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quarta-feira, 30 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15916: Notas de leitura (822): “A tropa vai fazer de ti um homem! Guiné 1971-1974”, por Juvenal Sacadura Amado, Chiado Editora, 2016 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Março de 2016:

Queridos amigos,
É diametralmente diferente ler relatos esparsos no blogue e depois o livro, com sequência cronológica, com diferentes antes e depois, poemas enxertados, recordações avulsas, comentários dos outros. Impressiona-me sempre nesta literatura memorial as impressões indeléveis dos locais que percorremos até chegarmos aos quartéis e depois à guerra. Toda a poesia que perpassa pelo relato do Juvenal Amado ganha articulação com a homenagem que ele presta aos camaradas imemoriais em que se transformaram aqueles anos vividos no Leste da Guiné. É comedido a falar do seu sofrimento, projeta-o nas imagens das viaturas destruídas, nos buracões das minas, como se estivesse a dizer-nos: isto podia ter acontecido comigo.
Cativa o seu relato simples e os abraços que dá aos seus amigos da guerra, inesquecíveis.

Um abraço do
Mário


A tropa vai fazer de ti um homem! 
Por Juvenal Amado

Beja Santos

É útil fazermos aqui uma recapitulação sumaríssima das cerca de cinco décadas que levamos de literatura da guerra. Temos um primeiro período, 1961 ao fim da década. As principais manifestações dão pelo nome de: diário, evocações elegíacas da bravura do soldado português, crónicas jornalísticas, alguma poesia, raras dissertações sobre a natureza da guerrilha e contraguerrilha, e pouco mais. Na viragem do século, assiste-se a uma abertura literária em que o tema da guerra surge codificado, e até ao 25 de Abril sucedem-se manifestações de pendor jornalístico a exaltar o esforço de guerra, lendo essas crónicas parece que a guerrilha está controlada e os seus líderes desacreditados. O segundo período é de uma abertura com foros anárquicos, temos relatos comprometidos, escreve-se para ajustar contas, digamos que esta euforia até transita para os anos 1980, aí perde totalmente o vigor. O terceiro período anuncia os grandes depoimentos íntimos na forma de romance, é como se o combatente já não temesse qualquer complexo por falar de si manejando a ficção. No quarto período, dos anos 90 em diante, é a enxurrada das memórias, prossegue a ficção, surge o ensaio histórico, há mais diários. No caso da literatura da Guiné, destaco no primeiro período Armor Pires Mota, o Diário de JERO, o Ensaio de Hélio Felgas, no segundo período Álvaro Guerra e José Martins Garcia, no terceiro período Cristóvão de Aguiar, José Brás, Álamo Oliveira e Luís Rosa. O quarto período, o mais fértil, assegura o espantoso Diário do Soldado Inácio Maria Góis, o Livro de Memórias de Moura Calheiros, de António Loja, entre outros.

“A tropa vai fazer de ti um homem! Guiné 1971-1974”, por Juvenal Sacadura Amado, Chiado Editora, 2016, entronca no relato memorial, temos um jovem profundamente ligado a Alcobaça, depois de diversos empregos fixou-se na Crisal Cristais de Alcobaça, dali partirá para a Guiné, fez uma comissão anormalmente longa no setor Leste, assentou sobretudo arraiais em Dulombi. Enquanto lia este relato na Guiné, não deixava de me surpreender, atendendo que passei cerca de 26 meses no setor de Bambadinca, fui pelo menos duas vezes a Dulombi e mais vezes a Galomaro de jipe, atividades de rotina, de pura logística, não me recordo de qualquer referência de risco naquele subsetor, salvo o Saltinho. O que significa que afinal a retirada de Madina do Boé teve diferentes faturas e uma delas foi a progressiva aproximação dos grupos do PAIGC até Dulombi e vizinhança. O que remete para outra consideração que é a de quando falamos da nossa guerra abstraímos que já houve outros contextos e a que se seguirão mais outros.

Não podemos ignorar a afetuosidade com que ele nos fala da sua juventude, da família, do trabalho, dos companheiros. Aquelas sete horas friolentas de Janeiro de 1963 em que ele parte pela noite ainda escura para a paragem da camioneta, parando em Fervença, que tinha fábrica de cerâmica, de fiação e tecidos e termas medicinais, até Valado dos Frades, o Juvenal é aprendiz na fábrica de cerâmica Os Pereiras, o tempo corre até que se irá apresentar no CICA 4, ainda não tem 21 anos, seguir-se-á o RI 6, o RI 16, é aqui que chega a notícia da mobilização para a Guiné. São descrições sincopadas, relevam as amizades construídas, algumas delas até hoje. Nas vésperas de Natal de 1971 já estão em Bissau, uns seguem para Gadamael, outros para Barro, aqueles outros para Cacine e o seu Batalhão, o BCAÇ 3872 segue para Galomaro, Saltinho, Cancolim e Dulombi.

Juvenal é condutor de Berliet, mas leva por tabela quando há flagelações nos diferentes destacamentos por onde passa. Escreve poesia, partilha connosco memórias francamente dolorosas como a emboscada de 17 de Abril de 1972 entre o Saltinho e Quirafo. Há um longo repositório de peripécias, de facécias, põe os amigos no pódio. Entre as memórias que não se apagam estão as minas anticarro, há sempre bons pretextos para acompanharmos a angústia do condutor naquelas colunas que se enfiam em direção aos destacamentos mais remotos.

A guerra evolui, estamos em 1973, deram-se mudanças, como ele escreve: “O tempo de guerrilha que emboscava, flagelava e retirava, embora não fosse menos perigosa, fazia já parte de um passado recente. Muito bem armada e enquadrada militarmente, a tropa do PAIGC estava a levar-nos para um beco sem saída e a nossa derrota já não era uma miragem. Na cantina tinham sido afixados cartazes com imagens de aviões MIG 17”. Mas continua teimosamente a entronizar os atos de camaradagem, dá-nos um caudal de poemas. Em jeito de despedida, volta à sua infância, fechara-se um arco depois do hiato da guerra, seguir-se-á a idade adulta de alguém que se transformou. E revela-se nostálgico: “Naquele tempo, em que eu caminhava entre a casa e a fábrica ou o café sabia de cor cada pedaço de calçada, cada pedaço de lancil marcado por uma jante, cada mancha de musgo ou mesmo os estranhos desenhos que ficavam quando caía algum pedaço de reboco de uma parede ou de um muro. A vida era lenta, previsível, própria de quem sabe que mais não podia fazer para além disso enquanto esperávamos pela tropa”. E descreve lugares, como a taverna do Dinis, a mercearia do senhor Emidinho, o Café Paris, a Pensão Corações Unidos. E vem uma recordação mais impressiva: “Os internados do asilo que pediam sempre um cigarrito ou, à falta disso, apanhavam as beatas que eram sempre abundantes pelo chão. Desfaziam-nas para dentro de uma caixa de lata e com mortalhas confecionavam novos cigarros”. E recorda o senhor Orlando, figura bizarra, que morreu quando ele estava na Guiné. Esta Alcobaça que lhe fazia companhia no posto sentinela. Chegou e tudo mudara, ou quase: “Quando regressei, voltei a fazer vezes sem conta os mesmos caminhos. A maioria das coisas ainda estavam lá, pouco se tinha alterado, eu é que via tudo com outro olhar. 27 meses tinham-me transformado e era com avidez que bebia as imagens, que funcionavam como assinaturas do tempo". Sempre poetando, deixa para o termo da obra o rol daqueles que caíram em combate. E porquê o título deste livro. Ele dá a sua interpretação: “Era uma premonição de que só seriam verdadeiros homens quem passasse pelas vicissitudes que a vida militar e a guerra impunha, como se fosse impossível alcançar esse estádio sem esses sacrifícios”.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15889: Notas de leitura (818): Micropoemas do livro "Haikus do Japão e do Mundo" (Lisboa, Gradiva, 2016): seleção e oferta do autor, António Graça de Abreu, para os nossos grã-tabanqueiros

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15634: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (16): “A Tropa vai fazer de Ti um Homem!”

 
1. Em mensagem de hoje, 18 de Janeiro de 2016, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos mais um artigo para incluir na sua série "A Minha Guerra a Petróleo", desta vez a propósito do tema em discussão "A Tropa via fazer de ti um homem".
 


A Minha Guerra Petróleo (16)

“A Tropa vai fazer de Ti um Homem!”

Era uma frase feita e, como todas as frases feitas, tinha um fundo de verdade à mistura com uma fraca resistência a uma análise de significado mais cuidadosa. Outros diziam que “a Guerra faz os Homens fortes”. Coisas que se dizem…

Desde logo haveria que esclarecer o que é isso de ser “um Homem”. Toda gente daquele tempo – velhos e novos, homens e mulheres – sabia e lembra ainda hoje o que isso significava, mas, ao tempo, o melhor era não aprofundar o conceito, pois ele esboroava-se e as dúvidas surgidas seriam mais do que muitas…

Tinha de ser um “chefe de família”. Aí todos estávamos de acordo. Tinha algo de positivo e construtivo esta espécie de título nobiliárquico que oficializava a afirmação do Homem (do povo) como chefe, no ambiente familiar, mas, ao mesmo tempo, obrigava-o a ser o sustentáculo do agregado familiar e a não ser “marido de modista”, isto é, um alérgico ao trabalho vivendo à sombra da profissão da mulher. Havia, assim, uma espécie de divisão de tarefas pela qual a mulher era responsável, em primeira linha, pela educação e preparação dos filhos para a vida, e o homem que, com certo brio, normalmente no exterior, arranjava pelo trabalho, os meios para o sustento da casa. Sabemos que as novas gerações acham este padrão absurdo e nem sequer tentam entendê-lo, mas que era assim, salvo excepções, lá isso era.

Esquecem-se apenas de que o trabalho feminino se desenvolveu em consequência de uma guerra e que hoje as mulheres trabalham não por uma questão de “independência e dignidade”, mas muito principalmente porque a família só pôde melhorar os rendimentos familiares somando os salários de ambos os progenitores. Além disso, aos patrões agrada a presença de quem ganhe menos, produza o mesmo e tenha uma capacidade de organização sindical e reivindicativa menor. Mas isto já são “outros caminhos da História”.

Naquele tempo “Tropa” era um acidente previsto na vida dos homens, mas que, ao mesmo tempo, funcionava como uma meta a atingir. Há quem diga que era uma forma de controlo da população e é provável que tivesse sido, mesmo que indirectamente.

Antes de 1961, (antes da guerra do ultramar/colonial) assistia-se a um espectáculo triste, mas que se aceitava na esperança de que caísse nos outros e não em nós. A incorporação do contingente disponível não podia ser muito elevada por ser antieconómica – a vários níveis – e muito mais num país a contar os tostões na sua vida pública. Ir às sortes era uma espécie de totoloto destinado a determinar quem seria incorporado e quem voltaria para “a vida fácil”. No sorteio, a corrupção – por vezes caricatamente baixa – fazia parte dos dados a introduzir e, por consequência, “quem não tinha padrinhos, morria mouro”, a menos que o seu fervor patriótico ou a crença de que a tropa fazia bem o levasse a aceitar ficar apurado. Era o tempo dos “pés chatos” (fosse isso o que fosse e às vezes não era nada) que davam direito a “ficar-se livre à tropa”.

Mas a ida às sortes tinha um aspecto muito positivo. Em muitos casos, era a primeira vez que o jovem ia a uma consulta médica e, se ficasse apurado, sabia que tinha saúde e devidamente autenticada. Os “fraquinhos e os enfezadinhos” ficavam de fora, com as vantagens e inconvenientes que isso comportasse. Depois eram as tais “sortes”, às quais se seguiria um alegre retorno a casa, em liberdade, ou “um não há-de ser nada” para os que seriam incorporados. A incorporação e o serviço militar eram feitos normalmente longe de casa e aí começava um choque na vida do homem que, se tinha aspectos negativos, não podemos negar que abria horizontes – e muito mais naquele tempo – pelo contacto com outros homens, de outras terras e com outros hábitos. É uma realidade que não podemos negar e que hoje procuramos. Porém, feita por obrigação… pelo menos nos primeiros tempos, era uma experiência desagradável para muitos.

Seguia-se o contacto na caserna com outros jovens, de outras terras, com outros hábitos e outras maneiras de pensar, especialmente em relação ao meio em que tinham sido mergulhados. Surgiam os pequenos desenrascanços (sempre maus) e os furtos de caserna (revoltantes e, às vezes significativos) que chegavam a atingir peças de fardamento e equipamento, e a falta de higiene e a deficiência das instalações onde os refeitórios e cozinhas tinham lugar de destaque, pela negativa. E o fardamento que, numa demonstração de miséria nacional, era distribuído já usado com períodos de duração por vezes bastante curtos e que tinha que ser ajustado por troca entre interessados. Instalavam-se as pequenas rivalidades e até invejas de certa monta, às vezes de uma estupidez impressionante: ricos versus pobres, “copinhos de leite” versus “copofónicos”, “pintas de Lisboa” versus “alantejanos”, etc.. Quem não se lembra dos “meninos de Lisboa” que tinham a mania que sabiam tudo ou dos “balentáxos” da “Beira Ialta” que escondiam ao garrafão debaixo da cama e traziam a “churicha” embrulhada num guardanapo gorduroso e cortada com um canivete afiadíssimo, mas com gordura profundamente instalada, da base do cabo à ponta da lâmina?

Era o povo português no seu melhor e no seu mais significativo exemplo…

As mulheres não cumpriam serviço militar e, no fundo, os homens, na sua maior parte, se pudessem deixar de o cumprir, assim fariam. Todavia era algo a que dificilmente podiam fugir. Por isso, acabavam por exibir a sua passagem pelas fileiras como um emblema que os credenciava como homens mais completos. Não era o culto da "ideologia do marialvismo". Poderia ser um "rito de passagem" incentivado pela ideologia política e social do tempo.

Seguia-se a recruta onde o homem era confrontado com uns saberes esquisitos cuja finalidade não entendia. Desde as alocuções sobre o patriotismo, ao funcionamento das armas, o tiro dos diversos calibres, passando por uns exercícios físicos que o cansavam sem que percebesse para que serviam. Mas, a pouco-e-pouco, a integração ia-se dando e estabelecia-se até uma certa rivalidade com “os outros”, os civis, os do outro grupo. E vinha o juramento de bandeira, essencialmente uma festa com rancho melhorado, uns gritos, uma alocução patriótica (que se esquecia no minuto seguinte, mas da qual ficava uma ideia, ou mesmo duas, a juntar ao que se aprendera na Escola Primária) e mais exercícios de ginástica e outros que constituíam uma afirmação. De quê? Isso era outra questão, mas lá que era uma afirmação, disso não havia dúvidas. No final da vida de unidade, monótona e pouco atractiva, vinha a “peluda”. Saíam do quartel “à paisana” com a “consciência do dever cumprido”, dotados da valentia que o grupo sempre dá, impondo à contemplação da sociedade a vitória que acabavam de obter. No dia seguinte iniciavam o processo de esquecimento, confrontados com a vida todos os dias, mas, indiscutivelmente, com uma experiência que os marcava para o resto da vida, mesmo que não dissessem senão mal dela. E, às vezes até diziam bem…

Em muitos casos, o mito de que a tropa "forma homens" tinha confirmação. Os pais e a aldeia, ou seja, a família e a sociedade, notavam uma melhor inserção do homem que acabara de passar por aquela “etapa de desenvolvimento”. Embora durante o serviço militar, o homem tivesse de sobreviver autonomamente e com poucos meios, a emancipação, pelo menos para efeitos legais, chegava aos 21 anos, ou seja durante a sua passagem pelo quartel. Na etapa seguinte, vinha a constituição da família própria e a saída de casa com a correspondente independência garantidas pelo trabalho, mais ou menos afincado. Era um desiderato dos homens jovens daquele tempo.

Tudo ficava por aí e... as coisas iam andando.

E veio a “guerra”. Subitamente, o país, em geral, e os jovens, em especial, foram confrontados com a verdadeira “utilidade” das Forças Armadas. As sortes desapareceram. Agora “aproveitavam tudo”. A breve trecho, os quartéis passaram a turbinar cada vez mais aceleradamente na produção de militares, muitos dos quais não passavam de civis fardados (à pressa) que, depois de terem passado por tudo aquilo que os seus pais e irmãos mais velhos haviam passado, iam “aplicar a sua formação” no jogo de vida ou morte – que não conheciam senão dos filmes – e numa terra de que só tinham ouvido falar. No início, esta opção foi bem aceite por todos. Mais uma vez a “informação disponibilizada” e a História aprendida nos bancos da escola funcionaram como determinantes do comportamento cívico colectivo. Se uns aceitavam, pois a “Pátria estava em perigo”, outros não hesitavam e venderiam a sua parte de Angola (É nossa!) por meia garrafa de branco. Mas muitos partiram, e os que não foram permaneceram nas fileiras, sujeitos às suas regras de funcionamento, durante três anos, solução que, não envolvendo riscos de maior, deixava marcas mais profundas do que no passado.

O embarque era outro momento traumatizante e que marcava todos. Os que iam porque tendo tido a secreta esperança de que “comigo vai ser diferente”, viam que, afinal, tinham mesmo que ir; e os que ficavam porque não saberiam se voltavam a ver os que partiam e, se os voltassem a ver, se não seria com um bocado do corpo ou da mente a menos. Apesar de tudo, os que por cá ficavam engrenavam nos que fazeres diários e prosseguiam na vida. Depois eram as cartas, os aerogramas e o resto de todas as formas de comunicação possíveis ao tempo, mas que não transmitiam a experiência vivida. Tudo acabou por entrar na rotina com uns a irem e outros a virem e o país a habituar-se a este vai-e-vem.

E, para quem ia, chegava a parte mais marcante do serviço militar. Tudo era diferente nas terras onde se desembarcava. Umas mais ricas e progressivas; outras muito pobres e outras que quem chegava nem sequer sabia classificar, como as dos interiores, onde eram procuradas semelhanças com as gravuras dos tais livros escolares. E vinha uma enxurrada de situações vividas a um ritmo alucinante, durante dois anos. É absolutamente indescritível o número de situações e as suas características que viviam. A primeira operação, fosse ela uma coluna ou uma acção no final do IAO; a progressão no mato ou na estrada, à espera que os turras surgissem; o assalto a uma instalação ou a reacção a uma emboscada, uma mina, um ataque ao quartel com armas pesadas ou “ao arame”. E vinha a primeira baixa: um ferido ligeiro ou grave que, em sofrimento, era evacuado, ou um morto, a cujos últimos segundos assistiam ou que os olhava já de olhos fechados. A revolta que sentiam era enorme e a impossibilidade de sair “dali” tornava-a insuportável. Surgia a pergunta: o que é que estamos aqui a fazer?

Hoje pega-se nisto tudo, mete-se dentro do mesmo saco e chama-se-lhe “síndrome pós-traumática”. Não se faz nada, mas o tempo remedeia tudo. Mas naquela altura nem nome científico havia para o fluxo das vicissitudes pelas quais se passava.

Claro que havia coisas “giras”, situações cómicas, mas seria necessário ir para tão longe para nos rirmos uns dos outros? A entreajuda, a confraternização e a amizade fortaleciam-se, como normalmente sucede no meio da desgraça, quando o inimigo é comum. As condições de vida eram as que “podiam ser” e aquelas que se podiam ir granjeando na esperança que o tempo passasse, pois ninguém estava interessado em ir além da defesa da sobrevivência, embora houvesse que manter o inimigo em respeito e evitar que nos surpreendesse.

E as horas de incerteza, antes, durante e depois do que acontecia, fosse o que fosse? Um verdadeiro suplício durante o qual eram levantadas as mais diversas hipóteses.
Era um infinito de coisas que sucediam num dia-a-dia sem que se pudesse fazer algo para controlar o que acontecia.

E, no regresso vinham velhos. Muito velhos, às vezes. Não em idade, pois que essa era a mesma, mas de espírito. Algo desenraizados, aprendiam a questionar qual era efectivamente o seu papel e já não ali, mas na vida e na relação com os outros. Concluíam da relatividade da vida e da facilidade com que ela se ia, sem que pudessem fazer nada para o evitar. Podiam ter momentos de nostalgia ao contemplar a beleza natural, que sempre existe nas Áfricas e contactavam com povos que, vivendo no “mesmo país”, eram tão diferentes. Se estivessem atentos aprenderiam, como sempre acontece, mas, se quisessem aprender, a guerra não fazia falta nenhuma e nem todos tinham em si um antropólogo amador…

A soma, não necessariamente algébrica, de todas as amolgadelas que o destino lhes tinha imposto era o seu principal enriquecimento e é daí que, quer se queira, quer não, tiravam um amadurecimento que fazia dos que passaram por esta experiência mais capazes de, numa rápida apreciação, determinarem o que é mais importante na vida que daí em diante iam levar.

Depois de tanta provação ficavam “mais homens”? Certamente, na medida em que ficavam a conhecer melhor a natureza humana no seu melhor e no seu pior e estavam com maior apetência para a prática do bem, da paz e da solidariedade. Pena que a aprendizagem tivesse sido tão dura. Há quem diga que os maiores pacifistas são os que passaram por uma guerra. Nem sempre será assim, infelizmente, mas creio que no nosso caso será.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de setembro de 2015 Guiné 63/74 - P15104: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (15): Afinal houve mesmo guerra?

Guiné 63/74 - P15635: Inquérito 'on line' (30): "Sim, a Tropa fez de mim um Homem"... (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de hoje, 18 de Janeiro de 2016, com a sua opinião sobre o tema "A Tropa vai fazer de ti um homem":

Caros Camaradas

A tropa, na minha modesta opinião, também polémica e contestável, foi um desastre na minha vida, isto era já o que pensava quando a PIDE através das Câmaras Municipais de Sintra (onde nasci) e Vila Franca de Xira, devido a habitar em Alhandra. Existe um pedido desta última Câmara à Junta de Freguesia de Alhandra.

Este pedido é formulado devido ir frequentar o Curso de Sargentos Milicianos (CSM).

Isto devia suceder com os Camaradas todos que viessem a frequentar os Cursos de Oficiais e Sargentos Milicianos. Obtive essa informação quando fui à Torre do Tombo consultar o meu Processo. Isto por termos muitos de nós esses Processos. Infelizmente que no meu Processo Civil e Militar, nada consta sobre a carnificina em Ganturé, morreram 10 civis e mais de 20 feridos. Era o primeiro visado.

Abriram um Processo Civil (a cargo da PIDE, isto já em Gadamael) e o Militar sobre a responsabilidade do Comandante da Companhia de Caçadores 1620, o Capitão Miliciano de Infantaria Fernando António de Magalhães Oliveira, Sangonhá e Cacoca. A CCAÇ 1620 foi para Sangonhá a 01AGO67 e foi rendida pela CCAÇ 1621 a 20MAR68.

À partida ir para a tropa prejudicava a minha vida e meus sonhos e ambições.


Velha Vila de Sintra. Ao virar à direita, fundo prédio amarelo estavam os Bombeiros 

© Foto do meu filho Alexandre Miguel Marques Gaspar


A Inspecção na Vila de Sintra a 27 de Julho de 1963 (nos Bombeiros Municipais da terra), onde veio a ser mais tarde o Museu do Brinquedo – parece não ser o local onde se situa este – mas não tenho a certeza e pouco importa.

A Inspecção unanimemente era para quase toda a rapaziada um dia de festa. “Não era homem não era nada se não fosse apurado para o Serviço Militar”.

O meu pai tentou que fosse trabalhar para as Oficinas Gerais do Material Aeronáutico (OGMA). Quem trabalhasse nestas Oficinas fazia  julgo que só a Recruta. Mas não quis por não ser diferente de todos os outros. Reconheço não ter o direito de julgar todos aqueles que ficaram livres de embarcarem para a Guerra quando eram trabalhadores das OGMA. Existiam outros abrangidos – trabalhadores por exemplo da Fábrica de Braço de Pátria (FBP – onde nasceu a nossa Pistola Metralhadora “FBP”) – que também, entre outros ficado livres – ao fim e ao cabo – de partirem para a Guerra. Fui à Inspecção e logo que o “nosso Sargento” gritou “Todos nus”, despi-me e coloquei-me na varanda nu, turistas que passavam riam.

Verifiquei terem ficado satisfeitos e radiantes ao tomarem conhecimento “terem ficado apurados para todo o serviço…”. Combinavam festas, almoços e adquiriram umas fitas que traziam escrito o apuramento para a tropa.

Trata-se de dar a minha opinião quando os meus filhos Carlos Pedro e Alexandre Miguel, também meus netos Raquel e Pedro, me perguntaram ou venham a fazê-lo: "Pai, avô, a tropa fez de ti um homem?".

Nem todos os camaradas possuem esta relíquia. Sempre pendurado no pescoço. 
Denomino Chapas dos Mortos

Pois contrariado e sempre, fui cumprindo. Quanto a “fazer de mim um homem”, não. A primeira resposta: “Não, a tropa não fez de mim um homem”, mas ajudou-me a evoluir noutros aspectos, andei num Curso Superior da Vida – Tropa/Serviço-Militar, antes uma “Pós-Graduação”, principalmente por ser de Especialista de Minas e Armadilhas. Aprendi e muito por vontade própria e defesa pessoal e defesa dos outros, a olhar para o meu interior, tendo adquirido o domínio, e alarguei os “meus sentidos”, conseguindo preencher as lacunas que permitiram tornar-me um perito no controlo de emoções, aumentando a minha biblioteca mental. Aprendi a controlar o tempo e dar uma resposta logo que solicitada.

Também assumo que a “tropa ajudou muito jovens a libertarem-se da enxada ao tomarem conhecimento que o mundo não era a sua aldeia, a sua terra e que existia um outro mundo por descobrir”. Fico imensamente radiante e orgulhoso quando fui professor de analfabetos e levei a passarem no Exame da 3.ª ou 4.ª Classes estes camaradas, mesmo aqueles que nem sequer fizeram esses Exames. Existiam aqueles que sabiam o suficiente para passarem no Exame e outros que não reuniam condições para passarem no Exame. Aqueles que reuniam as condições – segundo a minha opinião, e aqui era somente eu o responsável, só eu – foram a Exame, os outros foram por mim substituídos por camaradas já com a 4.ª Classe feita. Tudo feito unicamente com a minha responsabilidade. O Capitão só viu quando estavam todos sentados a fazerem as Provas, e eram 1.º Cabos os substitutos. Os Alferes Milicianos oriundos de Bissau acompanhavam os Exames. Depois de Aprovados, tiveram os substituídos de saberem assinar os seus nomes. Fiz mal? Se fiz, condenem-me. Fiquei feliz quando encontrei um camarada desses a conduzir um táxi. Tomei conhecimento ter feito depois a 4.ª Classe. Respeito todos aqueles que se libertaram, nesse aspecto a “tropa ajudou”, não a “serem homens” – homens já eram – ajudou a que dessem uma volta na vida. Alguns são proprietários de Empresas, a satisfação para mim.

Eu fui ajudado no dia 24 de Janeiro de 1969 na Entrevista com o Engenheiro Sucena, Administrador da DIAMANG e DIALAP que depois de confessar ser “um estudioso do ser humano e que nada tirara de mim, mas que se respondesse à questão que colocou «que razões tinha eu Mário Vitorino Gaspar para convencer o Engenheiro que veria ser um bom Lapidador de Diamantes, já que o diamante era matéria cara, podia ser muito valiosa e valer milhões”?
Respondi que tinha terminado o Serviço Militar e tinha feito uma Comissão e ter lidado com a morte, especialmente por ser de Minas e Armadilhas, e ter comandado homens. Terminando por dizer que lapidar diamantes seria tarefa mais fácil e com certeza viria a ser um bom Lapidador de Diamantes”. Respondeu o Engenheiro Sucena: “Venha trabalhar no dia 27 de Janeiro para a DIALAP – Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes, SA”. E acabei mesmo por ser um bom Lapidador de Diamantes.

Tivera a oportunidade de ver o Mancebo chegar ao RI 14, em Viseu – fui Monitor de Instrução desde 3 de Abril de 1966 a Agosto do mesmo ano e vi chegarem esses jovens (cada Pelotão da Recruta com 77 jovens) e tive na minha presença o Soldado Português com características que faziam com que o nosso papel de Instrutores e Monitores fosse facilitado. A crueldade da vida ao viverem em terras remotas, longe dos grandes centros urbanos e terem como utensílio a enxada e viverem longe e terem de caminhar muitos quilómetros e também viverem isolados. Reunidas estavam as condições para serem os meus Heróis. Ao ministrar a Especialidade, neste caso já à Companhia a que pertencia, a CART 1659 e chamada ZORBA e com o lema “Os Homens não Morrem”, fiquei consciente que teria de partir com eles. Afastei a ideia de desertar e assumi conscientemente esse compromisso, mesmo sendo sempre contrário à Guerra. Defensor acérrimo que o Amor é a solução. E a 100% parti para a Guiné. Nunca na Guerra – para mim foi uma Guerra Colonial – me baldei. Cumpri.

Aceito que a tropa, neste caso a Guerra foi uma oportunidade de mudar de vida. Foi um virar de página para uma grande maioria. Para mim foi um travão e só me libertei com quase 26 anos. Mudei realmente, mas era também essa a minha intenção – MUDAR DE VIDA…

Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor

 Último poste da série > 18 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15633: Inquérito 'on line' (29): "A tropa fez de mim um homem"... Em 100 respostas, 34 dizem Sim, 21 dizem Não, 42 dizem Nim... Comentários de A. Sousa de Castro, António Carvalho [de Mampatá], Leão Varela, Alcides Silva, Juvenal Amado e Hélder Sousa...

sábado, 7 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16061: Agenda cultural (479): Sessão de apresentação do livro "A Tropa Vai Fazer De Ti Um Homem - Guiné, 1971 - 1974", de Juvenal Amado, levado a efeito no passado dia 21 de Abril, no Auditório da Biblioteca Municipal da Covilhã

Em mensagem do dia 26 de Abril de 2016, o nosso camarada Juvenal Amado dá-nos conta da sessão de apresentação do seu livro "A Tropa Vai Fazer De Ti Um Homem - Guiné, 1971 - 1974", levado a efeito no passado dia 21 de Abril, no Auditório da Biblioteca Municipal da Covilhã. Esta sessão, promovida pelo Núcleo da Covilhã da Liga dos Combatentes, inseriu-se nas comemorações do seu 90.º aniversário, conforme o convite que se publica.


1. Estas foram as palavras que o Juvenal Amado dirigiu aos presentes durante a sessão:

Meus amigos e camaradas.
Começo por agradecer o convite para estar aqui a apresentar o meu livro e falar do nosso passado comum.
Tanta importância tem as voltas que a vida dá, como as voltas que nós damos à vida. No fim, o caminho que nos estava guardado, ninguém o faz por nós. “Chamemos-lhe Destino talvez”.

 Sabíamos como partíamos mas não podíamos saber como voltávamos. Nós somos os felizardos que voltamos. Foi-nos dado a bênção da amizade e da partilha de recordações. Viemos de toda a parte. A comunhão de vivências ganhas nas várias frentes fez de nós seres especiais. Basta falar-se numa localidade africana, para que se troquem saudações e histórias, que são de todos os lugares, que percorremos na nossa juventude. 

Este livro fala dessas vivências e dessas amizades. Quantos ao lerem as suas páginas, não vão sentir que muitas das estórias podiam ser a sua história? Mas quando fui mobilizado, ainda que há muito esperado, o Céu pareceu-me cair em cima da cabeça. Ir para a Guiné, era como sair a sorte grande, das piores razões. O meu irmão mais novo tinha nessa altura 5 anos e confidenciou-me há dias, que se lembra após a minha partida, uma noite escura penetrou na casa onde ele morava com os meus pais e irmãos. Estas palavras dão talvez a dimensão da tragédia, que atingia as famílias durante os dois anos e tal, que tinham os filhos, os maridos a combater além-Mar. 

Quanto a mim, era pior para eles do que para nós, que lá estávamos. As mães viam os filhos permanentemente em perigos e nós, a maior parte do tempo, nem dávamos por ele. Situação repetida pelos 13 anos que durou a guerra que Portugal sustentou em três frentes com maior ou menor intensidade. 

Este livro não é de guerra, é de histórias, de vidas que estiveram na guerra. Essencialmente o que importou foi falar deles, das suas conversas no abrigo, no posto de sentinela, nas colunas e nos momentos de aperto. Também falo das suas mortes, porque falar delas é prestar-lhes homenagem, é prolongar as suas memórias e lembrar às pessoas que se morreu lá em combate, em minas, também em desastres, numa picada qualquer e também por falta de assistência médica. Também as doenças mataram muitos. 

Muitos que não foram lá pensarão que morrer de doença ou desastre, também cá se morria. Mas não era a mesma coisa. O paludismo, a hepatite, a alimentação onde imperavam os liofilizados, os enlatados, a falta de ovos, peixe e carne fresca, a água de duvidosa proveniência, a par de álcool ingerido em quantidades anormais, foram responsáveis por muitas vidas perdidas lá e que, se vieram a perder depois do regresso cá. 

Deram a suas vidas por razões certas ou erradas, não é isso que importa. O que importa será porventura, não deixar esquecer que morreram longe das suas famílias e alguns, ainda por lá estão em campa rasa. 

Algumas das figuras deste livro já morreram. Morreram lá, outros cá de doença e de acidentes. Já é longa a lista meus amigos e, é sempre com um aperto no peito, que ouço falar dos que estão doentes. Pode-se dizer como é uso “que a vida é dura e mais curta que comprida”.

Mas; 
“ Com a certeza que faz de nós seres únicos, teremos sempre direito a um lugar na memória dos que connosco privaram. Quando chegarmos a velhos, falaremos do tempo ou falaremos, de outros tempos”.

A Tropa Vai Fazer De Ti Um Homem é o titulo, mas também é um motivo de reflexão. 

Muitos dos que foram combater Além-Mar, começaram a trabalhar mal saíram da escola primária. A maioria já trabalhava há dez anos ou mais. Contribuíam para o orçamento familiar, alguns já casados, com filhos e responsabilidades de vária ordem. Terá sido a tropa que fez deles uns homens? Sinceramente penso que na grande maioria já eram homens feitos e que não embarcaram de ânimo leve. 

Num extrato do início de uma história, que relata a ansiedade com encarei o meu embarque e escrevo: 
“ Como proscritos quando quase todos dormiam, fomos transportados pela a calada da noite, o Mar cresceu à nossa volta, tornou-se denso, abraçou-nos e tornou-se imenso”.

Quem pode negar hoje que não foram momentos difíceis? 
Uma coisa teremos a certeza, é que fez de nós homens diferentes. 

A todos muito obrigado pelo carinho e amizade com que fui brindado na ocasião. 
A vida guarda muitas surpresas boas e esta, é sem dúvida uma delas.


2. Algumas fotos do evento:

Um aspecto da assistência

Na Mesa: João Cruz Azevedo, Presidente da Direcção do Núcleo da Covilhã da LC; Jorge Manuel Torrão Nunes, Vereador da Cultura da Câmara Municipal da Covilhã; Naná Gonçalves, poetisa e Juvenal Amado.

Juvenal Amado recebe um exemplar da Medalha comemorativa dos 90 anos do Núcleo da Covilhã da LC.


Juvenal Amado com o ex-Fur Mil Sap Fernandes e Romão Vieira da CCAÇ 2912

O 3872: Pereira, Dulombi; Alcains, CCS; Juvenal Amado; João Romano, Saltinho; Fernandes e Luciano, CCS

Jovens interessados

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3. A sessão de apresentação do livro do Juvenal Amado foi antecedida de um almoço de que se publicam duas fotos:

 Na foto o Ten-Cor Ley Garcia do Núcleo de Leiria da Liga dos Combatentes e a poetisa Naná Gonçalves

Nesta foto: Pereira Nina, do Núcleo da Covilhã da LC, que iniciou o processo que me possibilitou a apresentação do livro na Covilhã, também camarada do Carvalho em Aldeia Formosa; o Azevedo, combatente em Angola; eu; o meu camarada da CCS, António Fernandes e o Ten-Cor Levy Garcia, Presidente do Núcleo de Leiria da LC.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16051: Agenda cultural (478): Lançamento do livro "Haikus do Japão e do Mundo", de António Graça de Abreu, 10 de Maio pelas 18h30, no Centro Científico e Cultural de Macau, Rua da Junqueira, 30 - Lisboa: "Gostava de ter lá alguns camaradas da Guiné, e de ler dois ou três haikus sobre a nossa guerra" (o autor)

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15639: Inquérito 'on line' (31): "A tropa fez de mim um homem" ?... Lembrando o caso dos meus conterrâneos que, tendo emigrado antes, vieram do estrangeiro propositadamente para fazer a tropa (Francisco Baptista, Brunhoso, Mogadouro)

Vista geral de Brunhoso.
Cortesia da página Brunhoso, Mogadouro


1. Comentário de Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72):

Brunhoso, a minha aldeia distava cinco quilómetros de Mogadouro, sede do concelho, por esse motivo os mancebos da terra chamados à inspecção, deslocavam-se a pé, pois estavam habituados a calcorrear muitos quilómetros no dia a dia de trabalhadores agrícolas. Arranjar transportes também não seria fácil. Bicicletas ninguém tinha, muito menos motorizadas. Os burros ou mulas, já que cavalos praticamente não havia, ninguém se atrevia a pedir aos pais, que iam considerar pouco másculo, para um rapaz de 20 anos fazer uma distância tão pequena.

No meu ano, fomos quatro, porque outros quatro do mesmo ano, já tinham emigrado para longes terras, Brasil e Angola.

Nesse tempo, em que os praças do meu ano e outros de anos anteriores, se dispersavam já pelo mundo europeu, americano ou africano à procura de melhores condições de sobrevivência, a velha máxima " de que a tropa vai fazer de ti um homem" estava a perder actualidade, já que eles,  pelas andanças pelo mundo, iam adquirindo os mesmos conhecimentos e experiências que a tropa lhes poderia dar. Experiência da vida e do mundo, que de certeza terá dado, a alguns dos seus antepassados, que na vida inteira só por essa causa, saíram para lá dos limites onde os levavam as pernas deles ou as dos animais de carga.

Por outro lado a tropa não os iria fazer homens mais obedientes e disciplinados do que já eram, a eles filhos de uma sociedade rural antiga e afastada de tudo, onde não tinham entrado ideias libertárias da revolução liberal do século dezanove, nem da revolução republicana dos inícios do século vinte e continuavam debaixo do poder absoluto das várias autoridades, a começar na Igreja e a acabar nos pais, que Salazar abençoou quando tomou o poder. 

O livro "Das Trincheiras com Saudade" sobre a participação do Corpo Expedicionário Português,
numa passagem fala sobre a coragem e disciplina do batalhão dos transmontanos. As duras condições de trabalho que tinham de suportar e as imposições seculares que lhes condicionavam a personalidade terão provavelmente contribuído para isso. 

Não quero deixar de salientar a atitude, destes meus "praças" que na nossa velha escola primária tinham aprendido a História de Portugal, à custa de muitos gritos, reguadas e vergastadas da professora, que patriotas, como poucos, vieram de França, para "dar a tropa" na linguagem deles. Seria patriotismo ou medo da Pátria, essa avó rabujenta´, que nunca lhes tinha dado algum amor, mas que se podia vingar deles e condená-los ao ostracismo?

Há dias ouvi,  na apresentação de um livro sobre a guerra, que mais do que desertores houve muitos que vieram do estrangeiro propositadamente para fazer a tropa. Estes meus conterrâneos devem fazer parte dessa contabilidade desse nosso camarada.

O ilustre intelectual e camarada que fez essas afirmações parece-me que não conhecia muito bem as motivações e a realidade dos nossos jovens emigrantes, na sua maioria futuros soldados, que durante três anos, para começo de vida e estando já alguns casados, iriam receber um vencimento miserável. Os futuros oficiais e sargentos milicianos, apesar da interrupção das suas carreiras profissionais ou escolares, iriam receber um vencimento bastante compensatório, o que não era o caso dos enumeros batalhões formados sobretudo por soldados. Concluindo os três camaradas que vieram de França, para ir às sortes comigo, e dar a tropa, vieram por amor à sua sua terra, terra dos seus pais e antepassados, porque sabiam que se não viessem ficavam condenados, não sabiam até quando, a não poder regressar.

A mim pessoalmente a vida militar, depois da crise mais ontológica da adolescência , relacionada com as razões, causas e justificações das nossas origens e destinos, provocou-me uma crise de consciência política sobre as razões ou sem razões dessa guerra. Um combatente com dúvidas não pode ser um bom combatente, embora um dia tenha sentido subir muito por mim a adrenalina e o desejo de vingança por causa da morte de um camarada.

Francisco Baptista
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Nota do editor:

Vd. postes de 16 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15622: Inquérito 'on line' (28): "A tropa fez de mim um homem"?... Nem sim nem não, metade da malta (12 em 24) responde "nim", "nem verdadeiro nem falso"... Inquérito em curso até 5ª feira...

sábado, 16 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15622: Inquérito 'on line' (28): "A tropa fez de mim um homem"?... Nem sim nem não, metade da malta (12 em 24) responde "nim", "nem verdadeiro nem falso"... Inquérito em curso até 5ª feira...



Alcobaça > Motoqueiros > 1965

Foto: © Juvenal Amado (2016). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


Sabugal > "Briosos mancebos inspeccionados em 1968, com saudosismo do passado. Foto tirada no dia da inspecção, no Sabugal, junto ao antigo edifício camarário onde teve lugar a inspecção. É também visível o edifício da antiga prisão"... É um texto de antologia, o que o José Corceiro, natural do Sabugal, aqui escreveu  em 2011 sobre o dia, tão especial, de ir às sortes (*).

Foto (e legenda): © José Corceiro  (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


A. INQUÉRITO DE OPINIÃO: "SIM, A TROPA FEZ DE MIM UM HOMEM"

1. Totalmente verdadeiro > 1 (4%)

2. Verdadeiro  > 6 (25%)

3. Nem verdadeiro nem falso  > 12 (50%)

4. Falso  > 2 (8%)

5. Totalmente falso  > 3 (12%)

6. Não sei responder  > 0 (0%)

Votos apurados >  24  (100,0%)


Dias que restam para votar: 5 | Termina a 21 de janeiro de 2016, 5ª feira, às 10h06


B. Camaradas: o que é que vamos responder aos nossos filhos e netos, se eles nos fizerem a pergunta: "Pai, avô, a tropa fez de ti um  homem?"...  O pretexto é o título do livro do Juvenal Amado ("A tropa vai fazer de ti um homem", Lisboa, Chiado Editora, 2015)  que vai ser lançado em Lisboa (dia 23, sábado) e em Monte Real, na Tabanca do Centro (dia 29, sexta-feira)...

Claro que eles, os nossos filhos e netos,  não vão fazer a pergunta porque uma grande parte deles não sabe o que é isso da tropa... E, muito menos, felizmente, o que é a guerra, a não ser a dos jogos eletrónicos... Hoje já ninguém vai às sortes, nem há  serviço militar obrigatório.

Antes de 1961, antes da guerra do ultramar/guerra colonial, ir às sortes e ficar apurada, era uma honra para qualquer mancebo deste país, a avaliar pelo testemunho de alguns camaradas nossos que já escreveram sobre este assunto, com destaque para o José Corceiro (*).

Não vamos discutir aqui se havia ou não nesse tempo uma "ideologia do marialvismo"... A verdade é que em todas sociedades há "ritos de passagem", ligados ao ciclo de vida... É evidente que tinha um enorme significado no passado, para um "mancebo" (**), a ida à inspeção militar, o apuramento, a recruta, o juramento de bandeira e, em caso de guerra, a partida para a guerra... Havia o mito de que a tropa era uma "fábrica de homens"... Mas este acontecimento (um mancebo ficar apurado para a tropa) também queria significar "emancipar-se", "atingir a maioridade", "libertar-se" do pai-patrão, sair de casa...

O que pensamos, hoje, sobre isso? A pergunta é complexa, pode até provocar algum  incómodo e desconforto, não sendo portanto de resposta fácil (sim ou não)... No inquérito "on line" desta semana,  sobre este tema, já temos 24 respostas... E metade dos respondentes (n=12) optou por responder "Nim", nem sim  nem não, "nem verdadeiro nem falso"...

A resposta, em direto, "on line", deve ser feita no blogue, no canto superior esquerdo, até 5.ª feira, dia 21, às 10h00...
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Notas do editor:


(...) Para muitos dos jovens, o dia da inspecção seria também a primeira vez que iriam estrear um fato novo, composto por calças, casaco e colete (terno), pois até ao presente não tinham tido a possibilidades de comprar o tecido e mandá-lo confeccionar no alfaiate da terra, visto ser escasso o suporte económico da família. Era também provável que a partir dessa data, o jovem pudesse começar a amealhar um pezinho de meia, fruto de algum trabalho que executasse com direito a remuneração, jornal ou a passar contrabando, pois até esta altura tudo o que tinha ganho reverteu a favor do agregado familiar. (...)

(...) O cavalo, adereçado com os seus melhores arreios estava pronto e à espera. Ricamente aparelhado. A sela, a cinta, o cabresto, as rédeas e o freio foram diligentemente limpos e engraxados, as fivelas e os estribos foram polidos até ficarem a brilhar, sem esquecer as patas do equídeo que foram aparadas, limadas e convenientemente ferradas, pois há mais de 30 quilómetros para calcorrear, ida e regresso, com o mancebo sempre montado e a espicaçar, e quiçá poderá surgir algum amigo mais íntimo que o queira apadrinhar e arrisque a boleia no lugar da garupa, e o ritmo tem que ser constantemente a trotear. (...)

(**) Do Dicionário Houaiss  da Língua Portuguesa:

"Mancebo", adj./subs., "que ou aquele que está na juventude; jovem, moço"... Etimologia, do latim manceps, mancipis, termo técnico do direito, "o que toma em mão (alguma coisa para dela se tornar o adquirente ou reivindicar-lhe a posse); relacionado com manu, mão.  O mancebo, de mancipiu(m) era aquele que, no tempo da antiguidade clássica,  era agarrado à mão, feito escravo, na guerra, e levado para casa, para os trabalhos agrícolas... Ou ainda manus + cibus, homem que é cevado à mão, escravo,,,  

Mas há outros significados... Veja-se aqui Língua Portuguesa, o blog de Aldo Bizzochi > Mancebo, mancebia, amancebar-se

(...) O que ocorreu de fato é que mancebo derivou de amancebar, e não o contrário. Esse verbo amancebar (...), na verdade, provém por evolução fonética regular do latim emancipare, "emancipar, libertar, deixar de tutelar", que significava, dentre outras coisas, "conceder a um filho poderes civis quando este completasse a maioridade". Portanto, manceps e emancipatus queriam dizer "maior de idade". (No direito civil brasileiro temos o mesmo termo emancipado para designar o indivíduo que atingiu a maioridade ou a quem, sendo menor, a justiça concedeu as prerrogativas de cidadão adulto.) (...)

(***) Último poste da série > 11 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15606: Inquérito 'on line' (27): "Em 2016 prometo enviar mais fotos e/ou textos para o blogue"... Sim, respondem cerca de 20 a 25 num total (magro) de 57 respondentes...

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17456 (De) Caras (72): em outubro de 1972, vim de férias e uma vizinha meteu uma cunha à minha mãe para eu levar uma encomenda para o namorado da filha que era furriel e que eu não conhecia de lado nenhumm... Quando a encomenda chegou ao destino, já o namoro se tinha desfeito, como vim a saber 17 meses depois... (Juvenal Amado, autor de "A tropa vai fazer de ti um homem!"... Lisboa, Chiado Editora, 2016)

1. Texto enviado anteontem pelo Juvenal Amado (ex-1.º cabo condutor autorrodas, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74, e autor de "A tropa vai fazer de ti um homem!... Guiné 1972/74" (Lisboa, Chiado Editora, 2016):

Não lembro de ter recebido alguma encomenda mas lembro-me de ter levado. (*)

Em Outubro de 1972 vim de férias a casa e,  mal cheguei, a minha mãe passou a ser assediada por uma vizinha com um pedido para,  quando eu regressasse, levar uma encomenda para o namorado da filha que era furriel lá num sítio qualquer. 

Escusado será dizer que este tipo de "correio", retirava do saco da TAP, já si pequeno para nós próprios, coisas que nós queríamos levar para nosso consumo e dos amigos chegados . Era pois um favor prestado a quem não conhecíamos e com quem não tínhamos relação nenhuma, dadas as diferenças sociais em que navegávamos na altura. 

Mas, pronto, o que se havia de fazer? Na data próxima ao meu regresso à Guiné, lá veio o embrulho que eu meti custo no meu saco. Chegado a Bissau, enviei-o para onde me tinham dito que devia mandar e assim foi.

Mas não querendo correr o risco de que me acusassem de ter ficado com a encomenda, lá ia perguntado à minha mãe se o tal namorado da fulana tinha recebido o embrulho. A minha mãe pareceu-me, a mim, que rodeava a pergunta e nada de concreto me dizia. 

Entretanto ainda lá passei mais 17 meses e o caso perdeu o meu interesse. Quando regresso,  eis que, ao passar no café Portugal,  vejo a jovem que me tinha feito acarretar o embrulho e de quem nunca recebi o pequeno agradecimento, em alegre cavaqueira com várias amigas. Resolvi perguntar-lhe,  directamente e a cores, se o namorado tinha recebido ou não a encomenda. Ficaram todas com cara de caso a olhar para aquele desterrado a quem a cor de terra não sairia nos próximos meses, a quem nunca se tinham dignado a dirigir palavra. Ela,  um bocado atabalhoadamente como quem é apanhado em falso, que sim, que tinha recebido e muitos obrigados finalmente.

Entretanto fui para casa, contei à minha mãe o sucedido, ela fez um sorriso meio maroto e lá me contou finalmente o que se tinha passado. "Olha,  filho,  ainda tu não tinhas lá chegado, descobriu-se que ela andava metida com outro e o namoro escangalhou-se".

Finalmente percebi o estranho silêncio de 17 meses, a atrapalhação da dita cuja e das amigas, quando eu me dirigi a ela em pleno café Portugal.

2. Comentário do nosso editor:

A propósito das nossas redes de  "contrabando de ternura"... e desfazendo dúvidas: o SPM - Serviço Postal Militar também efetuava a entrega de encomendas  (livros, roupas, mantimentos...) remetidas pelas nossas famílias, e não apenas cartas e aerogramas... Recorde-se aqui um poste do Paulo Santiago, já com dez anos (**), e de que se reproduz a seguir um excerto:

(...) "A minha avó Clementina, avó materna, resolveu enviar-me, por encomenda postal, um bolo-rei, dirigido para o SPM de Bambadinca. Como chegou após o dia 24, reenviaram-no para o SPM 3948 (era do Pel Caç Nat 53). Chegou ao Saltinho, já tinha vindo eu para Bissau. Reenviaram a encomenda para Bambadinca, acabando por receber o bolo-rei em meados de Janeiro. Estava duríssimo, mas...foi o melhor bolo-rei que comi até hoje." (...)

Também temos notícia de entrega de salpições (e outros produtos do fumeiro), via SPM, iguaria de resto muito apreciada entre a malta do Norte. Veja-se aqui, a este propósito, um saboroso poste do nosso José Manuel Matos Dinis (***).  Mas também já apareceram camaradas nossos a queixarem-se do "extravio" de encomendas enviadas pelas famílias... Não sabemos como se fazia a articulação entre os CTT e o SPM, nem temos noção das tarifas que se praticavam na época.

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Notas do editor:

(*) Vd. último poste da série > 11 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17454: (De) Caras (78): Também eu fiz parte dessa rede de "contrabando de ternura" que permitia, aos nossos familiares, fazer-nos chegar a Bissau e ao 'mato' as suas "encomendinhas"... (Hélder Sousa, ex-fur mil trms TSF, Piche e Bissau, 1970/72; criado em Vila Franca de Xira e a residir hoje Setúbal)

(**) Vd. poste de 24 de dezembro de  2007 > Guiné 63/74 - P2378: O meu Natal no mato (11): Saltinho, 1972: O melhor bolo rei que comi até hoje, o da avó Clementina (Paulo Santiago)~

(***) Vd. poste de  25 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11002: História da CCAÇ 2679 (61): A vingança serve-se fria (José Manuel Matos Dinis)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15445: História de vida (43): Anda(va) meio mundo a enganar o outro... Ou o conto do vigário em que caiu a minha pobre mãe quando eu estava em Galomaro e lhe apareceu à porta de casa um falso camarada meu... (Juvenal Amado, autor de "A tropa vai fazer de ti um homem", Lisboa, Chiado, Editora, 2015, 308 pp.)

O Juvenal em Galomaro, c. 1972/74, junto ao arame farpado,
 num dos postes avançados do quartel. Foto do autor.
1. O CONTO DO VIGÁRIO E A GUERRA COLONIAL

por Juvenal Amado

[ Foto à esquerda, o ex-1.º cabo condutor autorrodas, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74; natural de Alcobaça, vive em Fátima, autor de "A tropa vai fazer de ti um homem!", Lisboa, Chiado Editora, 2015, 308 pp.]

Há gente capaz de tudo.

Com um esquema bem urdido, bem montado, acercam-se das pessoas que na sua vida simples nunca pensam que o diabo pode estar atrás da porta e, zás, são enganadas por vezes com coisas, de tão simples e credíveis, que ninguém se atreve a pôr em causa.

Penso que o conto do vigário é a trafulhice em que quase toda a gente pensa que nunca cai. Mas estamos enganados e lá vem o dia em que baixamos a guarda, abrimos as defesas e, pronto, somos enganados pela mais estapafúrdia das encenações.

Uns são enganados pela a ambição, outros são enganados pela sua noção de solidariedade e outros pelas suas fraquezas, pelo seu amor aos que estão longe. Tudo serve para enganar os incautos.

Veio este assunto à lembrança pois também alguém da minha família foi em tempos enganada, quando a mentira fez tocar as campainhas do seu desvelo, da sua preocupação quando eu estava a cumprir o meu tempo militar na Guiné.

Um dia, lá para o fim de 73, apresentou-se em casa dos meus pais um individuo praticamente da minha idade, que se apresentou como meu amigo e a cumprir comissão comigo na Guiné.

Pobre coração da minha mãe deu um salto, franqueou as portas e bebeu avidamente o que ele dizia. Que me conhecia muito bem, que eu mandava cumprimentos e que também lhe tinha transmitido alguns pedidos de coisas que pretendia que ele me levasse.

A minha mãe estava sozinha em casa e ofereceu-lhe almoço, ao que ele disse que não tinha tempo pois ia apanhar o comboio no Valado dos Frades para Lisboa, de forma a embarcar novamente para a Guiné. A minha mãe foi recolher o que ele dizia que eu lhe tinha pedido, embora estranhando pois nunca lhes pedia nada nas cartas, lá arranjou meias, cuecas e mais que ele inventou, juntou alguns chouriços,  uma garrafa de ginja David Pinto,  pois sabia bem a saudade que tinha desses petiscos. Aproveitou para me mandar umas fotos a cores de um rolo, que tinha mandado para ser revelado e deu-lhe o dinheiro todo que tinha em casa, pois também eu o tinha solicitado. Está claro que não deu muito, pois era coisa que não abundava lá em casa, mas deu-lhe o que lhe fazia falta,  de certo.

Já que ele não podia almoçar, fez-lhe um farnel para ele comer no comboio e, ala que se faz tarde, ele foi-se embora.

Capa do livro do Juvenal Amado.
Lisboa, Chiado Editora, 2015.
Tudo isto se passou de manhã e, quando o meu pai chegou a casa para almoçar, ela contou-lhe ainda toda eufórica o que se tinha passado, pois não era todos os dias que se tinha contacto com um amigo do filho, que lhe tinha ido dar de viva voz noticias suas. Ele disse-lhe logo, “já foste enganada”.

Foram logo à praça dos táxis, quando perguntaram pelo sujeito, logo o taxista,  até nosso vizinho, se apresentou como tendo sido ele a ir levá-lo, acrescentando que o dito tinha deixado esquecido um embrulho no banco de trás, que não sabia de quem era.

O que já se temia, ficou logo ali comprovado.

A minha mãe fartou-se de chorar, a debalde das tentativas do meu pai para minorar a importância do acontecido. As cuecas e meias voltaram para a respectiva gaveta, o resto desapareceu como desapareceu o dinheiro.

Costuma-se desejar quando nos enganam com dinheiro, que o patacão lhes sirva para o médico ou para a farmácia. Fraca, forte ou inútil a vingança, mas que parece que nos conforta, à falta de uma justiça mais imediata e vigorosa.

É o que na maioria dos casos a que se consegue arranjar.

Veio-se depois a saber que não foi só a minha mãe enganada pelo individuo que explorou os sentimentos e as saudades de quem tinha os filhos longe.

Crime e Castigo é uma obra de Fiódor Dostoiévski e conta a história de um criminoso que não consegue viver com o sentimento de culpa pelo crime que cometeu. Era bom que isso acontecesse aos criminosos, o Mundo seria um lugar muito melhor de se viver sem dúvida nenhuma.

Um abraço,
Juvenal Amado
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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15217: História de vida (42): Clube dos Octogenários - Narrativa de 80 anos de vida (Coutinho e Lima)

terça-feira, 24 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20766: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (118): A COVID-19 não passará! ...Reclusão... Estamos todos de quarentena... esperando que tudo passe para retomarmos o carreiro da vida (Juvenal Amado, autor de "A Tropa Vai Fazer de Ti um Homem", 2015)


Alcobaça > Cabeço > Cabeço Futebol Clube,  antes de ir para a Guiné talvez no início de 71


Alcobaça > Cabeça > Cabeço Futebol Clube, talvez 74-75 depois do regresso  da Guiné (*)

Fotos (e legendas): © Juvenal Amado (2020) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


RECLUSÃO

por Juvenal Amado

[ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74; autor de "A Tropa Vai Fazer De Ti Um Homem - Guiné, 1971 - 1974" (Lisboa: Chiado Editora, 2015, 308 pp.)]

Neste momento de reclusão lembro a minha vida passada a forma como enfrentamos obstáculos e os perigos que a vida nos meteu pela frente.

Quando jovens corremos muitos de toda a ordem. Desde pôr em risco a nossa liberdade bem como nas comissões, que cumprimos em terras de além-mar.

Lá fizemos muitos quilómetros sem pensar no que nos poda acontecer com as minas, se na curva não estaria um RPG ou a uma rajada de AK à nossa espera. Ou por um lado pensávamos, mas relativizámos.

Nuns casos assistimos a mortes e feridos em directo, de outros ouvimos falar. No entanto hoje penso como foi possível essa falta de consciência, essa leveza como enfrentámos os riscos, como fomos capaz de ignorar a finidade da nossa vida quando fazíamos colunas em sectores de risco, as picagens onde a morte estava mesmo ali a cada passada, quando fomos socorrer de noite, quando o som das explosões e os incêndios dos ataques ainda não se tinham extinguido. E como voltávamos a fazer tudo outra vez depois de ver o que tinha acontecido na véspera à nossa frente?

Claro que pensava que podiam estar à nossa espera, mas que força nos fazia continuar? Era o dever ou a solidariedade? Não sei responder e tão pouco altura sabia tal, nos meus vinte e dois anos. Depois passados esses momentos para trás ficava só o orgulho de termos sido suficientemente corajosos para nos atrevermos a tal.

Mas hoje é difícil de aceitar quando toda a vida cuidámos dos outros e temos, que deixar que cuidem de nós. A nossa vontade tem que ceder à vontade dos nossos, que até aqui eram nossos dependentes. É frustrante constatar, que não somos hoje autónomos independentes na nossa vontade nas mais pequenas coisas, nós que ainda em muitos casos não perdemos o sentido de que ainda somos capazes de mover e mudar o Mundo.

É como tentar dar a passada maior que a perna. Na nossa cabeça ainda chegamos lá com o salto, mas as pernas não obedecem ou tardam no impulso. Isso causa-nos dor bem no fundo do nosso amago, ficamos insatisfeitos, ansiosos, não raramente espingardamos contra a nossa sorte, ficamos com o rastilho curto, enfim estamos velhos e rezingões e por vezes tratamos por alto da burra quem com quem nós partilha estas novas aflições. Tempos cada vez mais complicados que vamos viver.

Quando jovens esperamos a vida agora o que esperamos?

Quando jovens esperámos a vida militar como forma de transpor um espaço temporal em que depois tudo nos seria mais fácil. Casámos vieram os filhos, uma vida de trabalho e anseios para lhes dar as oportunidades que não tivemos. Os que se formaram e os que não se formaram esperamos que arranjassem um bom emprego, casassem, nos dessem netos, num ciclo sempre renovado de vidas cheias.

Em África ansiávamos pelo regresso. Nas noites de serviço rebuscávamos a nossas recordações de casa, não sabendo que nunca nada tinha ficado igual com a nossa ausência, que nada seria retomado ao tempo da nossa partida.

Por isso aquele fado do “oh tempo volta para trás “ tantas vezes repetido.

Mas naquele tempo estávamos em camaradagem com tudo de positivo isso implicava. Íamos nas colunas comíamos a ração, dávamos ou trocávamos o que não comíamos, bebíamos uma cerveja fresca quando havia, jogávamos à sueca, ralhávamos uns com os outros por causa da carta mal jogada, no fim era só mais um dia passado e vivos.

Foi-se embora a juventude, vive-se mais de contemplações. Mas nestes tempos de incerteza em que um perigo novamente mortal se abateu sobre nossas cabeças e confinados às paredes das casas, aguardamos que sejamos novamente poupados pelo o destino.

Vamos esperar que tudo passe para assim se retomar o carreiro da vida .

Um abraço a todos os camaradas

23/03/2020 Décimo dia de isolamento. (**)

Juvenal Amado
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Notas do editor:

(*) Vd. blogue JERO > M 291 - Jogos de futebol únicos... Uma fotografia com história > A malta do Cabeço em 1975

(...) Jogadores em Campo? Muitos…Mais de 40! Arrisco até que são 43!

Os jogos do Cabeço – num campo pelado que tinha erva por todo o lado e que se situava na saída de Alcobaça, a caminho do Casal Pereiro…– tinham regras únicas. Jogava toda a malta .Dez contra dez, quinze contra quinze, vinte contra vinte ou mais. Mesmo com o jogo a decorrer quem chegava ao Cabeço…jogava.

O jogo iniciava depois de uma “primeira” escolha com a malta ainda toda de camisola. Quem sofria o primeiro golo tirava a camisola e passava a jogar de tronco nu… Na fotografia que ilustra o texto há situações de pais e filhos, que era mais uma singularidade destes jogos especiais que duravam toda a manhã. Começavam às 9.00 e acabavam …quando não restava mais ninguém em campo.

Gente conhecida há muita.Desconhecida também... De pé, da esquerda para a direita, um que não conhecemos.Depois o Calisto, o JERO, N, N ,N, N, Rainho (já falecido), o Palma Rodrigues (sempre a guarda redes) e, entre conhecidos e outros de que não recordamos o nome, o João Manuel, o Basílio Martins (com longas barbas), o Dr.José Pedrosa (que era “bom de bola”) e gente mais nova.

De cócoras e sentados o Ramiro (que em dias bons conseguia acertar mesmo na bola), o António Eduardo, o Pisão (já falecido), o Juvenal Amado (dono da fotografia), diversos “Bibis”, o Nabais e o Diamantino (de barbas),o Pacheco e mais outros.

Quase completamente deitados o Carlos Helder (que foi campeão de salto à vara) e o Teopisto. (...)


(**) Último poste da série > 19 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20748: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (115): A COVID.-19 não passará!... (ou o "cornovírus", como já diz o povo). Pois, cantemos a vida, a alegria, o amor... "Aimons le vin"... Amemos o vinho, o amor e as mulheres: canção tradicional, Normandia, França, interpretada pelo Coro Municipal da Lourinhã (maestro: Carlos Pedro Alves)

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15608: Agenda cultural (455): Sessão de lançamento do livro do Juvenal Amado, "A tropa vai fazer de ti um homem": Lisboa, Chiado Clube Literário & Bar, Av da Liberdade, sábado, 23 de janeiro, 16h30, com a presença em força da malta tabanqueira


Cartaz promocional do livro do nosso camarada Juvenal  [Sacadura] Amado: "A tropa vai fazer de ti um homem" (Lisboa, Chiado Editira, 2015, 308 pp. | Preço de capa (papel): 15 €; ebook (edição digital): 3 €

Proximamente daremos mais informação sobre este evento para o qual estão convidados todos os leitores, em especial da grande Lisboa, e muito em particular os nossos amigos e camaradas da Guiné.


1. Mensagem do Juvenal Amado [n. 1950, Fervença, Maiorga, Alcobaça], que se estreia agora como escritor:

Caros camaradas:

Aconteceu-me encontrar amigos ao longo da vida e, chegado o momento, quando esperava alguma solidão eis que eles se multiplicaram e enchem hoje muitos álbuns de memórias, que nos ligam, forjadas em situações iguais ou parecidas, que criam novos laços a todo o momento.

Este é um projecto a caminho dos 8 anos, inicialmente sem pretensões de o ver passado a livro, o que acabou por acontecer.

Nele tento transmitir sem ódios, sem paixões, sem remorsos, sem falsa modéstia, sem puritanismos, sem vencedores nem vencidos, sem saudades excessivas que me toldassem o raciocínio, sobre um tempo que passou na minha juventude do qual ficaram os rostos e datas, que jamais poderei esquecer.

Pelo menos, foi sempre essa a minha intenção.

Está claro o que outros pensam de nós, está um bocado além do que podemos fazer. Porque ao nortearmo-nos pelos nossos princípios e seguirmos os nossos impulsos ao expor o que achamos correto, nunca cederemos ao mais fácil, e assim nunca agradaremos ao mesmo tempo a gregos e a troianos.

Resta-me assim esperar que, para além do que possam discordar, vejam a honestidade com que apresento à vossa consideração as passagens de vidas sem nada de extraordinário, mas verdadeiras.

Não podia escrever este livro de outra maneira. Ele não aconteceu, foi acontecendo lentamente e foi assim que amadureceu. Nestes anos muita coisa se alterou, muitos partiram, mas também chegaram muitos amigos para me dar alento e mostrar que não era em vão o trabalho a que meti ombros. Todos deixaram marcas, no tempo que passei com eles. São as suas vidas, histórias e sua riqueza humana, que valorizaram o que escrevi.

Nada mais valioso do que poder fazer deles também autores, de que me servi na concepção deste livro.

Nada teria sido escrito sem as suas palavras, sem as nossas conversas, sem as suas vivências e o incentivo ou as suas críticas.

A dúvidas foram e são muitas, certezas praticamente nenhumas.

Espero que não entendam como relatório de operações pois não é disso que se trata. Trata-se de situações vividas, compiladas, reunidas sem rigor histórico, interessam sim as personagens, todas elas reais de carne e osso, que comigo conviveram em dado momento,  bom ou mau.

Segue o poster com a indicação do dia da data, do local e da hora, em que haverá uma cerimónia do lançamento do livro.

Segundo creio nas informações da Chiado Editora, o livro encontra-se já há venda na FNAC, na Bertrand, no Continente e várias de livrarias.

Também eu tenho algumas dezenas para vender, que enviarei para a direcção de quem mo solicitar, podendo o respetivo pagamento ser feito através de transferência bancária ou enviado à cobrança.

Para isso basta que me enviem as respectivas moradas para o email sacaduramado@gmail.com ou na minha caixa de mensagens do facebook.

Aos interessados ser-lhes-á dado o meu NIB como forma de pagamento, mas para quem o desejar posso enviar à cobrança.

Um abraço
Juvenal Amado
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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 – P15604: Agenda cultural (454): Novo livro: 90 Anos de Memórias e Relatos sobre os Clubes, a sua Criação e Trajetórias, Beja 1888 a 1906 (José Saúde)

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15330: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XX Parte): Hospital Militar 241; Mamadú; Fuga? e Só água fria por baixo

1. Parte XX de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 5 de Novembro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XX

1 - Hospital Militar 241 

Foi acordando à medida que tomava consciência do que se passava naquele quarto e do local onde estava. 
Lembrava-se vagamente do que se tinha passado, de querer dizer que não era preciso, mas não conseguia falar, só ouvia vozes, o médico do batalhão de Mansoa a dizer que o iam levar, o Furriel Valente de Sousa a dizer que talvez não fosse necessário e a voz do Tenente-Coronel Lemos a dizer que o médico é que sabia. A seguir, deve ter adormecido, a ideia de ir numa maca, de o terem metido numa cama, de acordar encharcado em suor, de mudança de lençóis, de tiritar de frio, mas nem tinha a certeza de que tivesse sido assim, que é que interessava também agora! 
Passou o dia agitado, inquieto. Barulhos de motores, vozes altas no corredor. Dormia, acordava com as vozes e os motores, adormecia outra vez, motores e vozes de novo acordavam-no. De vez em quando, um enfermeiro perguntava-lhe qualquer coisa, enquanto lhe dava uma injecção ou mexia num frasco dependurado ao lado da cama. 

Bissau, Hospital Militar. Imagem da net. 

Dois companheiros no quarto, um capitão e um alferes. O capitão apanhou com estilhaços de uma granada de morteiro no braço esquerdo, já tinha sido operado duas vezes e ouviu-o dizer que ia ser evacuado para a metrópole. O alferes tinha pisado uma mina, amputaram-lhe uma perna acima do joelho e cortaram-lhe mais qualquer coisa, segundo depreendeu da conversa entre o enfermeiro e o capitão. 

Está muito melhor, o sargento enfermeiro virado para ele. Sem febre desde ontem. Agora é comer e beber uns uísques. Se tivesse bebido alguns talvez não tivesse apanhado paludismo. Para ele, não deve ter sido por falta de uísque, foi a picada do mosquito e o Dar-a-Prim1 que já não tomava desde que saíra de Cuntima.
O médico não tinha vindo de manhã, apareceu para fazer a visita a seguir ao almoço com o sargento enfermeiro atrás. 
Entrou por ali dentro bem-disposto. Olhou-o de relance, trocou algumas palavras com o enfermeiro, perguntou-lhe se já se tinha posto a pé. Claro, como é que havia de ir aos lavabos? Acha que pode ter alta hoje? 
Parabéns senhor capitão, isto está a evoluir muito melhor do que pensávamos, talvez já nem seja necessário evacuá-lo, não sei, amanhã vamos tirar-lhe umas radiografias e depois tomamos a decisão. 
Veja lá, doutor, eu tenho que ficar completamente bom. Em Lisboa há outros recursos, é melhor tratarem da minha evacuação. Não estou a duvidar da competência do doutor, claro, mas em Lisboa há outras possibilidades. 
Vamos ver, amanhã vamos radiografar esse braço e depois decidimos. 
E depois, para o alferes da ponta, então, este artista tem cantado muito? 
O alferes não lhe respondeu, mantinha-se com um ar ausente, não estava ali. E o major médico a insistir, então, gastou o gás todo a noite passada, não? O alferes tinha passado uma noite como as anteriores, uma noite muito má. As luzes estiveram quase toda a noite acesas, duas ou três vezes, que tenha dado por isso, entrou gente lá dentro, para o picarem, sem perguntarem nada ao desgraçado. 
E, de repente, falou. Você é médico ou palhaço, o alferes desalmado, ouça lá, seu cabrão, se acha que tem graça vá trabalhar para o circo! 
O coitado do médico, a cara desconsolada como se tivesse levado com um balde de chichi velho pela cabeça abaixo, o artista da ponta cheio de gás outra vez, filho da puta, nós no mato a dar os braços, as pernas, o coiro todo e este palhaço a vir para aqui gozar com a malta. Respeitinho, seu cabrão! 
O médico virou costas, a murmurar qualquer coisa que ninguém ouviu. 

Ao olhar para a janela, deu-lhe a vontade de sair porta fora. Pôs o pé no chão, a cabeça rodou-lhe lá dentro, frio pelo corpo abaixo, manchas esbranquiçadas a subirem pelas paredes, a cabeça outra vez na almofada, o coração disparado, suor a correr. O vizinho do lado, não se sente bem? 
Enfermeiro à beira da cama, mão na testa, deixe-se estar quieto, deve ser tensão. Alguém lhe meteu um termómetro enquanto o sargento lhe via as tensões. É, estão baixas. Umas punhetas de bacalhau agora é que lhe faziam bem, levantam-lhe tudo. 
Por volta das 6, hora de jantar, entraram carrinhos a deitarem fumo pelos pratos. O da cama da ponta não conseguia, aos arrancos, aguadilha a escorrer-lhe da boca, engasgava-se, tossia-se todo. 
Quando chegou a sua vez, empurrou o carrinho do prato para o lado, uma massa com carne picada no meio, tudo muito branco. 
E a minha punheta? Quê, a jovem guineense, solas brancas dos pés maiores que ela. 

Sentou-se a desenrolar o pacote de cartas que o Valente de Sousa lhe tinha trazido de Mansoa. Separou-as, as dos pais para cima da cama que os bons conselhos têm tempo, as outras em cima dos joelhos. Abriu-as, ordenou-as por datas, como de costume, o perfume dela a entrar-lhe pelo nariz afinado. 
A olhar pela janela fora, não a via, mas desenhava-lhe as bochechas redondas na cara, os gestos dela, o andar alegre, despachada. Começou a ler devagar como gostava, a ver-lhe as letras apressadas, desenhadas em redondo, até as riscadas, o capitão a interrompê-lo, a querer ler a Bola. 

O alferes a esta hora já está a caminho da metrópole. Para onde? Agora deve ir para a Estrela, para o anexo dos oficiais, um edifício novo junto à Basílica, depois deve fazer o itinerário do costume, Alcoitão, Alemanha, é conforme. Põem-lhe as próteses onde puderem, que há outras que ainda não se fazem, não é? Depois? Depois, se o comandante da companhia dele fez as coisas como devia, o louvor já deve vir a caminho, a seguir dão-lhe uma Cruz de Guerra, 2.ª Classe, talvez, e até podem promovê-lo a tenente. Para onde vai? 
Sair, sair daqui, é o que vou fazer depois de arrumar esta tralha.
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Nota
1 - Anti-palúdico
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2 - Mamadú

Os turras também têm os seus problemas, tal como nós, até mais agudos, espero. Uma organização como a deles, muito jovem ainda, a crescer uns por cima dos outros, claro que alguns que ficam por baixo, mais corajosos ou imprevidentes, tomam o freio nos dentes, ultrapassam as directivas do Partido, põem-se a fazer coisas. Se resultam, se nos causam mossa, são louvados e às vezes, como aconteceu com o Nino no Sul, ficam outra vez em cima, são promovidos e tal. Se o custo da imprevidência for pesada, ou que os comissários considerem demasiado alta, pagam-na cara, claro! Parece, parece que estamos num caso desses. 

Acampamento do PAIGC. 
Fonte: Nordic Documentation on the Liberation Struggle on Southern Africa. Com a devida vénia. 

Um tal Mamadú Injai, não, não deve ser esse em que estão a pensar, Mamadús há-os às centenas aqui, Injais nem tantos, mas muitos também. Adiante, para atalhar caminho, o tal Mamadú Injai que, até este momento, só eu e o nosso major aqui conhecemos, apresentou-se há dois dias na tabanca aqui atrás, a um parente dele. 
Estes Mamadús como todos sabemos têm parentes no Oio, no Gabú, no Cantanhez, têm primos e sobrinhos, em toda a Guiné Portuguesa, Senegal, Gâmbia, Guiné-Conacri, Mauritânia, por aí fora. 
Bom, em conversa com o tal parente manifestou o desejo de falar com o chefe da tabanca, apresentar-lhe uma questão, sem avançar mais nada. Este Mamadú já há muito que sabia que o chefe da tabanca é um tipo da nossa confiança, total não digo, mas enfim, até agora tem dado provas de ser um aliado da nossa maneira de estar na Guiné. Temos tratado de algumas necessidades da tabanca, consegui, inclusive, que o Governo-Geral aprovasse uma espécie de tença anual. 
O homem grande da tabanca sabia com quem estava a falar, recebeu-o com prudência, que só queria o bem-estar da população, que mantinha com as nossas tropas relações amistosas, que eram bem tratados, que tinham médico à disposição para o que fosse preciso, que ainda há tempos tinha sido incansável na assistência aos nascimentos, dois partos numa noite, que elas resolvem parir quase todas ao mesmo tempo, não sei bem como combinam, se têm algumas regras entre eles e elas, se calhar até têm. 

Parto na Guiné. 
Fonte: Nordic Documentation on the Liberation Struggle on Southern Africa. Com a devida vénia. 

Bem o nosso homem grande lá lhe foi dizendo que compreendia as razões do Partido, os esforços gigantescos que faziam contra a tropa, com aviação, marinha e tudo, mas o partido também tinha de compreender, que ele como chefe da tabanca, tinha a obrigação de entender as necessidades da população, ir ao encontro delas, etc, etc, etc. 
Para grande surpresa dele, o Mamadú, começou a dizer que alguns do Partido, principalmente os cabo-verdianos, não gostavam do entendimento dele com a nossa tropa, mas o Injai estava de acordo, o Partido sim, mas só depois das necessidades do povo. Que, assim, não só via com bons olhos o trabalho que o homem grande estava a fazer, como tomava a liberdade de lhe dizer que se todos fossem como o homem que estava à sua frente, muitos problemas nem sequer existiam. 
E mais, que o Partido estava a passar por grandes dificuldades, tão grandes que até o Abel Djassi, nome de guerra do Amílcar Cabral, como sabem, tinha tido alguns problemas com camaradas que não viam com bons olhos tanto cabo-verdiano na cúpula e tanto balanta, tanto manjaco, tanto mandinga, tanto fula até, tanto guineense afinal, na frente armada. 
Muito problema, homem grande, para tão pouco guerrilheiro e tanta tropa, esta luta vai durar anos e anos, no nosso tempo não vai acabar de certeza. 
Pelos vistos, no essencial, os dois estavam de acordo. 
Qual então a razão da visita de Mamadú, para além de partir mantenhas? Bom, ele Mamadú, bem gostaria de prestar apoio ao homem grande da tabanca, mas este desconfiado, disse que tudo estava a correr bem com a nossa tropa. 
Continuando, dizia eu que o homem grande da tabanca agradecia muito a visita, que dissesse ao Partido que, afinal, ambos deveriam querer o bem da Guiné, e que se estavam a dar muito bem com a tropa de Mansoa. 
Mamadú não despegava e o chefe da tabanca estava cada vez mais desconfiado, mas seguro dos dois homens seus da tabanca, cá fora para o que desse e viesse. Então o Mamadú, de repente, disse-lhe que se vinha entregar a ele, para fazer dele o que quisesse, entregá-lo à tropa até. 
Os senhores estão a ver a cara do homem grande, não é difícil de imaginar, não é? Pois, nosso alferes, tem à sua disposição um homem que o vai levar a Morés.

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3 - Fuga? 

Um turra, apresentado ainda por cima, sem ninguém pedir, nem apanhado foi, a querer agora levar-nos a Morés? Qual Morés, já conheci três ou quatro, acho que isto traz água no bico, o meu alferes é que sabe, mas isto cheira mais a uma armadilha montada para nós cairmos, interroga-se alto o Valente de Sousa. Ele também tem a perder se as coisas correrem para o torto, não é, o furriel Ázera a contrapor. 
Bom, temos nas mãos um guerrilheiro que até há pouco esteve do lado deles, e que agora se oferece para nos levar a Morés. Algo deve ter corrido mal com ele, o que foi não sabemos. Ele conhece os cantos à casa, os trilhos da zona, os acampamentos maiores e as barracas à volta, ninguém o obrigou, oferece-se para nos guiar até à arrecadação das armas, material pesado e tudo. E nós não acabámos de chegar, já temos uns meses disto, já vimos muito, até guias a fugir. Se nos apercebermos que as coisas estão a fugir do nosso controlo lá estaremos para decidir o que fazer. O que temos a perder? 
A esta hora já mudaram as bases todas! Acho a história mal contada, não sei, não me cheira, se calhar estou a pensar mal, a deitar areia na engrenagem, não sei, insiste o furriel. 
A ideia é irmos na coluna de reabastecimentos para Mansabá, saltamos das viaturas na zona de Cutia, aqui por estes lados e um pouco antes deste trilho metemos para dentro, a apontar o dedo para o mapa da zona. Amanhã, ao anoitecer convocam o pessoal, material conferido, metem-no nas três últimas Mercedes, lonas corridas até baixo, quando houver ordem para sair, temos um minuto para o fazer, as viaturas nem abrandam sequer, rádios sempre ligados. 
A tarde de Mansoa devagar, civis nas calmas pelas ruas, crianças a correr atrás de um aro de bicicleta, um grupo pequeno de soldados numa esplanada, uma tarde igual a outras, um pouco escura, calor sem sol, fardas colada à pele, sovacos encharcados, grandes rodas molhadas nas costas, um peso vindo do céu, em cima de todos, a empurrá-los para o chão, o costume nesta época. 
Ainda não estava completamente refeito das febres, as pernas parece que bamboleavam em vez de andar, manchas claras às vezes. 

Amanhã como vai ser, vais ter força para andar, vais-te aguentar nas canetas? Ora, quando as coisas aquecem, as forças vêm de todo o lado, poupa-te no início, reserva-te para a hora, depois deixa as coisas acontecerem. 

Com o Ázera ao lado, a fazerem horas, sentados a uma mesa da esplanada, o Valente de Sousa apareceu-lhes por trás. O Tenente Coronel Lemos quer falar consigo. 

Como foi não sei, apenas que o homem grande me apareceu muito constrangido, a contar o que tinha acontecido e que você já sabe, agora como foi não sei, não sei mais nada. A olhar para ele, a cara desolada do tenente-coronel. 
Custava-lhe a acreditar no que o velho negro de barba branca estava a dizer, a voz aguda, aos solavancos, os olhos com manchas vermelhas. 
Mamadú desapareceu na tabanca, foi Fatma quem chamou, ninguém sabe nada, juntei pessoal, perguntei quem sabia, ninguém viu, ninguém sabe, eu também não, nosso alfero! A túnica a arrastar-se pelo chão, as sandálias de plástico, pó fino a levantar-se, como posso saber como fugiu, nosso alfero, mas fica descansado, vou saber quem sabe. 
Fácil, não é, homem grande? 
Eu não dizia? Era uma história mal contada, meu alferes! Ainda por cima, deixaram-no andar por aí, a falar com este e aquele, a visitar as instalações como se fosse um convidado. 

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4 - Só água fria por baixo 

A Teresa fora um simples conhecimento, no início só para passar o tempo. Engraçou com dela, os olhos, primeiro que tudo, atraíram-no, meteram-lhe medo, quis espreitar, e ela mostrou-lhe outras coisas que tinha. Uma moça diferente das que conhecera aqui, estas sim só para passar as mãos pelas redondezas delas e depois parágrafo. 
Com a Matilde nem conseguiu viver debaixo do mesmo tecto. Adiantou-lhe um mês de renda para a casa, a caminho do Cupilom, equipada com tudo, apenas para os intervalos das guerras, tomar uma chuveirada com ela, levá-la ainda molhada nos braços para o quarto, um banho outra vez, vou dar uma volta, hoje não posso ficar, tardes e noites seguidas, sempre assim. Nem conseguiu dormir com ela uma noite inteira que fosse, no início ainda disse que tinha compromissos no quartel, um serviço qualquer para fazer, ela a desconfiar que fosse outro motivo, mas não. 

Estou habituado à minha almofada, trá-la então, à minha cama, trá-la também, traz tudo contigo. Ainda não percebeste, quero homem que viva comigo! 
E deixou-a sempre. Teve pena muitas vezes de a deixar, custava-lhe suportar os olhos dela. Chatices que arranjou e arrumou sempre, melhor ou pior. Porquê? Matilde, gosto de ti, do teu rosto, do cabelo negro que te fica tão bem assim, do teu peito pequeno e tão bem feito, da tua barriga lisa, das tuas coxas redondas, das pernas como nunca vi, da tua cor. A tua figura toda, mas acho que tu e eu queremos outras coisas que os dois não temos. Mais nada, Matilde. É melhor seguirmos cada um o seu destino, amigos para sempre. 
Sacana, porquê? Matilde, não posso ficar mais tempo, tenho que me ir embora! Fica aqui um mês de renda para te arranjares. Não queres, deita-o pela janela fora, faz o que quiseres dele, esse dinheiro é teu, um beijo, Matilde, não dás? 
Os outros casos foram entretimento para dois, sem dinheiros nem nada. 

A Teresa já não é só Teresa como se apresentou da primeira vez, foi muito mais do que aquilo que esperavas. 
Os olhos, o sorriso, a figura, o andar dela, foi o que te interessou, de início, não? Depois viste outras coisas nela, de que não estavas à espera e muito menos aqui? O gosto pela leitura, de assuntos em que nem tu próprio estavas sensibilizado, nem estás, a solidariedade, o interesse pelo povo guineense. A cultura geral, invulgar para a idade dela. 
E a disposição para te afrontar, para lutar contra ti, contigo, puxar por ti, lutar pelos ideais dela. Para te dizer na cara, com aqueles olhos magníficos, aquilo que ela achava no seu direito de dizer. Os teus olhos a fugirem, os ouvidos que não queriam ouvir, tu a disfarçares, com a mão nela, como quem diz, vamos mas é ao que interessa. 
Um merdas, um merdas como aquele que viste em Bigene, nem sempre com cheiro a uísque azedo, mas um merdas na mesma. A aproveitares-te da sensibilidade dela, a fazeres-te caro, de um momento para o outro, a invadi-la com as tuas mãos, ela a acreditar em ti. 
Nem tanto assim? O que fizeste com ela este tempo todo, o que fizeram os dois juntos, afinal? 
Nada do outro mundo, brincadeiras, uma vez ou outras mais ousadas, mas nada mais do que isso, sempre travaste as tuas incursões e as dela também, e bem te custou às vezes, nem o céu imagina. De resto, das tuas mãos está inteira, ou quase, não te lembras de lhe deixar marcas irreparáveis, fisicamente falando, claro. Então porquê esta atrapalhação toda, porque não vais falar com ela, directa nos olhos, assim, Teresa, já não há razões para continuar, vamos dar por terminado o nosso conhecimento, começámos porque achámos graça um ao outro e, pelos vistos, este tempo passado diz-nos que é melhor acabarmos, e pronto. Já agora, continua merdas até ao fim! 

Os olhos dela não queriam acreditar, insistentes, as mãos amarradas aos braços dele, depois largou-os de uma vez, um passo para trás a tomar balanço. 
Como quiseres! Não me vou perder a chorar por aí, não penses. Fui ingénua, enganei-me, pensei que eras verdadeiro, que tinhas sentimento. É melhor assim. Olha, há tempos, quando estava a ler um livro ali, algo me fez pensar em ti, de uma forma diferente do costume. Pensei que fosse só impressão minha, mas não, agora já sei porque me lembrei de ti naquele momento. Afinal, és exactamente o que pareces, dentro de ti não há calor nenhum. Como o gelo, quando se quebra é só água fria por baixo. Só tens água fria por baixo. 

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 29 de outubro de 2015 Guiné 63/74 - P15303: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIX Parte): Chegou a 3.ª Companhia de Comandos e Pesadelo