tabancas em autodefesa para onde éramos mandados às vezes, uma secção ou duas para reforçar o seu dispositivo de defesa... Os nossos soldados raparam fome, os graduados, esses, tinham um pouco mais de privilégios e de alternativas

Coitados dos nossos "vagomestres", entalados entre o "nosso primeiro" que era uma espécie de ministro das finanças da  companhia, e o batalhão de intendência que, de Bissau, nos fazia chegar os víveres, da cerveja ao chispe de porco, das batatas (um luxo!) às salsichas, da farinha para cozer o pão à massa, dos grelos em pó às conservas... 

A indústria conserveira deve ter ganho rios de dinheiro com a p... da guerra. Além dos mixordeiros do vinho a martelo que nos impingiram muito falso vinho verde... gaseificado à pressão, e vendido a peso de ouro!

Ainda me interrogo: como é que a minha/nossa geração suportou aquela maldita guerra ?!

Coitados dos nossos "vagomestres", obrigados a dar-nos massa com "estilhaços de frango", ou, invariavelmente arroz com filetes de cavala ou ainda arroz com salsichas... Hoje, voltei a comer conservas, sobretudo das boas, das nossas, mas durante anos e anos a fio não podia sequer suportar o seu cheiro... Conservas, salsichas, macarrão, chispe de porco... Como foi possível fazer uma guerra com a "barriga a dar horas" ?... 

No mato, em operações, muitos de nós estavam dois ou mais dias sem comer, porque eram incapazes de tragar as horríveis rações que nos davam... Eu pessoalmente nem sequer as levava para o mato!... Levei uma vez: ia ficando louco com a sede, provocada pelos "enlatados" e os "açucarados" (marmelada, fruta cristalizada)... Nunca mais quis a m... da ração de combate. 

Alguém fez fortuna com as rações de combate, intragáveis, que nos impingiam no TO da Guiné!... E nunca houve "levantamento de rancho" contra as malditas rações... O povo era manso...e tinha boa boca!

Claro que havia dias de festa!... Claro que havia dias em que se tirava a barriga de misérias!... Quando se arranjava um cabritinho ou um leitão, ou uns quilos de camarão ou lagostim do rio Geba...Ou quando o pai do Tony Levezinho lhe mandava, pelo barco da Sacor, a sua encomendida, em geral "bacalhau do especial" da Terra Nova...

É por estas e por outras que a gente tem o direito de, nesta caserna virtual,  mandar uns "bitaites" bem humorados e desabafar, sem risco de ser acusado de blasfémia: "Come, camarada, que no céu não há disto"...

Esperamos doravante que haja mais gente ("vagomestres da Tabanca Grande")  a ajudar a escrever roteiro gastronómico do país & arredores, respondendo ao nosso desafio: "diz-me lá, camarada, onde é que se come bem... e barato, na tua terra ?!"... De Ponta de Lima a Bissau, de Olhão ao Mindelo, todas as sugestões dos nossos "vagomestres", serão bem vindas... De resto, em matéria de comes & bebes, o "império" continua de pé, do Minho a Timor, o mesmo é dizer, o "império à mesa", da cachupa ao arroz de lampreia, das ameijoas à Bulhão Pato ao chabéu de galinha...

PS - A expressão "coma, que no céu não há disto", usava-a eu, muitas vezes, com o meu pai, mesmo na fase terminal da sua doença (,morreu de cancro no estômago, perto dos 92 anos)... A maior alegria, nessa altura, em que ele estava já num lar (entre 2008 e 2012), era levá-lo a almoçar fora, ao sábado (, peixinho, pois claro!, nunca vi aquele homem a comer um bife!), e depois beber um café e um cheirinho à beira mar... onde íamos os dois "lavar a vista"... 

Que saudades, meu pai, meu velho, meu camarada!...

3. Mais restaurantes em Setúbal

No "cartanito" que me deram, verifiquei que há mais dois restaurantes, do mesmo grupo, proprietário ou gerência... Tomem boa nota:

Baluarte da Avenida - Peixe grelhado | Av Luisa Todi 524, 2900-456 Setúbal | telef  265 573 470

Estuário do Sado - Choco frito e caldeiradas | R Guilherme Gomes Fernandes, 47 , 290-395 Setúbal | telef  265 573 068 (Aberto todos os dias da semana).
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 3 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13459: Manuscrito(s) (Luís Graça) (38): Que viva la (mo)vida... e o choco frito do Bar da Peralta!

sábado, 3 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10615: A minha CCAÇ 12 - Anexos (I): Sansacuta, tabanca fula em autodefesa no sul do regulado de Badora, onde estive em março de 1970 e onde um dia recebi, do vagomestre, um lata 5 kg de fiambre dinamarquês... que tive de consumir e repartir pelos putos em escassas horas (Luís Graça)






Guiné > Zona leste > Seto  L1 (Bambadinca) > BARt 2917 (1970/72) > Tabancas fulas em autodefesa do Regulado de Badora: crianças... e cães.

Fotos: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados



1. Enquanto não aparece o poste relativo ao mês de novembro de 1970. quando a CCAÇ 12 perfazia 18 meses de Guiné (, mês que me traz amargas memórias) (*), vou iniciar um séria paralela, para lá pôr uns textos anexos... O primeiro tem a ver com a temporada (duas semanas e meio) que passei em Sansacuta, no sul do regulado de Badora, do lado esquerdo da estrada Bambadinca-Mansambo, comandando uma secção do 4º Gr Comb da CCAÇ 12, entre 24 de fevereiro e 12 de março de 1970.

Adicionar legenda
Uma aldeia fula em autodefesa:  Sansacuta, regulado de Badora

por Luís Graça



1. Como esses bandos sinistros de jagudis (abutres) que pousam sobre a morança dos que estão a morrer, também o espectro negro da fome paira sobre as tabancas da Guiné. Porque a desnutrição, essa, é já endémica: facilmente se constata, sobretudo nas crianças, toda uma série de sintomas patológicos provocados pelas carências proteicas e vitamínicas de uma alimentação quase só à base de cereais (arroz, milho, fundo) e túbérculos (mandioca, inhame), acompanhos de molhos de origem  vegetal (óleo de palma). 

A alimentação é, pois,  deficiente, sobretudo em qualidade. O peixe (sobretudo seco) e a carne são raros. Além disso, os fulas, que são islamizados, não comem carne de porco. Em contrapartida, não têm os problemas de alcoolismo dos povos ribeirinhos, animistas (como os balantas de Nhabijões).

E, no entanto, trata-se dum território aparentemente fértil, mas com umas das mais elevadas densidades demográficas do continente africano, concentrando-se as populações em especial nas bacias hidrográficas, junto às bolanhas e lalas (regiões alagadiças ricas em húmus) onde cultivam o arroz.


Mas a guerra e a sua escalada vêm modificar profundamente a geografia humana e económica da Guiné: por um lado, provocam o êxodo maciço de populações inteira (balantas, beafadas, mandingas, manjacos, etc.) para as zonas controladas pelos guerrilheiros e para os países límitrofes (Senegal e Guiné-Conacri). E por outro, assiste-se ao fenómeno da militarização dos fulas (uma tribo islamizada cujos régulos detêm ainda algum do seu antigo poder feudal), através não só do reagrupamento e organização em autodefesa das suas aldeias como também da formação de milícias.

2. Eis a razão por que, a partir de 1963, se tem vindo a acentuar o decréscimo da produção agrícola (que aliás é cada vez para autoconsumo). Mas vejamos as duas culturas ainda comercialmente importantes: o amendoim e o arroz.

O amendoim (ou mancarra) só por si deve representar hoje  cerca de metade do valor total das exportações (da Guiné para a Metrópole).

Muito antes ainda de passar à clandestinidade, o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral (que terá dirigido uma brigada técnica dos Serviços Agrícolas Coloniais, não  em Fá, aqui perto de Bambadinca, mas em Pessubé, tendo feito estudos sobre a produtividade de diversos tipos de amendoim), já tinha denunciado o perigo que representava a monocultura desta oleaginosa para o desenvolvimento económico e social da Guiné, e criticando implicitamente a sua importância estratégica como matéria-prima para os monopólios metropolitanos (a CUF, aqui representada pela Casa Gouveia).

Tendo sido imposta ao indígena pela administração colonial, a cultura da mancarra está hoje em declínio irreversível: os fulas ainda são os únicos que lavram mancarra (cultivam amendoim) na periferia das suas tristes tabancas, cercadas de arame farpado e de minas. É com o produto da sua venda que o camponês fula paga, no posto administrativo, a sua taxa domiciliária (imposto de palhota), colectada na base do número de mulheres (e moranças) que possui! 


Curiosa é a origem da mancarra, a semente do diabo, segundo a lenda fula, que aqui ouvi em Sansacuta (em 8 de março de 1970):

Na mitologia fula a mancarra (amendoím) está associada ao Diabo em pessoa (Iblissa). O cherno Umaru que dirige uma pequena escola islâmica nesta tabanca e que se prepara , como bom muçulmano devoto (tijanianké), para fazer no próximo ano a sua peregrinação a Meca (Iado Hadjo, em fula) e assim juntar ao seu nome o título venerando de al-hadj,contou-me a seguinte história,  traduzida  pelo Suleimane, o José Carlos Suleimane Baldé (o meu braço direito, guarda-costa, intérprete, cozinheiro, secretário):

- Um dia Iblissa (o Diabo) quis desafiar a autoridade divina de Mohamadu (o Profeta Maomé). Tinha chovido muito e o Profeta dissera que então nasceriam todas as sementes que fossem lançadas à terra. O Diabo, em vez de uma semente de milho ou de arroz, deitou leite numa cova que ele próprio tinha feito no chão. Mohamadu, intrigado e inquieto com a provocação de Iblissa, foi falar com Alá, que lhe mandou guardar uma semente. E ao fim desse tempo, não é que do leite nasceu mesmo a mancarra ? (**)

O segundo produto é o arroz (***). Antes da guerra, dois terços eram exclusivamente produzidos pelos balantas, a maior etnia do território (que são 150 mil, segundo o censo de 1962). Inclusive o arroz chegou a ser exportado. Hoje mal chega para o autoconsumo, tornando-se dramática a sua carência nos anos de menor pluviosidade.



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Subsetor de Bambadinca > Detalhe > Tabancas fulas em autodefesa, Samba Juli, Sinchã Mamadjai e Sansacuta, situadas entre os rio Querol e Timinco, a leste da estrada Bambadinca-Mansambo > Carta do Xime (1955) (Escala 1/50 mil)... Lugares que continuam no nosso imaginário...



Entretanto, no circuito da economia monetorizada, devido à inflação provocada pela guerra, a população que está sob o nosso controlo vê-se muitas vezes na contingência de vender, ao pequeno comerciante português ou libanês, o arroz que produz para comer (preço por quilo: 3 pesos!) para comprar umas chinelas de plástico:

- O senhor administrador dá porrada se pessoal africano anda descalço em Bambadinca!-, diz um dos meus soldados fulas.

Noutras ocasiões, trata-se de fazer dinheiro para pagar a taxa domiciliária I"o famigerado "imposto de palhota"), imposta ao guinéu e devida pelos escassos metros quadrados de superfície que ocupa a sua morança. 
Entretanto, quando as reservas se acabam no tempo seco, o guinéu volta a adquirir o mesmo arroz pelo dobro do preço (6 pesos).

O drama destes pobres camponeses que foram obrigados a abandonar as suas áreas de cultura, arrancadas à floresta tropical ou à savana arbustiva, de geração em geração, pude senti-lo aqui em Sansancuta onde estive em autodefesa. (****).

3. Sansancuta faz parte dum eixo de aldeias estratégicas, como se diz no Vietname, no limite sul do regulado de Badora, no Sector L1, e que funciona como uma espécie de pequena muralha da China, cortando as linhas de infiltração das forças da guerrilha que eventualmente se dirijam para o interior daquele regulado a partir do Rio Corubal.

Estão aqui reagrupados os habitantes de três tabancas, uma das quais Sare Ade cuja população, sobretudo os mais jovens, não se conformou com a ordem de deportação dada pelo comando militar de Bambadinca, tendo fugido para o nordeste (Gabu) e inclusivamente para o Senegal, que também é chão fula.

Hoje, de resto, só há duas alternativas para um homem fula: (i) oferece-se como voluntário para o exército colonial, passando primeiro pela milícia; ou (ii) emigra todo os anos, na época das chuvas, para o chão de francês (Senegal ou Guiné-Conacri) a fim de trabalhar nos campos de mancarra.

É a única maneira de fugir ao universo concentracionário da sua tabanca, e sobretudo à fome. Essa fome visceral que leva as crianças a aproveitar tudo aquilo que nós, tugas, nos damos ao luxo de deitar fora (vi-as aqui a assaram na brasa as vísceras de um frango que o bom do José Carlos Suleimane Baldé me arranjou e reparti-las equitativamente entre si).


Tínhamos uma secção destacada em Sinchã Mamadjai  [ou Mamajã] que foi transferida em 24 de Fevereiro de 1970 para Sansacuta, com o objetivo de controlar os trabalhos de autodefesa [, e que haveria de  regressar definitivamente a Bambadinca a 12 de Março de 1970].

Fome, subnutrição, carências de toda a ordem (roupas, medicamentos...), doenças como paludismo, mortalidade infantil,  etc., contrastam, de modo chocante, com a relativa opulência com que um tuga , como eu, aqui vive: ainda ontem me vieram trazer o reabastecimento semanal e, entre outros produtos enlatados, deixaram-me cinco quilos (!) de fiambre dinamarquês, para dois mecos, para mim e para o operador de transmissões, os dois únicos brancos, já que as praças são desarranchadas. 


Tivemos de comero fiambre em menos de vinte e quatro horas, sob pena de se estragar com o calor (, frigorífico a petróleo ka tem!), e, uma vez aberta a lata, repartir o resto do fiambre pelos putos da aldeia e soldados africanos da secção. É claro que lhe chamaram um figo, não tendo desconfiado sequer que tal iguaria pudesse ser feita de carne.. de porco!

Deportado e reagrupado em aldeias estratégicas (ou tabancas em a/d, chamem-lhe o que quiserem), o camponês da Guiné que ama os grandes espaços livres (a floresta onde vai caçar a gazela, a bolanha onde cultiva o arroz, o rio onde vai buscar o mafé) vê-se confinado a uma área de reserva onde pratica uma miserável agricultura de subsistência.

Ironicamemnte as fiadas de arame farpado que cercam as palhotas cónicas,as trincheiras e os abrigos de combate, os espaldões para as armas pesadas, as valas de comunicação e os abrigos passivos das tabancas em a/d, ficarão proventura como os únicos vestígios arqueológicos da presença duma civilização tecnologicamente superior nesta parte ocidental de África...

Luís Graça




Guiné > Zona Leste > Croquis do Sector L1 (Bambadinca) > 1969/71 (vd. Sinais e legendas).  Dentro retângulo a vermelho, ficavam localizadas as duas tabancas aqui referidas neste poste, Sansacuta e Sinchã Mamadjai, no limite sul do regulado de Badora,  entre Bambadinca e Mansambo. A sudeste ficavam três importantes (e das últimas) tabancas fulas do regulado do Corubal,  Afiá, Candamã e Camará,  eestas já pertencentes ao subsetor de Mansambo.

Infografias: © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados

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Excertos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1969/71. 
Cap. II.26: A secção destacada em Sinchã Mamadjai foi transferida em 24 de Fevereiro de 1970 para Sansancuta a fim de controlar os trabalhos de autodefesa da tabanca, regressando definitivamente a Bambadinca a 12 do mês seguinte [Março de 1970].~


Notas do editor:


(*) vd. último poste da série > 30 de julho de 2012 > Guiné 62/74 - P10209: A minha CCAÇ 12 (26): Outubro de 1970: o jogo do rato e do gato... (Luís Graça)

(**) Números sobre a mancarra:  Principal produto de exportação da Guiné nos anos 60: 76% do total (em 1964), percentagem que decresce para 61% em 1965, em consequência do agravamento da guerra. A área cultivada atingia os 100 mil hectares (um 1/4 do total da área cultivada da província). A produção rondava as 65 mil toneladas. A produtividade era baixa: 600 kg / ha (2 mil kg /ha em casos excecionais).

A cultura era feita em regime de rotação, sem seleção de sementes, sem recurso a adubos ou estrume, proporcionando fracos rendimentos e exigindo grande esforço nas várias fases do ciclo de produção (sementeira, monda, colheita, protecção contra os babuínos...). Principais regiões de produção: o leste da Guiné, Farim, Bafatá, Gabu, onde os solos são mais leves e a precipitação menor. 

No entanto, esta cultura era já considerada na época como muito lesiva do ambiente, pelo uso intensivo dos solos, a redução do pousio, as queimadas... Tradicionalmente os camponeses da região praticavam um sistema de rotação mancarra - cereal - pousio, considerado pouco eficaz. Acrescente ainda o sistema de comercialização, penalizando fortemente os produtores. (Fonte: adapt. de Dragomir Knapic - Geografia económica de Portugal: Guiné. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa,  1996,  44 pp., policopiado).

(***) Arroz: a área de cultivo devia representar 150 mil hectares no início da década de 60, antes da guerra, o que equivalente a 38% do total, concentrando-se em especial nas regiõe do Cacheu, Bissorã e Mansoa, a norte do Rio Geba, e Fulacunda e Catió, a sul. Havia dois tipos de cultura de arroz: o alagado, ou de bolanha (nas regiões mais ribeirinhas, no litoral); e o arroz de sequeiro, no interior, praticado sobretudo pelos manjacos e fulas. 

A produtividade é também baixa, oscilando entre os 30 kg e os 2 mil kg por hectare, com um a média de 800 kg/ha. A produtividade é sempre maior no arroz alagado. A Guiné passou a ser autossuficiente em matéria de arroz, sobretudo a partir dos anos 30 até ao início da guerra colonial. Exportava arroz para a metrópole, para a África francesa (Senegal e Guiné-Conacri) e para Cabo Verde. Com a guerra, a situação inverteu-se: passou a importar. (Fonte: Dragomir Knapic, 1966, op. cit.).

(****) A terceira cultura de maior peso na Guiné era a do milho (cavalo, preto e basil), mas que tinha um baixíssimo valor alimentar. A área ocupada era sensivelmente a mesma do arroz, mas a produção era 3 vezes inferior: apenas cerca de 50 mil toneladas. Era também uma cultura devastadora para o ambiente, sendo precedida de derrube da floresta e de queimadas...

Outras culturas, mas de menor  impacto na economia e na dieta do guineense do nosso tempo: fundo (30 mil hectares / 10 mil toneladas /  300 quilos por hectare), o feijão, a mandioca, a batata doce, o inhame... Dos frutos mais comuns,  e com relevância para a alimentação, destaque-se a manga, a papaia, a banana, a laranja,  a tangerina, o limão,  a cola, o cajú, o coco... A cana de acúcar também era cultivada, no litoral, destinando-se praticamente apenas para a produção de aguardente de cana.

Outras culturas, com valor económico e alimentar: o óleo de palma (extraído da palmeira de dendê, "Elaeis guineensis"), o coconote, gergelim...

Quanto á riqueza pecuária era estimada, em 1961,  em mais de 230 mil cabeças de gado bovino. Havia umas escassas dezenas de cavalos e mais de 3800 burros. Outros animais domésticos: cabras (c. 144 mil), porcos (c. 98 mil) e ovelhas (c. 54 mil). (Fonte: Dragomir Knapic, 1966, op. cit.).