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segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25026: Manuscrito(s) (Luís Graça) (243): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte Va: 'Pés quentes, cabeça fria, cu aberto, boa urina - Merda para a medicina' 1. A arte de bem conservar a saúde




Capa da primeira edição (Veneza, 1480) do livro "Regimen sanitatis cum expositione magistri Arnaldi de Villanova Cathellano noviter impressus". Venetiis: impressum per Bernardinum Venetum de Vitalibus, 1480. Fonte: Wikimedia Commons (com a devida vénia..) (Tr. port.: Regime de Saúde de Salerno, com a exposição do mestre Arnaldo de Vilanova, o Catalão, recém-impresso. Veneza: impresso por Bernardinum Venetum de Vitalibus)

1. Comecei publicar no blogue, desde meados de março passado, uma série de textos, da minha autoria, sobre as ensinamentos que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

São textos com cerca de 25 anos, que constavam da minha antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).
Às vezes quando a doença e a morte me batem à porta, é que eu me lembro que dediquei uma boa parte da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública...

E dão-me saudades quando, sendo mais novo, escrevia sobre esses temas (e utilizava-os nas aulas com os futuros admninistradores hospitalares, médicos de saúde pública, médicos do trabalho, ou outros, mestres e doutores em saúde pública)...

Depois de sobrevivermos à dura prova que foi para todos os nossos leitores a pandemia de Covid-19, eis-nos agora a fazer o luto pela perda recente de pessoas que nos eram muito queridas. Daí a oportunidade da publicação deste textos que fui (re)buscar ao meu "baú", mas que não têm a ver, pelo menos diretamente, com a Guiné e a guerra que lá travámos... Ou têm mesmo ? Tudo depende das "leituras" e dos "leitores"...

Contando com a complacência (e sobretudo com a cumplicidade) dos nossos leitores, espero, ao menos, que a sua leitura possa ter algum proveito. É também uma forma de continuar a lidar com o meu sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico das pessoas que me estão próximas.

Por outro lado, o nosso blogue já atingiu, na Internet, a "terceira idade": vai fazer 20 anos (!) em 23 de abril de 2024 (se lá chegar, se lá chegarmos). E tem que ser "alimentado" todos os dias, com pelo menos três postes... Estes textos também funcionam como uma espécie de "tapa-buracos"... LG



Luís Graça (2000)
Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica.





1.1. "Mais que curar o mal, a arte (médica) deve prevenir" (Escola de Salerno)


Não se pense que o modelo salutogénico (ênfase nos factores multidimensionais que determinam positivamente a saúde, por oposição ao modelo patogénico, biomédico, organicista, orientado para a causa específica da doença) é uma construção intelectual dos nossos tempos. Na Europa Ocidental, o modelo salutogénico tem pelo menos 2500 anos e está igualmente presente nos provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa.

Em termos muito simples, o modelo salutogénico está na origem do conceito de protecção e promoção da saúde, enquanto o modelo patogénico está mais próximo do conceito de prevenção da doença e sobretudo de cura e tratamento da doença.

Aplicado ao local de trabalho, o paradigma salutogénico pode ser melhor entendido através da seguinte questão principal:

Como é que o indivíduo (e, por extensão, a família, o grupo, etc.) realiza as suas potencialidades de saúde e responde positivamente às exigências (físicas, biológicas, psicológicas e sociais) dum ambiente (laboral e extra-laboral) cada vez mais complexo e em constante mutação;

Para responder positivamente a essas exigências, o indivíduo tem de ter controlo sobre os factores (individuais, ambientais e societais) que determinam a sua saúde;

A promoção da saúde é uma intervenção conjunta e integrada sobre o indivíduo e o meio envolvente em que nasce, cresce, vive, respira, trabalha, consome e se relaciona;

Na abordagem mais tradicional e redutora da segurança e saúde no trabalho (em inglês, occupational safety and health) a questão que se punha (ou ainda põe) é como prevenir e, em última análise reparar, do ponto de vista médico e legal, os riscos profissionais.

A promoção da saúde é tradicionalmente um conceito baseado na evidência. No que respeita à protecção e manutenção da saúde, a filosofia de senso comum é céptica em relação ao papel da medicina ("O melhor médico é o que se procura e se não encontra"), se não mesmo sarcástica ("Se tens físico teu amigo, manda-o a casa do teu inimigo").

Ou por outras palavras: Tu és o melhor médico de ti mesmo... Mas nem por isso esta filosofia popular deixa de estar eivada das concepções dominantes da medicina arábico-galénica e da influência da teoria hipocrática dos quatros humores:
  • "A doença e a dor conhecem-se na cor";
  • "Contra os maus humores grandes suores";
  • "Fora de horas urinar é sinal de enfermar";
  • "Quem bem urina escusa medicina"; ou
  • "Mijar claro, dar figas ao médico"

Alguns preceitos simples são recomendados para conservar a saúde e, por conseguinte, dispensar os serviços do médico e do boticário, inevitavelmente associados a uma vida regrada (alimentação, etc.) e às condições de higiene pessoal e ambiental (habitação, etc.), de acordo com os ensinamentos do compêndio hipocrático e desse espantoso programa medieval de promoção de estilos de vida saudáveis que foi o Regime de Saúde da Escola de Salerno (em latim, Regimen Sanitatis Salernitanum).





A cidade de Salerno e o golfo de Salerno,
no sul da Itália


Salerno, perto de Pompeia e de Nápoles, na região da Campânia, Itália meridional, era conhecida pela sua escola médica, cuja origem remonta à Alta Idade Média (Séc. IX-X), antecedendo por isso o aparecimento da Universidade no Ocidente cristão (Séc. XIII).

Segundo a lenda, era um escola verdadeiramente ecuménica, tendo nascido do encontro de quatro homens, que representavam quatro culturas distintas (um romano, um grego, um judeu e um árabe, três dos quais seriam médicos).

Esta escola teve um papel importantíssimo na preservação e divulgação do legado greco-romano, no campo da medicina, nomeadamente devido ao papel do monge cartaginês e tradutor arabista Constantino, o Africano. Mas foi sobretudo o tratado de higiene que lhe perpetuou a fama de "cidade hipocrática" (Lafaille e Hiemstra, 1990; Nigro, 2003; Sournia, 1995)



Este documento, em verso, do Século XII ou XIII, terá sido um dos manuscritos mais amplamente divulgados na Europa durante a Idade Média; mais tarde impresso, em Lovaina, por volta de 1480, dele fizeram-se até 1850 cerca de 250 edições, não só em latim como na maior parte das línguas vernáculas europeias, estimando-se entre 120 e 250 mil o número de cópias que terão circulado (Lafaille e Hiemstra, 1990).

Segundo Nigro (2003), "la redazione multiforme con la quale il 'Regimen' si presenta, sia per la varietà numerica e la disposizione dei versi, che per le frequenti contraddizioni e ripetizioni, fa attualmente ritenere che l’opera sia frutto di una compilazione a più mani e di ripetute revisioni".

Por exemplo, o número de versos foi sucessivamente aumentando com as edições: 362 versos na primeira edição impressa (c. 1480), mais de 3500 nas últimas edições.

Mas durante muito tempo a autoria do regime de saúde de Salerno foi atribuída erradamente ao catalão Arnaldo da Villanova (c.1240-1313), que também é autor de um "regimen sanitatis", em prosa, dedicado a Fredereico de Aragão.

Voltando a citar Nigro (2003), o regime de saúde de Salerno é uma obra colectiva, anónima, "risultato della consuetudine popolare, raccolta e commentata nel secolo XIII dal medico e alchimista catalano Arnaldo da Villanova", e que se enquadra "nel filone letterario dei tacuìna e dei theatra sanitatis, opere a carattere enciclopedico, in cui accanto all’illustrazione degli elementi della natura, vi è quella degli alimenti, degli stati d’animo, delle stagioni, allo scopo di salvaguardare la salute mantenendo un perfetto equilibrio tra uomo e natura".

Ao longo dos séculos e das diferentes edições a obra foi sendo conhecida por diversos títulos (Nigro, 2003). Exemplificam-se alguns

  • "Regimen Sanitatis Salernitarum" (Colónia, [1480]);
  • "Schola Salernitana" (s/l, 1480);
  • "Regimen sanitatis, Das ist das Regiment der Gesundheit" (Froschauer, 1501)
  • "De conservanda bona valetudine" (Frankfurt, 1545)
  • "Medicina salernitana" (s/l, 1591)
  • "The Englishman's doctor, or the School of Salerne, or physicall observations for the preserving of the body of man in continuall health" (Londres, 1601)
  • "Le Reglement ou Regime de la Santé" (Douai, France, 1616);
  • "L'art de conserver sa santé, composé par l'école de Salerne" (Haia, 1743; Paris, 17);
  • "Flos medicinae Scholae Salerni" (Nápoles, 1859)
  • "La regola sanitaria della Scuola salernitana" (Milão, 1930)

Ao que parece, haveria uma edição portuguesa que desconhecemos (não consta da Biblioteca Nacional nem não sequer é referida pelos nossos historiógrafos médicos, tais como: Lemos, 1889; Mira, 1947; Correia, 1960; Pina, 1981; Ferreira, 1990).

Versos do Regimen Sanitatis Salernitanum apareciam com frequência nos Lunários Perpétuos dos Séculos XVII e XVIII, embora erradamente atribuídos a Avicena (segundo informação da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira que se baseia numa publicação de Luís de Pina, Um prático calendário...de higiene seiscentista, editada no Porto, em 1950, e a que ainda não tivemos acesso).

Em muitos dos provérbios que nos chegaram até aos nossos dias há uma filosofia sobre a arte de viver com saúde, por oposição à arte de curar, e que vai beber as suas raízes ao legado da medicina hipocrática e ao seu modelo salutogénico. Para a sua preservação e divulgação muito contribui sem dúvida o Regimen Sanitas Salernitanum (ver extracto, Caixa 1).

Face à impotência da medicina arábico-galénica para lidar com a alta morbimortalidade que atingia a população europeia nos finais da Idade Média, o livro de saúde de Salerno tem um propósito didáctico mas também programático: "Mais do que curar o mal, a arte [ a medicina ] deve prevenir".


Caixa 1 - Regime de Saúde Salernitano (Extractos de uma tradução versificada em francês no século XVIII)


Respira um ar sereno, brilhante de pureza,

Do qual nenhuma exalação turve a clareza;

Evita os odores infectos e vapores deletérios

Que sobem dos esgotos e empestam a atmosfera...

Queres dos teus prazeres prolongar o sucesso?

Do vício e da mesa evita o excesso...

Se o mal é insistente, cabe à arte reagir:

Mais que curar o mal, a arte deve prevenir.

O ar, o repouso e o sono, o prazer e a comida

Preservam a saúde do homem, saboreados com medida:

O abuso torna em veneno este bem inocente

Destruindo o corpo e turvando a mente



Fonte: Sournia (1995: 101) (tr. do fr., Jorge Domingues Nogueira)

Observações - Para mais detalhes ver o comentário crítico, sobre o texto (ou os vários textos) do Regimen Sanitatis Salernitanum, de Paola Nigra (2003) http://www.spolia.it/latino/2002/reg7.htm (15.03.03)




Na prática, há provérbios, na nossa língua, sobre tudo (ou quase tudo) o que constitui hoje as preocupações dos educadores e promotores de saúde (Quadro XV, em anexo). Por exemplo:

(1) A actividade física:

"Espírito são em corpo são";

"O corpo não deita raízes";

"Parar é morrer".

(2) Os autocuidados:

"Mijar claro - dar uma figa ao médico";

"O homem velho é médico de si";

"Pés quentes, cabeça fria, boa urina - merda para a medicina";

(3) O sono e o repouso:

"Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer";

"O braço quer peito e a perna quer leito";

"Quatro horas dorme um santo, cinco o que não é santo, seis o estudante, sete o caminhante, oito o porco e nove o morto".

(4) O consumo de álcool e de tabaco:

"Bebe vinho mas não bebas o siso"

"Tabaco e aguardente transformam os sãos em doentes";

"Vinho, mulheres e tabaco põem o home fraco".

(5) A nutrição e a higiene dos alimentos:

"Carne de ontem, peixe de hoje, vinho do outro verão fazem o homem são"

"Come para viver, pois não vives para comer";

"Uvas, pão e melão é sustento de nutrição"

(6) O controlo do peso:

"O menino engorda para crescer e o velho para morrer";

"Pede o guloso para o desejoso";

"Tripa cheia nem foge nem peleja".

(7) As condições de vida e de habitação, a saúde ambiental:

"Águas paradas, cautela com elas";

"Deus te dê saúde e gozo e casa com quintal e poço";

"Onde não entra o sol entra o médico";

"Se a tua casa é húmida abre conta na botica";

"Toma caldo, vive em alto, anda quente - viverás longamente";

"Um ar purgado - morte no cabo".

(8) A gestão do stresse e das 'paixões da alma':

"A ferrugem gasta o ferro e o cuidado o coração";

"Quem se ralou já morreu";

"Quem tiver paixão tome tabaco", etc.
___________

Não cabe aqui a tarefa de analisar uma a uma as crenças terapêuticas que são veiculadas pelos provérbios populares:

Alguns são puros disparates (por ex., o "abafa-te, abifa-te e avinha-te", como remédio contra a gripe; ou outro parecido: "antes embebedar do que constitapar");

Outros, e nomeadamente no domínio da nutrição, reproduzem preconceitos, como os perigos da carne de porco, que têm a ver com a nossa matriz judaico-cristã (por ex., "porco fresco e vinho novo, cristão morto");

Pelo contrário, há provérbios que têm um conteúdo que se baseia no conhecimento empírico milenar dos povos mediterrânicos e que é hoje em dia suportado pela própria investigação farmacológica e biomédica: por ex., a importância do consumo moderado do vinho (tinto) na prevenção das doenças cardiovasculares ("Um copo de vinho por dia mantém o médico à distância"); ou as propriedades terapêuticas do azeite: "Azeite de oliva o mal cura".



Quadro XV— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre a saúde e os estilos de vida



Objecto / Provérbio

Actividade física

"Andar, ventura até à sepultura"

"Espírito são em corpo são"

"Mais vale romper sapatos que lençóis"

"O corpo não deita raízes"

"Para baixo todos os santos ajudam, para cima é que as coisas mudam"

"Para ter saúde, pouca cama, pouco prato e muito sapato"

"Parar é morrer"

"Quem corre por gosto não cansa"

"Quem em novo dança bem, em velho algum jeito tem"


Água

"A quem Deus quer dar vida, a água da fonte é mezinha"

"A quem é de vida a água lhe é medicina"

"Água e vento são meio sustento"

"Água fervida alimenta a vida"

"Água fria sarna cria; água quente nem a são nem a doente"

"Água que não soa não é boa"

"Água quente saúde para o ventre"

"Águas paradas, cautela com elas"

"Ao doente forte a água é medicina"

"Mal de morte não tem jeito, e o que não é, se cura com água do pote" (d)

"Quando Deus quer, água fria é remédio"


Álcool  | Tabaco  | Vinho

"A cachaça tira juízo, mas dá coragem" (d)

"A mulher e o vinho tiram o homem do seu juízo"

"Abafa-te, abifa-te e avinha-te" (a)

"Afoga-se mais gente em vinho do que em água"

"Antes embebedar do que constipar"

"Baco, tabaco e Vénus reduzem o homem a cinzas" (b)

"Bebe vinho mas não bebas o siso"

"Beber vinho mata a fome"

"Cada bucha sua pinga"

"Carne de ontem, peixe de hoje, vinho do outro verão fazem o homem são"

"Do vinho e da mulher livre-se o homem se puder"

"Haja saúde e dinheiro para vinho"

"Isso é birra: quem toma tabaco espirra"

"Livra-te de mau vizinho e de excesso de vinho"

"Mais pessoas se afogam no copo do que no mar"

"Malandro não tem vícios, só fuma e bebe quando joga" (d)

"Na taberna enquanto bebes, na igreja enquanto rezas"

"Nada escapa aos homens senão o vinho que as mulheres bebem"

"Nem vinho sem Cristo nascer nem laranja sem Cristo morrer"

"O beijo é como o cigarro, não sustenta mas vicia" (d)

"O bom vinho arruina o bolso; o mau, o estômago"

"O cigarro adverte: O Governo é prejudicial à saúde" (d)

"O homem que vive na taberna acaba por morrer no hospital"

"O pródigo e o bebedor de vinho nunca têm casa nem moinho"

"O vinho faz mal aos homens quando são as mulheres que o bebem"

"Onde entra o vinho sai a razão"

"Quando a cachaça desce, as palavras sobem" (d)

"Quem tiver paixão tome tabaco"

"Tabaco e aguardente transformam os sãos em doentes"

"Tabaquear o caso"

"Três coisas enganam o homem: as mulheres, os copos pequenos e a chuva miúda"

"Três coisas mudam o homem: a mulher, o estudo e o vinho"

"Um copo de vinho por dia mantém o médico à distância"

"Vinho e medo descobrem o segredo"

"Vinho, mulheres e tabaco põem o home fraco"

"Vinho que baste, casa que farte, pão que sobre e seja eu pobre"

"Vinho sobre melancia faz pneumonia"

Alimentação | Frugalidade | Nutrição Saudável

"A fome é a melhor cozinheira"

"Anda quente, come pouco, bebe assaz e viverás"

"Aquilo que sabe bem ou é pecado ou faz mal"

"Barriga cheia, cara alegre"

"Boca que apetece, coração que deseja"

"Carne que baste, vinho que farte, pão que sobre"

"Come como são e bebe como doente"

"Come para viver, pois não vives para comer" (Séc. XVII)

"Come que a hora de comer é a da fome" (Séc. XVII)

"Das grandes ceias estão as covas cheias"

"De fome ninguém morreu, mas sim de muito que comeu"

"Gordura é formosura"

"Gota é mal de rico; cura-se fechando o bico"

"Mais cura a dieta que a lanceta"

"Mais mata a gula que a espada"

"Menino bolsador - menino engordador"

"Moças, quem vos deu tão ruins dentes ? Água fria e castanhas quentes"

"Morra Marta, morra farta"

"Morre o peixe pela boca" ou "Pela boca morre o peixe"

"Na casa desta mulher come-se tudo o que ela der"

"Nem sempre galinha nem sempre sardinha"

"O menino engorda para crescer e o velho para morrer"

"Para longa vida regra e medida no beber e na comida"

"Pede o guloso para o desejoso"

"Por cima de comer nem um escrito ler"

"Quem caga e come não morre de fome"

"Quem não é para comer, não é para trabalhar"

"Se queres enfermar, ceia e vai-te deitar"

"Se és velho comilão encomenda o teu caixão"

"Ter mais olhos que barriga"

"Vinho que baste, casa que farte, pão que sobre e seja eu pobre"


Alimentos (Carne, Peixe, Fruta, etc.) | Higiene Alimentar


"A carne de um ano e o peixe de dez"

"A laranja de manhã é ouro, à tarde prata e à noite mata"

"Azeite de oliva todo o mal tira"

"Carne de ontem, peixe de hoje, vinho do outro verão fazem o homem são"

"Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a doente"

"Comer verdura e deitar má ventura" (Séc. XVII)

"Comer pinhões antes de chover dá sezões"

"Depois de Maio a lampreia e o sável dai-o"

"Dia de São Silvestre (b), não comas bacalhau que é peste"

"Fiambre e fiado sabem bem e fazem mal"

"Laranja antes do Natal livra do catarral"

"Livre-te de fruta mal sazonada que é peste disfarçada"

"Milhafre em Janeiro escusa capão de poleiro"

"Não comas cru, nem andes com o pé nu"

"O coelho e a perdiz, uma mão na boca e outra no nariz"

"Pão durázio, caldo de uvas, salada de carne e deixa a medicina"

"Peixe não puxa carroça"

"Pela boca morre o peixe" (Séc. XVI)

"Pobre só come carne quando morde a língua" (d)

"Porco fresco e vinho novo, cristão morto"

"Quem come salgado, bebe dobrado"

"Raia em Maio, tumba à porta"

"Se queres o marido morto, dá-lhe couve em Agosto"

"Todas as indigestões são más e a da perdiz é péssima"

"Um copo de vinho por dia mantém o médico à distância"

"Uvas, pão e melão é sustento de nutrição"


Ambiente | Ar | Clima

"A vassoura limpa a casa mas é o sol que mata os micróbios"

"A velho muda-lhe o ar, vê-lo-ás acabar"

"Casa onde não entra o sol entra o médico"

"Come caldo, vive em alto, anda quente, viverás longamente" (Séc. XVII)

"Dia frio e dia quente fazem andar o homem doente"

"Livra-te dos ares, que eu te livrarei dos males"

"No quente é que se cura a gente"

"Respirar mau ar é beber a morte"

"Se queres viver são, anda quente, come pouco, vive em alto"

"Tarde fria, dia quente, põem um homem doente"

"Um ar purgado - morte no cabo"


Casa | Habitação


"Casa em que caibas, vinha quanto bebas, terra quanto vejas"

"Casa onde não entra o sol entra o médico"

"Casa sem luz, tumba de vivos"

"Deus te dê saúde e gozo e casa com quintal e poço"

"Dormir com a janela aberta - constipação quase certa"

"Na casa se vê quem tem maleitas"

"Onde entra o sol não entra o médico"

"Quem quiser medrar viva em pé de serra ou poto de mar"

"Se a tua casa é húmida abre conta na botica"


Corpo | Higiene | Peso | Excretos !| Retentos

"Gordura é formosura"

"Mijar claro - dar uma figa ao médico"

"O que a boca apetece o coração deseja"

"O rabo sempre cheira ao que larga"

"Pés quentes, cabeça fria, boa urina - merda para a medicina"

"Quando em casa engorda a moça, ao corpo o baço e ao rei a bolsa - mal vai a coisa"

"Quem ao ano andou e aos dois falou bom leite mamou"

"Quem bem urina escusa medicina"

"Quem grande peido dá do cu se atreve"

"Quem má boca tem má bostela faz"

"Quem se lava e não se enxuga toda a pele se lhe enruga"

"Quem sofre de coração não tome banho suão"

"São peidar faz bom jantar" (Medieval) (e)

"Se queres que o teu filho engorde e cresça, lava-lhe o corpo e rapa-lhe a cabeça"

"Se queres ter um corpo são, lava-te com água e sabão" ou "se queres ter um corpo são, lava-te com água de erva montão"

"Tripa cheia nem foge nem peleja"


Prevenção da doença | Promoção da saúde

"Bem prega Frei Tomás, faz o que ele diz não faças o que ele faz"

"Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém"

"Coração alegre é melhor que botica"

"Mais vale a saúde que o dinheiro" ou "Mais vale saúde boa que pesada bolsa"

"Mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto"

"Mais vale prevenir que remediar"

"Mais vale um pé no travão do que dois no caixão"

"Melhor é curar gafeira que casa inteira"

"Não há dinheiro que pague a saúde"

"Nem com cada mal ao médico, nem com cada dúvida ao letrado"

"O homem velho é médico de si"

"Para longa vida boa regra e boa medida"

"Para longa vida regra e medida no beber e na comida"

"Pés quentes, cabeça fria, coração bom, ventre desembaraçado e desprezar medicina"

"Pés quentes, cabeça fria, cu aberto, boa urina - merda para a medicina"

"Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga"

"Quem bem vive, bem morre"

"Quem bem urina, escusa medicina"

"Só se sabe o que é a saúde quando se está doente"

"Tenhamos saúde e paz e teremos assaz"

"Usa cama de frade e mesa de pobre, terás saúde que farte e alegria que sobre"

"Vale mais prevenir do que remediar"

"Vale mais uma onça de cautela que uma arroba de botica"

"Vida de porco, curta e gorda"

"Vive o pastor com a sua rudeza e morre o físico que a física reza"


Sono | Vigília

"De longos sonos e grandes ceias estão as sepulturas cheias"

"Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer"

"Levanta-te às seis, almoça-te às dez, jantarás às seis, deita-te às dez: viverás dez vezes dez"

"O braço quer peito e a perna quer leito"

"Quatro horas dorme um santo, cinco o que não é santo, seis o estudante, sete o caminhante, oito o porco e nove o morto"

"Se não és de bronze deita-te às onze"

"Se queres enfermar, ceia e vai-te deitar"

"Se queres enfermar, lava a cabeça e vai-te deitar"

"Usa cama de frade e mesa de pobre - terás saúde que farte e alegria que sobre"


Paixões da alma | Gestão do stress

"A boa vida não quer pressa"

"A ferrugem gasta o ferro e o cuidado o coração"

"A quem dorme descansado dorme-lhe o cuidado"

"A razão é fruta do tempo, as paixões são de todo o momento"

"Boca, que queres; coração, que desejas?"

"Desejo e satisfação raro de acordo estão"

"Homem apaixonado não quer ser aconselhado"

"Não corre mais o que caminha, mas sim o que mais imagina"

"O ventre sacia-se, os olhos não"

"Quem canta seu mal espanta"

"Quem come a correr do estômago vem a sofrer"

"Quem mais tem mais quer"

"Quem se mete em atalhos mete-se em trabalhos"

"Quem se ralou já morreu"

"Quem tem cu tem medo"

"Quem tem saúde e liberdade é rico e não o sabe"

"Quem tiver paixão tome tabaco"

"Quem vai muito depressa pode quebrar a cabeça"


Trabalho | Capital ! Trabalho & Saúde

Capital

"Aonde oiro fala, tudo se cala"

"Deus ajuda a quem trabalha, que é o capital que menos falha"

"Tempo é dinheiro"

"Um tem a bolsa, outro o oiro, e assim vai andando o mundo"

Trabalho

"A martelada do mestre vale por mil das dos operários"

"Bendita a ferramenta que pesa mas alimenta"

"Dá ofício ao vilão, conhecê-lo-ão"

"Há mais aprendizes que mestres"

"Janeiro, gear; Fevereiro, chover; Março, encanar; Abril, espigar; Maio, engrandecer; Junho, aceifar; Julho, debulhar; Agosto, engravelar; Setembro, vindimar; Outubro, revolver; Novembro, semear; Dezembro, nasceu Deus para nos salvar"

"Madruga e verás, trabalha e terás"

"Mais vale bom administrador do que bom trabalhador"

"Mais vale um bom mandador que um bom trabalhador"

"Mão de mestre não suja ferramenta"

"Mãos de oficial, envoltas em sandal"

"Mineiro, nem a prazo nem a dinheiro"

"Na casa deste home quem não trabalha não come"

"O boi pega no arado mas não por seu grado"

"O Verão colhe e o Inverno come"

"Oficial tem ofício e al"

"Para gozar eu; para trabalhar um irmão que Deus me deu"

"Para homem dado ao trabalho não há dia grande"

"Para o trabalho se chama uma, duas ou três vezes; para comer uma só"

"Quando o mestre canta boa vai a obra"

"Quanto mais patrão mais cabrão"

"Quem ao moinho vai enfarinhado sai"

"Quem não poupa a lenha, não poupa nada que tenha"

"Quem não tem ofício não tem benefício"

"Quem não trabuca não manduca" (do latim: Qui non laborat, non manducet )

"Quem poupa seu mouro poupa seu ouro"

"Quem sabe de luta luta e quem não sabe labuta"

"Saber muitas artes é ter pouco dinheiro"

"Semeia e cria, viverás com alegria"

"Sete ofícios, catorze desgraças"

"Só trabalha quem não sabe fazer mais nada"

"Trabalhar a seco"

"Trabalhar de jornal"

"Trabalhar é bom pró preto"

"Trabalhar para aquecer"

"Trabalhar para aquecer, é melhor morrer de frio"

"Trabalhar para o boneco (para o bispo)"

"Trabalho de menino é pouco, quem não o aproveita é louco"

"Trabalho se fez para burro e português" (f)

Trabalho & Saúde

"A tarefa que agrada é depressa acabada"

"É preciso ser doido para trabalhar aqui"

"Não há trabalho sem trabalhos"

"O trabalho dá saúde"

"O trabalho não mata ninguém"

"Se o trabalho dá saúde que trabalhem os doentes" (g)

"Tendo saúde e comendo bem, o trabalho não mata ninguém"

"Trabalha como se vivesses sempre; ama como se fosses morrer amanhã"

"Trabalhar como um animal (um cão, um boi, um touro, um burro, um leão, um cavalo, etc.)

"Trabalhar como um escravo (um mouro, um negro, um preto)"

"Trabalhar que nem um boi"

"Trabalhar que nem um galego"

"Trabalhar que nem um mouro"

"Trabalhar que nem uma puta"

"Trabalhar que nem um touro"

"Trabalhar sem comer é cegar sem ver"

"Trabalho com gosto alegria no rosto"

"Trabalho é meio de vida e não de morte"

"Trabalho é caminhar a cavalo, que a pé é morte"

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(a) Receita tradicional para combater a gripe; (b) Rifão italiano (Amaral, 1994); (c) 31 de Dezembro

(d) Ditado brasileiro: Vellasco (1996) (e) Mattoso (1987) (f) Brasil

(g) Ou como dizem os franceses: "Si le travail c'est la santé, à quoi sert alors la médecine du travail ?" (Se o travbalho dá saúde, para que serve afinal a medicina do trabalho?)

(Bibliografia a apresentar no final da série)

(Continua)

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Notas do editor:

Último poste da série > 12 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24550: Manuscrito(s) (Luís Graça) (226): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVB: Enfermagem, Misoginia e Sexismo

Ver postes anteriores:

20 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24328: Manuscrito(s) (Luís Graça) (225): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVA: Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras

4 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24281: Manuscrito(s) (Luís Graça) (223): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte III C: Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva e do Encarniçamento Terapêutico

3 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

28 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24173: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de três dias fedem"

23 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24164: Manuscrito(s) (Luís Graça) (218): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIB: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"

20 de março de 2023 Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"

17 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24148: Manuscrito(s) (Luís Graça) (216): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte I: "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"

domingo, 22 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24781: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (11): E na hora da nossa morte, ámen!


Contos com mural ao fundo (11) >   E na hora da nossa morte, ámen!

por Luís Graça (*)


"O meu país é o que o mar não quer"
 (Ruy Belo, 1973)



Porra, meu irmão, meu herói, estou no teu velório!... Ainda não estou em mim!... Afinal, nunca me preparei, em vida, para este momento, para este papel!... Mesmo que já tenha feito o luto do pai, da mãe, do Jorge...  Estou de coração destroçado!... Mas sou incapaz de chorar...  Vim logo que soube da notícia. Foi a mana que me telefonou ontem.

Desta vez, a “gaidja”, como tu lhe chamavas, a puta da gadanha da morte, trocou-te as voltas... Tanto a fintaste, na equitação, na guerra, na boémia, nos amores, na estrada, no jogo, na vida... e foi ela agora que te pregou a rasteira e te cortou, rente, o fio o que te ligava à vida!... Na modorra da paz, da decadência, da depressão dos "quatro vintes", como dizem os franceses!... Aos "quatre-vingts", aos oitenta, meu irmão, veio o xeque-mate, a última emboscada, a estocada final!...

Bem podia ser eu a estar aí esticado que nem um carapau seco, de botas altas, já gastas, cambadas, engraxadas para a ocasião!... A cerimónia fúnebre, a tua última parada, a tua última formatura!... As mãos em oração, elevadas ao céu qual estátua jacente de um agora apeado condestável!... O caixão aberto, o rosto coberto de lenço de linho, bordado, da nossa mãezinha!

Os gatos pingados, os safados,  sabem do seu ofício. Vestiram-te a farda nº 1, já muito puída do uso e dos anos, com os amarelos dos galões de coronel desbotados... A cruz de guerra ao peito e as tuas demais medalhas e condecorações de uma vida dedicada à tropa. E até a espada, não se esqueceram da tua espada de defensor do Império e da Nação. Espada ou sabre ? Estavas sempre a dar-me nas orelhas, porque eu confundia a espada e o sabre...

Tu, que noutra encarnação só poderias ter sido um cavaleiro andante, um temível condestável, um bravo e fero guerreiro do Império!... Desculpa a ironia, estou a ser cruel, mesmo que saibamos, tu e eu, que nem sempre líamos as coisas pela mesma cartilha... O catecismo foi o mesmo, o batismo, a primeira comunhão, o crisma...

Porra, meu irmão, meu amigo, meu companheiro, meu camarada... Chegou a tua vez, como chegará a minha.  A avaliar pelas estatísticas da morte dos homens em Portugal já estavas na linha da frente com os pés para a cova... Mas eu não me conformo com isso, nem dou qualquer valor às médias estatísticas com que nos infernalizam a vida...  Ou talvez não, matematicamente falando, se calhar já tinha chegado a tua hora, o teu dia, o teu mês, o teu ano. Há a predestinação, há o deve-e-haver do Criador e dos seus "informáticos"... (Desculpa a blasf+emia, mas eu acho que até Deus já tem cimputador.) 

Não importa, para quem te amava, a morte bateu cedo demais à tua porta!... É sempre injusta e cruel a morte de quem amamos.

E, no entanto, era uma morte anunciada, diz a tua viúva alegre, encolhendo os ombros, conformada, e fingindo limpar uma lágrima furtiva, tão afetiva e socialmente hipócrita como as falinhas delicodoces de amor com que te engatou no Rio de Janeiro... Mas quem sou eu, afinal, para julgá-la?!.. A ela e a ti, que aos 65 ainda te julgavas um garanhão!

O teu médico oncologista, esse, não te escondeu (nem podia esconder) a verdade... "A verdade nua e crua, doutor!", foste tu a implorar-lhe, qual quê!, a dar-lhe uma ordem taxativa!...  Como se o médico fosse o teu pobre alferes miliciano, que chorava baba e ranho quando sofreu a primeira baixa mortal, lá na serra do Mapé, no planalto dos Macondes!... Ainda guardei esse aerograma, um dos poucos que me escrevias de Moçambique... Sempre foste muito preguiçoso para escrever para mim e para os pais.

Porque um homem, doutor, tem o direito de despedir-se da vida e de morrer em paz com a vida, com os outros e com Deus, suplicou (ou sentenciou ?) o capelão militar quando já estavas nos cuidados paliativos, no terminal da morte, no hospital militar (segundo me contou a nossa mana, que vive aí no Grande Porto, e que te acompanhou nas últimas horas)... 

Que atroz ironia, que insulto, como se a gente soubesse como isso se faz!... Isso, de um gajo despedir-se da vida, e ter direito a uma boa morte. Como se nos tivessem ensinado, na família, na escola, na catequese, na igreja, no seminário, na Academia Militar, na tropa, na guerra…, a arte de bem morrer!... Ensinaram-te, isso sim, a andar a cavalo em toda a sela... E a jogar bridge. E a dansar o tango. E a fumar um bom charuto. E a pegar num copo de cognac. Ou a conduzir um descapotável. 

Também lá andei, na guerra, mas nunca pensei na minha própria morte, mesmo vendo a morte, ali tão pertinho, a meu lado. Aos vinte e poucos anos, em qualquer guerra, não há combatente que não tenha desenvolvido um forte sentimento de imortalidade... Terrível ilusão!...É por isso que há heróis!... E soldados desconhecidos, mortos aos milhares, nas trincheiras e nos desembarques anfíbios das Grandes Guerras...

Imagina, mano, pediram-me para te fazer o teu elogio fúnebre, amanhã, na igreja, na missa de corpo presente!|... Mas eu não sei se serei capaz de dizer duas coisas a teu respeito, que valha a pena dizer, em público, e que não sejam meras palavras de pompa e circunstância, como vocês, militares, gostam.

Invade-me a angústia, o pânico, o pudor... Não quero dececionar-te, muitos menos aos teus filhos e netos, aos teus amigos, aos teus camaradas, que eu não conheço ou conheço mal... Sobretudo não me peças para repetir essa grandessíssima mentira, com que te formataram, a de que “é doce morrer pela Pátria!”… A tua Pátria, a minha Pátria, a nossa Pátria ? A Pátria deles ? Qual delas, afinal ?... Bolas, a morte é sempre amarga, seja na cama, seja no campo de batalha...  

Eu sempre ficava confuso quando tu chegavas a casa, oficial e cavalheiro, impecável no teu uniforme e as insígnias da arma de cavalaria, de bota alta e pingalim... Destroçavas corações nos bailes das debutantes... Casaste, ao menos, com uma gaja rica, que te sustentou os teus vícios, e te deu três filhos, que sempre achaste "maravilhosos,  feitos entre três comissões"... 

E depois, meu mano, ao fim e ao cabo, o que é que eu sei de ti, depois destes anos todos de separação, física e emocional ? (O teu casamento separou-nos.)... 

Não sei se fostes um bom amante, um bom homem, um bom pai, um bom cidadão ou até mesmo um bom militar. Sei que fostes um bom irmão, um bom amigo, um bom português. E que até nem eras mau cavaleiro, ainda ganhaste uns concursos de equitação quando eras novo e eras bonitão e sobretudo não havia guerra, ou havia paz podre, com algumas  nuvens negras que ninguém tomava como sinais premonitórias da borrasca que se abateria sobre a nossa pobre Pátria, velha e cansada de carregar um império que não se pagava (nem se defendia) a si próprio... 

E talvez isso me baste, ou deveria bastar-me: foste um homem bom, um bom irmão. É o mínimo que eu poderia dizer de ti. É o mínimo que se pode dizer de qualquer gajo minimamente decente. 

Porra, poderia estar eu no teu lugar. E no meu íntimo só posso regozijar-me por estar vivo... Ou ainda vivo, aos setenta (que vou fazer dentro de semanas)!... Podia lá ter ficado, na Guiné, morto por uma roquetada ou uma mina. Pergunto-me: quantos anos ainda me restam ?... "Temei a velhice, porque ela nunca vem só!", dizia-nos o nosso avô de Ponte de Lima.

Quando olho para ti, ou para o que ainda sobra de ti, aí deitado na urna aberta, no teu esquife, arrepio-me… O raio da morte não tem pudor… E exala um cheiro tão forte, a cabra, que afugenta os vivos... Daí as flores, as coroas de flores, e as ervas aromáticas, os sprays de perfume  com que a gente a tenta esconjurar, afugentar, enganar, porventura engalanar, e sobretudo negá-la e esquecê-la...

Os guineenses, animistas, no meu tempo, faziam o "tchoro", comiam, bebiam, dançavam, choravam e homenageavam o morto, com bandos de jagudis à volta da morança para partilharem também as migalhas da festa... 

A nossa Igreja, na morte, apodera-se de nós, do nosso cadáver, e incita-nos, aos vivos, ao arrependimento, ao nojo, ao jejum e à abstinência, à secura de sentimentos e emoções... Que este é um vale de lágrimas, que a vida é uma passagem, que estamos em trânsito, mas que no fim teremos, os justos, a eterna recompensa da glória de Deus, o privilégio, a graça, de nos podermos sentar à Sua direita... Repara: nunca à Sua esquerda...

É verdade, és o “mano velho”, o “morgado”, e eu sou o “caçula” da família, como tu me chamavas, quando vieste de Angola, lembras-te ?…"Coberto de pó e glória!",  exclamava eu, quando recebia uma fotografia tua,   já adolescente e e a estudar para padreco.  Pouco mais de uma década  nos separa, mas podíamos ter sido irmãos gémeos, sempre o disseste ou, se calhar, o desejaste… E eu sempre te admirei, nessa altura. Incondicionalmente.

Porra, não morreste de pé, e ainda bem,  de espada em riste, a defender o "quadrado", como os nossos gloriosos antepassados, nas ditas guerras de pacificação do Império, agarrados à bandeira das quinas, branca e azul, no caso do tio-bisavô António, em Chaimite, em Moçambique, e já a verde-rubra, no caso do tio-avô José, no Cunene, em Angola…

Claro que tinhas de seguir a carreira das armas, estava inscrito no teu ADN, numa família de nobres tradições como a nossa, mas arruinada, que deu alguns bravos soldados à Pátria… Desde 1640, oriundos do terceiro estado, o povo, que o novo rei, o Senhor Dom João IV, o primeir0 da dinastia de Bragança, irá nobilitar... Tinha um lugar especial na nossa sala de jantar, com o retrato sobre o topo da nossa mesa comprida que só se usava em dias de festa... A casa cheia, a alegria dos nossos pais, a reunião anual da família extensa, do clã...Lembras-te ?  

Dizem que foi feita, a mesa, pelo nosso avô paterno,  com grossas tábuas de um centenário carvalho que travou um duelo de morte com um ciclone... As raízes, são sempre as raízes que nos tramam, as raízes telúricas, quando nos faltam, quando nos falham... Vê a nossa casa solarenga, hoje em ruínas: salvou-a a mana, que fez dela um alojamento local... De guerreiros acabámos em hoteleiros!... Triste sorte, se queres que te diga...

Habituámo-nos a viver "do soldo e do saque", como ironizava (quando falava da história da família) o nosso avô materno, Francisco, professor primário, jacobino, antimilitarista, republicano dos quatro costados, quezilento, desmancha-prazeres,   que casou, contrariado, a filha numa família monárquica (e muito pouco ou nada liberal, tenho hoje que acrescentar)… 

Mas o amor falou bem mais alto, o que era raríssimo naquele tempo, em que os casamentos ainda eram de conveniência, negociados pelas famílias e regados com vinho fino... A nossa mãe foi uma santa, uma heroína, uma mulher do seu tempo, mas de grande têmpera: quis casar por amor, contra as convenções sociais e as paixões políticas que dilaceravam as duas famílias... 

Enfim, não dávamos apenas soldados, a verdade seja dita: demos também padres, missionários, administradores, magistrados, embaixadores, mestres-escola e, seguramente, freiras e frades, pelo menos até 1834… E, pelo meio, muitos filhos da mãe, como em todas as famílias...

Porra, mano, não sei se foste um bom cristão. Assalta-me agora essa dúvida.  Não pesei o teu saco de pecados, nem sei se os pecados têm peso… Acho que sim, há alguns hediondos, que devem pesar toneladas. 

Mataste ? Nunca falámos disso, mas talvez tenhas matado na guerra, onde andámos os dois, cada um para seu lado, e com motivações bem diferentes… Se mataste macondes, eu também devo ter morto balantas. De resto, não se ganha uma cruz de guerra sem matar um ou mais inimigos, uma boa dúzia deles, no mínimo… Mas na guerra matar não é crime... E, se for na guerra santa,  é um dever sagrado, se forem infiéis ou "turras", conforme o Deus a quem rezas.

Torturaste ? Violaste ? Roubaste o tesouro nacional ? Desonraste o exército e a tua arma, a cavalaria ? Desejaste a mulher do teu comandante, do teu camarada ou do teu subordinado  ? Cometeste adultério ? Evocaste o santo nome de Deus em vão ? Adoraste o bezerro de ouro ?... 

Não sou juiz, muito menos o do Juizo Final… Mas não vou pôr as mãos no fogo por ti, no que diz respeito aos pecados mortais... E já nem sequer me lembro de quantos eram, os que nos ensinaram na catequese. Eu, dantes, sabia isso tudo na ponta da língua, a começar pelos dez mandamentos da lei de Deus... E, lembras-te, quando nos íamos confessar, ao abade,  fazíamos figas com a mão atrás das costas. Fostes tu que ensinaste...

Porra, mano querido, olho para o teu cadáver, ponho a mão na tua testa, gelada como o granito da nossa casa, e causas-me horror e dó: o que fazem a um gajo depois de morto!... Com milhões de micróbios em marcha para, na linha de desmontagem,  te limpar a carcaça, por dentro e por fora...

Mas, que importa?!, se amanhã, ao meio-dia, vais parar ao crematório. Aqui perto, em  Paranhos. E tudo acaba lá, a mais de 900 graus centígrados. Limpo, asséptico, indolor. Ou talvez não, para nós que fomos ou ainda somos cristãos (se queres saber, eu ainda o sou)... Os gatos pingados, esses, entregam um pequeno pote com as tuas cinzas à viúva, tiram as luvas das mãos, tomam um banho, voltam a vestir o fato e a gravata, e metem-se no carro a caminho do aconchego do lar, doce lar…

E a tua gaja, a viúva alegre, essa, ainda vai gozar metade da tua pensão de reforma de herói nacional, com um marmanjo qualquer que ela há-de conhecer no Facebook ou no ginásio onde faz Pilates e olhinhos sofridos de Barbie, a pestanejar de rimel, aos putos de vinte anos, cheios de testosterona… (Não tive sorte com as tuas mulheres.)

Mas o que estás para aí a rosnar entre dentes ? Oiço já mal, mas mesmo assim sou capaz de reconstituir o teu pensamento, a tua voz, cavernosa, de ventríloquo, que vem, senão das profundezas do Inferno, pelo menos do outro lado do rio que acabas de atravessar, na barca de Caronte…

“Meu sacana!, desta vez passaste-me a perna!... Não pediste a bênção ao mano velho, como te ensinaram os nossos pais. Foste um cobardolas de merda, podias ter sido solidário comigo... Podíamos ter feito a nossa viagem juntos, sempre era menos penosa. Iríamos empoleirados, divertidos, na minha Chaimite, a cantar as canções da nossa alegre infância que eu te ensinei, na Mocidade Portuguesa... Tu, um lusito de palmo e meio!.  Sempre tínhamos as férias grandes para estarmos juntos, na nossa quinta, apesar da diferença de idades!... Essa seria a tua derradeira (e verdadeira) prova de fraternidade, de amor e de amizade!... Mas não tenho esse direito, o de te pedir o supremo sacrifício da vida, nem que fôssemos irmãos gémeos verdadeiros!... Espero que ainda tenhas, ao menos, uma longa vida para te poderes ir lembrando, de quando em vez, com saudade, deste teu pobre amigo, mano e mentor”…

E como vais querer ser lembrado ? Como um herói?!

“Sim, justamente como um herói. Lembras-te como tu me dizias ?!... Sempre tiveste a mania de recorrer à mitologia grega, com referências eruditas, chatas p'ra burro, para um gajo como eu que era de cavalaria, e que nunca gostei de estudar: ‘Meu herói, mais do que um homem, menos do que um deus’... Sempre me chamaste 'meu herói’... E eu até gostava, confesso, mas sem nunca te levar a sério. Quero, por isso, que te lembres de mim como um herói. Sempre gostei da tua definição de herói, mais do que homem, menos do que deus...”

Seja, então, feita a tua última vontade, grande cavaleiro!

“Podia ter morrido pela Pátria!?... Com Honra e Glória!... Mas, não, acabei por ser um burocrata da tropa, no fim da carreira, num daqueles serviços do Exército que ninguém quer chefiar"...

Deixa-te de tretas, tivemos muitas discussões em vida, sobre isso. E sobre o teu militarismo. Sempre foste um bocado militarista. Que tu tenhas recebido a cruz de guerra, tudo bem. E foi bem merecida. Felizmente que não foi a título póstumo... Estou a ser egoísta, desculpa lá, queria eu dizer: não fiquei, assim, privado de conviver contigo, mais estes quarenta e tal anos...

“É doce morrer pela Pátria”: ensinaram-me na Academia Militar, uma escola de valores e virtudes que tu nunca tiveste o privilégio de conhecer… E, se bem me lembro, onde nunca me foste ver, a não ser no juramento de bandeira, com os pais e a mana. Sem esquecer o Colégio Militar, de que guardo as melhores recordações e onde fiz amigos para a vida. Chamas a isto militarismo ?”

Não, aí já não te acompanho, nem nunca te acompanhei, a partir dos meus 18 anos, quando rompi com o passado. Bem sabes que nunca tive jeito para a tropa, como tu e os nossos antepassados  que seguiram a carreira das armas. E fiquei com fobia aos internatos. Fiz o que tinha a fazer, como português e cidadão, que foi o serviço militar obrigatório. Honrei a palavra dada ao nosso pai... Não fugi. E fui "infante", tropa-macaca, como a gente dizia na Guiné... 

Já tu tinhas dado uma volta pelo Índico, em 1958, quando eu entrei para o Seminário… E mal sabias tu que a Pátria te voltaria a chamar, desta vez, para Angola, três anos depois... Sempre receei ter que ir a Lisboa, com os pais, ao 10 de junho, para receber uma qualquer cruz de guerra tua, a título póstumo... Tinha esses pesadelos, que me aterrorizvam à noite, confesso...

“A nossa querida e saudosa mãe queria que eu fosse para padre, contrariando o avô, o pai dela, que era anticlerical, como sabes... E o nosso pai, esse, queria que eu seguisse a tradição da família… Acabei por ir para o Colégio Militar e entrar na Academia, graças aos pergaminhos da nossa casa e à nobreza da nossa linhagem… Mas sei que o nosso pai, que Deus lá tem, teve de fazer das tripas coração. Vivíamos acima das nossas possibilidades, com as míseras rendas dos caseiros e os roubos do feitor... Mais uma vez, valeu-nos a cunha do nosso primo general, que foi sempre um grande e leal amigo da família...”

O seminário sempre era mais barato. Ir para Lisboa era um pesado encargo para a família. E a nossa mãe, com a sua intuição, o seu sexto sentido, parece que estava a adivinhar que os tempos que aí vinham, não eram propriamente cor de rosa... 

Sobrou para mim, que acabei por ir para Montariol, em Braga... Já que tinha um filho oficial do Exército, um garboso oficial e cavalheiro, faltava-lhe, à nossa mãe, um missionário, barbudo, de sotaina branca, para dilatar a fé e o império. Mas eu cedo percebi que os votos de pobreza, obediência e castidade eram um fardo demasiado pesado para um jovem que não tinha cometido nenhum crime lesa-família ou lesa-pátria, só queria afinal viver, e viver a vida do seu tempo… E que tempos, esses, os dos anos 60, meu irmão!

Fui aguentando, à custa de muitos sacrifícios pessoais, de muito ranger de dentes, com  muito cinismo à mistura, só para não dar um desgosto à nossa mãezinha... Quando ela morreu, precocemente, ainda tão jovem, tão cedo e tão linda, eu já estava em teologia, no Seminário da Luz, em terra de mouros... Há muito que tinha perdido a vocação ou percebido que não tinha jeito nem feitio para missionário franciscano desterrado para Angola, Guiné ou Moçambique...

Voltei ao Norte. Mal tive tempo de respirar o ar livre da noite do Porto (que na altura era uma chungaria), chamaram-me para a tropa e, de seguida, meteram-me num barco, misto de carga e passageiros, direitinho à Guiné. 

“Já eu tinha passado por Moçambique, foi lá que me cobri de honra e glória, e ganhei esta cruz de guerra que ostento, com orgulho, ao peito... E já tinha trinta e muitos”…

Em boa verdade, eu tive infância (e tão feliz!), mas não tive nem adolescência nem juventude... Tal como tu, que passaste os teus melhores anos entre a caserna e o ultramar… Envelheci, pelo menos uma década, no seminário, na tropa, na guerra...

Quando voltei da Guiné, fui à procura do tempo perdido... Andei na noite, na má vida, com más companhias, desperdiçando o resto dos meus verdes anos, dando cabo do fígado e arriscando a saúde, com uísque marado e as gajas da noite... Felizmente, ainda não havia, nesse tempo, o VIH/Sida... Ou estava em incubação...

À beira do abismo, na 23ª hora, conheci a Manela, que me levou, de novo, para o caminho do bem... Estamos casados há 40 anos. Foi o segundo anjo da guarda que conheci na vida, depois da enfermeira paraquedista que me levou para o hospital militar de Bissau, e me salvou do inferno de... Ai!, porra, já não me lembro (ou não quero lembrar ?!) do raio do sítio onde apanhei uma mina anticarro que matou uma meia dúzia dos nossos…  Começava por um G, de Guiné... Guigiti? !... Peço-te desculpa pela branca... Como também não me lembro do nome desse anjo que veio do céu, para me salvar. Imperdoável!... A minha memória já não é o que era... Ainda gostava de a conhecer, a essa enfermeira paraquedista, se por acaso ainda for viva, como espero...

Acabou-se a guerra, para mim, nesse dia. E lá percorri as estações do calvário: Hospital Militar, em Bissau, Hospital Militar Principal, na Estrela, depois o Centro de Reabilitação de Alcoitão...  Muitos meses em tratamento e recuperação, uma prótese no calcanhar, enfim, foram as medalhas que eu trouxe da Guiné... E tenho uma pensão de merda como Deficiente das Forças Armadas. 

Nunca ninguém me foi visitar, nem sequer as senhoras do Movimento Nacional Feminino... E muito menos o meu pai, o que eu entendo e até perdoo: Vila Nova de Cerveira ficava longe da capital e o pai, não sei se te lembras, já estava doente... A nossa mãe, essa, já tinha partido para a beira do Padre Eterno.

“Tiveste azar, irmãozinho… Os manos do meio, esses, lá se foram desenrascando, pior ou melhor. O António foi 'a salto' para França, para grande desgosto dos pais, era refratário e tornou-se um comuna de merda… O Jorge, depois do magistério primário, livrou-se da tropa, com um grande cunha de um médico militar do Porto; a mana,  essa, lá casou, tarde e a más horas, com um servidor público, chefe de finanças de Braga”…


Sabes ?!, nunca te contei isto!... Aos dez anos quis ficar órfão e depois morrer, quando fui para o Seminário de Montariol. É monstruoso, tenho que o admitir: desejei a morte dos nossos pais!... Eles, coitados, já não estão cá, e espero que não me oiçam... Mas, se me estão a ouvir, que me perdoem!... Agora, eu não sei é se Deus me vai perdoar. Nunca contei o segredo, nem sequer ao meu confessor nem ao meu diretor espiritual... Estou-te a contá-lo, pela primeira vez, e sei que me vais saber escutar,  entender e perdoar....

"Achas que é normal um puto querer morrer na flor da idade ? Ou sentir um secreto prazer em imaginar-se órfão de pai e mãe ?... Eras um monstrozinho!"...


Sim, quis matá-los!... Sentia-me só, abandonado, terrivelmente só, perante Deus Todo Poderoso… Para trás de mim, e cada vez mais distante, ficava o mundo… Um a um via desaparecer, separados por  vidro fosco e espesso, os rostos que me eram familiares e queridos, os dos meus pais, irmãos, tios, primos, mas também os dos meus amigos e colegas de escola… Um vidro cada vez mais grosso transformado em muralha instransponível...

“Também passei por esse choque, essa angústia, a da separação, quando fui para o Colégio Militar, lá longe, na capital do império… Passava da nossa casinha, da nossa quinta, da nossa querida família extensa, onde conviviam três gerações, para um casarão, uma instituição castrense dominada, aos meus olhos de puto, por seres poderosos, prepotentes, mesquinhos... Tive medo, sobrevivi às praxes, enfim, sabes como era naquele tempo... Mas nunca me passou pela cabeça essas ideias malucas de suicídio ou de orfandade... Sempre foste, afinal, um puto mimado, sobretudo pela mãe e pelo avô Francisco que te queria fazer doutor de letras!"...

Em boa verdade, eu sentia-me abandonado por todos, e até por ti, que eras o meu herói, o meu ídolo, o meu anjo da guarda!...

“Não te podia valer, por muito que o quisesse!... No início do último trimestre de 1958, eu já estava na Índia como alferes... Uma eternidade para lá chegar, seguimos o caminho de Vasco da Gama, deixámos tropa e material em Angola e em Moçambique…”

E tu, meu sacana ?!... Sempre foste um mulherengo, um escravo do gineceu,   um gajo fraco com as mulheres, como eu mais tarde vim a descobrir!...Na altura, fiquei chocado e dececionado contigo, que eras o meu ídolo, quando te apanhei, nu em pelota, no espigueiro, montado na filha de um dos nossos caseiros... 'Boa como o milho', rías-te tu, meu safado... Armado em pinga-amor, um Dom Juan minhoto, caíste mais do que uma vez como a mosca no vinagre…

"Cala-te, não sejas ingrato!... Ainda te quis levar às putas em Vigo!...Mas, tu, parolo,  quiseste ficar virgem até à ordenação de padre!... Ah!, ah!, ah!...
 Eh!, e nada de aldrabices, essa filha do caseiro era a Joaquina das Bouças, ficámos até bons amigos. Estamos quites, tratei-lhe do passaporte e paguei-lhe a passagem de comboio para França, lá casou com um mouro de Moura ou Mourão, um gajo do Sul..."

Abelhudo, era o que tu eras!... Sempre atrás do mel, sem te importares com os sarilhos de saias que arranjavas e as aflições que causavas à nossa pobre mãezinha... Ficas a saber que não posso com a gaja que te caçou há 15 anos, no carnaval do Rio de Janeiro, ainda estavas viúvo de fresco... Nem sei que idade tem, a tua  'coronela', muito mais nova do que tu!... Deve ter a idade dos teus filhos mais velhos, os do teu primeiro e trágico casamento... E que eu mal conheço, nunca ou raramente foi às últimas  festas da família. Felizmente que não tens filhos da brasileira...

“Não te admito que fales assim da minha legítima esposa, e agora viúva, face à lei de Deus e dos homens… Se me pudesse pôr de pé, ainda te dava com o pingalim na cabeça e depois um valente murro nas ventas”…


Desculpa, mano velho, não tenho o direito de me intrometer na tua vida privada e na vida da tua família, e das tuas mulheres com quem, se calhar por ciúmes, nunca simpatisei… 

Estou apenas irritado comigo próprio, zangado  com o resto do mundo... E com Deus, se queres saber! (E que  Ele me perdoe!)...Estou eu a querer falar contigo, baixinho, a sussurrar contigo, que já estás no mundo dos mortos, estou eu aqui a não querer perturbar o sono eterno dos que viajam contigo na barca de Caronte, e ouço, ao lado, as gargalhadas despudoradas da sacana da tua viúva e dos seus amigos e até dos nossos primos… Alguém, tenho impressão que um gajo do teu curso, deve estar a contar uma anedota porca do tempo do Colégio Militar ou da Academia ou do Spínola na Guiné..

Mas que falta de pudor, de compostura e sobretudo de respeito por ti, que estás em câmara ardente, recebendo a derradeira homenagem dos teus familiares, amigos e camaradas de armas!...

Acho que me vou retirar, com a tua licença... Durmo mal, vou descansar um pouco, estou zangado,  volto amanhã,  para rezar por ti e encomendar a tua alma... Vais ter com o nosso pai e a nossa mãe, e o nosso Jorge, coitado, que Deus também já lá tem... Espero amanhã estar mais calmo e pedir a Deus que me perdoe, se me excedi e se O irritei. Deus não gosta que O irritem.

Vou rezar por ti e pedir a Deus perdão pelos teus e pelos meus pecados. Nunca me hei esquecer das palavras que a nossa mãezinha nos obrigava a rezar: antes de irmos para a cama, e depois da oração ao anjo da guarda, vinha a Avé Maria que terminava com o "E na hora da nossa morte, ámen!".

Ah!, já me esquecia, a Manela, que tirou um peito há pouco tempo, não pode acompanhar-te na tua despedida da Terra da Alegria (ela lê muito o poeta Ruy Belo) mas manda-te, por mim,  o último chicoração. Ela sempre gostou de ti, mesmo com todos os teus defeitos. 

Volto depois de amanhã para Lisboa.

© Luís Graça (2019). Nova versão, revista e melhorada, nesta data.

Nota do autor: este é um texto literário, um conto, narrado em tom muito confessional e intimista. Alguns vocábulos ou expressões, mais "duros", que podem ferir a suscetibilidade do leitor, têm que ser relevados e entendidos dentro dos limites da liberdade criativa e do espírito aberto do "livro de estilo" do nosso blogue.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série : 5 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24726 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (10): I want you, dead or alive!

sábado, 30 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24714: Os nossos seres, saberes e lazeres (593): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (122): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (13) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
A galopada cultural culminou no Museu de Félicien Rops, santo do meu culto, merece o apodo do mais escandaloso artista do século XIX, mas a clientela nunca lhe faltou, admirava-lhe o génio mesmo com aquelas provocações pornográficas e satânicas. O museu de Namur possui um admirável acervo de todo o seu percurso, desde desenhador de humor a pintor consagrado. Seguiu-se uma viagem pelo Meuse, isto é, andarilhar pela margem, como se fôssemos em direção em Dinant, uns bons quilómetros a juntar à boa passeata por três museus, não posso dar sinal de desfalecimento, a meu lado vai uma aficionada por passeios pedestres, daqueles que podem absorver 30 quilómetros diários, ainda por cima por montes e vales, aguentei firme, guiado pela fé de que tinha uma grande repasto à minha espera e que dormiria um sono de pedra em Watermael-Boitsfort, como aliás aconteceu. No comboio, quando deitava contas à vida para sairmos cedo, de modo a chegarmos a Zaventem pouco depois das 9h, recebi no telemóvel a notícia de que o voo fora diferido para a noitinha. Ah é? Então levanto-me cedo e ainda vou cirandar um pouco por esta Bruxelas onde não sei quando regressarei, tenho dito.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (122):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (13)


Mário Beja Santos

Toda a moleja me saiu do corpo quando entrei no Museu Félicien Rops, no n.º 12 da rue Fumal, venho de novo encontrar-me com aquele que é alvo de um epíteto pouco lisonjeiro: o mais escandaloso artística do século XIX. O museu dá-nos uma panorâmica desde os seus trabalhos como caricaturista, desenhador em obras de romancistas e poetas consagrados, até aos seus trabalhos mais sulfurosos com destaque para Pornocrates, que os críticos consideram o seu mais genial trabalho. Rops nasceu em Namur, foi viajante insaciável (Hungria, Escandinávia, EUA, África do Norte, Espanha…), como muitos artistas da sua geração iniciou a sua atividade como desenhador de humor cedo mostrou estar em total dissonância com a moral da sua época, enveredou na corrente simbolista, de que se será um dos seus próceres mais desalinhados. Aos 18 anos, em Bruxelas, fundou um jornal onde realiza caricaturas irónicas e mordazes sobre as classes sociais, os artistas do seu tempo, a atmosfera política. Faz desenhos para uma obra de Charles Baudelaire. Instala-se em Paris, o seu tema de predileção passa a ser a mulher, no papel de dominador ou de cortesã. Atento ás ideologias sobre a decadência presentes na arte e na literatura, aborda sem qualquer receio a prostituição, o erotismo ou o satanismo. Numa série dedicada às Satânicas celebra a aliança entre mulher e Satã. Percorro deslumbrado esta série de obras, temas aparentemente mórbidos, por vezes uma pornografia descarada, há também as telas revelando praias ou panorâmicas de cidade onde se sente perfeitamente que Rops jamais desconsiderou o naturalismo, e momentos há que se percebe que o seu olhar vanguardista prepara a transição para o impressionismo. Que me acompanha olha para o relógio, está na hora de pelo Meuse, é só mais uma hora ou duas, depois tens um banquete à espera.

Pornocrates
Tratamento da mulher e do satanismo
A Agonia
Autorretrato
Félicien Rops
Estou ciente que em itinerâncias do passado já mostrei este rio, o Meuse é encantador na serenidade da sua correnteza e dá que pensar como o Homem tantas vezes obtém sucesso numa boa aliança entre o património natural e o edificado. Agora presto homenagem a quem me preparou este dia de tanta fruição. Quem aparece na imagem é uma amiga de quatro décadas, fizemos conhecimento em Veneza, eu como participante numa conferência, ela como intérprete. É a musa do romance Rua do Eclipse, foi ela que me inspirou a vida de uma intérprete e organizadora de um dossiê sobre a comissão militar de um tal Paulo Guilherme que andou pela Guiné entre 1968 e 1970. Ela é uma andarilha, telefono-lhe e está a caminho de uma viagem para atravessar os Estados Unidos da América, mesmo de ponta a ponta, ou partiu para a Úmbria, voltou há três dias para se integrar num grupo de passeios pedestres que vão até ao norte da Holanda. Insiste que eu fique uns dias em Namur, faremos passeios pedestres a valer, aí tenho medo, já não tenho coluna vertebral para grandes subidas e descidas, arranjo pretextos, mas não hesito em estar um dia inteiro na companhia desta andarilha que tem assinaturas para tudo quanto é ópera, música sinfónica, música de câmara, festivais. Obrigado por tudo, minha adorada amiga! E enquanto ela prepara o ágape vou perscrutar como está o seu jardim, não tem dúvida quanto aos cuidados, vou agora registar o que dá a primavera em flor, se há o conceito do tempo belga tido por instável, com sol, ventania, chuviscos, céu de chumbo, isto para já não falar das pesadas chuvadas de outono e inverno e dias de gelo, a verdade é que este jardim se engalanou para me receber.
Todos os anos, deve ser puro acaso, aqui venho encontrar estas túlipas cor de rosa, estão viçosas, prometo voltar para o ano para que vocês ostentem flores tão acetinadas.
Quando vivi numa casinha de campo em Pedrógão Grande comprei um pequeno rododendro que, para espanto meu, cresceu sem dificuldade, nunca lhe faltei com água e limpeza da folhagem, era uma alegria ver os botões e depois a explosão de branco, parecia uma árvore pequena. Na posse de outro proprietário, há seis anos, a casa desmantelou-se no grande incêndio de Pedrógão Grande e aquele calor imenso chegou à horta e ao jardim, senti um baque no coração quando vi o meu rododendro enfarruscado, sem vida. Aqui em S. Marc, este rododendro suscita-me recordações da minha perda, sinto-me feliz porque a natureza tem sempre razão e sabe cobrar juros, o que se perde acolá ganha-se aqui.
Que grande surpresa, vi nascer este rododendro aqui ainda a moradia estava em construção e já a proprietária andava azafamada na organização do jardim, também ele se engalanou para receber quem o tem visto crescer ao longo dos anos.
É um bonito tapete de jacinto-uva, temos muito no nosso país, é um lilás muito delicado, creio que toda a Europa é bafejada por imensas variedades de jacintos, uma flor que tem a particularidade de ser o arauto da primavera.
Havia para ali tanta passarada que interpelei a dona da casa quanto aos porquês daquele corrupio no arvoredo do jardim, ela apontou para diversas caixinhas de alimento e fiquei por ali especado a ver a alegria esfusiante das aves a debicar e a bebericar e depois correr para outras paragens.
Entardeceu, chegou a hora de partir, a dona da casa insiste em levar-me a Bruxelas, declino, vou até à gare ferroviária de Namur, é uma viagem de cerca de uma hora, suspiramos por novo encontro, talvez no outono, na pior das hipóteses na primavera. No comboio consulto o telemóvel, sou surpreendido com uma mensagem da companhia aérea, o voo marcado para as 11h45 foi alterado as 21h10. Deito contas à vida: a minha mochila é leve (fora os trastes comprados na Feira da Ladra), e se eu aproveitasse a manhã e o princípio da tarde a cirandar pelo centro de Bruxelas, enfim, uma despedida em grande? Vamos ver o que o destino me reserva.

(continua)

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Notas do editor:

Vd. poste anterior de 23 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24691: Os nossos seres, saberes e lazeres (591): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (121): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (12) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24701: Os nossos seres, saberes e lazeres (592): António Carmo, artista plástico de renome, nosso camarada da Guiné (Mário Beja Santos)

sábado, 23 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24691: Os nossos seres, saberes e lazeres (591): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (121): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (12) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Nesta hora de rememorações, pegando no caderno onde fui registando o percurso da viagem, bem arrependido estou de não ter feito finca pé em ter começado o dia pelo Museu Félicien Rops, santo do meu culto, alguém que viveu de candeias às avessas aquele tempo de Novecentos, foi um expoente do simbolismo, desbravou caminhos estéticos e incomodou muita burguesia com o tratamento erótico da sua pintura e desenho. Mas feita a contabilidade, surpreendeu-me agradavelmente as esculturas maneiristas, outrora tratadas como arte decadente e hoje na moda, observadas como uma vanguarda reativa à escultura beata do tempo, tudo desproporcionado, como se, de tanto torcer e distorcer, a imagem religiosa tivesse maior impacto nos crentes. Por mim, se não tivesse tido a condução do dia tão rígida, teria andando a flanar pela cidadela, dali se avista um panorama memorável. A grande vantagem era o estômago, foi ao fim de um dia de correrias ter um banquete de estalo à minha espera. Agora só me falta falar-vos de Félicien Rops, do Meuse e de uma bela casa em S. Marc, a poucos quilómetros de Namur.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (121):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas ! (12)


Mário Beja Santos

Depois da visita, que tanto me surpreendeu, aos museus instalados em Les Bateliers, atravessa-se a cidade, vamos em direção a outro local de referência, o Museu de Arte Antiga, estamos na época dos acrónimos, cada um mais bombástico que o outro, agora este museu é TreM.a, visito-o sempre com imenso prazer, tal a diversidade artística que oferece. Está situado numa casa apalaçada do século XVII, bem escondido atrás dos estuques da sua fachada, que está classificada como património excecional da Valónia, abriga tesouros medievais e da Renascença, entre as obras-primas ali expostas, em que as mais antigas remontam ao século XII, avulta o Tesouro d’Oignies, uma das sete maravilhas da Bélgica, tem escultura de valor excecional e aqui se acolhe o maior repositório de obras de Henri Bles, pintor maneirista de excelência. Tem uma balaustrada moderna no corpo principal, deixo mais comentários para quando fizer uma visita em relance, o que nos traz fundamentalmente aqui são esculturas maneiristas, eram tratadas até um passado não muito longínquo como correspondentes a um período artístico de completa decadência. O que vimos visitar é um património ignorado pelo mundo académico que subitamente se tornou fonte de atração dos investigadores. Procuro nas imagens subsequentes mostrar algo que durante séculos foi alvo do desprezo estético: personagens com proporções exageradas, figuras estiradas, ancas angulosas, pescoços sinuosos, dedos afuselados… A exposição reúne um conjunto de esculturas criadas nas últimas décadas do século XVI nas oficinas de uma região que se chama de l’Entre-Sambre-et-Meuse, em plena Valónia, todo este património foi denegrido, face ao qual os investigadores nem ousavam olhar, subitamente provocam frenesim, os estudos multiplicam-se e o público acorre, é a admiração da descoberta. Lembra um pouco aquela ironia sobre o mau gosto, ele é sempre o dos nossos pais, o bom gosto é das gerações precedentes…

Fachada principal do Museu de Arte Antiga de Namur
Balaustrada moderna do Museu de Arte Antiga de Namur
A fé e a oração, um maneirismo das formas que já aponta para o barroco
Ornamentos escultóricos numa trave
O Pai e o Filho
A Ressurreição, mestre de Rochehaut, obra em carvalho policromado, 2ª metade do séc. XVI.
A lamentação pela morte de Cristo
Feita a visita à exposição da escultura maneirista, pressionados pelo tempo, quem me guia aponta permanente e freneticamente para o relógio, vou admirar em passo acelerado algumas das preciosidades do Museu de Arte Antiga, acima uma das sete maravilhas da Bélgica, o célebre Tesouro de Oignies, são cerca de 40 peças de ourivesaria pejadas de pedras preciosas, trabalho realizado na 1ª metade do século XIX, obra destinada ao priorado de Oignies.
Base de um cálice esplendidamente ornamentado
Cena do anjo da Visitação, elemento de uma porta
Paisagem de Henri Bles, o museu possui a maior coleção deste pintor maneirista

Saio desgostoso do Museu de Arte Antiga, peço a quem me guia nesta viagem um tanto alucinante de museu atrás de museu, só para mirar alguns edifícios, com resignação condescente, abranda-se a marcha, estou autorizado a captar alguma maravilha deste centro histórico de Namur.
Beffroi de Namur, algo como um campanário com os sinos da cidade, nalguns casos funcionou como prisão. Trata-se de uma obra do século XIV, intervencionada dois séculos depois
Outro ângulo do beffroi de Namur, parece amparado por prédios de habitação, respeitou-se a escala, não há nada de chocante
Um belíssimo edifício de Arte Nova na principal artéria comercial de Namur.

E pronto, a viagem prossegue para o Museu Félicien Rops, depois é o passeio pelo Meuse, depois um festim em S. Marc, no final sou depositado na gare ferroviária, há abraços e lágrimas, prometo voltar lá para setembro/outubro, sabe-se lá as voltas que o mundo vai dar, e depois os imprevistos da idade, mas vontade de regressar não falta. Bem, vamos à conclusão deste magnífico dia em Namur.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24661: Os nossos seres, saberes e lazeres (590): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (120): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (11) (Mário Beja Santos)