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sábado, 3 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16794: O inicio da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte I (José Teixeira)




Sítio das FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo, Guiné-Bissau, onde vem inserido o poste "O fim da dominação colonial", com uma entrevista, concedida em 2001, pelo cor Arafam Mané (1945-2004), sobre o histórico ataque a Tite em 23 de janeiro de 1963.



O inicio da Guerra Colonial no CTIG, contada pelo outro lado:  entrevista,  de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam Mané (1945-2004) -Parte I  (José Teixeira)



1. Enquadramento 

por José Teixeira



[Foto à esquerda: José Teixeira, em 2013, com o régulo de Medjo: 

(i) é nosso grã-tabanqueiro da primeira hora; 

(ii) tem mais de 300 referências no nosso blogue; 
(iii) foi 1.º cabo aux enf,  CCAÇ 2381, "Os Maiorais", Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; 

(iv) está reformado como gerente bancário;  (v) vive em São Mamede de Infesta, Matosinhos; 

 (vi) é dirigente no movimento nacional escuteiro, onde é conhecido por "esquilo sorridente"; 

(vii) é um dos fundadores e 'régulos' da Tabanca de Matosinhos e continua a ser um dos nossos grã-tabanqueiros mais solidários e inquietos;

 (viii) foi talvez dos poucos de nós que, graças ao seu papel de enfermeiro (e também por mérito pessoal, pela sua generosidade, coragem, inteligência emocional, sensibilidade sociocultural,, empatia  e demais qualidades humanas), conseguiu saltar a 'barreira da espécie': ele, "tuga" e cristão, foi aceite e amado pela população fula e muçulmana, e ainda hoje tem verdadeiros amigos, fulas, lá Guiné-Bissau profunda, onde  é amado, mimado, adorado quando lá volta (e já lá voltou não sei quantas vezes) ]


Todos nós, os que passamos pela guerra, temos vindo com o tempo, a tentar passar aos vindouros as situações vivenciadas no ambiente agressivo da guerra. É o nosso ponto de vista. Com mais ou menos romantismo; com mais ou menos realismo, vamos escrevendo o que a nossa memória registou. É comum ouvirmos camaradas nossos contar testemunhos de situações que vivemos em conjunto e encontrarmos diferenças nas versões dos acontecimentos, ou pormenores que desconhecíamos. Foram vividas em comum, mas analisadas por outro ponto de vista. Alguém, com outra base académica ou cultural, ou até com outra visão politica e militar da situação. O local e ângulo de onde se está a vivenciar o acontecimento, afetam a informação registada na memória. A memópria humana é seletiva.

Neste caso concreto, estamos a tomar conhecimento de um testemunho de alguém que vivenciou o ataque a Tite. Foi o seu comandante, mas do outro lado da barricada, logo, o relato dos acontecimentos que viveu e a visão global do ataque são à partida diferentes (e tão "respeitáveis", omo os nossos relatos). São estes conjuntos de pontos de vista, diferentes entre si, e muitas vezes contraditórios, dos acontecimentos que vão permitir escrever a História.

José Teixeira, Tabanca de São Martinho do Porto,
11/8/2011. Foto de LG.
É comum afirmar-se que a guerra colonial na ex-província da Guiné teve o seu inicio com um ataque a Tite na célebre noite de 22 para 23 de janeiro de 1963, Aliás, o próprio Amílcar Cabral afirmou-o uns dias depois.

Na realidade, este ataque, pela sua dimensão e resultados, com mortos e feridos de ambas as partes em contenda, assinala simbolicamente a abertura das hostilidades.
E, no entanto, foi um acontecimento fortuito, desorganizado, sem comando definido e sobretudo à revelia dos órgãos do PAICG. 
Assim o afirmou, em 2001, o coordenador do ataque,  o então coronel Arafam Mané. 

Segundo ele, a guerrilha, à data, já era um facto no Norte, no Centro Sul e Sul desde 1961. Tite já terá sido atacada em 1962. As regiões do Tombali e Quínara estavam a fervilhar numa luta surda entre as forças portuguesas e o PAIGC, com muitas mortes (assassínios) na população, da responsabilidade de ambos os intervenientes. Esases primeiros tempos foram de terror e contarterror, subversão e contraversão... Uma época muito mal conhecida (e pior estudada)...

Revivo com saudade o meu amigo Samba, de Mampatá Foreá, infelizmente já falecido há muitos anos. Sargento da milícia, imã da comunidade muçulmana local (Fula). Homem culto, excelente cozinheiro,  que deixou Bissau para regressar à sua terra, o Regulado Foreá, e defender o seu povo. Muitos serões passámos em amena conversa, onde a religião e o drama da Guiné eram assunto.

Recordo, apesar da poeira do tempo, uma conversa sobre a forma como o inimigo procurava conquistar aderentes à força, no início da luta. Eles, dizia-me, o PAIGCV, entravam, armados, pelas tabancas dentro, e tentavam convencer o chefe da tabanca a entregar os jovens para as forças da guerrilha. Se não o fizesse,  era morto ali mesmo, e os homens válidos eram convidados a segui-los ou em caso de resistência eram forçados, com muitas mortes pelo meio.

Não foi por acaso que o Amílcar Cabral convocou o Congresso em Cassacá, em 1964. Um dos objetivos deste Congresso, foi acabar com as barbaridades,  as arbitrariedades eos abusos de poder, praticadas por alguns chefes de guerrilha, sem qualquer preparação política, de modo a que o povo voltasse a ganhar a confiança no Partido, nos seus dirigentes e no destino da luta de libertação nacional.

Muitos anos mais tarde, em 2008 no Simpósio Internacional de Guileje, tive oportunidade de conhecer e conversar com um ex-combatente das FARP da Guiné-Bissau que me tinha atacado várias vezes em Mampatá e na estrada de Gandembel, em 1968. É dele esta frase, que recordo com emoção:

“Guerra é guerra, meu 'ermon', quando passa não deixa saudades, mas, muitas amizades, neste mundo perdido. Os antigos inimigos se procuram, para saldar as contas com um abraço sentido.” Dizia-me ele: "Desculpa. Eu fui apanhado na minha tabanca, tinha quinze anos."

Mas não pensemos que as autoridades portuguesas ofereciam mel e pão aos guineenses para os conquistar para a sua causa. Os factos narrados nesse Simpósip, por vitimas guineenses, que fugiram para o mato, creio que por medo (alguns) e posteriormente integraram a guerrilha, são de fazer arrepiar o mais “durão”. Era o tempo do “chapa ou fogo” na versão mais agressiva do temido e odiado capitão Curto por parte dos guineenses afetos ao PAIGC (*).. E, nas minhas idas à Guiné-Bissau, tenho conversado com ex-combatentes do PAIGC, onde relembram os tempos de terror imposto pelos "tugas" nas tabancas do interior, que os levou a fugirem para o mato e entrarem na luta.

Mas voltemos ao ataque a Tite para rever os acontecimentos através de relatos insuspeitos de terceiros e presenciais.

".... Em Janeiro de 1963, foi a sede do Batalhão atacada com armas automáticas e de repetição e granadas de mão. Deste ataque resultou 1 morto e 1 ferido das NT e 8 mortos confirmados e vários feridos graves IN. Depois deste ataque foram intensificados os patrulhamentos de que resultou a morte do Papa Leite, elemento IN que actuava na área e que facultou a recolha de valiosíssimos elementos da Ordem de Batalha IN..."

In, Carta de 7-07-1981 do ten cor  Manuel José Morgado, enviada ao director do Arquivo Histórico Militar, em resposta ao assunto " História das Unidades ".

Resumo da Actividade do BCaç. nº 237/BCaç. nº 599 - Maio de 1963 a Maio de 1965 [Caixa nº 123 - 2ª Div/4ª Sec., do AHM


O historiador José de Matos fala em quinze a vinte elementos do PAIGC, que mantem o quartel sob fogo intenso, durante cerca de meia hora, provocando um morto e dois feridos às nossas tropas e deixando três mortos no terreno.(vd. poste  P15795).

O nosso investigador de serviço ao blogue, o incansável José Martins, convidado pelo Luís Graça a investigar o ataque a Tite, concluiu:

“Arafan Mané (, nome de guerra, 'Ndajamba'), militante do PAIGC, destacado Combatente da Liberdade da Pátria, é considerado o 'responsável' pelo inicio das hostilidades na Guiné, ao ter disparado a primeira rajada de metralhadora e comandado a ofensiva. Teria menos de 20 anos. Veio a falecer em 2004, em Espanha, de doença". (P10990)

Estranhamente pouco ou nada se escreveu oficialmente sobre este acontecimento tão marcante, (seria?) para o desenvolvimento da guerra na Guiné.

Há o testemunho do Gabriel Moura, (vidé P 3294; P 3298 e P 3308 de 11/11/2008; 12/10/2008 e 13/10/2008 respetivamente). Foi este soldado português de Gondomar que estava de sentinela ao quartel de Tite, naquela fatídica noite, que entrou no Blogue pela mão do Carlos Silva, (seu conterrâneo e amigo) já depois do seu falecimento para contar a história que vivenciou. Foi o primeiro militar português, quando se encontrava de guarda ao aquartelamento, a responder ao fogo da força que atacou as instalações de Tite. Na reação ao fogo de que foi alvo, consumiu todas as munições de que dispunha, provavelmente três carregadores, assim como utilizou as duas granadas que lhe estavam distribuídas para o serviço. Faleceu em 2004, dois anos após ter editado as suas impressões sobre o acontecimento, e por coincidência no mesmo ano da morte de Arafan Mané.

Temos agora a oportunidade de tomar conhecimento do testemunho do Arafam Mané, ou seja, a versão de quem comandava o outro lado da barricada, numa entrevista publicada em 2001 no jornal O Defensor – Orgão de Informação Geral do Estado Maior das Forças Armadas da Guiné-Bissau. Reproduzida em 2015 no sítio das FARP – Forças Armadas Revolucionárias do Povo, por iniciativa do major  Ussumane Conaté,. diretor da publicação.



2. Arafam 'N' djamba' Mané (1945-2004)
(segundo nota biográfica redigida pelo major Ussumane Conaté, diretor de O Defensor; adaptação de JT])

[Foto à esquerda, Arafam Mané, cortesia de O Defensor]


O comandante Arafam 'N’djamba'  Mané nasceu no dia 29 de setembro de 1945, em Bissau, sendo filho de Lassana Mané e de Nhalin Cassama. Faleceu, de doença de evolução prolongada,  no dia 4 de setembro 2004,  num hospital de Madrid,  onde estava internado, [A data de nascimento pode não ser precisa, os guineenses nessa época não tinham registo civil].

Arafam Mané entrou cedo para o PAIGC, tendo chegado a Conacri, capital da República de Guiné em 1961, onde se foi juntar a Amilcar Cabral e outros militantes do PAIGC que tinham deixado Bissau para, a partir dali, organziar e dirigir a luta de guerrilha.

Após a proclamação unilateral da independência do país em 24 de setembro de 1973, o coronel Arafam 'N´djamba'  Mané ocupou vários cargos  entre as quais os  de chefe de Casa Civil da Presidência da República, director geral da farmácia Farmedie, governador (sucessivamente) das regiões de Gabú e Bafata, ministro da Defesa Nacional,  ministro dos Combatentes da Liberdade da Pátria.

Foi também deputado  durante vários mandatos legislativos, membro do Comité Central, membro do Bureau Politico do PAIGC e também membro do Conselho de Estado durante o mandato presidencial de Koumba Yala. (Notas de Ussumane Conaté,  coronel, diretor de O Defensor)

[Mais elementos sobre Arafam ou Arafan Mané: vd.  poste P2190 de Virgilio Briote]

Esta entrevista, de que se reproduz uam primeira parte, hioje neste poste,  foi concedida em 2001 ao jornal O Defensor  "no quadro da recolha de depoimentos dos Combatentes da Liberdade da Pátria sobre os acontecimentos históricos que marcaram a luta armada de libertação nacional para a independência total da Guiné-Bissau do jugo colonial".

É um documento de interesse para todos nós, pelo que tomamos a liberdade de o reproduzir e divulgar, no nosso blogue, com a devida vénia.  São raros os testemunhos de históricos dirigentes e comandantes do PAIGC, como o Arafam Mané.  Muitos deles morreram, levando consigo irremediavelmente para a tumba as suas memórias.  Nunca escreveram ou deram uma entrevista em vida.


3. Sinopse da entrevista (parte I) 


O Arafam Mané assumiu, com 18 anos, o comando da operação. Começa por confessar que o grupo,  vindo de Conacri,  não tinha experiência militar e estava muito mal armado - tinham apenas, três armas e uma pistola.  Ao grupo juntaram-se civis,  de várias tabancas locais, num total de cerca de 150 pessoas, munidos de catanas, paus, pedras e algumas armas de fogo, suponho que mausers (?) e canhangulos.

A iniciativa partiu do grupo sem que tenha sido dada qualquer ordem superior. Ele mesmo afirma ao entrevistador: “Garanto-lhe que ninguém nos tinha dito nem ordenado atacar o inimigo no quartel de Tite”. E explica o "contexto":  "A operação foi realizada com raiva porque, em 1962, fomos corridos pelos 'tugas'. Este episódio aconteceu, depois de termos efetuado uma sabotagem, cortando as linhas telefónicas e os cabos elétricos daquela zona sul do país. Foi a partir das ações de sabotagem, que a administração colonial e suas forças de defesa e segurança souberam da nossa presença na área."

Muito interessante a ideia (romântica?) de se fazer acompanhar de um “djidiu” de kora (músico tradicional) para cantar, animar e elogiar os camaradas, enquanto combatiam no interior da unidade. Só que o “djidiu” deu ás de “vila diogo” e o combate ficou sem música, que não fosse a das espingardas e os gritos de dor.

Afirma que só tiveram um morto, creio que o seu guarda-costas, Wagna Na Bomba, o que contradiz a informação recolhida no nosso blogue, que fala em 8 mortes. Dado que grande parte dos atacantes eram da população local, talvez se esteja a referir apenas aos elementos do grupo vindo de Conacri e os outros mortos tenham sido dos elementos civis, locais

Refere que o  Quemo Mané [, um homem temperamental  e violento, associado a cenas de terroer, pós-independência, segundo o testemunho do nosso Cherno Baldé] foi encarregado de tentar eliminar o major Fabião.

Suponho que ele se queria referir ao major Pina, comandante da unidade sediada em Tite. [Nessa altura, era o BCAÇ 237, chegado à Guiné em 18/7/1961; esteve em Tite até ao fim da comissão, em 19/10/1963; teve dois cmdts: major inf [José] António Tavares de Pina; e depois o nosso conhecido ten cor Hélio Augusto Esteves Felgas, que será mais tarde o cmdt do Comando de Agrupamentio nº 2957, Baftá, 1968/70.]

Aconselho a leitura do testemunho do Gabriel Moura / Carlos Silva para se entender o conteúdo da entrevista que se segue e apurar as contradições. (Sinopse de JT).



Primeira página de O Defensor, órgão das FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo. Edição nº 22, dezembro de 2015, 16 pp.,   disponível aqui em formato pdf. O jornal, fundado em 1994, e de periodicidade mensal, tem como  diretor o major Ussumane Conaté.


4. Entrevista com o coronel Arafam Mané - Parte I

Com a devida vénia ao jornal O Defensor, ao seu diretor, major Ussuame Canoté, e ao sítio das FARP. Revisão e fixação de texto: José Teixeira.



O Defensor – O coronel fez parte do comando que em janeiro de 1963 orquestrou o ataque 

contra o aquartelamento fortificado de Tite, em Quínara, no sul do país. 

O que é levou o vosso comando, mal-armado e inexperiente, 
a atacar esse quartel colonial?



Coronel Arafam Mané - O ataque contra o aquartelamento de Tite foi realizado com poucas experiências militares, pois o efetivo que participou nele, era constituído por um grupo de camaradas do partido vindo de Conakry, [a que se juntaram elementos das] populações locais , munidas de algumas armas de fogo, catanas, paus e pedras. 

O ataque que surpreendeu as tropas do exército colonial, [que era]  muito temido pela sua barbaridade contra os autóctones, foi de facto executado sem um comando designado. Foi um ato de coragem e patriotismo que, desde a época dos nossos antepassados, sempre caracterizou a resistência dos guineenses contra qualquer tipo de dominação.

Em termos de armamentos, tínhamos apenas quatro (4) armas, uma pistola (1). Entreguei aos camaradas uma pistola e a arma que eu tinha, e fiquei com uma pistola automática com a qual disparei o primeiro tiro {[para o]  ar para assinalar ]a]os companheiros o início do ataque quando estávamos no interior do quartel fortificado de Tite. Com esse disparo, os camaradas entraram em ação,  utilizando todos os meios de combate que possuíam. O estrondo das armas,  misturado com as vozes de comando dos guerrilheiros que procuravam orientar melhor os companheiros para evitar perdas humanas, acordou as tropas coloniais e despertou a atenção dos sentinelas.

A operação foi realizada com raiva porque,  em 1962, fomos corridos pelos "tugas". Este episódio aconteceu, depois de termos efetuado uma sabotagem,  cortando as linhas telefónicas e os cabos elétricos daquela zona sul do país. Foi a partir das ações de sabotagem, que a administração colonial e suas forças de defesa e segurança souberam da nossa presença na área.

[Em] 1963 repetimos a mesma operação de corte de linhas telefónicas e cabos elétricos. Estas práticas que eram prejudiciais para a comunicação e o funcionamento das instituições públicas e militares, irritaram os colonialistas que começaram a pressionar as populações com ameaças e torturas para obterem informações sobre os que eles chamavam “terroristas”. No âmbito da repressão foram alargadas as redes da PIDE-DGS (Polícia colonial).

O Defensor  – Na altura, a guerrilha já tinha criado 'barracas' 
a partir das quais coordenava as ações militares 
contra os interesses coloniais?

Coronel ADM - Na altura ainda não tinha constituído 'barracas' [acampamentos temporários]. Às vezes alguns camaradas nossos saiam do Sul, iam até Bissau cumprir missões do partido e regressar sem serem descobertos pelas autoridades portuguesas, a PIDE e os seus agentes. Para além de Bissau, cidade capital, mais controlada, os guerrilheiros também se infiltravam nas tabancas,  partilhando refeições e outros alimentos com as populações sem que ninguém desse  conta ou soubesse quem eram.

Mas não pense que tínhamos homens prontos para efetuar trabalhos de reconhecimento e outras missões arriscadas. Não. Às vezes era eu, o meu guarda-costas e meu adjunto, camarada Fernando Badinca, entre outros.

Foi assim que,  em 1962, nos instalámos na tabanca de Cantongo a 3 km de Nova Sintra, a partir de onde nos movimentávamos até as aldeias de Flac-An, Flac Mindé, Flac-Mim, Flora, Bunaussa... Às vezes atravessávamos o rio, íamos a Bolama e daí íamos para a tabanca de Uato para entabular contactos com a população, com o régulo Oliveira Sanca, contactar Jaime Sampa, Lai Canté e outros camaradas. [Eram]  estes que nos enviavam jornais e outros objetos de que precisávamos.

Tínhamos também contactos com o camarada Rafael Barbosa, Aristides Pereira,  inclusive o senhor Eustáquio que, ultimamente, depois da independência teve problemas [de saúde mental]. Foi assim que se iniciou a luta armada de libertação nacional.

O Defensor  – Qual é a estratégia adotada pela guerrilha 
quando se sentiu ameaçada pela movimentação 
da força militar colonial na zona?


Coronel ADM - Alguns tempos depois fomos obrigados a abandonar esses locais, devido as ações do inimigo que, em termos de material bélico, nos superava na altura. Este é o primeiro fator. 

O segundo fator é que abandonamos a zona para salvaguardar as nossas populações, alvos de torturas quando os "tugas"  descobriam que a tabanca manteve contactos connosco ou albergava os nossos camaradas.

Entretanto, quando nos retiramos de lá, fomo[-nos]  instalar na tabanca de Calunca a partir da qual conseguimos ocupar todas as tabancas da fronteira com a Guiné Conakry. Logo depois da ocupação daquelas tabancas,  mandamos o camarada Malam Sanhá, para Conacri, para contactar os membros da Direção Superior do Partido e dar-lhes informações sobre a nova situação.

A chegada de Malam Sanhá a Conacri coincidiu com a chegada das primeiras armas provenientes do reino de Marrocos. Eram cerca de quatro a cinco armas de marca “Patchanga” [metralhadora ligeira DEGTYAREV RDP Cal. 7,62 mm] que,  quando chegaram,  foram distribuídas entre nós,  antes de voltarmos para o mato.



Guiné > 1964 > PAIGC > Cassacá > I Congresso.do PAIGC, Quinta, 13 de fevereiro de 1964 - Segunda, 17 de fevereiro de 1964, Da esquerda para a direita, Abdulai Barry, Arafam Mané, Amílcar Cabral, Domingos Ramos e Lai Sek durante o I Congresso.do PAIGC, em Cassacá,

Foto (e legenda): Portal Casa Comum / Fundação Mário Soares, Consult em 28 de junho de 2016. Disponível em http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=05224.000.056 (Reprodução parcial, com a devdia vénia)


O Defensor –A chegada das primeiras armas do reino de Marrocos 
às mãos da guerrilha, foi acompanhada de uma ordem superior 
para atacar o quartel colonial de Tite?


Coronel ADM – Garanto-lhe que ninguém nos tinha dito nem ordenado atacar o inimigo no quartel de Tite. Amílcar Cabral não nos tinha dito nem ordenado atacar o fortificado quartel com três ou quatro armas. Amílcar Cabral recomendou apenas que voltássemos para o mato,  visto que estávamos armados. Mas, no entretanto, para assustar os colonialistas e também para libertar os nossos companheiros, encarcerados na prisão, decidimos assaltar o quartel de Tite.

Eu me encontrava baseado em Nova Sintra enquanto Malam Sanhá estava na área de Cantona (Fulacunda), onde já se sentia sufocado,  devido a falta de matas densas para se esconder melhor. Esta realidade que representava um potencial risco para ele e seus homens, obrigou[-o] a abandonar o local e juntar-se a nós,  em Nova Sintra.

Recordo que Malam Sanhá chegou a Nova Sintra, precisamente na altura em que nós já estávamos em plena preparação da operação de assalto ao quartel de Tite. Aproveitamos logo a oportunidade para apresentar-lhe a nossa ideia de assaltar as instalações militares de Tite e ele concordou.

Portanto, uma vez a ideia acertada, procedeu-se a distribuição de tarefas claras e concretas a cumprir por cada um de nós. Assim, o camarada Malam Sanhá,  que já tinha sido militar no exército colonial português, foi designado para destruir a caserna dos soldados, enquanto o camarada Quemo Mané tinha como missão eliminar fisicamente o major Fabião, comandante da força colonial em Tite. Quemo Mané, que era grande caçador, tinha essa missão porque conhecia muito bem a residência do major, a quem ia sempre vender carne de caça.

O camarada Dauda Bangura tinha como missão rebentar as portas da prisão, [fazendo  explodir uma mina. Ele tinha feito um treino militar na República Popular da China por isso tinha alguns conhecimentos sobre as minas.

Eu fui encostar-me [a uma] das esquinas da caserna que devia ser atacada pelo camarada Malan Sanhá. Foi a partir dali que disparei a pistola, o primeiro tiro que deu início ao histórico ataque da guerrilha contra o quartel fortificado de Tite. 

Neste ataque, levámos connosco um “djidiu” de kora (músico tradicional) para cantar, animar e elogiar os camaradas, enquanto combatiam no interior da unidade. Mas este camarada,  com a intensidade do fogo e a tentativa de resposta do inimigo, não desempenhou o seu papel e acabou por desaparecer,  abandonando os instrumentos musicais.

Eu, a partir da posição que ocupava,  gritava com força ao camarada Dauda Bangura,  dizendo-lhe “Dauda! Mina, mina, coloque a mina no sítio indicado e faça-a explodir”. Eu gritava tanto, porque não tínhamos experiência de guerra. Talvez foi por essa razão que não sentíamos o perigo que pairava sobre nós assim como as consequências que poderiam advir.

(continua)

Introdução, seleção, notas, revisão e fixação de texto:  Zé Teixeira

______________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 18 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6866: O Nosso Livro de Visitas (97): José Pinto Ferreira, ex-1º Cabo Radiotelegrafista, CCS/BCAÇ 237 (Tite, Julho de 1961 / Outubro de 1963): Evocando o lendário Cap Curto (CCAÇ 153, Fulacunda, 1961/63)

terça-feira, 7 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25488: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (23) : Camisa Mara, o guardião e guia deste projeto, votado ao abandono depois da morte do Pepito, em 2014... Aqui recordado numa peça da agência Lusa.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 20 de Janeiro de 2010 > Inauguração do Núcleo Museológico Memória de Guiledje > Chegada do Presidente da República, Malam Sanhá Bacai, com a esposa  (à sua esquerda) e o primeiro ministro, Carlos Gomes Júnior, atrás (à sua direita)... 

Embora esteja de perfil,  reconhecemos, de imediato,  de lado direito, cumprimentando o Presidente, o nosso amigo Domingos Fonseca, quadro técnico da AD, então responsável do Núcleo Museológico e membro da Tabanca Grande.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 20 de Janeiro de 2010 > Inauguração do Núcleo Museológico Memória de Guiledje   > O Primeiro Ministro, Carlos Gomes Jr,  "Cadoco", entre a multidão.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 20 de Janeiro de 2010 > Inauguração do Núcleo Museológico Memória de de Guiledje > A nossa representante na cerimónia, Júlia Neto, viúva do nosso camarada José Neto (1929-2007), em conversa com a combatente do PAIGC Francisca Pereira, sob o olhar do nosso amigo Pepito.

Fotos (e legendas): © Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2010). Todos os direitos reservados (Legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine)


1. No passado dia 5 de maio, domingo,  o Patrício Ribeiro, o nosso "cônsul em Bissau", autor da série "Bom Dia desde Bissau", sempre atento e oportuno, mandou-nos um link do portal Sapo, com uma peça da Lusa sobre o antigo quartel de Guileje (ou o que resta dele), e onde se fala de um personagem curioso, o Camisa Mara (e não Cassima Mara, como grafou a jornalista).

O nome desse guardião (e guia local) do que foi "o mais fortificado quartel português nas ex-colónias" (sic), aparece, no programa do Simpósio Internacional de Guiledje, como "Camisa Mara (ex-milícia do Exército Português)" (*), tendo inclusive apresentado, na parte da manhã do dia 6 de março de 2008, uma comunicação oral sobre a vida quotidiana em Guileje, antes do seu abandono em 22 de maio de 1970 pela tropa portuguesa (CCAV 8350 e subunidades adidas).

O título da peça é "O guardião que sonha nova vida para o histórico quartel de Guiledge na Guiné-Bissau". A reportagem da Lusa é assinada por Helena Fidalgo (texto) e Júlio de Oliveira (vídeo). Não vamos, naturalmente, reproduzir na íntegra a peça (até porque tem erros factuais), mas resumi-la, e citar algumas declarações deste histórico guardião e guia local.

Esta história, de resto, interessa-nos, a nós, Tabanca Grande, por que demos muito apoio (incluindo material) à construção do Núcleo Museológico Memória de Guiledje (descritor que tem vinte e tal referências no nosso blogue).

Já suspeitávamos (e temíamos) há muito do desleixo e ruina a que a fora votado este projeto que era tão caro ao nosso Pepito, o engº agr. Carlos Schwarz da Silva (Bissau, 1949-Lisboa, 2014), e onde colaborámos com muito entusiasmo. 

Diz a jornalista da Lusa, Helena Fidalgo: 

"Este guineense esteve na luta ao lado dos portugueses e agora está empenhado em fazer cumprir o propósito daquele a quem chamavam 'o fazedor de sonhos', conhecido por 'Pepito', e que sonhou para Guiledje o único espaço museológico na Guiné-Bissau sobre a luta de libertação nacional para a independência' ". 

A jornalista constata, catorze anos depois da sua inauguração (em 2010, com a presença do presidente da República e o primeiro ministro da Guiné-Bissau, Malan Sanhá Bacai e Carlos Gomes Jr, respetivamente) (**); que "o projeto parou com a morte do (seu) mentor, em 2014" e ficaram apenas dois pavilhões com algum espólio" (...)... O resto são ruinas. 

O Mara serviu de guia à equipa da Lusa, numa visita recente ao local. E esclareceu a jornalista que ele passou a frequentar o quartel quando tinha entre "15 e 16 anos". Terá, hoje, portanto, cerca de 65 anos (ou mais, não sabendo nós em que ano se tornou "milicia" ou passou a servir no quartel como "djubi", fazendo-nos lembrar a figura do Cherno Baldé, "menino e moço em Fajonquito"). 

O Mara, nascido em Guileje, tem consciência da importância histórica daquele lugar: "a história não se perde, a história valoriza um local". (...) "Sente orgulho quando fala de Guiledje"... E, exagerando um bocado, diz: 

"Aqui era o grande amparo dos portugueses, havia todo o tipo de materiais aqui, inclusive abrigos blindados. Só os militares portugueses eram um batalhão, também havia aqui milícias recrutadas, militares locais muito valentes para os portugueses". (...) 

"O Mara 'fazia alguns serviços para os portugueses, lavava pratos, trazia a comida, levava as roupas para a lavadeira e trazia água para os militares' ". (...) "Também fazia carregamento de munições de armas pesadas quando havia um ataque ao quartel".(...) 

Não saía para o mato, como saíam os milícias e os militares, "mas se houvesse guerra aqui no quartel eu era uma das pessoas que ajudava os portugueses a carregar as munições das armas"... 

Recorda depois o dia (o do abandono das instalações, na noite de 22 de maio de 1973), "em que fugiram juntos e o destino foi Bolama, depois de uma longa caminhada de militares, mulheres e crianças"... 

Há aqui um erro de registo ou de interpretação por parte da jornalista: os militares e civis de Guileje foram para o quartel mais próximo, Gadamael Porto. É possível, depois, que alguns civis, para fugir da ewscalada da guerra em Gadamael,  se tenham refugiado na ilha de Bolama.

(...) "Este guineense e outros conterrâneos decidiram voltar para a tabanca depois da independência, quase um ano passado e com o quartel já na posse do PAIGC e do novo Estado guineense." (...)

Mais tarde, por volta de 2006, o Pepito, diretor executivo da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau, no bairro do Quelelé, começa a trabalhar a ideia de criar ali o "Núcleo Museológico Memória de Guiledje", com financiamemto externo (União Europeia). E o Camisa Mara foi um dos habitantes locais que deu o seu melhor para ajudar a levar o projeto para a frente (o que está muito bem documentado, aliás, no nosso blogue)..

(...) "No início da construção do museu, tivemos que desmatar o local, porque havia perigo para andar, tinha minas, tinha cobras, fui eu que fiz o caminho e contratei pessoas". (...).

No final o Pepito encarregou-o de gerir o museu (sic). E ele continua a guiar as ocasionais visitas. Mas o que foi feito, "está desprezado", votado ao abandono, por incúria de todos, a comunidade local, a ONG AD, a administração pública, o Governo...

(...) "Gostava que esta ideia, que sonharam juntos (ele e o Ppeito), se concretizasse e que a memória não se apague." (..:)

(...) "Nas memórias guarda o dia da abertura do quartel de Guiledge, em que 'veio um batalhão de artilharia' (sic) "(leia-se um Pelotão de Artilharia).

Lembra-se da visita do próprio António Spínola

(...) "Pepito", como recordou, "fez um grande esforço" para revitalizar este espaço, "mas a canoa ficou pelo caminho" porque "sem sucessor o trabalho não vai".

Ninguém lhe paga nada por esta tarefa, ele tem outras fontes de rendimento. Mas é o seu amor a este projeto que o leva a guiar os visitantes e a zelar pelo que resta. (***)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 7 de fevereiro de 2018 > Núcleo Museológico Memória de Guiledje >  Memorial à CCAV 8350 (1972/1974) e ao alf mil Lourenço, morto por acidente em 5/3/1973. De seu nome completo Victor Paulo Vasconcelos Lourenço, era natural de Torre de Moncorvo, está sepultado na Caparica. Foi uma das 9 baixas mortais da companhia também conhecida por "Piratas de Guileje" e um dos 75 alferes que perdeu a vida no CTIG..

Em segundo plano, vê-se o nicho que ao tempo da CCAÇ 3477 (1971/77), "Os Gringos de Guileje", abrigava a  imagem de Nossa Senhora de Fátima e do Santo Cristo dos Milagres. A CCAÇ 3477 era, na alturam, comandada pel cap mil Abílio Delgado, nosso grã-tabanqueiro.

Fotos: © Anabela Pires (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]




 Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje >  > Placa indicativa do local onde existiu um dos espaldões de artilharia. do obus 14.

Foto (e legenda);  © Carlos Afeitos (2013). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]





Guiné < Região de Tombali > Carta de Guileje (1956) > Escala 1/50 mil > Pormenor: posição relativa da povoação de Guileje, situada a cerca de 8 km da fronteira com a Guiné-Cronaki (a leste).

Infografia: © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013). Todos os direitos reservados.

___________

Notas do editor:

(*) Simposium Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de março de 2008) > Quinta-Feira, 6 de Março, na Assembleia Nacional Popular

Painel 4 > Guiledje: Factos, Lições e Ilações

(depoimentos e testemunhos de elementos da população, dignitários, testemunhos presenciais, régulos, ex-combatentes do PAIGC e ex-milícias africanas do Exército português)

Moderadora: Isabel Buscardini (Ministra dos Combatentes da Liberdade da Pátria)

9h00 - 9h30: Úmaro Djaló (Comande Militar do PAIGC) – A minha experiência de guerrilheiro e de comandante no Sul da Guiné-Bissau: achegas para a História de Guiledje.

9h30 - 10h00: Buota Na N’ Batcha (Comandante Militar do PAIGC) – A acção dos bi-grupos e dos corpos de Exército do Sul na guerra de libertação nacional: o caso do assalto ao aquartelamento de Guiledje.

10h00 - 10h30: Joãozinho Ialá (ex-guerrilheiro do PAIGC) – Memórias do Assalto ao Quartel de Guiledje, Gandembel e Balanacinho.

10h30 - 11h00: Francisca Quessangue (Enfermeira do PAIGC) – Os aspectos sanitários-logisticos do PAIGC no assalto ao quartel de Guiledje

11h00 - 11h30: Pausa Café

11h30 - 11h50: Fefé Gomes Cofre (ex-guerrilheiro do PAIGC) – O meu testemunho sobre o assalto ao Quartel de Guiledje.

11h50 - 12h10: Salifo Camará (Régulo de Cadique) – O papel das populações civis na guerra de libertação no Sul e no assalto ao aquartelamento de Guiledje.

12h10 - 12h30: Camisa Mara (ex-milicia do Exército português) – A vida no Quartel de Guiledje

12h30 - 12h50: Cadjali Cissé (ex-guerrilheiro do PAIGC) – A minha participação no Assalto a Guiledje

12h50 - 13h10: A designar (condutor) – A minha experiência no transporte de munições e mantimentos

13h30 - 15h00: Almoço (...)


(**) Vd. poste de 19 de março de 2010 > Guiné 63/74 - P6020: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (16): Um dia de ronco, um lugar de (re)encontros, uma janela de oportunidades (Parte I)

(***) Último poste da série > 8 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12127: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (23): A placa toponímica "Parada Alf Tavares Machado" estava afixada na parede da messe de sargentos (Luís Guerreiro, Montreal, Canadá, ex-fur mil, CART 2410, 1968/70)

quinta-feira, 7 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11207: (In)citações (50): "A Voz da População", um filme dos nossos amigos da AD-Bissau, sobre a experiência pioneira das rádios comunitárias... Com a Rádio Voz Quelelé à cabeça, são já 30, cobrindo praticamente todo o país

+

Vídeo (26' 23''): "A Voz da População"

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2012). Todos os direitos reservados [Cortesia da Margas Filmes]

1. Os nossos amigos e parceiros da ONG  AD -Acção para o Desenvolvimento,  com sede em Bissau (#), no bairro do Quelelé,  estão de parabéns: acabam de lançar um filme sobre a história e o desenvolvimento das “Rádios Comunitárias da Guiné-Bissau”, sob o título "A "Voz da População".(##)

O filme, com a duração de 26 minutos foi financiado pela OXFAM NOVIB. Tem argumento e texto de Lucia van den Bergh e realização e imagem de Andrzej Kowalski. Nele participaram jovens das três televisões comunitárias da AD, lideradas por Demba Sanhá, relatando a evolução deste meio de comunicação comunitário, desde o tempo em que se deu a abertura politica na Guiné-Bissau, até à sua instalação em quase todos os setores administrativos  do país. Cerca de 3 dezenas de rádios comunitárias cobrem hoje praticamente todo o país, desde Bissau ao Boé e do Cacheu ao Tombali  (*)

A Rádio Voz de Quelélé foi a primeira a ser criada, justamente em 4 de Fevereiro de 1994, pela Associação dos Moradores do Bairro de Quelélé, com o apoio da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, cujo diretor executivo é o nosso amigo Pepito (Eng agr Carlos Schwarz). (**)

No sítio da AD, na Internet, pode ler-se: " Para nós, guineenses, é uma enorme alegria poder estar na liderança deste processo em todos os países africanos com os quais fizemos o percurso para a independência nacional. Este filme está disponivel em 3 idiomas: português, francês e inglês. Convidamos todos a aceder a qualquer destas versões e a dá-la a conhecer nos respectivos países".

(#) Contacto: ONG AD – Acção Para o Desenvolvimento
Caixa Postal 606
Bairro de Quelelé
Bissau
República da Guiné-Bissau
Email: adbissau.ad@gmail.com
URL: http://www.adbissau.org/
FB: https://www.facebook.com/adbissau

(##) Ficha técnica:

Realização: Andrzej Kowalsk
Argumento e texto: Lucia van den Bergh
Locução: José H. Neto
Imagem:  Andrzej Kowalsk
Assistente de câmara:
Demba Sanhá
Inácio Mamadu Mané
Edição: Luís Margalhau
Tradução: J. H. Neto
Posprodução: Margas Filmes

Agradecimentos:

Rádio Voz Quelelé (, bairro do Quelelé, Bissau]
Rádio Kassumai [, São Domingos, região do Cacheu]
Rádio Balafom [, Ingoré, região do Cacheu]
Rádio Lamparam [, Iemberém, região de Tombali]
TVK - Televisão Comunitária do Quelelé
___________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 6 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11202: (In)citações (49): Quando os vencidos é que fazem a história... Ou, como lá diz o provérbio, "dunu di boka más dunu de mala" [, mais vale ter uma grande boca do que uma grande mala] (Cherno Baldé)

(**) Um caso de sucesso, a Rádio Voz Quelelé (RVQ) no combate contra o surto de epidemia de cólera (Bissau, 1994):

(...) Por iniciativa particular de José Henriques, então técnico da ICAO a dar assistência técnica à Guiné-Bissau e que dedicou toda a sua vida, entusiasmo e competência à promoção de novas e modernas tecnologias de comunicação adaptadas ao desenvolvimento do país, a ONG Acção para o Desenvolvimento (AD) envolveu-se na criação desta primeira rádio comunitária que veio trazer ao bairro uma dinâmica de auto confiança e identidade que se está a transformar num instrumento útil de desenvolvimento colectivo.

Foi nesse ano que se dava então início à experiência daquela que passou a ser a primeira rádio comunitária de Guiné-Bissau, a partir de um pequeno equipamento de base; uma consola e uma antena as emissões cobriam um raio de cerca de 4km. Atingindo o bairro de Quelelé, com cerca de 10.000 habitantes, bem como alguns bairros limítrofes como Cumtum, Bairro Militar, Bor e Bra.

A adesão e entusiasmo criado nos habitantes do bairro, particularmente nos jovens que foram os primeiros a aderirem em força, aliados ao facto de se estar em vésperas de eleições presidenciais e legislativas levaram o poder político a interditar o funcionamento da rádio Voz de Quelelé e ordenar o seu enceramento, pretextando o não cumprimento das leis do país.

Com o surgimento de epidemia de cólera em outubro de 1994 e do pânico generalizado que se viveu, a rádio Voz de Quelelé decidiu recomeçar as suas emissões. Se no princípio do ano a rádio Voz de Quelele funcionava apenas aos fim de semana, nas manhãs de sábado e domingo, já nesta fase as emissões passaram a ser diárias, apenas no período da tarde.

O maior sucesso da rádio Voz de Quelele foi sem dúvida o combate à cólera, uma actividade que se baseou em duas vertentes: a) Organização da população para limpeza do bairro, remoção do lixo desinfecção do poços, evacuação dos doentes para o hospital (a AD teve um veículo sempre à disposição), desinfecção em casa dos doentes, visitas diárias dos membros do comité dos moradores a cada residência a fim de detectar casos de cólera; b) Sensibilização da população para uma maior higiene doméstica, para um maior e reforçado acompanhamento das crianças, para a explicação da origem e formas de propagação da doença.

Toda a campanha utilizou fundamentalmente a rádio Voz de Quelelé, onde regularmente vinham médicos da AD que respondiam às questões pertinentes colocadas diariamente pela população em mensagens adaptadas a uma linguagem directa e passadas nas várias línguas das etnias do bairro.

Segundo informações de que se dispõe, o bairro de Quelelé tera sido o menos atingido de Bissau por esta doença, com apenas seis casos confirmados de cólera, um dos quais mortal. (...)

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22812: (De)Caras (184): Sene Sané, régulo de Pachisse, com capital em Canquelifá, tenente de 2ª linha, vogal do Conselho Legislativo, falecido em 1969


Sené Sané, régulo de Canquelifá, eleito pelas autoridades tradicionais para o Conselho Legislativa da Província Portuguesa da Guiné. Sané Sané, régulo de Canquelifá, Tenente de 2ª linha, pertencia *a nobreza mandinga, sendo descendente do último rei do império do Gabu (morto na batalha de Cansalá, em 1867). Publicada em "O Arauto", diário da Guiné, edição de 14 de junho de 1964.

Foto (e legenda): © Lucinda Aranha (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do do livro de fotografia "Buruntuma: algum dia serás grande, Guiné, Gabu, 1961-63". (Edição de autor, Oeiras, 2016).] (*): o fotógrafo, em 1961, ao lado do então régulo Sené Sané, que era tenente de 2ª linha. junto ao marco fronteiriço ("República Portuguesa: Província da Guiné"), na fronteira com a República da Guiné. Cortesia do autor-

O autor, Jorge Ferreira, ex-alf mil da 3ª CCAÇ (Bolama, Nova Lamego, Buruntuma e Bolama, 1961/63), é membro da nossa Tabanca Grande, é um fotógrafo amador com mais de meio século de experiência, tem um página pessoal no Facebook, além de um sítio de fotografia, Jorge da Silva Ferreira; as suas fotos de Buruntuma inserem-se na categoria da etnofotografia.


1. O PAIGC teve vários militantes (e guerrilheiros), de apelido Sané, provavelmente aparentados com o Sené Sané (**), um dos mais poderosos régulos da Guiné, na época colonial, ao ponto de ter sido eleito para o Conselho Legislativo da Província (criado pela Portaria n.º 19921, Diário do Governo n n.º 150/1963, série I. 

Os outros dois eleitos foram o régulo de Badora, Mamadu Bonco Sanhã, e o régulo de Cachungo, Joaquim Baticã Ferreira, fuzilados pelo PAIGC a seguir à independência. O Conselho começou a funcionar em 1964 sob o "consulado" de Schulz. Sené Sané teve "a sorte" de morrer... em 1969. Mas a sua cabeça devia estar... "a prémio", a par do Bonco Sanhá e do Baticã Ferreira.  Para o PAIGC, era "um dos cães dos colonialistas". (***)

Ironia da história, o actual régulo de Pachisse (vd. carta de Canquelifá 1957, escala 1/50 mil) que abrange as aréas de Canquelifa, Camajaba e Buruntuma, é o José Bacar Sané, um dos filhos do velho régulo Sene Sané (imformação confirmada pelo Cherno Baldé e pelo Patrício Ribeiro).(*)

Em 27/11/2019, o Patrício Ribeiro escreveu-nos (*): 

"Falámos com filho mais velho, do antigo régulo Sene Sané, José Bacar Sané, telemóvel nº 00254...119, morador em Canquelifa, é o actual régulo de Canquelifa e Buruntuma, já com alguma idade. (Foi antigo militar português do grupo de Marcelino do Mata).

"Nomeou o seu irmão mais novo, Mama Sané ( telemovel nº 00 245...330), residente em Buruntuma, seu representante do seu regulado em Buruntuma."

E a propósito o Chermo Baldé comentou no poste P20384 (*):

(...) "Como se costuma dizer, pode-se facilmente conquistar um território pela violência, mas é extremamente difícil continuar a governar as pessoas na base na mentira e na propaganda. Começaram, logo após a independência, por destituir todos os Régulos e Regulados (quando não eram fuzilados) e nomeado seus Comitês de tabancas. Com o tempo constataram que nada funcionava como queriam e a população não reconhecia as autoridades impostas de cima para baixo. Com o golpe de estado de Nino Vieira, voltaram a reconhecer as antigas chefias da época colonial para melhor controlar e manipular as populações."

E esclarece o nosso colaborador permanente, que vieve em Bissau: "O Regulado que tutela a cidade de Pitche chama-se Manna e tem a sua sede em Dara, localidade a cerca de 15/17 Km de Gabu cidade na estrada para Pitche. Este Regulado confina com o de Chanha a sul e o Paquessi a Nordeste/Leste."

O nosso editor LG,  por sua vez,comentou:

"Era voz concorrente que os elementos do grupo "Os Vingadores", comandados por Marcelino da Mata, teriam sido todos fuzilados, a seguir à Independência, com uma ou duas exceções (a começar pelo Marcelino, oportunamente refugiado em Portugal)...

"Se o José Bacar Sané, filho do antigo régulo Sene Saná, da época colonial (e amigo do Jorge Ferreira), foi um antigo militar português, e esteve integrado no grupo de Marcelino do Mata, "Os Vingadores" (de acordo com a informação do Patrício Ribeiro), e está vivo, mora em Canquelifa, e é hoje o atual régulo de Canquelifá / Buruntuma... bom, só temos que nos congratular com esse facto... Espero que seja um sinal, sincero e irreversível, da reconciliação dos guineenses que outrora foram 'inimigos', combatendo uns sob a bandeira do PAIGC e outros sob o estandarte do exército português, naquilo que foi não apenas uma 'guerra pela independência' ou de "libertação' mas também uma 'guerra civil' "


Guiné > Região de Gabu > Canquelifá > s/d  > O régulo Sene  Sané, tenente de 2ª linha, com uma das filhas, e um militar português. Alguém é capaz de identificar este camarada e a subunidade a que pertencia? - Pergunta a Lucinda Aranha. O régulo morreu em 1969.

Foto (e legenda): © Lucinda Aranha (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Gabu > Carta de Canquelifá (1957) > Escala 1/50 mil > Pormenor > Posição relativa de Canquelifá, capital do regulado de Pachisse.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)


2. Reproduz-se  a seguir um documento, do Arquivo Amílcar Cabral, datado de Kundara, República da Guiné,  16 de janeiro de 1962, e onde é patente o temor que o régulo Sene Sané inspirava em Canquelifá: 

Em carta, datilografada a Amílcar Cabral, José Ferreira Crato faz o balanço das informações obtidas na sua sequência da sua viagem de  reconhecimento da região fronteiriça. Ele e o  seu companheiro, Alphouseni [Sané], natural do regulado de Pachisse,  não conseguiram transpor a fronteira e chegar ao coração da região de Gabu, como pretendiam, e conforme missão que lhes fora confiada pelo Secretário Geral do PAIGC. Todavia, terão recolhido informação relevante sobre Canquefilá.  Na povoação fronteiriça da Guiné-Conacri, que o remetente  não identifica, chama-lhe apenas "a última tabanca dos pajadincas", haveria já muitos "simpatisantes" do PAIGC... Repare-se, estamos o início do ano de 1962...

Pode ler-se: "Encontrámos muitos simpatisantes do nosso partido, porque quase todos os pajincas ali residentes são de Canquelifá, que fugiram por causa do régulo Sené Sané (sic)"... 

E arremata: "Eu não garanto, mas pelos vistos havemos de vencer o Sené Sané, sem dificuldades como muitos julgam".





Citação:
(s.d.), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_37630 (2021-12-15)

Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares |  Pasta: 04604.038.014 | Assunto: Informa que já se encontra em Koundara. Missão na fronteira com Alfosseine. Dificuldades na tabanca dos Pajadincas. Can-Quelifá. Declarações da população local. Régulo Sene Sané. | Remetente: José Ferreira Crato, Koundara | Destinatário: Secretário Geral do PAIGC [Amílcar Cabral] | Data: s.d. | Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência 1962 (...)  |  Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.

  [Reproduzido com a devida vénia...]  

3. Comentário do Cherno Baldé, acabado de chegar,  ao poste P22808 (**)

A acentuação em alguns nomes não está correcta, assim escreve-se Sene e não Sené (nome próprio das etnias mandinga e fula); escreve-se também Alage e não Alagé (titulo honorifico de quem fez a peregrinaçao a cidade "santa" de Meca, transfigurado para nome próprio nos grupos muçulmanos).

O caso da família dos Sané, régulos de Pachisse com capital em Canquelifa e descendentes directos de Djanké Waly, o último rei de Gabu ou Kaabu, ilustra o facto de que, na realidade, nunca houve uma guerra entre fulas e mandingas, como sempre se propalou durante o regime colonial, pois se isso fosse o caso os Sané de Paqhisse (Canquelifa) não seriam régulos após a derrota dos mandingas. 

A história da África Ocidental está repleta de casos de guerras pelo poder em que os derrotados eram sempre obrigados a se submeter ao grupo maoritário de entre os vencedores e o surgimento de novas alianças estratégicas, facto que muitas vezes levava a mudanças radicais entre os vencidos, inclusive o abandono da sua língua e parte de práticas culturais e adopção de uma outra lingua, usos e costumes.

Neste caso concreto, os Sané de Canquelifa, para continuarem a fazer parte do poder foram obrigados a se converter a favor da língua fula, grupo maioritário e mais forte dentro do grupo que conquistou o poder, de tal maneira que as últimas gerações, vivendo no meio de uma maioria fula, já nao falavam a lingua mandinga e muitos nem se consideravam mandingas. 

Quem diz mandingas, diz também padjadincas, saracolés, landumas, bajaras, jacancas etc; da mesma forma que os fulas durante todo o periodo de mais de 6 séculos que estiveram sob o dominio mandinga de Mali, primeiro e Gabu, mais tarde, foram obrigados a falar a língua do dominador, apesar da resistência passiva em curso.

Era esta a realidade no terreno e em espaços humanos ainda em construção e em constantes mutações sócio-politicas e territoriais. Todavia, os novos acontecimentos no território após a independência (1974) tiveram o efeito e a tendência inversa ao curso dos anos anteriores, obrigando a novas situações e novos posicionamentos de adaptação ao novo contexto político e social.
____________

Notas  do editor:


(**) Vd. postes de: 


15 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22808: Fotos à procura de... uma legenda (157): Os quatro membros da comitiva guineense (a saber Sené Sané, Sampulo Embaló, Duarte Embaló e Alagé Baldé, amigos do meu pai, Manuel Joaquim dos Prazeres,) às Comemorações do V Centenário da morte do Infante D. Henrique, agosto de 1960 (Lucinda Aranha, escritora) - II ( e última) Parte

(***) Último poste da série > 24 de novembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22748: (De)Caras (183): Revivendo e partilhando (João Crisóstomo, Nova Iorque, de Visita a Portugal)

domingo, 20 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1770: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (46): Encontros de morte em Sinchã Corubal, com a gente de Madina

Madrid > Museu do Prado > Francisco Goya (1746-1828) > 1814 > O 3 de Maio [de 1808: o fusilamento dos patriotas, defensores de Madrid, às mãos do exército napoleónico]. Quadro a óleo.

Fonte: Wikipedia: the Free Encyclopedia (Imagem do domínio público).



46ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado a 27 de Abril de 2007. Subtítulos do editor do blogue.


Caro Luís, já li o episódio que hoje publicaste e agradeço do coração o teu desvelo. Os livros já seguiram. Prevejo que amanhã vamos viver uma heróica e pacífica jornada e eu preciso de receber alento para os episódios das próximas semanas, tal o cansaço e o sofrimento que me está reservado para estes úlitmos meses em Missirá. Recebe a gratidão do Mário.




O reencontro em Sinchã Corubal

por Beja Santos



Eram homens para encarar as trevas de frente. ("Coração das Trevas", por Joseph Conrad)



Convoco de surpresa Domingos da Silva, Nhaga Macque e Benjamim Lopes da Costa para trabalharmos pelas 11h da noite naquele dia de 16 de Maio [de 1969]. Tenho uma confiança ilimitada nos meus três cabos africanos e pretendo transmitir-lhes cuidadosamente o modo de actuação que quero que se venha a adoptar na emboscada nocturna que iremos desencadear em breve à volta de Sinchã Corubal.

Não há dúvida que a gente de Madina [, sita a noroeste do Mato Cão, com Sinchã Corubal pelo meio,]percorre com desfaçatez duas picadas que vêm de Cabuca (qualquer coisa como a dois quilómetros do acampamento de Madina) e à volta do rio de Ganturandim avançam em direcção à estrada de Saliquinhé/Mato de Cão/Gambaná e daqui vão até aos Nhabijões ou a Mero/Santa Helena para se reabastecerem e colherem informações.


Quando a gente de Madina vinha a Bambadinca abastecer-se de tabaco, cola e comida


Passados estes anos todos, continuo intrigado quanto à periodicidade e finalidades destas viagens. Em novo frente-a-frente com Queta Baldé, volto a questioná-lo mas a sua resposta mantém-se inalterável:
- Nosso alfero, eles pretendiam tabaco, cola e comida que não há no mato, trocando com o que produziam em alimentos e esteiras. Queriam informações sobre quem estava em Missirá, porque nunca acreditaram que dois pelotões africanos fossem diariamente a Mato de Cão, pensavam que havia ali uma companhia. Vinham mais civis que militares, aprendi nos Comandos que punham à frente dois apontadores de RPG2 e mais alguns com Kalash, depois vinham civis com os produtos para trocar. Fugiam do contacto connosco porque sabiam que íamos a Mato de Cão a qualquer hora do dia ou da noite e que emboscávamos à volta de Missirá e Finete. Quando souberam que havia patrulhamentos à volta do Geba, entre Boa Esperança e Aldeia do Cuor, rodearam-se de cautelas e esperavam horas e horas a ver se havia movimento do nosso lado. Mas tinham que desafiar este perigo para vir até Bambadinca para comprar e espiar. Não imaginaram que quando nosso alfero ia a Mato de Cão aproveitava para lhe conhecer os caminhos. Esta maneira de trabalhar no PAIGC via-a também em Gâmbara, na região de Quínara, quando o Spínola mandou a 2º Companhia de Comandos fazer um quartel no mato. Quando os soldados do PAIGC queriam saber coisas a nosso respeito, deixavam as armas num esconderijo, punham um pano à volta do tronco e entravam a rir no nosso quartel, dizendo que vinham fazer compras. Depois partiam e as ordens do Spínola é quem entrava e saía sem armas não devia ser preso.

Mando sentar os três cabos africanos e revelo-lhes os meus planos. Em breve, pode ser esta madrugada, partiremos para um patrulhamento ofensivo. Pretendo esperar a gente e Madina já perto do seu acampamento, na região de Sinchã Corubal. Se o reencontro tiver lugar de dia, estarei rodeado dos apontadores de dilagramas e dos bazuqueiros, quero fogo infernal para intimidar e depois fugimos. Se o reencontro tiver lugar de noite, faz-se terror e também fugimos imediatamente. Emboscaremos as vezes que for preciso, serão patrulhamentos em que levaremos o dobro das munições e obrigatoriamente rações de combate e dois a três cantis de água. Quem decide o fogo e a retirada sou eu.

Quero que aquelas instruções sejam transmitidas vezes sem conta mas só antes de sairmos de Missirá e até lá exijo a todos a boca fechada. Segue-se um período de perguntas. O Domingos pergunta-me se vai o enfermeiro e a resposta é afirmativa. O Benjamim sugere o rádio ao que respondo que é uma brutalidade andar com aquela tonelada às costas a correr de noite sabe-se lá com que lama nos pés. Todos dizem que estão esclarecidos, e aproveito a energia que me resta para escrever aerogramas para os meus entes queridos. O que se segue está registado num aerograma que enviei à Cristina, a 19 [de Maio de 1969].


Um homem fisicamente esgotado, que cai à cama e descobre... o Alexandre O'Neil



Levanto-me para pedir um leite achocolatado e esbarro na escuridão de uma vertigem, ainda guardei nos ouvidos o grito do Cherno quando me viu estatelar-me com estrondo na secretária de onde saltam o livro da contabilidade da cantina e a papelada das burocracias de Bambadinca. A única lembrança é a expressão do David Payne debruçado sobre o meu catre.
- Meu velho, estás mesmo fraquinho. O Adão apareceu-me aos gritos logo de manhã a dizer que devias estar morto pois não te sentia o pulso. Tens a tensão arterial muito baixa, chega de puxar pelo corpo até ao impossível. Para já, vais tomar café, ficas na horizontal e vais tomar vitaminas. Se essas aguilhoadas no coração aumentarem, falamos pela rádio e posso decidir a tua evacuação. Ganha juízo.

Ganhei e não ganhei. Estava, de facto, fisicamente tão derribado que o primeiro dia na cama foi um consolo, portei-me como se estivesse num hotel de luxo. O Ruy Cinatti tinha enviado a obra do Alexandre O'Neill intitulada No Reino da Dinamarca, coligindo toda a sua obra poética entre 1951 e 65. Assim que a cabeça deixou de andar à roda, atirei-me ao encantamento poético deste recém descoberto O'Neill. Os primeiros livros deixaram-me impassível. A partir de 62, o caso fiou mais fino. Logo o "Auto-retrato" no livro de 1962, coisa demasiado nova a aguar-me a vontade de inserir-me neste turbilhão linguístico:

"O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdinhosa e não cicratizada..."

E vou por aí fora, deslumbrado pela lufada de ar fresco. Por exemplo, o poema "Os Atacadores":

A noiva já e noiva, a noiva já na igreja
e tu não encontras os atacadores!

Já viste na caixa dos sobejos, na mãos dos bocejos?
Já viste na caixa da cómoda?
Já viste nas pregas da imaginação?

Convém-te não encontrar os atacadores?

Há noivas que esperam até murcharem as flores,
noivas de pé, muito brancas e já a fazer beicinho...

Procura... procura sempre, pobrezinho!...
Procura mas não encontres os
atacadores...

E chegamos à poesia de 1965, "Portugal":

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moínho abraços com vento
testarudo, mas embolado, e afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal, o manso boi coloquial,
o rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos...

O'Neill vem juntar-se a outros contemporâneos do meu culto, ao Herberto Hélder e ao Cesariny. Mais uma vez obrigado, Ruy!


Capa do romance policial, A Raposa Que Ri, da autoria de Frank Gruber.

Foto: Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007).


Ao segundo dia, a cabeça anda agitada, o Casanova entra e sai, não páro de o chamar, quero saber se Missirá está no mesmo sítio e a vida prossegue em espiral. Recebo dois soldados recém-chegados, um que se chama Sadjo Baldé, nome idêntico àquele que morreu desfeito por uma morteirada em 19 de Março e Queba Baldé, que vem de Badora. O Pires lê-me o correio que vem de Bissau onde fico a saber que o soldado Jalique Baldé, rejeitado pela tropa especial, foi colocado em Missirá, onde chegará em breve. Recebo o régulo, tomamos chá juntos, e dou comigo a aprovar a ideia de se fazer uma construção protectora para o túmulo de seu pai, o régulo Bacari Soncó.

Leio policiais, um divertídissimo Frank Gruber, A Raposa que ri, mais uma história hilariante envolvendo Johnny Fletcher e Sam Cragg, um intelectual e outro musculado que andam de feira em feira a vender um livreco sobre as artes de ter um corpo de Sansão... inevitavelmente, há crimes, a dupla corre o risco de ser incriminada por homicídio e a super inteligência de Fletcher leva a descobrir um velho mistério que é o desaparecimento de Chester Erb, o filho do multimilionário que vai reaparecer no congresso dos criadores de gado, em Cedar City, onde se passam todas estas façanhas.

Ao terceiro dia arrebito e dou a saber que irei fazer emboscada nocturna. E, no dia seguinte, aviso que irei a Mato de Cão. Começou o tempo dos patrulhamentos ofensivos. Um comboio de navios passou à hora aprazada, pelas 11 da manhã, saúdo-os no pontão do ancoradouro e dou instruções ao picador Quebá Soncó:
- Subimos agora o palmeiral de Mato de Cão e vamos ver a velha picada que leva a Sinchã Corubal [, na margem esquerda do Rio Ganturandim, afluente do Rio Geba]. Se descobrirmos um trilho batido, avise-me imediatamente pois não quero que ninguém deixe marcas perto. Se eles descobrem que nós já sabemos o caminho, temos que recomeçar tudo de novo.


Emboscados na bolanha de Sinchã Corubal, a sudeste de Madina


Felizmente que está de chuva, a progressão é lenta porque o capim fere e entrava o passo. Não há sinal de vida, o trilho está mesmo abandonado. Entramos pela orla do palmeiral de Sinchã Corubal, uma verdadeira boca de serpente e subimos como se fôssemos em direcção a Madina. Nada, quem manda ali é a Natureza, as lianas, velhos campos de cultura abandonados, águas estagnadas. Cibo Indjai conversa comigo:
-Vês alfero, as aves piam, não há gente, passou ali gazela, ninguém vive aqui, ninguém passa por aqui.

Em frente a Cabuca, descemos lentamente como se fôssemos Iaricunda, e Quebá Soncó mostra o alívio no rosto, como se tivessemos escapado da catástrofe, ele teme que eu avance de rompante com mais 30 homens e desafie a céu aberto um bigrupo... É na descida à volta do rio de Ganturandim que subitamente Quebá levanta a pica a fazer-me sinal. Fui ver. Era um trilho bem marcado por sandálias de plástico marcadas na lama humedecida. Flanqueando à distância o trilho fomos vendo até aonde ele descia. Olhando a carta, a minha velha carta que se vai desfazendo de tanto manuseio, embora suporte com o desgaste mesmo metida num invólucro de plástico, reparo que a gente de Madina/Belel vai pela velha picada , ou muito perto até estrada de S. Belchior. Seguindo o seu rasto, vamos ver que a picada atravessa a bolanha do Ganturandim e chega ao Geba. As pegadas mais recentes vão em direcção a Madina. Decido que hoje não vale a pena esperar. Amanhã, o barco passa cerca do meio dia, então sim teremos emboscada em Sinchã Corubal e ficaremos lá nem que sejam 48 horas. E assim foi.

Os batelões com material da engenharia e dois barcos civis passam à hora certa, é aqui que acaba o patrulhamento diário e começa o propósito de me reencontrar com Corca Só e agradecer-lhe a cartinha amável que me deixou a ameaçar-me de morte.

São 17 horas de 27 de Maio quando, depois de subirmos a bolanha de Ganturandim estamos posicionados do outro lado da bolanha de Sinchã Corubal. O lusco fusco anuncia-se num céu que já de si tem estado plúmbeo. O que recordo desse dia passo a escrever. Estamos dentro do trilho de Madina, tenho Tomani Sanhá e Mamadu Djau de pé com as bazucas engatilhadas; Cherno Suane tira cargas do morteiro 60 a apalpa o colar de granadas que traz do pescoço ao peito; Queta Baldé examina as fitas da HK21; Mamadu Camará prime os cartuchos e olha com orgulho os seus dez carregadores. E as trevas cobrem totalmente a força emboscada, estamos entregues aos acasos do destino.

A noite vai alta, ouvem-se pequenos ruídos da comida e do líquido a correr dos cantis para os nossos corpos. De vez em quando, um ruído longínquo para lá do Xime, um piar de uma ave, os estalos de matéria viva no arvoredo. As horas passam, é quando temo que a perigosa descontracção arrefeça a vigilância. É nisto que Mamadu Djau com a sua mão direita feita garra me traz à vida agarrando-se ao meu ombro e ciciando:
-Alfero, oiço gente a entrar neste mato.


E de repente, Goya e os fuzilamentos do 3 de Maio

Faço passar a palavra de que sou eu o primeiro a disparar. Um restolhar leve transforma-se num passo cadenciado e como se tivesse aberto uma porta na floresta vários vultos recortam-se na orla tenuemente iluminada pela lua. Os meus nervos resistem, deixo aquela passada toda avançar resoluta, sem suspeitar que a 100 metros está uma zona de morte. De 100 metros passa-se a 50, é mais de uma dezena o número de vultos que consigo distinguir. E no silêncio absoluto daquela mata, levanto-me e desfecho dois carregadores com a garganta seca e o olhar fixo. O fogo brutal das bazucas, dilagramas e morteiro fazem o resto.

Ouvem-se gritos de surpresa, levantam-se braços e durante anos, quando rememorava a noite de Sinchã Corubal, eu pensava sempre no quadro de Goya O massacre de 3 de Maio, não me perguntem porquê, não vi nenhum olhar aterrado, só ouvi o clamor dos gritos aterrorizados pela surpresa, a fuga entre o estampido que flagelava a noite, não sei se há mortos nem feridos, nós só viemos aqui para dizer a Madina que circulamos por onde queremos, que no quartel de Missirá não se treme de medo, somos caçadores e não vamos só a Mato de Cão.

São minutos que demoram horas, e depois do caudal de fogo e da incapacidade de resposta, vendo que o colar de granadas de Cherno está reduzida a quase nada, lanço um grito medonho e assinalo a retirada. O meu maior espanto é como é que os nossos pés voam no patinhado do próprio trilho, sem cuidar sequer na hipótese de um reencontro com um grupo que viesse dos Nhabijões para Madina...

Em menos de uma hora estávamos na estrada, em minutos conferimos o grupo só me lembro dos rostos perlados de suor, reflectido pelo luar. E em passo estugado, por vezes a correr, de Saliquinhé chegámos a Gambaná, daqui até à curva de Canturé, depois dez minutos a recuperar energias, nova correria até à outra curva de Canturé, daqui a Gã Gémeos, depois Sansão e na porta de armas de Missirá todos os soldados sem excepção, o régulo, o clã Soncó e o clã Mané aguardam-nos com a ansiedade estampada. Abraço Malã e digo-lhe:
-Correu tudo bem, vamos dormir que amanhã há muita coisa para fazer.

Há sorrisos, contam-se histórias, atrevo-me a perguntar ao Barbosa o que se passa com a boina verde...Foi muita emoção, peço a todos que não se esqueçam que a madrugada está a chegar ao fim. Não voltaremos a emboscar desta maneira, e enquanto se ouve o troar dos morteiros em Madina, sabe-se lá se à nossa procura, sabe-se lá a lembrar-nos o seu poderio dentro daquela floresta, fomos descansar um pouco. Eu não acredito que aquela emboscada aconteceu, não me interessa a contabilidade dos mortos e feridos, a mensagem para dentro de Madina chegou ao destinatário. Retiro a farda encharcada e só recordo, antes de cair de borco na cama, uma pergunta do Cherno se eu queria a luz acessa para ler...

Vou demorar semanas a dimensionar o nosso feito. Porque o galope dos acontecimentos vai alterar tudo logo no dia seguinte. A 28 de Maio, no sector L1 ganhámos consciência que o PAIGC estava forte, suficientemente forte para alterar as regras do jogo: Bambadinca vai sofrer um enorme susto, de Junho em diante não passaremos sem morteiradas sobre Missirá. Entretanto, prossigo alheio a outros perigos: a tropa está exausta, o Casanova adoece, este ritmo de guerra avassala os ânimos, no fundo este ritmo vertiginoso está a ferir as nossas consciências, a queimar os corpos. Pagarei bem caro esta falta de atenção, tanto em Missirá como em Finete.

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. último post desta série > 11 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1748: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (45): A visita do Coronel, o Grande Inquiridor

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24539: Questões politicamente (in)correctas (58): Ainda a própósito do eventual recurso ao "trabalho forçado" (teoricamente abolido em 1961, por Adriano Moreira) (Cherno Baldé)



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339> Março / Maio de 1969 > Op Cabeça Rapada I.

Foto do álbum do Albano Gomes, que vive em Chaves, e que foi 1.º cabo op cripto, CART 2339 (Mansambo, 1968/69).

Foto (e legenda): © Albano Gomes (2008). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complemementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339> Março / Maio de 1969 > Op Cabeça Rapada I > Milhares de nativos  (c. 7 mil) são requisitados pela administração do concelho de Bafatá para capinar a estrada de Bambadinca - Mansambo - Xitole (cerca de 30 km), de um lado e de outro, numa faixa (variável) de 100 a 200 metros.

Fotos do álbum de Torcato Mendonça (ex-alf mil, CART 2339, Mansambo, 1968/69) (1944-2021)

Fotos (e legendas): © Torcato Mendonça (2007). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complemementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa) >  BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Capinagem  

Foto (e legenda): © José Torres Neves (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. É mais uma questão "politicamente incorreta" (*), aqui levantada pelo nosso arguto, sagaz e frontal  Cherno Baldé, a propósito do trabalho de capinagem ou desmatação (**): era ou não, "de jure et de facto", "trabalho forçado", teoricamente abolido em 1961 nas províncias ultramarinas portuguesas, no âmbito das reformas do ministro do ultramar Adriano Moreira (1922-2022)?

(i) Comentário de Cherno Baldé (**):

Voltando ao Poste do dia e sobre o fundo da questão, acho que estamos na presença de imagens que, na linguagem da época da Guiné portuguesa, se designava por "trabalho obrigatório" ou "trabalho forçado". 

Do ponto de vista oficial, era trabalho voluntário de limpeza das vias e arredores dos aquartelamentos, mas na realidade e para a população civil era um trabalho a que eram obrigados a fazer por ordens dos chefes de Postos e autoridades tradicionais legítimas ou impostas.

A presença dos individuos armados com mauseres e G3 no meio dos trabalhadores tanto poderia ser para a segurança assim como um meio de pressão psicológica e de intimidação, tratando-se sobretudo de jovens pertencentes a etnia Balanta de Cutia e arredores.

É a minha opinião à luz da realidade dos anos 60/70 de que fui testemunho e participante. No meio disso tudo, alguns elementos da tropa metropolitana, mal preparada previamente, sobre os reais objectivos e fundamentos da colonização, paradoxalmente, contrariavam estas linhas de orientação que muitas vezes não compreendiam e mal aceitavam excepção feita aos oficiais superiores que estavam melhor informados. 

Na fase final da guerra, o General Spínola tentou acabar com estas práticas, consideradas muito nocivas e que não se enquadravam na nova política "Por uma Guiné melhor" chocando-se fortemente com hábitos há muito estabelecidos e que davam jeito aos comandantes e chefes de Postos nos aquartelamentos do mato a braços com problemas de meios humanos, financeiros e materiais para todas as tarefas necessárias.

(ii) Comentário do editor LG (a propósito da Op Cabeça Rapada( (***):

É um número impressionante de trabalhadores de etnia fula e mandinga, mas também balanta, naturais dos regulados de Badora (e talvez do Corubal). Desconheço se foram recrutados "voluntariamente" e "devidamente pagos"... É muito provável que tenham sido apenas pagos em géneros: em alimentação e  mais um suplemento em arroz... A tradição da administração colonial, antes do início da guerra, e teoricamente até pelo menos a 1961, era a do "trabalho forçado", puro e duro (...).

Recorde-se que, segundo a História do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), "a população de um modo geral é-nos favorável [no sector L1], sendo de destacar o regulado de Badora que tem como Chefe/Régulo um homem de valor e considerado pela população como um Deus" (sic).

Tratava-se do tenente de 2ª linha Mamadu Bonco Sanhá ( que será fuzilado, sem julgamento,  pelo PAIGC a seguir à independência), "um homem (...) já conhecido no meio militar pelos seus feitos valorosos e dignos de exemplo. Da outra população [balantas, biafadas e mandingas...] fortes dúvidas se tem,  especialmente as dos Nhabijões, Xime e Mero" (História do BCAÇ 2852... Cap. II, pag. 1).

Conheci o tenente de 2ª classe, régulo e chefe máximo das milícias de Badora.O quer se dizia sobre ele era manifestamente exagerado: o tenente Mamadu Bonco Sanhá era respeitado e sobretudo temido pelos seus súbditos, mas é manifestamente grosseiro, etnocêntrico e até ofensivo dizer que a população, muçulmana, o "considerava como um Deus"... Convenhamos que é uma figura de estilo"... 

O administrador do concelho de Bafaté (Guerra Ribeiro) e o régulo de Badora eram, na altura, figuras poderosas, com capacidade para recrutar milhares de braços...

Recorde-se que, segundo a Convenção nº 29 da OIT - Organização Internacional do Trabalho (adotada em 1930, e ratificada por Portugal em... 1956)), trabalho forçado ou obrigatório é todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de uma sanção e para o qual a pessoa não se ofereceu espontaneamente (nº 1 do artº 2ª)... Mas depois havia as exceções do nº 2 do artº 2º...

(iii) Comentário do Torcato Mendonça (1944-2021) (vd. poste P9541) (****):


(...) Vou tentar contar-vos, sem grandes pormenores, a maior operação de Acção Psico Social – chamemos-lhe assim – a que assisti. Bem planeada e meticulosamente preparada por quem sabia.

Tudo com o aval do Comandante-chefe e teve o nome de “Operação Cabeça Rapada”. Desenrolou-se de finais de Março a meados de Maio de 69, talvez por seis fases ou seis operações [na realidade, quatro.]

O objectivo era capinar – cortar e desmatar – toda a vegetação numa faixa de trinta ou quarenta metros, talvez mais, para lá do arame que delimitava o perímetro de Mansambo e igualmente, em largura, uma faixa similar para lá das bermas das estradas (picadas) de Mansambo a Bambadinca e daqui até ao Xime. Só nas zonas mais propícias a emboscadas.

Outras desmatações menores,  à volta de algumas Tabancas, por exemplo Amedalai e outros locais, sofreram igual corte.

Estas Operações queriam vincar três pontos:

  • dizer que o IN tinha sido derrotado na Operação Lança Afiada [, 8.19 de março de 1969]; 
  • mostrar que as populações estavam com as NT;
  • fortalecer o slogan “Por uma Guiné Melhor”.

Análise despretensiosa e sem petulância minha. É uma não análise… talvez.

As populações envolveram-se fortemente depois do excelente planeamento. Muitas centenas, talvez um ou dois milhares de civis, muitos militares  [na realidade, 7 mil, na Op Cabeça Rapada I], e uma logística enorme: viaturas civis e militares, alimentação e uma bem montada segurança, próxima e afastada, para dissuadir ou minimizar o efeito de qualquer ataque e, também, colaborar activamente com apoio rápido à resolução de algum acidente e incidente.

Não seria difícil ao IN disparar umas morteiradas e provocar o pânico. Uma ou duas granadas eram suficientes. Não o fez e nós não sabíamos, quantos daqueles homens eram simpatizantes deles e trabalhavam naquela desmatação para obterem informações. Havia certamente.

Lembro-me da enorme confusão da manhã do primeiro dia. Eram muitas centenas e centenas de homens e suas catanas a chegarem a Mansambo. Organizar tudo seria tarefa difícil mas foi conseguido.

A nossa missão, a do meu Grupo, era outra e rapidamente saímos do aquartelamento para a segurança. No fim de toda esta Operação, faseada e por tanto tempo, quando acabou uma dúvida, em mim, se levantou:  "
Aquela desmatação não iria abrir o campo de tiro ao IN?".

Caí, em meados de Maio, numa forte emboscada no Pontão do Almami e, em inicio de Abril, já tinha havido outra no mesmo local. Felizmente as árvores que ladeavam a estrada foram poupadas.

No dia 28 de Maio de 1969 a sede do Batalhão, em Bambadinca, foi atacada pela primeira vez. As tabancas de Taibatá, Moricanhe e Amedalai, sofreram igualmente ataques.

Era a represália do IN. Teve auxílio vindo do Sul e do Norte? Certamente. Mas provava que estava vivo e não fora aniquilado na Lança Afiada e esta não respeitara certas regras básicas de contra guerrilha. O IN não foi aniquilado. Tanto assim que começou a bater forte, a tentar infiltrar-se e a exigir um esforço maior de contenção das NT. 

Só em meados de Agosto. o IN veio a sofrer um forte revés e ficou decapitado - como sinónimo de sem comando [, o comandante Mamadu Indjai, gravememte ferido em emboscada montada por forças da CART 2339].

Nada de relevante ou muito grave aconteceu até ao fim da nossa Comissão, em finais de Novembro de 1969. Emboscadas, ataques a tabancas e aquartelamento, umas baixas sempre lastimáveis e uma ou outra operação igual a tantas outras. A rotina habitual com ou sem desmatações. Embarcámos em 4 de Dezembro de 1969 [de regresso a casa]. (...)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 16 de junho de 2022 Guiné 61/74 - P23355: Questões politicamente (in)correctas (57): O luso-tropicalismo e os seus mitos (José Belo, Suécia e EUA)

(**) Vd. poste de 30 de julho de 2023 Guiné 61/74 - P24519 Fotos à procura de... uma legenda (175): Capinadores e "homens armadas" em Cutia, tabanca e destacamento no setor de Mansoa, ao tempo do BCAÇ 2885 (1969/71) (José Torres Neves, capelão)


Vd.também postes de: