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quarta-feira, 10 de maio de 2023

Guiné 61/71 - P24305: Armamento do PAIGC (4): Morteiro pesado 120 mm M1943, de origem russa, usado nos ataques e flagelações a aquartelamentos das zonas fronteiriças, como Gandembel, Guileje, Gadamael, Guidaje, Copá ou Canquelifá


Guiné > PAIGC > 1973 > O temível morteiro 120 mm, usado na batalha dos 3 G (Guidaje, Guileje, Gadamael)... Só Guileje tinham abrigos  feitos pela Engenharia Militar, o BENG 447, à à prova de morteiro pesado...  As granadas tinham uma espoleta de atraso, perfurante, permitindo um melhor desempenho, após uma perfuração inicial das estruturas dos abrigos.

Foto (e legenda): © Nuno Rubim (2007). Todos os direitos reservados.
[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaaradas da Guiné]




Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > Sector L4 >  Canquelifá >  Março de 1974 > A desolação da guerra... A tabanca, depois do violento ataque do PAIGC com morteiros 120 e foguetões 122, durante 4 horas, em 18 de março de 1974...

Foto (e legenda): © Jacinto Cristina (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaaradas da Guiné]


1. Continuando a série "Armamento do PAIGC" (*), apresenta-se hoje o morteiro pesado 120 mm, usado contra alguns aquartelamentos de fronteira, tais como Guidaje, Guileje e Gadamael, em maio e junho de 1973, Copá, em janeiro de 1974, ou Canquelifá, em março de 1974, mas já também em 1968 contra Gandembel, Cameconde, etc.

A estreia foi contra Gandembel em agosto de 1968. As bases de fogos eram sempre localizadas no território da Guiné-Conacri. Foi utilizada, contra as NT, como arma de artilharia. E não tinham, à exceção de Gandembel, Guileje e pouco mais, abrigos à prova do morteiro 120 mm. Os nossos "bunkers" eram "bu...rakos", escavados na terra, e com cobertura de terra, chapa de zinco e troncos de cibe...

 
 O nosso especialista em história da artilharia e armas pesadas do PAIGC, cor art ref Nuno Rubim (de quem não temos, infelizmente, notícias há muito) escreveu aqui em tempos (**):

(...)  As munições do morteiro de 120 mm tinham efectivamente uma espoleta de atraso, perfurante, para permitir o rebentamento da granada já depois de ser obtida alguma penetração.(...)

É dele também a foto do mroteiro 120 mm que publicamos acima.

2. Temos muito pouca informação técnica sobre esta arma usada pelo PAIGC, desde pelo menos desde agosto de 1968 (contra Gandembel, segundo testemunho do nosso camarada Idálio Reis, e confirmado pela  CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro II (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015). pág. 143).

Devido ao seu peso (275 kg,  sem contar com os cunhetes das granadas), esta arma coletiva, de tiro curvo, só podia ser rebocada e usada nas zonas fronteiriças. 

Em 1968, e segundo a mesma fonte (CECA, 2015, pág.145), o PAIGC, além de já estar dotado de meios de transmissões, e de já dispor do canhão s/r  8,2 cm "Tenasrice" (facilmente transportável e pondendo disparar, apoiado no ombro do atirador!), também tinha feito progressos no que diz respeito aos meios de transporte: dispunha, em 1969, de cerca de meia centena de viaturas Zil e Gaz, para além de alguns autotanques e algumas automacas. Essas viaturas,  todavia, só circulavam nos países limítrofes (Guiné-Conacri e Senegal), não ultrapassando, em regra, a  linha fronteiriça.

Segundo a mesma fonte, "o morteiro 120mm, com um alcance de 5700 metros" era uma arma que "no exército  soiviético, estava a substituir o morteiro 8,2cm", o que não é comfirmado pro outras fontes que consultámos...

Segundo a Wikipedia (em inglês), julgamos que se trata do morteiro M1943 ou 120-PM-43 (em russo: 120-Полевой Миномёт-43) ou o morteiro de 120 mm Modelo 1943 (em russo: 120-мм миномет обр. 1943 г.), Era também conhecido como Samovar.

Com cano de alma lisa, calibre 120 milímetros, foi introduzido pela primeira vez em 1943 como uma versão modificada do M1938. Na prática, veio substituir o M1938 como arma-padrão para baterias de morteiro em todos os batalhões de infantaria soviéticos no final dos anos 1980, embora os exércitos do Pacto de Varsóvia utilizassem um e poutro modelo.

Especificações técnicas:
  • Peso total: 275 kg (tubo, bipé e prato);
  • Granada (HE-120): 16 kg; (granada altamente explosiva);
  • Equipagem:  6 elementos;
  • Calibre: 120 mm;
  • Carregamento: granada introduzida pela boca do tubo que tinha, no fundo, um percutor fixo;
  • Elevação: +45° a +80°; 
  • Cadência de tiro: 9 tiros por minuto no máximo, 70 tiros por hora no máximo;
  • Velocidade inicial da granada: 272 m/s (Frag-HE & HE);
  • Alcance efetivo de tiro: máximo de 5.700 m, mínimo de 500 m.  

A Guiné-Conacri é um dos países que ainda dispõe, atualmente, desta arma tal como a Guiné-Bissau (neste caso, uns 8 morteiros, não sabendo nós se algum é "sobrevivente"  do tempo da guerrilha)...

Esta arma, de carregar  pela boca,  pode facilmente ser dividida em três partes (tubo, bipé e prato) para movimentação em distâncias curtas ou rebocada por um camiã0  Zil ou Gaz numa atrelado de duas rodas.

É um sucedâneo do 120-PM-38 ou M1938 , Os russos eram "bonzinhos" mas não eram "parvos": não sabemos se não terão mandado para Conacri (e/ou para o PAIGC)  alguns exemplares desta "sucata da II Guerra Mundial"... 

O morteiro soviético 120-PM-38 ou M1938, de 120 mm,  foi  usado em grande escala pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. Embora fosse um projeto convencional, a combinação de 4 factores (peso,  mobilidade, poder de fogo e alcance) levou ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de novas versões, como o 120-PM-43.

Já em 1968 e 1969, o IN utilizava o morteiro 120mm contra aquartelamentos fronteiriços no sul: Guileje, Gadamael, Cameconde, Cacine...At6é 1970, as NT náo capturaram nenhum morteiro pesado do IN.

Na Op Neve Geada, de 21 a 23 de março de 1974, foi batida a zona de Campiã / Cantiré, sector L4, nas proximidades de Canquelifá, numa ação levada a cabo pelo BCmds da Guiné, a très agrupamentos. Na zona estava referenciada uma base de fogos IN.  

No dia 21, pelas 14h45, a base de fogos foi assaltada, tendo sido apreendidos: (i) 3 morteiros 120 mm; (ii) 367 granadas de morteiro 120 mm;  (iii) 1 LGFog RPG-2; (iv) 2 espingaradas automáticas Kalashnikov;  e (v) material diverso. 

No dia seguinte, pelas 10h00, foi assaltada nova base de fogos e capturadas  três rampas de foguetões 122 mm, além de material diverso (munições, espoletas, munições., etc.). 

Baixas: 2 mortos e 24 feridos, do lado das NT; 27 mortos, incluindo 2 cubanos, do lado do IN.  (Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015). pp. 479/480.)
______________


(...) No dia 31Mai73, iniciou as flagelações com morteiros 120 mm, tendo as primeiras granadas caído fora do perímetro do aquartelamento e sucessivamente o fogo foi sendo mais ajustado, deduzindo-se que o lN tinha montados Postos Avançados de Observação.

No dia 1Jun73 iniciou nova flagelação que durou várias horas tendo as granadas caído todas dentro do aquartelamento, com especial incidência sobre os depósitos de géneros e da cantina, zonas periféricas de defesa (valas) e espaldões da Artilharia que foram duramente atingidos. (...)

Comentário do C. Martins (3 de julho de 2022 às 03:16):

(...) A descrição feita pelo sr. ex-capitão "comando" Ferreira da Silva, hoje coronel e advogado, está muito correta com a excepção da granada que provocou 3 mortos e 12 feridos, não caíu na cobertura da zona de descanso, mas sim dentro do espaldão,tendo ficado o obús inoperacional Nunca mais tantos homens ficaram dentro do espaldão.

O quartel ficava a 4 km da fronteira. As bases de fogos do IN ficavam todas dentro da Guiné-Conakry, sendo as peças, morteiros, grads, etc.. manobradas por cubanos.  (...)

Era muito difícil fazer contra-bateria. Felizmente para nós o IN tinha maus artilheiros, com excepção de um dia de fevereiro/74 em que as "enfiaram" todas na orla da mata em frente aos obuses, com granadas perfurantes e incendiárias; se tivessem corrigido o tiro em 100 metros mais à frente, hoje  eu não estaria certamente a escrever estas linhas. (...)

__________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 19 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24234: Armamento do PAIGC (3): peça de artilharia 130 mm M-46, cedida pelo Sekou Turé para os ataques, a partir do território da Guiné-Conacri, contra Guileje e Gadamael, em maio/junho de 1973

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23997: Notas de leitura (1544): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IX: o vagomestre e o petisco que não podia ser para todos: o caso da mão de vaca com grão...

Pormenor da capa do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010], 399 pp. il, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército). 

1. C
ontinuação da leitura do 
Manuel Andrezo, pseudónimo de  Aurélio Manuel Trindade, ten-gen ref, que foi cap inf no CTIG, último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6 (a 4ª Companhia de Caçadores passou, a partir de 1 de abril de 1967, a designar-se por CCAÇ 6, "Onças Negras"). Fez a sua comissão sempre em Bedanda, entre julho de  1965 e julho de 1967.

Aurelio Manuel Trindade irá completar  90 anos em 2023 (nasceu em Viseu, em 11 de maio de 1933).   Fez quatro comissões no ultramar. Desejamos, desde já, que que o novo ano de  2023 seja vivido com saúde, alegria e esperança, rodeado dos filhos e netos que, sabemos, o adoram. Vive em Lisboa. E ainda gostaríamos que ele um dia aceitasse o nosso convite para se sentar à sombra do poilão da Tabanca Grande, juntando-se assim aos 868 amigos e camaradas da Guiné.  Ele e o seu nosso amigo Mário Arada Pinheiro (que já acietou o convite: problemas de saúde têm-no impedido de nos mandar as fotos da praxe).

Um exemplar do seu livro, impresso na Alemanha (c. 2020), foi-me gentilmente facultado, no verão passado, a título de empréstimo, pelo cor inf ref Mário Arada Pinheiro, com dedicatória autografada do autor,  seu amigo e camarada, datada de 13/12/2020. 

Vamos fazer, com esta, um dezena de notas de leitura (*) deste livro que, infelizmente, está fora do mercado, por se tratar de edição de autor. Muitos "bedandenses" (e temos cerca de um vintena de camaradas, membros da Tabanca Grande, que estiveram em ou passaram por Bedanda, entre 1961 e 1974, mormente na 4ª CCAÇ e na CCAÇ 6),  têm mostrado interesse por esta obra, que temos estado a divulgar.   

E muitos outros dos nossos camaradas conheceram a região de Tombali onde se situa Bedanda, gente que guarda as melhores e as piores memórias do inferno de tarrafe, lianas, floresta, água, suor, lágrimas e sangue, que era toda essa região do Sul: Bedanda, Cumbijã, Nhacobá, Catió, Ganjola, Cachil, Como, Cufar, Cadique, Cantanhez (Caboxanque, Cafal, Cafine, Jemberem, Chugué, Cobumba...), Cacine, Cacoca, Sangonhá, Cameconde, Guileje, Balana, Mejo, Gadamael, etc.

Temos vindo, ao mesmo tempo,  a selecionar uma ou outra história ou episódio dos cerca de 70 capítulos, não numerados, que o livro apresenta, uns sobre a atividade operacional da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, outros sobre o quotidano da tropa e da população (incluindo a população do mato). (**)

A história que escolhemos para hoje, com a devida vénia (e homenagem ao autor no ano em que vai fazer  90 anos) é um delícia de humor de caserna. Confesso que me diverti a (re)lê-la. E, ao mesmo tempo, é  também reveladora das qualidades que deve ter um grande comandante operacional (como era o caso do capitão Cristo): disciplinado e disciplinador, mas pondo sempre à frente de todas as suas decisões o espírito de corpo, a coesão, o bem-estar e a segurança dos seus homens. 

É também reveladora das pequenas "sacanices" ou "velhacarias" que alguns camaradas, que tinham a faca e o queijo na mão, podiam fazer a outros camaradas... Enfim, os pequenos abusos do poder, os privilégios.... Afinal, "quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte"...

O sargento Lopes, a exercer as funções de vagomestre (por já não ter  "idade" para ir para o mato a comandar uma secção)  terá aprendido uma lição para a vida. 

Casos como este, ter-se-ão multiplicado na Guiné... Estava-me a lembrar de histórias passadas na minha CCAÇ 2590/CCAÇ 12... Talvez um dia ainda as conte: afinal, os dois sargentos do quadro, de quem eu, de resto,  era amigo,  já morreram infelizmente...E não levarão a mal, lá no Olimpo dos combatentes, uma ou outra história pícara que a gente, do lado de de cá, conte sobre eles e nós... Os dois viram a guerra a partir da secretária: um passeava a sua úlcera pelas tabancas, o outro fazia a conta a fraca contabilidade de uma companhia de praças africanas desarranchadas"... O 1ºs sargentos,. por norma, estavam de passagem, e preparavam-se para ir para a Escola Central de Sargentos, em Águeda... 


A GUERRA DO PETISCO 
(pp. 298/302)


A alimentação no quartel era um problema, nomeadamente quanto à aquisição de carne fresca. Por isso, de vez em quando, o capitão permitia que se matasse uma ou duas vacas da manada da Companhia. Dado o reduzido número de cabeças de gado, estas só poderiam ser abatidas por ordem do capitão. Há muito tempo que não se comia carne fresca, mas quando o desejo começava a ser muito forte o capitão autorizava o abate de uma vaca e durante um dia ou dois tirava-se a barriga da miséria. 

Ora foi o que um dia o capitão veio a fazer, chamando o sargento vaguemestre para que abatesse uma das vacas. A vaca foi morta, a carne distribuída, e o Fialho, que trabalhava na messe de oficiais, logo sugeriu ao capitão que se podia fazer um bom petisco para os oficiais com grão e mãos de vaca. Ele sabia que habitualmente as mãos de vaca eram deitadas fora por não ser viável cozinhá-las no rancho geral. Não chegavam para todos os soldados. 

O capitão não apreciava as mãos de vaca, em Lisboa nunca as comeria. No entanto, em Bedanda, onde tudo era diferente e a alimentação regra geral deficiente, mão de vaca era capaz de ser uma óptima variante ao rancho habitual. Com base nisso disse ao Fialho para ir falar com vaguemestre e que a seu mando lhe entregasse as mãos da vaca abatida. 

Foi o que o Fialho quis ouvir. Saiu da Companhia e foi à cantina falar com o sargento. Encontrou-o muito atarefado a conferir e a arrumar os géneros. 

─ O que queres daqui, Fialho? Estou a trabalhar, não tenho tempo para te aturar. Já te dei os géneros para a messe, o que é que queres mais? 

─ Na messe de oficiais lembrámo-nos de aproveitar as mãos de vaca e fazer mão de vaca com grão. Falei disso ao nosso capitão, ele concordou tendo-me dado ordens para as vir buscar antes de o senhor as deitar fora. Queria também um pouco de grão para fazermos o petisco.

 ─ O nosso capitão quer as mãos de vaca? Já as não tenho. Aquilo que vocês queriam fazer para os oficiais já nós fizemos para os sargentos e já as comemos. Como é que eu vou resolver isto agora? Tens a certeza que foi o nosso capitão que te mandou vir buscar as mãos de vaca? Isso não será uma iniciativa tua para fazerem um petisco para vocês? 

─ Não, meu sargento, não é iniciativa minha e o petisco é para os oficiais. E foi o nosso capitão que me mandou vir falar consigo. Eu só lembrei ao nosso capitão que era bom nós fazermos um petisco na messe de oficiais com a mão de vaca. Ele concordou comigo e mandou-me vir buscar as mãos de vaca. Eu não sabia que o meu sargento já as tinha comido. Eu vou dizer ao nosso capitão que o senhor e os outros nossos sargentos já comeram a mão de vaca. 

─ Está bem, podes ir dizer porque eu não me posso transformar em mão de vaca. 

O Fialho saiu da cantina e foi falar com o capitão. 

─ Meu capitão, falei com o nosso sargento vaguemestre. Não arranjei a mão de vaca porque o nosso sargento já a tinha arranjado para ele e para os outros sargentos. Nem sequer pude trazer a prova do sucedido porque eles estavam com pressa e já tinham comido o petisco. Só não tinham ainda lavado a louça porque eu bem vi a panela e os pratos sujos lá na cantina. 

─ Está bem, Fialho. Diz ao nosso sargento vaguemestre que venha falar comigo. 

O Fialho saiu do gabinete e dirigiu-se logo à cantina com o recado do capitão que tinha ficado aborrecido por o sargento já ter comido a mão de vaca. Queria falar com ele. Foi depois falar também com o Balsinhas dizendo-lhe que já tinha lixado o vaguemestre. 

 Fialho, como é que tu fizeste isso ao Vaguemestre? 

─ Eu sabia que os sargentos já tinham comido a mão de vaca, da vaca que matámos. Cozinharam-na com grão. Eu tinha dito antes ao capitão que se podia fazer um petisco com mão de vaca. A princípio o capitão não se mostrou muito interessado mas com o apoio dos nossos alferes consegui que o nosso capitão me mandasse ao nosso sargento vaguemestre buscar a mão de vaca. Como já a tinham comido não a pude levar e agora o nosso capitão quer falar com os sargentos que a comeram. 

─ Fialho! Tu és terrível. Arranjaste uma grande intriga. Coitado do nosso sargento vaguemestre. 

─ Coitado uma ova. Coitados é de nós porque ele sempre vai arranjando uns petiscos para os amigos. 

Cumprindo as ordens o vaguemestre lá seguiu para o gabinete do capitão. 

─ O meu capitão mandou-me chamar? 

─ Mandei sim. Você não perdoa nada. Mal acabámos de matar a vaca já você a estava a cozinhar e a comer com os seus amigos. Eu tinha mandado o Fialho buscar a mão de vaca porque queria fazer um petisco para mim e para os nossos alferes, mas você antecipou-se. Nem se lembrou de perguntar ao seu comandante de companhia se queria as mãos de vaca para a messe de oficiais. Julgo que era o mínimo que deveria ter feito. Se eu dissesse que não queria,  você poderia então fazer o petisco para os seus amigos. O que tem a dizer sobre isto? 

─ Nada, meu capitão. De facto eu fiz o petisco e comi-o com os meus amigos. Não me lembrei de perguntar ao meu capitão e aos nossos alferes se queriam a mão de vaca para a messe de oficiais. 

─ Agora, menino, que o mal está feito, não há mais nada a fazer. Você é comandante duma secção de atiradores. Porque tinha confiança em si e porque já tem a sua idade, inadequada a um comandante de secção na Guiné, eu mandei-o para o rancho e nomeei um cabo para comandar a sua secção. Mas como afinal vejo que você é muito desembaraçado, mais do que eu pensava, amanhã vai comigo para a operação já planeada e volta a comandar a sua secção. Esteja equipado amanhã, às duas horas da manhã. Pode sair. 

Pouco tempo depois entra no gabinete do capitão o alferes Carvalho.

 ─ Meu capitão, o Lopes foi falar comigo e disse-me que amanhã é ele que vai connosco na operação? Isto é verdade? 

 ─ É sim, Carvalho. É verdade porque aquele sacana fez um petisco com a mão de vaca e nem se lembrou de nós. Assim, nunca mais vai esquecer que quando houver um petisco o capitão e os nossos alferes também são gente. 

─ Meu capitão, tenha dó de mim. O Lopes nunca foi a uma operação porque você o retirou logo para vaguemestre, e o cabo que comanda a secção sabe dar conta do recado. A operação vai ser difícil e eu não queria levar um maçarico a comandar a secção. Se o quiser levar connosco dê-lhe outra missão. No pelotão não tem lugar. Problemas já nós temos, não precisamos de mais outro. Veja lá se pode rever a sua decisão. 

─ Está bem, mas não digas nada ao Lopes. Ele vai preparar-se para a operação, mas na altura da saída eu dispenso-o e volta para o rancho onde ele é bom. 

─ Assim está bem. Até logo e desculpe o meu desabafo. 

No noutro dia, antes da saída para a operação, o sargento Lopes apareceu de camuflado com espingarda, granadas e cantil. Parecia um guerreiro, mas com cara de grande aflição quando se apresentou ao capitão. 

─ O nosso sargento está pronto para comandar a sua secção? 

─ Estou pronto para cumprir as suas ordens, meu capitão. O nosso alferes disse que a operação era difícil e que eu ia ser mais um problema para ele. Preferia que eu não fosse. 

─ E você prefere ir ou não?

 ─ Eu preferia não ir mas o meu capitão é que sabe.

 ─ Bem, Lopes, vá lá tratar do rancho. Você não vai connosco porque eu preciso de alguém de confiança para tratar do rancho e da alimentação do quartel. Da próxima vez quando houver petisco lembre-se do seu capitão e dos nossos alferes. 

─ Esteja descansado, meu capitão. Não me voltarei a esquecer. Obrigado e boa sorte.

 ─ Obrigado Lopes e porte-se bem. 

Quando o sargento se afastou, o capitão, sorrindo, disse ao alferes Carvalho: 

─ Ainda bem que você não o quis a comandar a secção. Se o levássemos ia ser um grande problema para nós. É bom rapaz, muito bom vaguemestre, mas velho de mais para comandar uma secção nos matos da Guiné. Se você não me tivesse dado a hipótese de o dispensar, não sei como me ia livrar desta enrascada em que me meti. Tínhamos que andar com ele às costas pois ele não iria aguentar o esforço que nos espera. 

─ Tudo acabou em bem, meu capitão. A próxima vez que matarmos uma vaca, as mãos serão para fazermos um petisco para os oficiais. E eu, ou muito me engano, ou o petisco vai aparecer na messe já preparado.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos, para publicação deste poste: LG ]

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23985: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVIII: (i) o galo que traiu Pansau Na Isna em Catunco Nalu; (ii) a primeira operação helitransportada no CTIG, em Jabadá, setor de Tite


Guiné > Brá > Comandos do CTIG > 1966 > Equipa de um grupo de comandos momentos antes de serem largados de helicóptero.


Guiné > Brá > c. 1965/66 > Comandos do CTIG > Aquartelamento 


Guiné > Brá > Comandos do CTIG > 1966 > O soldado Augusto de Sá, que pertenceu ao Gr Cmds  “Os Centuriões”. 

Fotos (e legendas): © Virgínio Briote (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (1940-2015) (*). Recorde-se aqui o seu passado militar:

(i) começou a recruta,  como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor auto-rodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965,  fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;  

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amsterdão);

(vii) descreve-se a seguir as duas primeiras operações que fez, integrado no Gr Cmds "Os Centuriões".


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVIII



(i) O Gr Cmds "Os Centuriões" em Catunco  
Nalu, com o galo a servir de guia 
(pp. 133/136)


Chegados a Brá, fomos directamente à arrecadação, levantar o material e o equipamento necessário. 

Dois dias depois, surgiu uma missão [1] para cumprir, no sul. Apanhámos outra vez o barco para Cacine. O objectivo era Catunco Nalu o local da última acção dos “Fantasmas”, a tal operação “Ciao”, onde tivemos um morto e nove feridos, em maio [2] de 1965. E agora, em fevereiro [3] de 1966, íamos voltar ao mesmo local para a operação com o código “Cleópatra”.

Chegámos à tarde a Cacine, repousámos até cerca das 20h30. Esta era a primeira operação em que, eu, o Tomás Camará e o Mamadu Bari, íamos participar com os “Centuriões”.

O grupo já tinha feito algumas [4] operações e, como alguns companheiros já tinham terminado a comissão e regressado às respectivas unidades, precisavam de pessoal experiente e foi por isso que fomos requisitados pelo alferes Rainha.

Saímos de Cacine depois do jantar em direcção a Cameconde, para executar o golpe de mão. Fomos andando até que, por volta da uma da madrugada, atingimos Catunco, que estava abandonada. A meio da tabanca, deixámos a picada que a atravessava e que ia para Camissorã e metemos à direita, onde em maio do ano passado nos tínhamos confrontado com o PAIGC.

A partir daqui o guia, tal como da outra vez, começou a recusar-se. Deitou-se no chão e, como da outra vez, perdemos muito tempo neste local. Fomos aguentando, com muita paciência, a resistência do guia. Eram para aí 03h00, ouvimos um galo a cantar. Prestámos muita atenção, porque era sinal de que vivia gente por perto. O galo continuou a cantar, não havia a menor dúvida que um acampamento estava por ali.

O alferes mandou o guia para a retaguarda e o galo passou para a frente, passámos a ser conduzidos pelo cantar dele. De cinco em cinco ou de dez em dez minutos, o galo cantava e, assim, fomo-nos aproximando. Atingimos um monte de baga-baga e a seguir vimos um cruzamento.

O cantar do galo vinha do caminho do lado direito do cruzamento. Metemos por ele e, sem sabermos, estávamos a pouco mais de 20 metros das barracas dos combatentes do PAIGC.

O alferes veio ter comigo e estivemos a estudar o que devíamos fazer. Vimos as barracas e nem deu tempo para reunir o grupo todo. O sentinela que estava perto do baga-baga, a dormir o sono da madrugada, deve ter acordado com algum barulho, mexeu-se e o Tomás Camará disparou uma rajada curta. Quebrado o silêncio, assaltámos as barracas. Ninguém teve tempo de se defender, deixaram tudo a fugir.

Nós pegámos no que pudemos. Carregados com tanta quantidade de material [5], 
não ficámos à espera, nova corrida em direcção ao cruzamento da picada que vai para Cacine, onde tínhamos deixado um grupo [6] para nos recolher e ajudar no que fosse preciso. Atingimos o cruzamento, sem problemas, ao encontro da tropa. Depois, a coluna pôs-se em movimento para Cacine.

Descansámos o dia seguinte e à noite fomos até à tabanca de Cacine, divertir-nos 
um pouco com as raparigas. Tínhamos levado um pequeno gira-discos, que o Augusto de Sá [7] levava e eu e o Tomás Camará pusemo-lo a tocar música.

No outro dia [8], apanhámos outra vez o barco para Bissau.

Tinha corrido tudo bem. O silêncio e o cuidado que tivemos na progressão fez com que o sentinela, que não estava a mais de dois metros do baga-baga, não tivesse dado por nada.


(ii) "Centuriões" e "Diabólicos", na estreia dos helis em Jabadá, setor de Tite (pp. 136/138)



Estávamos no aeroporto desde o meio-dia, à espera que acabasse a reunião dos nossos oficiais com os pilotos. Nesse espaço de tempo houve uma cena entre dois companheiros dos “Diabólicos”[Gr Cmds comandado pelo alf mil Virgínio Briote]  , o Silva e o Adulai Djaló, um europeu e um africano. O Silva disse ao Djaló:

 Djaló, tu vais morrer nesta operação!

 Filho da mãe, tu é que vais morrer! – respondeu o Adulai.

Estávamos todos a rir, com grande gozo e alarido, quando chegaram os oficiais.

Era nesse dia, 6 de março, que se ia realizar pela primeira vez na Guiné uma heliportagem de assalto e o local escolhido foi Jabadá Beafada [9]. Dois grupos, os “Centuriões” e os “Diabólicos”, quinze homens de cada, em seis helicópteros. Ia também o comandante da companhia de Comandos, o capitão Garcia Leandro.

Embarcámos por volta das 13h00, sobrevoámos Bissau, cortámos para a esquerda e começámos a subir o Geba. Poucos minutos depois, curvámos para a mata a ver os T-6 bombardeá-la.

De um momento para o outro ficámos cara a cara com os T-6, eles a tomarem altura e nós a baixarmos para o assalto. Saímos a disparar para a tabanca, as primeiras imagens que vi foi uma máquina de costura e o corpo de um homem balanta.

No meio dos tiros e dos rebentamentos, ouvimos pelo rádio os “Diabólicos” pedirem uma evacuação. O tiroteio foi intenso, mas não demorou muito tempo. Estava muita gente, guerrilheiros e população, todos misturados, houve muitas baixas. Eu estava preocupado com a informação que tínhamos ouvido no rádio, o pedido de uma evacuação de um “M”, ou seja de um morto. Se o Silva disse que tinha sonhado que o Djaló ia morrer no assalto…

Estava ansioso que os grupos se encontrassem para sabermos quem morreu. Quando acabaram os disparos e começámos a retirar em direcção a uma clareira, avistámos ao longe o grupo “Diabólicos” a caminhar na nossa direcção. Não, Djaló não tinha morrido, vinha ali ao fundo.

Quando os dois grupos se uniram, perguntei ao Djaló quem tinha morrido e ele disse: 

– Foi o Silva!  [10] (**)

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas /Subtítulos: LG]



Guiné > Brá > Comandos do CTIG > Gr Cmds "Os Diabólicos" >  Soldado 'comando' António Alves Maria da Silva, o segundo a contar da direita. O alf mil 'cmd' Virgínio Briote,  à esquerda.

(...) "Uns dias antes, os olhos do Silva molharam-se quando o furriel Azevedo lhe disse que não ia mais para o mato, que a comissão já estava terminada e que não queriam mais nenhuma edição do furriel Morais dos Fantasmas, morto no sul, em maio do ano passado, duas semanas depois de ter terminado a comissão. O alferes transigiu, a história repetiu-se." (...) (vd. poste P15044 ***)

______________

Notas do autor ou do editor literário (VB);

[1] Nota do editor: operação “Cleópatra”.

[2] Nota do editor: 7 maio 1965.

[3] Nota do editor: 22 fevereiro 1966.

[4] Nota do editor: sete.

[5] Entre o material apreendido, para além de documentação importante, trouxemos o barrete chinês, uma agenda com apontamentos e uma bonita pistola do Pansau Na Isna, comandante do PAIGC.

[6] Nota do editor: Grupo de Combate da CCaç 799

[7] Augusto de Sá, já depois da Independência da Guiné-Bissau, contraiu tuberculose. Veio tratar-se para Lisboa e, ainda doente e contra o conselho dos médicos, regressou à Guiné onde acabou por morrer.

[8] Nota do editor: 26 de fevereiro de 1966.

[9] Op Hermínia. A informação que nos deram era que havia dois núcleos de moranças, uma a norte com população e outra, cerca de 300 metros a sul, com pessoal armado. Por volta das 13h20, as três equipas dos “Diabólicos” foram largadas no núcleo norte e as nossas no núcleo sul. Havia pessoal do PAIGC armado nos dois lados. Do núcleo norte, enquanto retirava, o PAIGC disparou armas automáticas, atingindo mortalmente o António Silva. Vimos vários mortos no local e aprisionámos oito pessoas. No regresso a Jabadá, junto à orla da mata, avistámos mais casas. Os T-6 atacaram com rockets, nós entrámos depois. Enquanto retirávamos o PAIGC fez várias vezes fogo de morteiro, mas sem pontaria. Entrámos no aquartelamento de Jabadá por volta das 16 horas e os helis transportaram-nos de regresso a Bissau. (***)

[10] O soldado 'cmd' António Alves Maria da Silva, oriundo da CCaç 674, era natural de Erada, Covilhã; ficou sepultado na campa 247, no Talhão Militar do Cemitério de Bissau.
________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 12 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23974: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII: De volta ao QG, fiz a escola de cabos em Bolama, tirei vinte valores e mandaram-me de novo para os comandos do CTIG, desta vez para o grupo "Os Centuriões"

(**) Vd. poste de 9 de maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2820: Aqueles que nem no caixão regressaram (1): O Sold António Alves Maria da Silva, campa nº 247, Bissau (Virgínio Briote)

(***) Vd. postes de:

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23974: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII: De volta ao QG, fiz a escola de cabos em Bolama, tirei vinte valores e mandaram-me de novo para os comandos do CTIG, desta vez para o grupo "Os Centuriões"


Guiné > Bissau > 15 de Maio de 1966 > A ponte-cais de Bissau > 1º dia das chuvas.


Guiné > Bolama > Câmara Municipal. Postal da época.

Fotos do álbum de Virgínio Briote (2006)


Guiné > Comandos do CTIG > 1965 > Crachá do Gr Cmds "Os Centuriões". Imagem da coleção do 
Júlio Costa Abreu  (2008)


Lisboa > 2009 > O Amadu Djaló no Cais do Sodré

Foto (e legenda): © Virgínio Briote  (2009). Todos os direitos reservados.
[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (1940-2015) (*). Recorde-se aqui o seu passado militar:

(i) recenseado pelo concelho de Bafatá, sob o nº 21 em 1962, foi alistado em 4 de janeiro de 1962, como voluntário, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii9 depois da recruta em Bolama, seguiu-se o CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de condutor auto-rodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3);

(iv) regressou entretnanto  à  CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

 (v) voltou a Bissau, em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966; (Já  em meados de 1965 tinha passadp a ganhar mais 150 escudos, o equivalente a 64 euros, a preços de hoje.)

 (vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amsterdão).


 
Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII:  De volta à CCS do QG, fiz a escola de cabos em Bolama, tirei vinte valores e mandaram-me de novo para os comandos do CTIG, desta vez para o grupo "Os Centuriões"   (pp. 130/133)


por AmaduDjaló

Em junho de 1965, com as guias de marcha na mão, dirigimo-nos ao QG, onde nos apresentámos. E depois, como de costume, fui logo até ao parque das viaturas, onde os condutores passavam o dia todo.

Para já, uma boa novidade. Ia passar a receber mais 150 escudos por mês, o que, na altura, dava para algumas coisas. Foi-me distribuída uma GMC, uma camioneta com 10 rodas.

Em Agosto, entrei na secretaria e encontrei o 1º sargento a lançar uns números num papel.

 Meu primeiro, para que são esses números?

–  Por que é que perguntas?

–  Porque estou a ver o meu número aí, é o segundo dessa relação!

–  Este? Ah, então vais para Bolama, frequentar a escola de cabos e podes avisar os camaradas que tu conheces.

Assim fiz, voltei com a notícia para o parque.

Chegado o dia da partida, encontrámo-nos no cais para embarcarmos às 09h00, rumo a Bolama. Quando acabámos de nos concentrar,  éramos cerca de cinquenta e tal soldados, vindos de todas as partes da Guiné, alguns meus conhecidos.

Mal chegámos a Bolama fomos fazer a apresentação ao 1º sargento que nos levou à arrecadação e nos distribuiu lençóis e cobertores. Ficámos numa caserna com 60 e tal camas e essa tarde foi para fazermos as camas, as limpezas e para arrumarmos tudo o que havia para arrumar.

No dia seguinte começou a escola. Decorreu tudo bem, desde o primeiro ao último dia. Tivemos um teste de trinta e três perguntas para dar a resposta em 60 minutos. À frente de cada pergunta havia três respostas escritas, duas eram falsas e uma era verdadeira. Bastava fazer uma cruz onde achava que era a certa. Começámos às nove para acabarmos às dez.

O alferes instrutor, no fim do teste, disse-nos:

–  Agora vocês vão-se preparar para regressar ainda hoje. Os resultados vão para as vossas companhias.

Uns colegas não queriam regressar sem saber os resultados. Eu era contra, mas a maioria queria mesmo saber. Então o alferes convocou os sargentos para o ajudarem a corrigir.

Eu fui arrumar as minhas coisas e disse aos companheiros que nos encontrávamos no cais. Estava na caserna a arrumar tudo, quando entrou o Alberto, a correr, a chamar-me:

–  Amadu, Amadu, o alferes está a chamar pelo teu nome.

E eu:

–  Qual alferes?

–  O instrutor, Amadu!

Saí a correr com a bagagem na mão e, quando cheguei à porta, entreguei-a a um companheiro e pedi licença para entrar.

Todos se levantaram, apertaram-me a mão e o alferes comunicou-me que eu tinha sido o primeiro classificado e que, se houvesse CSM - Curso de Sargentos Milicanios eu passava para este curso.

Agradeci, e quando saí alguns perguntaram a razão de me terem chamado.

–  Todos passaram, ninguém chumbou!

Eu a acabar de dizer isto e o alferes apareceu com uma carta na mão a chamar pelos nomes com a respectiva classificação.

–  Amadu, vinte!

Todos me abraçaram, estavam vários rapazes de Bafatá, a minha cidade, todo o pessoal estava contente. Fomos logo a correr direitos ao cais para tomarmos o barco para Bissau.

No dia seguinte, depois da nossa apresentação na CCS do QG, recomeçámos o nosso serviço diário, até ao dia 1 de Janeiro de 1966. Fomos promovidos a 1º cabos e no dia 2 de Janeiro apresentei-me como 1º cabo condutor.

Num dia dos finais de Fevereiro [1], eu estava no parque com alguns colegas, quando o Tomás Camará me disse:

–  Tio[2], vamos outra vez para os Comandos!

–  Quem te disse isso?

–  Está ali o alferes Rainha a falar com o nosso comandante. Entregou-lhe uma autorização da 4ª Rep.!

–  Mas vamos já hoje?

–  Sim, porque o comandante mandou-me tirar o braçal. 

O Tomás estava de cabo de dia. Estávamos com esta conversa quando ouvimos o alferes Rainha perguntar pelo Mamadu Bari. Chamaram-no e embarcámos os três, outra vez para Brá, para os Comandos.

Chegados a Brá, fomos directamente à arrecadação, levantar o material e o equipamento necessário.

Dois dias depois, surgiu uma missão
[3]  para cumprir, no sul. Apanhámos outra vez o barco para Cacine. O objectivo era Catunco Nalú, o local da última acção dos “Fantasmas” , a tal operação “Ciao”, onde tivemos um morto e nove feridos, em maio [4] de 1965. E agora, em fevereiro [5] de 1966, íamos voltar ao mesmo local para a operação com o código “Cleópatra”.

Chegámos à tarde a Cacine, repousámos até cerca das 20h30. Esta era a primeira operação em que, eu, o Tomás Camará e o Mamadu Bari, íamos participar com os “Centuriões” 
[comandada pelo alf mil 'cmd' Luís Raínha] 

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas /Títulos: LG]
__________

Notas do autor ou do editor literário (VB):

[1] Nota do editor: 20 fevereiro 1966.

[2] O Tomás Camará chamava-me sempre tio, até quando fomos feridos em Cameconde, no meio do tiroteio, chamou-me tio.

[3] Nota do editor: operação “Cleópatra”.

[4] Nota do editor: 7 maio 1965.

[5] Nota do editor: 22 fevereiro 1966.
__________

Nota do editor:

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23967: (De)Caras (192): Os bravos comandos cap Maurício Saraiva e fur mil Joaquim Morais (morto em combate, no Quitafine, em 7/5/1965) (Virgínio Briote)


Guiné > Bissau > Comandos  do CTIG > Gr Cmds "Os Fantasmas" > 1964 >  Da esquerda para a direita o fur mil 'cmd' Joaquim Morais (que viria a morrer em combate em Catungo, Cacine, em 7/5/1965,  e o alf ml 'cmd' Maurício Morais (promovido a tenente e depois  a capitão, no 10 de junho de 1965)


Guiné > Bissau > Comandos  do CTIG > Gr Cmds "Os Fantasmas" > 1964 > O alf mil 'cmd' Maurício Saraiva desfilando à frente dos seus homens, junto ao palácio do Governador.

Fotos (e legendas): © Virgínio Briote  (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


CTIG > Companhia de Comandos / Gr Cmds "Os Dianólicos" > Cartão de identificação do alf mil 'cmd' Virgínio António M. da Silva Briote. Assinatura (ilégível): Nuno Rubim, cap art 'cmd'


1. O nosso Virgínio Briote (Vb) tem as melhores páginas, alguma vez escritas, sobre os Comandos do CTIG (1964/66)... E, seguramente, sobre alguns dos velhos comandos de Brá...

Felizmente vivo, é nosso coeditor (jubilado por razões de saúde). Nasceu em Cascais, foi alf mil em Cuntima, CCAV 489 / BCAV 490 (jan/mai 1965); fez depois o 2º curso de Comandos do CTIG; esteve à   frente do Gr Cmds  "Os Diabólicos" (set 65/set 66); regressou a casa em janeiro de 1967; trabalhou numa multinacional da indústria farmacêutica onde foi brilhante quadro superior; é casado com a encatadora Maria Irene, professora do ensino secundário reformada... (Ambos são pais e avós babados.)

O Vb teve um blogue que infelizmente decidiu desativar. Chamava-se "Tantas  Vidas"; http://tantasvidas.blog.pt/ . Publicou postes entre janeiro de 2006 e março de 2009. Textos de antologia que mereciam conhecer o prelo.  Depois achou que tinha dito tudo... Fechou o blogue (e o bau). 

Mas o Arquivo.pt que anda há muito, desde 1996, à caça de páginas na Web, de preferência em português, não lhe pediu licença e foi-lhe fazendo sucesssivas capturas de páginas do seu blogue... Só há dias é que ele soube, porque eu lhe disse. A última captura foi em 24 de maio de 2009, às 21h54... Veja-se aqui o endereço:

https://arquivo.pt/wayback/20090524215817/http://tantasvidas.blog.pt/2009/3/

Mas, em 2015, ainda recuperámos muitos desses textos do "Tantas Vidas", criando a  série "Guiné, Ir e Voltar". Publicámos cerca de 3 dezenas de postes, entre 28/6/2015 (Poste P14803) e 7/1/2016 (Poste P15588). 

O Virgínio Briote é um dos históricos do nosso blogue para o qual entrou em 23/10/2005.  Tem 265 referências. Tivemos curiosidade em saber o que é tinha escrito sobre alguns dos seus camaradas mais velhos, no Comandos do CTIG, como o Maurício Saraiva, o Amadu Djaló, o João Parreira, o Joaquim Morais..., que pertenceram ao Gr Cmds "Os Fantasmas", entretanto extintos em maio de 1965. Aqui vai um excertp, em complemento do poste P23960, assinado pelo João Parreira) (*).


Guiné, ir e voltar > Os bravos comandos cap Maurício Saraiva  e fur mil Joaquim Morais (morto em combate, no Quitafine, em 7/5/1965)

por Virgínio Briote (**)

(i) O cap 'cmd' Maurício Saraiva

O capitão Maurício Saraiva, promovido a capitão por distinção, até então o único vivo com a Medalha de Valor Militar em Ouro, depois de duas cruzes de guerra, tinha metido o chico, estava em Lisboa na Academia Militar.

Aproveitara as férias para vir a Bissau dar-lhes instrução operacional, e sair com eles para o mato durante o curso de comandos para oficiais e sargentos do CTIG.

Foi um dos fundadores dos comandos da Guiné. Tinha estado em Angola, com o Godinho, os irmãos Roseira Dias, o Miranda e outros. Depois formou o grupo dos Fantasmas e com ele percorreu a Guiné de uma ponta a outra.

Deixou fama pela forma como fazia a guerra, por vezes parecia encará-la como se fosse uma brincadeira. Fazia que retirava, dava às vezes até sinais de fuga descontrolada, como se quisesse animar o IN a mostrar-se confiante. Escondia-se com o grupo, paciente, uma ou duas horas se fosse preciso. E depois, Fantasmas ao ataque! Uma série de êxitos coroavam-no e era objecto de mal disfarçada homenagem, numa altura em que a regra era ver as NT recolhidas a posições defensivas.

Mas nem sempre as coisas correram bem. Tanta intrepidez e desafio também lhe trouxeram sérios problemas.

Novembro de 64, dia 28. Perto da fronteira com a Guiné-Conacri, na estrada de Madina do Boé para Contabane, a uma escassa centena de metros do pontão sobre o rio Gobige, os Fantasmas detectaram uma mina anti-carro.

Levantaram a mina e simularam o rebentamento. Ficaram emboscados nas proximidades cerca de 2 horas. Viram um grupo IN aproximar-se e afastar-se logo que deram pela presença de mulheres na estrada. Uma hora depois viram um elemento IN a fugir. Afinal, estavam em igualdade de circunstância, todos sabiam da presença uns dos outros. No dia seguinte voltou com o grupo ao local. Meteu-se com alguns soldados no Unimog mais pequeno à frente, e encaixou o resto do grupo no Unimog maior atrás. A primeira viatura passou, a outra, uma dezena de metros atrás, não. Pisou uma mina. A viatura incendiou-se, as munições explodiram como foguetes num arraial minhoto e do depósito de combustível saía fogo. Quase todos os homens foram projectados a arder. Sete mortos logo ali e três feridos graves. Regressaram doze a Bissau. Com o grupo dizimado, poucos dias depois arrancou com os restantes para uma operação.

(ii) A morte fo fur mil 'cmd' Morais, já em fim de comissão

Já quase no final da comissão, em Cameconde, lá para o sul, no Quitafine. No diário do furriel João Parreira, um deles, podia ler-se:

(...) “6 Maio 65. Saímos às 15h00 para a operação “Ciao”, num Dakota até Cacine e depois em viaturas até Cameconde, onde já se encontrava um pelotão à nossa espera. O Capitão Rubim foi connosco. Saímos às 19h00 em direcção ao objectivo. Segundo as informações que nos foram fornecidas, a base IN era composta por cerca de 80 homens bem armados, comandados por Pansau Na Isna, chefe militar, adjunto do João Bernardo Vieira, de etnia Papel, mais conhecido pelo Comandante Nino.

Já na madrugada do dia 7, a poucos quilómetros do objectivo demos indicações ao pelotão para permanecer ali e esperar pelo nosso regresso, com a missão de proteger a nossa retirada ou dar-nos apoio, caso fosse necessário. Assim, seguimos silenciosamente até perto do acampamento, situado na mata a sudoeste de Catunco. Apesar de termos feito uma aproximação cuidadosa, fomos detectados por uma sentinela. Tentámos assaltar o acampamento. Mas eles estavam bem preparados, reagiram ao nosso fogo e o tiroteio prolongou-se. Quando o fogo deles abrandou, entrámos por ali dentro e vimos material abandonado durante a fuga. Oito armas, cunhetes de munições, granadas, petardos, equipamentos, minas, fardas, e muitos documentos, entre os quais um caderno que pertencia a um tal Armindo Pedro Rodrigues, com elementos importantes da Ordem de Batalha do PAIGC.

Carregados com o nosso material e com o que tínhamos capturado, regressámos para junto do pelotão de recolha. Juntámo-lo e começamos a vê-lo em pormenor. Faltava o aparelho de pontaria de um morteiro, até então ainda não apreendido na Guiné.

O Morais afiançava tê-lo visto lá. O tenente Saraiva chamou o Amadú  
[Djaló] e o Morais e disse-lhes para voltarem ao acampamento. Embora estivéssemos conscientes do perigo, arriscámos, partindo do princípio que o IN se tinha retirado após as baixas sofridas. O Morais perguntou quem é que queria ir com ele e com o Amadú. Ofereci-me bem assim como o capitão Rubim, o furriel Matos e mais 7 camarada, 10 no total.

De novo no interior do acampamento a arder. Vi uma árvore gigante, com umas cavidades enormes. Espreitei para dentro de uma, o Morais para a outra, à procura de material, e o restante pessoal, por ali perto, fazia o mesmo. Subitamente, rajadas de metralhadora e granadas de bazuca caíram-nos em cima. Uma destas rebentou entre nós. Um pequeno estilhaço partiu a coluna do Morais, que caiu sobre uma fogueira. Eu fui atingido no lado direito das costas, mas na altura nem localizei o ferimento.

Vi o Morais a morrer quando o olhei de relance. Um vago murmúrio, depois mais nada, um ar sereno no rosto, pareceu-me. Deitei-me e reagi ao fogo, mas passado pouco tempo fiquei sem força no braço, a G-3 ficou muito pesada, e depois já nem o gatilho conseguia apertar. Passei a espingarda para o braço esquerdo e fiz fogo, mas julgo que não fui nada eficaz. Os outros 8 camaradas, embora ligeiramente, foram todos atingidos. Depois os restantes elementos do Grupo foram lá buscar-nos. Junto do pelotão de apoio, injectaram-me morfina. Tinha perdido muito sangue. Prestaram-me os primeiros socorros em Cacine.

Fomos evacuados para Bissau. Eu de barriga para baixo, bem atado, com mais uma injecção de morfina, e o Morais, morto, cada um em macas de lona, encaixados no exterior do heli 
[um AL II]. Durante o trajecto, e em duas localidades diferentes, na minha sonolência ouvi rajadas de metralhadora que me pareceram passar rente ao helicóptero. Pareceu-me uma eternidade a viagem até ao hospital de Bissau, onde, depois de me terem operado, fiquei internado.

8 Maio
. O Marcelino [da Mata] foi o primeiro a vir ver-me ao Hospital. O crucifixo que eu trazia ao peito era uma crosta, uma grande cruz de sangue seco. Pedi-lhe que o lavasse.

9 Maio. Muitos camaradas me visitaram hoje, o major Dinis, o tenente Saraiva, o alferes Pombo, os furriéis Matos, Moita e o Miranda, claro. Da parte da tarde vieram a D. Beatriz Sá Carneiro, mulher do Comandante Militar e a D. Mariana do MNF  
[Movimento Nacional Feminino].

O Morais era órfão de pai. No caso dele correu tudo no mesmo sentido. Mal. Não era necessário a presença dele nesta operação, já tinha acabado a comissão. Em Brá tentaram persuadi-lo, mais que uma vez, a não ir. Tantas vezes, que diferença vai fazer sair mais uma, insistia. Não embarcou com o Batalhão a que pertencia, por ter combinado que esperava que o tenente Saraiva e os furriéis Matos, Moita e Ilídio acabassem a comissão. A estes faltavam-lhes apenas 15 dias. Imaginava o regresso à Metrópole, todos juntos num navio, como se regressassem de um cruzeiro de férias.

O Miranda recebeu o corpo no Hospital. Foi ele com o Mário Dias, o Fabião e o Ilídio que o lavaram, vestiram e deitaram no caixão. Fizeram uma colecta para a compra do caixão de chumbo. E coincidência, morreu no mesmo dia em que o seu Batalhão de origem desfilava em Lisboa, com a missão cumprida.”


(iii) Ponham-se em sentido quando ouvirem pronunciar o nome do 'Nino'

Claro que, fosse para onde fosse, o Saraiva trazia com ele esses e outros acontecimentos, como se uma auréola o enfeitasse.

Quando reentrou em Brá, para passar o tal mês de “férias”, apresentaram-lhe os novos que estavam a frequentar o curso e pessoal já bem conhecido dele, o capitão Rubim, o sargento Mário Dias, os furriéis Miranda, Moita, Matos, Fabião, o João Parreira, o cabo Marcelino da mata, os soldados Kássimo, Tomás Camará, o Adulai Jaló e outros.

Dos novos conhecia um ou outro, e aos que não conhecia tinha algum tempo à frente para os ver trabalhar no mato e depois veria a quem entregaria o crachá. Passava a vida a pô-los em sentido. Uma volta na conversa e lá vinha o Nino à baila. O Nino, estão a olhar para mim? ( Consideeava o Nino como um verdadeiro chefe militar e, apesar de inimigo, merecedor de respeito.)

O Nino , que porra, estes gajos são todos surdos? O Nino, ele a insistir e os alferes com falta de entendimento. Sentido, porra! Aqui nos comandos quando se fala no Nino, toda a macacada, vocês também, saltam como uma mola, estejam onde estiverem, não interessa, põem-se a pé! Em sentido!

E foi assim que se fez escola, dali para a frente, sempre que alguém pronunciava o nome do Nino, os outros punham-se em sentido.

Uma vez, em Biambe, na zona do Oio, uma tempestade como não havia na memória deles, tinha partido o grupo em dois, aí pela uma da madrugada, noite negra como só em África quando o céu está todo tapado. Um, sozinho, lá encontrou o trilho depois de andar a tactear o chão. Daqui não saio, vou-me mas é sentar!

A chuva não parava, pareciam pedras a cair, faziam tanto barulho no camuflado que receou que o denunciassem. Ainda bem que só tinha as cuecas debaixo, menos peso para carregar. Nada de sinais, nem de trás nem da frente. Esta é boa, onde é que os gajos se meteram, que merda, assobiou baixo, a imitar o pássaro que afinaram no curso. Nada de respostas, minutos a passar, chuva em barda. Estou frito, estou mesmo perdido, o coração como um cavalo a galope, até sentia calor, olhava para todo o lado e só via escuridão, pirilampos nem vê-los, nada, só ouvia o barulho da água a bater. E agora, o que faço? Eles hão-de dar pela minha falta, não me vão deixar aqui. E se não derem?

Calma, esperas pelo nascer do dia, viras as costas ao Sol, cortas mato, nada de trilhos, sempre em frente, até à estrada Mansoa-Bissorã, escondes-te, há-de aparecer uma coluna um dia destes, quase todos os dias passam. Depois é só saltar para a estrada e pronto. E se a guerrilha te vê, o que é que fazes? Pois. Minutos a durarem horas, o coração outra vez.

Um pequeno som, pareceu-lhe, serão eles, ou estarei a sonhar? Um assobiar baixinho. É isso, são eles, nunca mais vinham, assobia também, assobio cada vez mais próximo, uma mão, o Kássimo, o Saraiva atrás. Então e os outros? O capitão, danado, a bufar, e os outros? Kássimo à frente a assobiar, dentro do trilho, foram andando para trás, mãos no cinturão do da frente. Encontraram o capitão Rubim e o alferes Vilaça, os dois sentados, costas com costas. A dormir na forma, ah?

No outro sábado o Saraiva encontrou os quatro alferes sentados, tinham acabado de almoçar na messe de Brá. E o programa para hoje, qual é, perguntou. Vou até Bissau espairecer, diz um, outro vou mas é dormir com a cama, a correspondência a preocupar o terceiro, o quarto, sei lá? Ele arranjava um melhor, têm 5 minutos para se equiparem para sair.

Levou-os para o aeroporto, os motores já quentes do Dakota pronto para descolar. Foram para leste, Nova Lamego até Canquelifá, perto da fronteira com a Guiné-Conakri. Chegaram com o Sol quase a ir-se. Esperaram fechados dentro do avião, os motores parados.

Abriram-lhes as portas, entraram directos para uma GMC com as lonas corridas. Meteram-lhes lá dentro queijo partido aos bocados e pão. O Saraiva, gargalhada baixa, a pedir os cantis, para encher de água fresca, disse. O meu não precisa, está cheio até cima, nem se ouve, mesmo que o abane, diz um. Passe, o capitão a insistir. Que a marcha ia ser longa, cerca de 20 km, e a água vai ser decisiva.

Ouçam bem, só bebem quando eu der sinal, todos a beber ao mesmo tempo.



© Foto do Júlio Costa Abreu. Com a devida vénia.

Carvão negro na cara e nos braços, pareciam manjacos e mandingas. Pôs-se o sol, meteram-se no mato, dois a dois, trilhos fora, quilómetros e quilómetros, a noite toda.

Comandos ao ataque, o Saraiva desalmado a gritar, como gostava de começar o dia. Fizeram-se a eles, por ali dentro, as casas de mato com 2 ou 3 gajos que nunca lhes tinham sido apresentados a pisgarem-se. Depois, um dos intrusos passou à história. Da gargalhada. Quando sentiu os projécteis de uma metralhadora pesada inimiga a bater lá em cima nas árvores, até disse para os outros, olha a NT a apoiar! Os outros a rirem-se, uma força danada dentro deles. No caminho do regresso lembraram-se da genica que sentiram, estamos numa forma do caraças, não estamos?

Nunca souberam de onde tinha vindo tanta gana, se calhar tinha sido quando o capitão, finalmente, autorizou meterem água, devia ter vitaminas. A certa altura do caminho de retirada, começaram a ficar sem forças. Estranharam, nunca lhes tinha acontecido, não acertavam com o trilho, não era só um, eram todos. Menos o capitão. Alguns paravam, encostavam-se às árvores, queriam sentar-se, os olhos para cima. Quem parar fica para trás, o Saraiva lá à frente, na esgalha. Em pequenos grupos foram chegando. Em Canquelifá, uma cerveja gelada, boca abaixo, duma vez só. Alguns só acordaram com os motores do Dakota e um ou dois nem assim. A caminho do avião, pareciam zombies, em coluna por um, pelo campo fora.

Da outra vez, mandou tapar-lhes os olhos com algodão, fita adesiva e um lenço negro por cima. Só tiram os lenços e o adesivo quando eu mandar. É para ver se adivinham para onde vamos passar o fim-de-semana. Viaturas pela estrada fora, para onde havia de ser, para o Oio. Quando entraram em Mansoa, pararam. Então, quem é amigo? Para onde vamos então? Toca a tirar os lenços, olhos e ouvidos bem abertos agora. Foram por ali fora até Bissorã. A mesma história do queijo e do pão, uma cerveja para cada um, cantis cheios de água, por aqueles trilhos, a noite toda.

Um cigarro agora é que sabia bem. Pois, também a mim me apetecia estar na praia de Carcavelos, ao sol com a miúda, os ouvidos dele em todo o lado. Fumas no fim do fogo. O dia clareou, estavam no sítio certo, as casas de mato em frente. Os guerrilheiros é que faltaram à chamada naquela altura. Não saímos daqui enquanto os gajos não aparecerem, o capitão a provocá-los. Vieram mais tarde, quando já não dava muito jeito, mas arranja-se sempre qualquer coisa, que remédio. Um daqueles alferes integrado na equipa do furriel Moita, apanhado num campo de mancarra, com nada para se abrigar, ou estava com pressa de regressar a Bissau, ou tinha visto no cinema uma cena parecida, chateou-se, aqui vou eu, quem quiser que venha. Quis lá saber da parelha e da equipa, meteu-se por aquelas casas de mato dentro. Depois ficou lá dentro sozinho, sem saber bem o que fazer. Os companheiros daquele fim-de-semana encontraram-no a olhar para o ar, para os ramos das árvores a abanarem com as balas. Estes gajos nunca mais aprendem, porra, 20 flexões aí já, o Saraiva oportuno como sempre. Agora sim, podem fazer fogo com o isqueiro, toca a fumar! (...) 

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]