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sexta-feira, 7 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24457: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXI: Na ocupação da península de Gampará, com a farda do PAIGC, a G3 e um maço de cigarros "Português Suave"... (pp. 207-211)


Guiné > Brá >  c. 1965/66 > Mulheres a trabalho na bolanha. (Foto do álbum de Virgínio Briote, 2005) (Foto reproduzida na pág. 208, do livro do Amadu Dajló)


Guiné > Brá > c. 1973 > Batalhão de Comando dos da Guiné > Tenente graduado 'cmd' Zacarias Saiegh, à direita do Major 'cmd' Raul Folques Foto reproduzida na pág. 210, do livro)



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)


Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28).


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.


Guiné > Região de Quínara > Carta de Fulacunda (1955) (Escala: 1/50 mil) : Posição relativa de Gampará, rios Geba e Corubal, tabancas de Braia e Cubajal, bem como Uaná Porto.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano:

Parte XXXI:  Na ocupação da península de Gampará, com a farda do PAIGC, a G3 e um maço de cigarros "Portuguès Suave"... 
(pp. 207-211)

Na segunda quinzena de novembro[1] fomos para Quinara, na altura em que estava a decorrer a ocupação da península de Gampará. Armados com o nosso material, G-3 e respectivos equipamentos e fardados com roupa idêntica à do PAIGC, tomámos um barco em Bissau e navegámos na direcção de Quinara. 

Quando chegámos a um local adequado, o barco encostou à margem e começámos a desembarcar, amarrados aos ramos das árvores. Depois de reagrupados começámos a progressão rumo ao objectivo.

O sol estava a pôr-se e passámos a noite ali perto. De manhã, logo que o dia começou a clarear, retomámos a progressão até atingirmos uma bolanha, onde vimos mulheres[2] a fazerem as últimas colheitas.

Dirigimo-nos a elas, que ficaram muito surpreendidas com a nossa chegada. Dissemos-lhes que éramos do PAIGC e que tínhamos recebido G-3, para confundir os tugas. E que nos estávamos a deslocar para as proximidades de Tite, para atacarmos o aquartelamento nessa noite ou na próxima. Pareceu-me que ficaram convencidas, não sei se todas, e por volta das 16h00 despedimo-nos delas.

Quando estávamos a abandonar o local recebemos uma mensagem para arranjarmos um local para pernoitarmos, mas numa zona onde pudéssemos ser retirados por helicópteros.

Escolhemos uma grande bolanha de lavra de arroz onde os helis podiam aterrar à vontade. Nessa madrugada adormeci por uns momentos e estava a sonhar que um avião, um Dakota, cheio de passageiros, se estava a dirigir na nossa direcção, a baixar, a baixar, até que acabou por cair com um grande estrondo. Gritei bem alto e acordei sobressaltado, com os companheiros a perguntarem o que estava a acontecer.

De manhã voltámos a encontrar as mulheres, que ficaram surpreendidas quando nos viram. Uma começou a falar muito à vontade connosco e, a certa altura perguntou-nos:

– Vocês não disseram ontem que iam atacar Tite?

O tenente Saiegh respondeu que tínhamos recebido ordem para esperarmos aqui nesta zona, que os aviões nos vinham buscar.

A mulher perguntou se os aviões podiam aterrar neste local. Que sim, que podiam, respondeu. No meio desta conversa, ouvimos o ruído de uma avioneta que pediu a nossa localização.

Localizados facilmente, pouco tempo depois chegaram os helis que pousaram na bolanha e não demorou muito estávamos todos no ar. Entregaram-nos novas cartas topográficas, a missão tinha sido alterada.

Fomos largados junto a uma tabanca, na roda do rio Geba. Andámos um pouco, cortámos à direita e entrámos num carreiro com muitas marcas de pegadas. Ia direito a Cubajal. No trajecto encontrámos um velhote que nos disse que ia para a tabanca, onde tínhamos acabado de ser largados, e que vinha de Cubajal.

Perguntámos-lhe se nos podia acompanhar. Respondeu que tinha medo de estar na tabanca, que um avião andava lá em cima desde manhã. Saiegh garantiu-lhe que não ia acontecer nada e ele foi connosco. Enquanto caminhávamos ia conversando com o velhote e a certa altura disse que era o chefe da tabanca de Cubajara, informação que transmiti ao Saiegh.

Quando chegámos reunimos a população da tabanca. Era muita gente. Dissemos-lhes que éramos do PAIGC, que já tínhamos G-3 para confundirmos os tugas. E que tínhamos a informação que Gampará tinha sido ocupada pela tropa. Responderam que sim, que tinha sido ocupada. Estava ali o chefe da tabanca de Gampará que se levantou para se apresentar.

Continuámos a reunião dizendo-lhes que tínhamos vindo com uma missão, falar sobre mantimentos.

 Vocês sabem perfeitamente que nada nos falta na República da Guiné-Conakry. Mas não podíamos trazer connosco tudo o que precisávamos, por isso, têm que ter paciência, tem que nos reabastecer durante o cumprimento da nossa missão.

Foi assim que nos dirigimos à população da tabanca de Cubajal.

Foram rápidos a responder. Que podíamos contar com eles, que tinham arroz em quantidade suficiente para sustentar todos os combatentes pela Liberdade da Pátria que passassem em Cubajal.

O tenente Saiegh voltou a tomar a palavra para dizer que brevemente o quartel de Gampará iria cair nas nossas mãos, do PAICG, claro. Quando acabou de falar começaram a ouvir-se palmas e de um momento para o outro toda a gente aplaudia. Foi uma salva de palmas da população para o comandante da 1ª companhia de Comandos. O almoço ficou pronto e convidaram-nos a comer à vontade.

Perguntei a um rapaz que estava próximo se todos os chefes das famílias estavam ali connosco. Não, havia, ali em frente, uma família, respondeu-me.

Peguei na minha arma, chamei um soldado para me acompanhar e fui ao encontro de um homem que estava a comer com os filhos ao lado. Depois dos cumprimentos e do convite para almoçarmos com eles, perguntou-me de onde tínhamos vindo.

– De Conakry  respondi.

– De Conakry, com G-3?

   É por isso mesmo – comecei a responder    que estamos a convocar reuniões para toda a população saber que nós também temos G-3 para confundir os tugas.

Ele levantou-se e disse aos filhos para continuarem a comer.

 
– Também podes continuar a comer à vontade    disse eu. 

Que não estava bem, via-se na cara e na expressão,  que estava desconfiado.

Eu estava a fumar um cigarro, um Português Suave, e ele pediu-me um. Meti-lhe um cigarro na boca para o acender mas ele disse que primeiro gostava de lavar a boca. Pegou no cigarro, virou-o até à marca e depois meteu-o na boca, abanando a cabeça. Peguei-lhe num braço, levei-o até ao local da reunião, mandei-o sentar-se ao pé de mim e disse-lhe que não fizesse qualquer sinal às outras pessoas da tabanca.

Um dizia que desde o começo da guerra nunca a tropa lá tinha posto os pés, que tinha havido um ataque da aviação que tinha causado apenas um ferido ligeiro. Outro dizia que Cubajal era um local sagrado. Estava toda a gente a falar quando vimos uma avioneta aproximar-se. Quando estava quase em cima de nós, com todos a olhar para o ar, alguns disseram que era melhor afastarmo-nos e escondermo-nos.

Então dissemos quem éramos. Que os aviões não lhes iam fazer mal. Uma pessoa perguntou se aquele, o Saiegh, que estava ali com um aparelho estava a falar com o avião.

   Está – respondeu alguém. – Nós somos dos Comandos da Guiné, que alguns de vocês chamam criminosos. Estivemos convosco de manhã até agora, não matámos nem batemos em ninguém. Se formos atacados respondemos, isso é verdade. Quando há guerra é assim e tem que ser encarada com seriedade, não é brincadeira.

Toda a gente da tabanca estava surpreendida, menos um, o que eu tinha ido buscar. Ele sabia perfeitamente que não éramos do PAIGC.
Não falou nem uma vez, manteve-se sempre calado. Quando uma pessoa se levantou para falar, reparei que o homem fixava o olhar no orador, como se quisesse fazer um sinal, mas eu também nunca tirei os olhos dele. O erro do Português Suave não me saía da cabeça.



Português Suave" é uma marca de cigarros portuguesa, produzida e comercializada pela Tabaqueira a partir de 1929,, tendo passado a pertencente ao grupo Philip Morris International, desde 1997.  A imagem que se reproduz deve ser de 1975 ou data posterior, quando a Tabaqueria era E.P. (Cortesia da página, de Iana Peiu (Paris) >  "Peiuana", 23 de dezembro de 2013)

A reunião terminou com a avioneta em cima de nós. Foi-nos dada ordem de abandonarmos o local e levar connosco os chefes das tabancas de Cubajal e Gampará para a tabanca de Braia, que ficava junto ao rio, a cerca de uma hora de marcha. Ficámos com eles em nosso poder até de manhã. Depois demos a cada um cerca de 50 folhas de tabaco e um quilo de noz de cola e mandámo-los embora, de regresso a Cubajal.

Cerca de uma hora mais tarde recebemos ordem para nos dirigirmos para o porto de Uanazinho. Uma marcha de um dia inteiro, sem nada para comer. Tínhamos começado a andar às 08h00 da manhã e chegámos por volta das 18h30. Depois de ter comunicado a nossa chegada, o tenente Saiegh recebeu ordem para seguirmos para Gampará.

Dormimos um pouco, iniciámos a caminhada às 06h00 até que, por volta das 10h00, encontrámos uma tabanca com muitas cabras amarradas. Saiegh deu instruções para reunir a população da tabanca e para um grupo ficar de vigilância. Deu também ordem para se matarem três cabras, para as assarmos, porque já não víamos comida há muitas horas.

Na caminhada de regresso vimos manchas de sangue no caminho. Era sangue de páras que por ali tinham passado, viemos a saber depois. Nessa mesma operação tinham acabado de passar por ali, mesmo antes de nós. Já traziam um ferido e um deles pisou uma mina, que atingiu mais dois companheiros. (**)

Em Gampará soube que em vez de três tinham sido mortas quatro cabras, embora só nos tivessem apresentado três. A outra, pelo que vim a saber, era para levarem para Bissau. Mandei chamar o soldado e dei-lhe ordem para me trazer a cabra. Nem disse uma palavra, foi buscá-la e trouxe-a inteira.

Perguntei aos soldados o que é que pretendiam que se fizesse à cabra. Cozinhá-la, responderam. Que um tinha arroz e outro óleo de palma, acrescentou outro.

Dirigi-me em seguida para o aquartelamento e fui procurar o Saiegh para saber o que íamos fazer a seguir. Regressar a casa, missão terminada. Amanhã vem um barco que nos vai levar de regresso.

Avisei os meus soldados e aproveitei para lhes dizer que podemos roubar para matar a fome, não para levar para casa. Roubar e levar para casa é um crime e um mau vício.

Antes de embarcarmos, chegou um heli com o General Spínola. À frente da nossa companhia e da dos páras fez um pequeno discurso.
_____________

Notas do autor e/ou editor literário:

[1] Nota do editor: as CCmds participaram nas operações da instalação do COP7 na península de Gampará, designadamente a “Satélite Dourado”, entre 11/15Nov71, e a “Pérola Amarela”, entre 24 e 28 Novembro 1971. 

A criação do Comando Operacional nº 7, em 24/11/1971, tinha como finalidade concretização a execução de um reordenamento da população de Ganjauará / península de Gampará, e limitar a atividade IN na região de Quínara. (Nota do editor LG)

[2] Biafadas.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Subtítulo / Negritos: LG]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 19 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24414: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano; Parte XXX: A guerra pela população (pp. 204-206)

(**) O Amadu Djaló não terá feito confusão com outra data ?

Vd. poste de 21 de fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1540: Os pára-quedistas também choram: Operação Pato Azul ou a tragédia de Gampará, em 4 de Março de 1972 (Victor Tavares, CCP 121)

(...) Desta tragédia para a família pára-quedista, que jamais esquecerá este dia , resultaram:

(i) seis mortes, Alf Mil Paraquedista Abreu, Furriel Pára-quedista Cardiga Pinto, PCB/Pára-quedista 47/68 Santos , PCB/Pára-quedista 129/69 Almeida , Sol/Pára-quedista 318/69 Jesus , PCB/Pára-quedista 412/69 Sousa;

(ii) 2 feridos graves e nove com menos gravidade , Furriel Pára-quedista Casalta (Comandante da 1ª secção do 2º Pelotão) , Sol Pára-quedista Inês (evacuado para a metrópole ), Ferreira , Tavares, Ventura, e 1º Cabo Pára-quedista Figueiredo, todos do 2º Pelotão, e o Sold Pára-quedista Salgado - Estilhaço de alcunha - do 1º Pelotão, faltando três por identificar pois, passado todos estes anos, já não me recordo, e ficará para sempre uma saudade enorme D’AQUELES EM QUEM PODER NÃO TEVE A MORTE. (...) 

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24420: Facebook...ando (29): A 38ª CCmds. integrada no BCmds da Guiné (1972/74), não só partilhou rações de combate como fez, com os camaradas comandos africanos, grandes operações como a "Galáxia Vermelha", no Cantanhez, que nos uniu até à medula (Amílcar Mendes)


Mesquita de Lisboa > 20 de fevereiro de 2015 > O último adeus ao Amadu Bailo Jaló  (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015)> > Da esquerda para a direita, (i) Jaquité (ex-fur cmd BCmd): (ii)  cor cmd  ref Raul Folques; (iii) Amílcar Mendes) ex-1º cabo cmd, 38ª CCmds): (iv) José António Pereira (também da 38ª CCmds); e (v) Virgínio Briote (editor do nosso blogue, ex-alf cmd do CTIG, 1965/67).

Foto (e legendagem): © José Colaço (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Mesquita de Lisboa > 20 de fevereiro de 2015 >  O último adeus ao Amadu Bailo Jaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015)  > Da esquerda para a direita, (i) cor Ferreira A A Silva, (ii) sobrinho e (iii) filho do Amadú  [que vive em Londres], (iv) José António A Pereira (da  38ª CCmds), (v) filho mais velho do Amadú [que vive em Lérida, Espanha], (vi) neta do Amadu, (vii) Saiegh (do BCCmds Africanos), (viii) Mário Dias, (ix) Virgínio Briote e (x) um outro guineense não identificado.

Foto (e legenda): © Giselda Pessoa (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Comentário do Amílcar Mendes, ex-1º cabo cmd, 38ª CCmds (Brá, 1972/74), na página do facebook da Tabanca Grande Luís Graça, com data de 19 do ocorrente,  20h41:

Referindo o período de 72/74, a minha 38ª CCmds estava integrada no Batalhão de Comandos da Guiné, após a sua formação em 72 (antes teve várias designações) cujo 1º Cmdt foi o Maj Cmd Almeida Bruno, mais tarde o Maj Cmd Raul Folques. 

O Batalhão era constituido por 4 Companhias, 3 Africanas e uma Europeia, a 38ª CCmds (a 35ª CCmds foi retirada da actividade operacional, em Março 73 e até ao fim da comissão em Nov73). 

A 38ª CCmds fez operações  a nivel de Batalhão, muitas horas de viagens conjuntas, quer em LDG, ou viaturas, ou saídas de Héli, com Cmds Africanos, dormimos muitas noites juntos, partilhámos muitas rações de combate, iguais para todos.

Acontecia trocarmos, com eles,  sumos, doces, queijos , chokoleite, e recebiamos os que eles não comiam. 

Com os Cmds Africanos, assimilámos hábitos e tradições, aprendemos a melhorar a performance e desempenho na mata, chorámos juntos a morte de camaradas, mas construímos enormes pontes de amizade, que se mantêm até hoje. 

Tive o privilégio de conhecer o Alf Cmd Amadu Jaló,  estive presente, com alguns  (poucos),  nas exéquias fúnebres, na Mesquita de Lisboa, acompanhando a família na sua dor. 

Sem soberba ou gabarolice, posso dizer que poucos combatentes conheceram por "dentro" o desempenho, o arrojo, a forma apaixonada como se orgulhavam de ser Portugueses e Comandos, como a 38ª CCmds conheceu.

A última grande operação que fizemos em conjunto, "Galáxia Vermelha" (**), 12 dias de Cantanhez, uniu-nos até à medula. Foram combates violentos, que infelizmente se saldaram por algumas baixas do nosso lado, mas pusemos todo o Sul a ferro e fogo. 

Continuo a dizer, as rações de combate adaptavam-se... 

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 17 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24321: Facebook...ando (28): Convívio anual da CART 2479 / CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70) em que apareceu, pela primeira vez, o Pechincha, que já não via desde 1969 (Abílio Duarte)

(**)  Operação "Galáxia Vermelha" - 21Dez72 a 01Jan73

A uma força composta pelo BCmds, DFE 4, 12 e 22, TG 9 (10 lanchas da Marinha), 1 Destacamento de Cooperação Aero-Táctico composto por 7 aeronaves da Força Aérea, 1º Pel Art (14 cm) e 5º Pel Art 10,5 cm), foi dada a missão de patrulhar, nomadizar e bater a região Darsalame-Cachambas-Madina do Cantanhez-Boche Falace, S4.

No dia 23, forças do BCmds causaram ao ln 3 mortos e apreenderam 1 espingarda automática "Kalashnikov" em Faro Modi Mutaro. As NT sofreram 3 feridos ligeiros. 

No mesmo dia, na região de Cacine, capturaram 1 espingarda "Mosin-Nagant" e 9 granadas de canhão s/r.

No dia 24, forças do BCmds, apreenderam 1 espingarda automática "Simonov" e detiveram 6 elementos da população.

No dia 25, forças do BCmds, na região de Cacine, foram flageladas e infligiram
na reacção ao ln 4 mortos e sofreram 3 feridos graves e 4 ligeiros.

No dia 26, forças do BCmds, no ataque a uma base inimiga, sofreram 2 mortos, 4 feridos graves e 10 ligeiros.

Nos dias 26 e 27, forças do DFE 22, estabeleceram contacto com o ln na região de Cachambas e apreenderam 1 espingarda automática "Simonov".

No dia 31, forças do DFE 22 tiveram um contacto com o ln, causaram-lhe 1 morto e localizaram 1 arrecadação donde recolheram:

53 granadas de LGFog "RPG-2" e "7";
18 cargas de LGFog "RPG-2";
e 28 de "RPG-7";
e 33 detonadores de LGFog  "RPG-2". 

O DFE 22 sofreu 1 morto e 4 feridos ligeiros.
 
Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro III; 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp. 352-353 (Com a devida vénia...)

sábado, 27 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24344: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVIII: Na 1ª fase da instruçáo da 2ª CCmds Africanos, fomos atacados em Candamã como se fôssemos do PAIGC...


Guiné > s/l > s/d > O furriel graduado 'comando' Cicri Vieira a cumprimentar o Major Raul Folques, comandante do Batalhão de Comandos da Guiné (no período de 28jul73 a 30abr74) (O major Raul Folques sucedeu ao major Almeida Bruno). (Foto publicada no livro, na pág. 197).



Guiné  > Zona Leste >  Sector L1 (Bambadinca) > BART 2917 (1970/72) >  Forças da CCAÇ 12, a descansar na Ponte dos Fulas (sobre o Rio Pulom, afluente do Rio Corubal), por ocasião de uma coluna logística Bambadinca - Xitole (Xitole era a unidade de quadrícula, do Setor L1, mais a sul; era a sede da CART 2716, em 1970/72).

Perspetiva: norte-sul, quando se vem de Bambadinca e Mansambo para Xitole e Saltinho.  A ponte, em madeira, de construção ainda relativamente recente e em bom estado, era vital para as ligações de Bambadinca e Mansambo  com o Xitole, o Saltinho e Galomaro... A ponte era defendida por um 1 Gr Comb do Xitole, em permanência, dia e noite... Na foto sãos visíveis, em segundo plano à esquerda, o fortim; em terceiro plano, ao fundo, à direita, as demais instalações do destacamento. Foto do álbum de Arlindo T. Roda, ex-fur mil da CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O seu editor literário, ou "copydesk", o seu camarada e amigo Virgínio Briote, facultou-nos uma cópia digital; o Amadu, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.


O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149


Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanbos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVII:

Atacados em Candamã como se fôssemos do PAIGC 
(pp. 195-200)

Em Tite, oito dias depois (*), embarcámos com o pessoal seleccionado para a 2ª CCmds, com destino a Fá Mandinga, para dar início ao curso que iria durar seis meses.

Foi muito duro, terminou com uma prova individual duríssima. Começámos a 2ª parte do curso com a formação das equipas e depois seguiu-se a técnica de combate. Alterámos os horários, o dia passou para a noite e a noite passou para o dia. Começávamos a instrução às 19h00, que era a hora do pequeno-almoço, almoçávamos à 01h00 e jantávamos às 06h00 e a seguir deitávamo-nos no dia seguinte. Era uma semana maluca, diziam alguns.

Num desses dias saímos das viaturas na estrada de Bambadinca para o Xitole. Cinco grupos largados à distância, mais ou menos de três quilómetros uns dos outros, todos com o mesmo objectivo. Tinham-nos sido dados os azimutes para a nossa orientação e, mesmo assim, tivemos muitas dificuldades. A mata tinha um tipo de espinhas que eu nunca tinha visto. Agarravam-se ao camuflado e só saíam à faca. Saímos de lá com os camuflados todos cortados. Até fomos atacados por um civil da tabanca, em auto-defesa, de Candamã [1].

Homens que estavam a trabalhar na monda dos campos de arroz, a que nós na Guiné chamamos lugares de pampam[2], avistaram-nos e como, entre nós, não havia nem um branco, pensaram que éramos do PAIGC e fugiram para a tabanca, a avisar os milícias que a tabanca ia ser atacada. Depois começámos a ser flagelados com tiroteio e não podíamos responder.

Nós sabíamos quem eles eram, mas eles não sabiam que nós também estávamos do lado deles. Como a mata não nos deixava entrar, continuámos a contornar a campada[3] de arroz até que conseguimos deitar a mão a um homem que conhecia um dos nossos cabos monitores, o Califa Embaló, que estava à espera de ser graduado em furriel no final do curso. Convencemo-lo a dirigir-se à tabanca e avisar os milícias que nós éramos de Fá Mandinga e que nos estávamos a dirigir para a ponte do rio Pulom. Cerca de 15 minutos depois, fomos no caminho dele, até à tabanca, que estava vedada com arame farpado.

Quando chegámos, vimos que à volta da tabanca havia uma vala com abrigos que até podiam servir para armas pesadas e toda a população estava lá metida. Quando entrámos não cumprimentámos nem falámos com ninguém, continuámos a andar até sairmos pelo outro lado da tabanca, que ficava a leste da povoação. Seguimos então na direcção do nosso objectivo, a ponte do Pulon e as tabancas de Fulamori, Dulogenjele, Guerleje e Polo, que era o objectivo final. Na ordem de missão não devíamos nem podíamos tocar em nenhuma das tabancas.

Durante o trajecto, o furriel Cicri Marques Vieira informou pelo rádio que tinha chegado a Dulogengele e que ele e o Vasconcelos tinham reunido toda a população e que não havia problemas. Eu e o furriel Sada Candé só chegámos ao pôr-do-sol e encontrámo-nos todos em Bamtabá. Quando estávamos sentados, a descansar, vi umas casas cobertas com capim, à moda Futa-Fula e disse para o Sada Candé:

– Aquelas palhotas ali parecem de patrícios meus. Vou lá ver se me arranjam um local para as minhas orações.

Sada Candé quis ir também e quando lá chegámos ouvi um velhote perguntar a alguém se todos tinham ido e ouvi também esse alguém responder que sim.

–  Olha, Sada, estamos tramados. Fugiram todos para Galomaro. E agora? Temos que saber quantos fugiram e para onde foram.

Em passo rápido para a palhota, cumprimentei o velhote, ele respondeu com consideração, e eu perguntei-lhe:

–  As populações fugiram?

–  Mandámos mulheres e crianças passarem a noite em Galomaro.

–  Porquê?

– Porque não temos confiança no homem que se reuniu convosco. Tem barba muito grande!

O velhote estava a referir-se ao Furriel Cicri Vieira. Pedimos a um rapaz, que estava à nossa beira com uma bicicleta, que fosse atrás dos fugitivos e lhes dissesse para regressarem, que não havia perigo nenhum.

De madrugada, retomámos a marcha com destino ao nosso objectivo, que atingimos às 06h45, quase ao mesmo tempo que o capitão Miquelina Simões e o tenente Oliveira. E às 07h30 iniciámos as provas de equipas que terminaram já passavam das 20h30.

Mais dura foi a semana a seguir. Iniciámos a instrução colectiva, por grupos, que durou poucos dias e depois começámos[4] o treino operacional.

Saímos de Fá Mandinga, depois do pequeno-almoço em direcção ao Xime e atravessámos o rio Geba. Toda a companhia estava na outra margem por voltas das 13h00. Dali seguimos para o Enxalé.

Os comandantes dos grupos, todos furriéis, entraram na sala de operações, juntamente com o capitão, comandante da companhia[5] dos europeus do pelotão destacado no Enxalé, para consultarem os mapas da zona.

Saímos de Enxalé à tarde e caminhámos durante toda a noite, até de manhã. A marcha decorreu sem problemas, sem qualquer contacto com o IN. Quando atingimos o objectivo informámos, por rádio, que já lá estávamos. Então, recebemos ordem para retirar.

Foi uma retirada penosa. Estávamos com fome, com sede e com sono, a chuva miudinha não parava de cair. Só atingimos o Enxalé por volta das 16h00. Atingimos o porto às 18h00, estava a maré baixa. Não podíamos estar ali muito tempo, a maré cheia estava prevista para as 22, 23h00. Como continuava a chover, e estávamos cheios de frio, decidimos meter-nos na água e atravessar o rio, ao encontro das viaturas que nos aguardavam na outra margem.

Tirámos a roupa toda e enfiámo-nos no lodo, a rastejar. No meio do rio, vi-me atolado, quase sem me pode mexer. As lágrimas caíam-me pela cara abaixo, misturadas com a água da chuva, que nunca parou de cair. Finalmente, com muito custo, cheguei à outra margem, já passava das 18h00.

Na berma da estrada tinha uma enorme corrente de água da chuva a correr para o Geba. A tremer, com as lágrimas ainda a caírem-me pela cara, meti-me na corrente da água. Depois de tirar o lodo do corpo, vesti a farda encharcada. Uma mulher da minha etnia, que morava ao pé, convidou-me a ir aquecer-me à varanda da casa dela, enquanto o resto do pessoal não acabasse de atravessar o rio.

–  Meu furriel, vá lá, porque tem uma corrente de ar forte, fica seco num instante  –  disse-me um condutor.

Fui com a mulher. Tinha uma fogueira acesa, deu-me uma cadeira e estive ali a aquecer-me até que ouvi chamarem pelo meu nome para entrarmos para as viaturas. Vinte e tal quilómetros até Fá Mandinga, em viaturas sem capota, com a corrente de ar durante toda a viagem.

Quando cheguei, mandei um condutor chamar o enfermeiro, o Domingos Lourenço Fernandes, conhecido por Dundo Fernandes. Vesti umas calças e uma camisola, secas, e enfiei-me na cama com duas mantas em cima de mim. Quando Dundo chegou, aplicou-me duas injecções e deu-me três comprimidos para engolir.

Durante minutos, tapado com as mantas, senti calor, transpirei até que já não aguentava mais a roupa em cima.

Ainda antes da meia-noite, entrou no quarto um furriel europeu, que me acordou e disse que o capitão Miquelina Simões queria falar comigo.

–  Estou doente, pá!

–  É melhor ires falar com ele, parece que o teu grupo vai sair esta noite ainda!

Vesti-me e lá fui ter com o comandante, ao bar.

–  Desculpa, Amadu, esqueci-me de te dizer que vais sair esta noite. Devias estar em Bambadinca à meia-noite, mas vais na mesma, prepara o teu grupo o mais depressa possível.

Dei dez minutos ao grupo para se preparar. Com o grupo formado, conferi se estavam todos, o capitão passou revista, estava tudo em ordem e mandei-os subir para as viaturas. Ainda não era meia-noite, quando arrancámos para Bambadinca e, quando lá chegámos, passavam 20 da meia-noite.

Depois de consultar o mapa e inteirado da missão, pusemo-nos a caminho. Foi toda a noite a andar, até de manhã, sempre a chover, tudo bolanhas cheias. Chegámos ao rio, e tivemos que o atravessar para o outro lado. Demorou cerca de uma hora a travessia, depois entrámos numa área cultivada de milho. Fomos andando até às 11h00, atingimos um local, onde, conforme o estabelecido, entrei em contacto rádio e ficámos a aguardar nova ordem.

Entretanto fomos comendo qualquer coisa, que tínhamos levado connosco, e aí pelas 15h00, apareceu uma avioneta a sobrevoar a zona. Estava à nossa procura. Com o rádio ligado, pediram a nossa localização, estendemos telas e deram-nos ordem para nos mantermos naquele local.

Eram para aí 20h00 recebemos a indicação para atravessarmos o rio e para progredirmos até junto do objectivo, onde deveríamos permanecer, até nova indicação. A grande dificuldade foi atravessar o rio. Estava uma noite completamente escura, a ponte era de paus, a corrente era muito forte e no outro lado estava a mata densa. Agarrados uns aos outros pela cintura, demorou horas a travessia do grupo. Na outra margem fizemos um alto. Por volta das 04h00, retomámos a marcha com todo o cuidado, sempre com a companhia da chuva, até que por volta das 05h30 executámos o “golpe de mão”.

Após o golpe de mão simulado, rumámos para a estrada Bambadinca-Xitole e em Demba Juli apanhámos uma coluna que nos levou para Fá. 

Foram quatro dias sem qualquer ração quente e com paludismo.
_____________

Notas do autor e do editor literário:

[1] Nota do editor: no subsector atribuído à CArt 2714 de Mansambo. [No livro, o topónimo está mal grafado: é Candamã, e não Gandamã. (LG)]

[2] Lavra de arroz no mato. O mato é cortado, primeiro, a seguir é queimado e, quando chove, lança-se o arroz e pega-se no covadouro, para se infiltrar melhor no solo.

[3] Campo lavrado.

[4] Nota do editor: em 10 Setembro de 1971.

[5] Nota do editor: CArt 2715 / BArt 2917

[Seleção / Revisão e fixação de texto /  Subtítulo / LG]
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 23 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24337: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVI: 16 de abril de 1971, um dia trágico, a morte de João Bacar Jaló (Cacine, 1929 - Tite, 1971)

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24307: Facebook...ando (27): Op Neve Gelada, na zona de Campã / Cantiré, 5 km a norte de Canquelifá, onde estavam as bases de fogos (morteiro 120 mm e foguetões 122) usados contra Canquelifá



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Sector L4 (Piche) > Canquelifá > Março de 1974 >  O José Marques junto a um dos morteiros 120 capturados no dia 21 de março de 1974, pelos Comandos Africanos na zona de Canquelifá, quando arrumávamos as respectivas granadas. Cortesia de José Marques (Castelo de Vide) (não sabemos ainda a que unidade/subunidade pertenceu, mas fica convidado para integrar o blogue, é apenas amigo do Facebook).

Foto (e legenda): © José Marques (2023). Todos os direitos reservados. 
[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1.  Seleção de comentários, gerados no Facebook da Tabanca Grande (*), na sequência da publicação do poste P24305 (**):

(i) Tabanca Grande:

Depois do ataque e destruição da tabanca de Canquelifá, 18 de março de 1974, por fogo IN de morteiro 120 mm e foguetões 122 mm), foi desencadeada a Op Neve Geada, de 21 a 23 de março de 1974, tendo sido batida a zona de Campã / Cantiré, sector L4 (Piche), a cerca de 5 km, a noroeste Canquelifá, numa ação levada a cabo pelo BCmds da Guiné, a três agrupamentos. 

 Na zona estava referenciada uma base de fogos IN. No dia 21, pelas 14h45, a base de fogos foi assaltada, tendo sido apreendidos: 

  • 3 morteiros 120 mm; 
  • 367 granadas de morteiro 120 mm;
  • 1 LGFog RPG-2; (iv) 2 espingardas automáticas Kalashnikov; 
  • e material diverso.

No dia seguinte, pelas 10h00, foi assaltada nova base de fogos e capturadas três rampas de foguetões 122 mm, além de material diverso (munições, espoletas, munições., etc.). Baixas: 2 mortos e 24 feridos, do lado das NT; 27 mortos, incluindo 2 cubanos, do lado do IN. 

Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015). pp. 479/480.)

(ii) O cor 'comando' ref Raul Folques acrescentou o seguinte:

Na Op.Neve Gelada, zona de Canquelifá, o Batalhão de Comandos da Guiné capturou ao IN_:
  • 3 mort. 120mm completos;
  • 1 tubo de mort. 120mm , 2 tripés, 1 prato/base;
  • e 367 granadas de mort.120mm. 
A operação teve lugar no fim de Março de 1974.

(iii) O Cherno Baldé levantou a questão da localização das bases de fogos:

Tabanca Grande Luís Graça, não fosse essa operação dos Comandos Africanos,  efectuada na localidade de Campã para aliviar a pressão sobre Canquelifá, ainda hoje continuariam a pensar que as bases de fogo se localizavam sempre a partir dos territórios vizinhos e assim justificar a impotência do exército português de fazer parar estes ataques. 

Antes de Canquelifa já tinha havido ataques as cidades de Bafatá e Gabú com foguetões e morteiros 120, no Sul os bombardeamentos eram constantes e temos os casos de Cufar,  por exemplo, sendo que são localidades no interior do território.


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu >  Pormenor da carta de Canquelifá (1957) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Canquelifá, tendo a noroeste Copá, e a norte, Campá (5 km em linha reta) e Cantiré (7 km) e, mais acima, os marcos fronteiriços 60, 61 e 62 que o PAIGC devia atravessar vindo as duas bases logísticas no Senegal.

(iv) A Tabanca Grande esclareceu:

Cherno, o PAIGC tinha camiões russos, em março de 1974 (e já antes, desde pelo menos 1968)... Podia perfeitamente penetrar com os morteiros 120 no território da então colónia portuguesa da Guiné... A partir de março de 1973, devia sentir-se mais "à vontade" com a proteção do Strela...

O cor 'comando' Raul Folques, "Torre e Espada", que comandava o Batalhão de Comandos da Guiné na Op Neve Gelado (mas também o cor 'comando' Carlos Matos Gomes, que comandava um dos três Agrupamentos) é que nos pode confirmar hoje (já não é segredo de Estado) se entrou ou não na República da Guiné e se as bases de fogos dos morteiros 120 mm (e dos foguetões 122 mm) estavam ou não em território da Guiné-Bissau, como parece sugerir o Cherno Baldé...  

Em relação à localização das bases de fogo, verificamos pela carta de Canquelifá (1957) (Escala 1/50 mil), que Campã (e não Campiã), uma antiga tabanca, ficava a 5 km, a norte de Canquelifá... Deve ser sido aqui que o PAIGC posicionou os morteiros 120 mm, cujo alcance máximo era de 5700 metros... Cantiré ficava um pouco mais mais longe (cerca de 7 km em linha reta)... 

Portanto, o que o Chermo Baldé diz, é correto. O PAIGC arriscou entrar no território da então Guiné portuguesa, confiando nos seus mísseis Strela... Nem  sempre as viaturas russas Zil e Gas ficaram na fronteira, nem os tipos do PAIGC deviam saber onde ficavam os marcos... Mas a verdade é que desta vez, e talvez por excesso de autoconfiança, não contaram com os comandos africanos, comandados pelo major 'cmd' Raul Folques, que apanharam 3 morteiros pesados completos mais um tubo, e provocaram 27 baixas mortais ao IN, incluindo 2 'internacionalistas' cubanos (que deviam ser apontadores de morteiro)... (Op Neve Gelada, 21 e 22 de março de 1974.)

Quanto à flagelação da Bafatá, meu caro Chermo,  terá sido efetuada apenas com foguetões de 122 mm, como diz (e bem) o... por certo que os combatentes do PAIGC, por muito valentes que fossem, não entraram pela Zona Leste  / Região de Bafatá com os morteiros 120 mm às costas, ou rebocados pelos camiões Gas ao longa da "autoestrada" do leste (que ia praticamente de Buruntuma a Bambadinca, no final da guerra).. Recorde-se que cada morteiro 120, completo (tubo, bipé e prato)  pesa "só" 275 kg (fora as granadas)...

(v) Esclarecimento de António Tavares:

O primeiro ataque a Bafatá com foguetões de 122 mm foi feito da Zona de Acção da responsabilidade da CCaç 2699, sediada em Cancolim, em 1971. A rampa de lançamento foi deixada no local onde foi montada. Felizmente não houve feridos.
Gosto

(vi) Informação do António Rodrigues:

Em Copá, nos meses de Janeiro e Fevereiro de 74, caíram algumas centenas de granadas deste morteiro.

Contávamos todas as saídas e, poucos segundos depois estávamos a contar as explosões junto de nós e só ficávamos descansados quando explodia a última de cada série, felizmente sem consequências físicas para nenhum de nós.
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Notas do editor:

(*)  Último poste da série > 24 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24247: Facebook...ando (26): Homenagem ao Xico Allen (1950-2022): a filha Inês, em Fátima, no passado sábado, no convívio anual da CCAÇ 3566, "Os Metralhas" (Empada e Catió, 1972-74)

quinta-feira, 16 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24146: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXII: Selecionado para a 1ª Companhia de Comandos Africanos, em finais de 1969

Lisboa >  2009 >  Da esquerda para a direita, o cor inf 'comando' ref Raul Folques e o ten general 'comando' ref Almeida Bruno  (1935-2022) (os dois primeiros comandantes do Batalhão de Comandos da Guiné, e ambos Torre e Espada) e o nosso saudoso grã-tabanqueiro Amadu Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015).

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2015). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital,  do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O seu editor literário, ou "copydesk", o seu camarada e amigo Virgínio Briote,  facultou-nos uma cópia digital; o Amadu, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966. (Foto reproduzida no livro, na pág. 149)

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri,  começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii)  depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido,  por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757; 

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló.

 

Capa do livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.  

Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um    luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXII:   

Selecionado para a 1ª Companhia de Comandos Africanos, 
em finais de 1969 (pp. 153-157) 

Nos inícios de julho de 1969, estava eu em Bafatá [1], chegou uma ordem, a mandar recolher todos os militares africanos [2] que tivessem sido Comandos.

Quando cheguei a Bissau, já lá se encontravam os meus antigos companheiros, o Braima Bá e o Tomás Camará. Mandaram-me apresentar ao capitão Almeida Bruno [3], no Comando-Chefe, junto ao palácio do Governador.

 Entrei com o capitão Bruno para uma grande sala e, momentos depois, regressou com dois oficiais superiores e um deles deu-me um papel para eu escrever a minha identificação completa.

Depois, perguntou-me se eu era capaz de comandar uma companhia com 150 homens. E, se cada um deles tinha uma arma, cada arma 5 carregadores, cada carregador 18 balas, quantas balas eu precisava de levantar da arrecadação. Fiz as contas rapidamente e entreguei o papel, que, depois de verificado, estava com o resultado certo. Logo de seguida, mandaram-me apresentar em Brá, à 15ª CCmds.

Estive cerca de 5 dias. em Brá, até se apresentarem todos os que tinham sido convocados. Depois, iniciou-se um curso com um instrutor, o capitão Barbosa Henriques.

Foi um curso muito acelerado, de cerca de quarenta e cinco dias. Acabámos em setembro de 1969, depois regressámos às respectivas companhias e, eliminados os que chumbaram nas provas, ficámos à espera que chegasse o mês de janeiro, para dar início à formação da Companhia.

Em novembro, fui transferido para o D. B. de Intendência, por trás da Amura, em Bissau. Como era meu desejo passar a época de Natal em casa,  fui autorizado a ficar mais uns dias em Bafatá.

Quando regressei a Bissau voltei a procurar o capitão Almeida Bruno. Disseram-me que tinha mudado para a Amura.

 Passei por lá e encontrei-o a matar o bicho na cantina. Depois de o cumprimentar, apresentei-lhe o meu problema e pedi que me transferisse para a 15ª CCmds, em Brá. O capitão telefonou para o QG, deu o meu nome e nº e depois agradeceu-me por o ter vindo ver.

Uns dias depois, voltei a encontrá-lo e disse-lhe que ainda não havia resposta ao meu pedido. O capitão voltou a ligar para o QG, para a 4ª Rep e fiquei a saber que o pedido de transferência já tinha sido deferido e que faltava apenas a publicação em Ordem de Serviço. Lembro-me de o ouvir dizer que tratassem do assunto com urgência.

Quando entrei ao D.B.I., a sentinela disse-me que, no dia anterior, na distribuição das prendas de Natal, tinham chamado por mim e que o capitão disse que se calhar tinha morrido e ninguém sabia. Dirigi-me ao gabinete do capitão, comandante da companhia, e ele perguntou-me por que ainda não tinha aparecido. Expliquei as razões, que tinha estado de manhã na Amura, mas não ficou muito convencido que eu estava a falar verdade. E depois, virou-se para mim e perguntou:

  Mas quem é o teu comandante, o capitão Almeida Bruno ou eu?

Repreendeu-me e disse para eu nunca mais ir ao Comando-Chefe. Também não fiquei muito satisfeito e dirigi-me à Amura, para falar com o capitão Bruno e pedi-lhe que esclarecesse o assunto com o meu comandante de companhia do D.B.I.. Depois, quando ia a sair pela porta de trás da Amura, vi o capitão, o meu comandante do D.B.I. a olhar para o relógio. Já estou arrumado, pensei, mas continuei a andar em passo calmo.

Quando cheguei ao Depósito, D.B.I., a sentinela disse-me para ir ao gabinete falar com o capitão. Assim fiz e quando lhe pedi licença para entrar, o capitão respondeu:

  Não dou, mas entra! Onde é que estiveste?

 Fui à Amura.

 E o que é que acabámos de falar, ainda há minutos? Por que foste à Amura?

Depois de eu lhe explicar as razões, ele disse que tinha homens disciplinados e rematou:

–  Não me venhas agora dar mau exemplo. Podes sair.

As coisas aqui nunca correram muito bem. O capitão andava desconfiado de mim, e eu nunca soube as razões de tal procedimento.

 Uma vez, estava eu de sargento de piquete, apresentei-me na parada ao alferes, oficial de dia e ele olhou para mim dos pés à cabeça, sem nada dizer. Assim, voltei a pedir-lhe licença e ele respondeu que não dava, porque não me conhecia. 

E tu conheces-me, perguntou-me?

 Eu também não o conheço, mas é minha obrigação apresentar-me ao oficial de dia. 

Ele disse que eu tinha razão, de facto. Chamou o 1º sargento, apontou para mim e perguntou-lhe;

  Quem é este gajo? Desde quando está cá? Chega cá um militar transferido, fica aqui na parada para se apresentar! Qualquer dia vem cá um terrorista matar-me na parada!

Quando acabou, perguntei:

  Meu alferes, dá-me licença? Apresenta-se o 1º. cabo tal e tal, nº tal, que está de sargento de piquete.

Então ele avisou que nenhum de nós podia sair, fosse para onde fosse.

No dia seguinte dirigi-me ao gabinete do capitão, para lhe solicitar uma dispensa de três dias para me deslocar a Bula. O capitão perguntou-me se a transferência já estava resolvida. Que sim, senhor, que estava, respondi. Então, ele pediu o meu nome e nº e disse-me que não me queria lá mais na companhia.

Todos os elementos de identificação conferidos, na secretaria bateram à máquina a guia de marcha e às 10h00 entregaram-ma. Apanhei um táxi para Brá e fui apresentar-me à 15ª CCmds.

 Depois da concentração de todo o pessoal, fomos para o Cumeré, frequentar um curso de quadros com a duração de 15 dias. Regressámos a Bissau e começámos a preparar a formação da 1ª CCmds da Guiné, que iria ser comandada pelo capitão João Bacar Djaló.

Foi no Estádio Lino Correia [5], a apresentação da companhia [6], num dia histórico da minha carreira militar.

Quando a cerimónia terminou, regressámos ao quartel e, no dia seguinte embarcámos na ponte-cais. Uma imagem inesquecível. No porto estavam uma centena de donzelas a despedirem-se de nós. Depois o barco arrancou. Íamos para Fá Mandinga, fazer 4 meses de curso de comandos e dois no terreno operacional. Ao todo, meio ano de sacrifício.
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Notas do autor ou do editor literário, VB:

[1] Nota do editor: no BCaç 2856?

[2] Nota do editor: unidades de Comandos compostas na totalidade por militares oriundos da Guiné. Teve início em 14 de Julho de 1969 um estágio/instrução para preparar e seleccionar os futuros graduados da que viria a ser a 1ª. Companhia de Comandos da Guiné. A instrução decorreu em Brá e esteve a cargo do cap art Comando Barbosa Henriques (1ª.Fase) e do cap inf Comando Garcia Lopes (2ª.Fase). Frequentaram este estágio 36 militares com experiência de combate e 18 soldados recrutas do CSM. Terminou em 06 de setembro de 1969. Em novembro e dezembro de 1969 foi feito o recrutamento e selecção das praças para a formação da 1ª. Companhia de Comandos e em 11 de Fevereiro de 1970 teve início o 1º. Curso de Comandos destinado à formação de Companhias de Comandos da Guiné, que se realizou em Fá Mandinga, sendo responsável pela instrução o cap inf Comando Garcia Lopes, coadjuvado por instrutores e monitores da 15ª Cª. Comandos

Extraído de “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”, 14º Volume, Comandos. Em “Resenha (...)” vol.7, t.II, pg.648: 

“Foi [a 1ªCCmds] organizada em Fá Mandinga a partir de 09 Julho 1969, exclusivamente com pessoal natural da Guiné e foi formada com base em anteriores Grupos de Comandos existentes junto dos batalhões, tendo iniciado a sua instrução em 06 Fevereiro 1970 e efectuado o juramento de bandeira em 26 Abril 1970. A sub-unidade ficou colocada com sede em Fá Mandinga, (...) após ter terminado o seu treino operacional na região de Bajocunda, de 21 Junho a 15 Julho 1970.”; e ainda, segundo o mesmo título, a págs. 531, no que respeita à 15ª CCmds, “em 04 Maio 1969 regressou a Bissau, já com os efectivos reduzidos a 2 Gr Combate, onde se manteve para recuperação e colaboração (...), de 14 Julho 1969 a 11 Fevereiro 1970, na instrução ministrada em Brá a graduados e praças de outras subunidades», vindo a embarcar de regresso à Metrópole em 10 Março 1970.

[3] Nota do editor: o capitão cavalaria comando João de Almeida Bruno foi ajudante-de-campo do Governador e CCFAG general António de Spínola, entre maio de 1968 e julho de 1970, data em que regressou a Lisboa. Em março de 1971 foi promovido a major e voltou à Guiné, assumindo a chefia do COE. A partir de 14 de Julho de 1972 acumulou a chefia daquele COE com o comando do Batalhão de Comandos da Guiné, cargos que desempenhou até 27 de julho de 1973.

[4] Nota do editor: Fortaleza construída em 1696 pelo Capitão-Mor José Pinheiro e reconstruída em 1753. A muralha voltou a ser reconstruída em 1946, era então Governador-Geral o Almirante Sarmento Rodrigues. A fortaleza tem um terreiro quadrado com cerca de 150 metros, rodeado de mangueiras.

[5] Nota do editor: na 6ª feira, 6 fevereiro 1970. (O estádio, inaugurado em 1948, chamava-se Sarmento Rodrigues antes da independência. )(LG)

[6] Nota do editor: “A nossa força militar africana tem-se afirmado gradualmente e inclui agora uma unidade de elite, a 1ª. Companhia de Comandos Africanos, formada exclusivamente pelos filhos nativos da Guiné... A vossa ascensão à posição de Comandos do Exército português marca uma etapa significativa no progresso de todos os Guineenses.” General António de Spínola, discurso em 11 de fevereiro de 1969.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Subtítulo: LG]

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24131: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXI: Finalmente, Bafatá, a minha linda princesa do Geba...