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domingo, 6 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21329: Blogpoesia (695): "O agitar das águas", "Senhora Marquinhas da venda" e "Apenas agricultor", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. A habitual colaboração semanal do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) com estes belíssimos poemas, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante esta semana:


O agitar das águas

Águas paradas estagnam. Vêm os insectos e as algas, turvam a superfície.
O sol não inunda o seio e a vida definha nelas.
Como um charco. Imundo e fétido.
É a morte.
O que lhe sustenta a vida é o vento em brisa ou na agitação agreste.
Assim se passa no mundo das ideias. A letargia desertifica a
mente.
Tal como a ociosidade como hábito.
A vontade é o motor do corpo.
Se ele pára, a alma desiste e o corpo caminha para a extinção.
Uma amizade se não se demonstra com a presença, a entreajuda e o sacrifício, enfraquece e, depressa, morre.
Porque secaram as flores do belo jardim?
Seu dono deixou de o regar...
A lareira apagou? Se acabaram os cavacos!...

Berlim, 2 de Setembro de 2020
14h39m
Jlmg

********************

Senhora Marquinhas da venda

Havia na Forca uma tasca. Vinho da pipa e petiscos frescos eram sua bandeira.
Por trás do balcão de madeira,
Andava a senhora Marquinhas, a mãe,
E sua filha também.
Se cuidavam as duas.
Acudiam fregueses, sobretudo, homens.
Ali passavam a tarde.
Cavaqueando de tudo.
Jogavam à sueca e bisca lambida.
Bebiam canecas de tinto, em porcelana.
Umas atrás das outras.
Quando chegava a tardinha,
Recolhiam a casa para o caldo.
Tresandavam a vinho.
Um santuário de paz no seio da Forca.
Não era por ali que o mal vinha ao mundo...

Berlim, 4 de Setembro de 2020
9h41m
Jlmg

********************

Apenas agricultor

De sacho e enxada nas mãos, sou apenas o agricultor.
Revolvo a terra. Exponho-a ao sol o seu interior.
Tiro as ervas daninhas.
Os vermes a limpam gratuitamente.
A vida dá-a ele.
Me deleita ver crescer a vida verde.
Contemplar suas flores.
Ver seus frutos a amarelecer.
Depois, é um regalo colher tudo e encher de pão o celeiro enxuto.
É o ritmo vital da natureza.
Tudo é gratuito.
A chuva, o sol e a terra.
Uma condição:
Só damos o engenho e a força das nossas mãos.
Que riqueza!...

Berlim, 5 de Setembro de 2020
10h44m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21324: Blogpoesia (694): poemas para dizer em voz alta, em casa, na varanda, na rua, ou à beira-mar, em tempos de pandemia: António Gedeão, Li Bai, David Mourão Ferreira e Viriato da Cruz (seleção de Mário Gaspar, António Graça de Abreu, Mário Beja Santos e Luís Graça respetivamente)

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21324: Blogpoesia (694): poemas para dizer em voz alta, em casa, na varanda, na rua, ou à beira-mar, em tempos de pandemia: António Gedeão, Li Bai, David Mourão Ferreira e Viriato da Cruz (seleção de Mário Gaspar, António Graça de Abreu, Mário Beja Santos e Luís Graça respetivamente)

Lisboa > Bairro da Graça > Festival Todos 2019 > 29 de setembro de 2019 > Janelas. 

Foto (e legenda);  Luís Graça (2019)


Janelas de Lisboa

Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.

Por uma entra a luz do sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas,
que andam no céu a rolar.

Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza,
que inunda de canto a canto.

Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.

Todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!

Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.

[Seleção de Mário Vitorino Gaspar, 
1/9/2020, 23h24. Sem indicação de fonte]

   


O poeta Li Bai (China, séc. VIII), "bebendo ao luar". 
Foto: origem desconhecida.  Cortesia:
facebook de António Graça de Abreu

Bebendo ao luar

por Li Bai [701-762]

Tradução de um dos mais famosos poemas de Li Bai,  por António Graça de Abreu
 

月下獨酌
花間一壺酒
獨酌無相親
舉杯邀明月
對影成三人
月既不解飲
影徒隨我身
暫伴月將影
行樂須及春
我歌月徘徊
我舞影零亂
醒時同交歡
醉後各分散
永結無情遊
相期邈雲漢

Um jarro de vinho entre as flores,
bebo sozinho, sem amigos.
Levanto o copo e convido o luar,
com a minha sombra somos três.
Ah, mas a Lua não sabe beber,
a sombra só sabe acompanhar meu corpo.
O luar por amigo, a sombra por escrava,
vamos todos fruir a Primavera, festejar.
Eu canto e passeiam no ar
os raios de luar.
Eu danço e volteia no espaço
a sombra de mim.
Lúcidos, nós três desfrutámos prazeres suaves,
bêbados, cada um segue seu caminho.
Que possamos repetir muitas vezes
nosso singular festim
e nos encontremos, por fim,
na Via Láctea.


[ Seleção: Anjos Silva Mendes | António Graça de Abreu, 
26/8/2020, 23h12]

 

Adiamento

por David Mourão-Ferreira [1927-1996]

Olhar-te bem nos olhos: que voragem!
Ouvir-te a voz na alma: que estridência!
É tão difícil termos coragem
de nos vermos enfim sem complacência.

É tão difícil regressar de viagem,
e descobrir no rastro tanta ausência…
Mas os meus olhos, súbito, reagem.
À tua voz chega o silêncio e vence-a.

Nos pulsos vibra ainda o mesmo rio
que no delta dos dedos se extasia
e moroso reflui ao coração.

O gesto de acusar-te? Suspendi-o.
Mas foi só aguardando melhor dia
em que tenha lugar a execução.

David Mourão-Ferreira
in, “Obra poética” a págs. 171/172
Editorial Presença, lISBOA, 2001

[Seleção: António Beja Santos, 

27/08/2020, 19:14]


















Maqueso, "makèzú", noz de cola... Cortesia de 

Makèzú


makèzú

— «Kuakié!... Makèzú, Makèzú...»

..........................................................

O pregão da avó Ximinha

É mesmo como os seus panos,

Já não tem a cor berrante

Que tinha nos outros anos.

 

Avó Xima está velhinha

Mas de manhã, manhãzinha,

Pede licença ao reumático

E num passo nada prático

Rasga estradinhas na areia...

 

Lá vai para um cajueiro

Que se levanta altaneiro

No cruzeiro dos caminhos

Das gentes que vão p’ra Baixa.

 

Nem criados, nem pedreiros

Nem alegres lavadeiras

Dessa nova geração

Das «venidas de alcatrão»

Ouvem o fraco pregão

Da velhinha quitandeira.

 

— «Kuakié!... Makèzú, Makèzú...»

— «Antão, véia, hoje nada?»

 

— «Nada, mano Filisberto...

Hoje os tempo tá mudado...»

 

— «Mas tá passá gente perto...

Como é aqui tás fazendo isso?»

 

— «Não sabe?! Todo esse povo

Pegô um costume novo

Qui diz quê civrização:

Come só pão com chouriço

Ou toma café com pão...

 

E diz ainda pru cima,

(Hum... mbundo kène muxima...)

Qui o nosso bom makèzú

É pra veios como tu».

 

— «Eles não sabe o que diz...

Pru quê qui vivi filiz

E tem cem ano eu e tu?»


— «É pruquê nossas raiz

Tem força do makèzú!...»


In: Viriato da Cruz, "Poemas", 1ª edição. Lisboa, Casa dos Estudantes do Império, Colecção de Autores Ultramarinos, 1961

[ Seleção: Luís Graça, 4 set 2020;  "maquezo", do quimbundo  makezu, plural de dikezu, noz de cola,  fruto mascado ou de que se faz uma bebida; fruto sagrado na cultura bantu]

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sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20610: Notas de leitura (1260): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (43) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
O BCAV 490 está a terminar a sua comissão, vivem-se dias amenos em Bissau, missões de pouca monta, ouve-se a guerra à distância. Aproximando-se o fim da viagem, anda-se à roda do tempo, dá-se voz a um teórico do movimento revolucionário mundial, reputadíssimo, Gérard Chaliand, despedimo-nos do Capitão do Quadrado e aproveitando um romance de Luís Rosa, ele que assistiu ao reerguer de Sangonhá, onde passou as passas do Algarve, foi depois até Farim, ganhou consciência que a paz na Guiné era um conceito idílico.
Estamos em tempo de ruminações, aqui se procura dar voz a outros contemporâneos do bardo, chegará o momento, e isto em 1966, em que Arnaldo Schulz não se acanha a dizer para Lisboa como tudo se tinha agravado, a despeito de se terem criado quartéis, criado aldeamentos, procurado estabelecer elos de confiança com as populações foragidas, metidas dramaticamente entre dois fogos.
Pegamos nesses relatos e fica-nos a crença da inevitabilidade de qualquer solução militar face a um contendor entusiasmado, bem armado e credor de imensas solidariedades.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (43)

Beja Santos

“Bom serviço tem desempenhado
a Polícia Militar
fazendo serviços na cidade.
Estão sempre a alinhar.

Tem rondas de noite e dia
a pé ou de viatura.
No quartel da Amura
está toda a Companhia.
O 1.º Sargento da Secretaria
é um homem desenrascado
com seu bigode eriçado
faz andar tudo na linha.
E o nosso Cabo Batatinha
bom serviço tem desempenhado.

Às seis horas toca a alvorada,
tudo tem que se levantar.
Mas quem na cama quer ficar
dá voltinhas à parada.
O Túlio, bom camarada,
também voltas tem que dar,
o Faranhista a acompanhar
custa-lhe muito correr.
Mas tem que a disciplina manter
a Polícia Militar.

Canta o fado o Santarém,
joga futebol o Nogueira,
o Castro e o Trafaria, à sua beira,
dão uns toques muito bem.
O Tenório a cantar também,
tem grande formalidade.
O Ruas, com sua habilidade,
uma cachopa arranjou
porque anda sempre no Peugeot
fazendo serviços na cidade.

O Santiago e o Baião,
conduzem com normalidade,
e há condutores com vaidade
aqui dentro do esquadrão.
Os Alferes e o Sr. Capitão
a Companhia sabem mandar.
A classe de Sargentos a orientar
tem grande categoria
e estas praças de Cavalaria
estão sempre a alinhar.”

********************

O bardo, em território isento de luta armada, não se cansa de exaltar os afazeres da sua unidade militar e os respetivos serviços de vigilância policial. Deixemo-lo nessa doce atividade, na pacatez de Bissau, retorne-se ao contraditório, como outros viam o PAIGC nos primeiros anos da luta armada, e depois despedimo-nos do Capitão do Quadrado. Gérard Chaliand, como se disse, acompanhou Amílcar Cabral entre maio e junho de 1966 no Interior da Guiné, daí resultou um livro intitulado “Lutte Armée en Afrique”, edição François Maspero, 1967. Passando como gato pelas brasas sobre o quadro introdutório e as generalidades da Guiné, por ele elaborados, e nunca perdendo de vista de que se trata de um livro de panegírico e altamente comprometido com a luta do PAIGC, e onde nunca faltam mostras de admiração deste renomado investigador francês por Amílcar Cabral, depois de Chaliand nos ter dado conta do que foram os primeiros anos da luta, vemo-lo agora a passar do Senegal para o Interior da Guiné, na base de Maké são recebidos pelo comissário Chico Mendes (Chico Té), Amílcar Cabral arengou às massas, releva que não será admitida a exploração do trabalho por quem quer que seja, trata homens e mulheres da mesma maneira, recorda o valor que tem o trabalho da terra e lembra os presentes que é indispensável intensificar o esforço de guerra e o esforço da produção. Para ser bem-sucedida a luta armada é crucial que a população esteja do lado do PAIGC. Na resposta, Osvaldo Vieira garante-lhe que a luta continuará, são precisas mais armas porque há cada vez mais gente a querer combater. Chaliand vai recebendo testemunhos de civis que apoiam a luta, alguém lhe mostra um documento português recuperado no decurso de operações, trata-se da Ordem de Operações N.º 18/66 que fala da Operação Achega no Pelundo. Depois seguem para o Oio, seis horas de marcha entre Maké e a Base Central do Norte. Regista que a vegetação é muito densa, caminha-se por estradas estreitíssimas entre árvores e mato. Passeia-se pelas dependências da base, regista escola, hospital de campanha, dormitórios, cozinhas, tudo com um quilómetro de diâmetro. Dorme-se sobre esteiras, a base é intensamente vigiada por grupos disseminados num raio de cinco quilómetros, os militares devidamente indumentados, vê bazucas, morteiros, metralhadoras ligeiras e pesadas. Ali perto começa o primeiro bombardeamento aéreo. A ordem é de dispersar.

Retomada a calma, Chaliand visita o hospital, conversa com dois médicos-cirurgiões, há doentes com paludismo e parasitas intestinais, há alguns casos de tuberculose, lepra e sífilis. Chaliand conversa com vários combatentes e até com um desertor português, José Augusto Teixeira Mourão. Haverá novo discurso de Amílcar Cabral, fala intensamente dos direitos das mulheres e na reconstrução do país, reitera a necessidade de haver boas relações entre os militares e as populações. Depois Chaliand retoma o registo de depoimentos, um dos quais se revela bastante importante para o entendimento do início da luta armada, é dado por António Bana, mais tarde falecido. A cerca de quinze quilómetros do Morés tenta-se reconstruir uma ponte para religar a estrada de Olossato a Bissorã antes da época das chuvas. Bana mostra-se orgulhoso, na antevéspera os combatentes da esfarpe destruíram à bazucada a parte da ponte que tinha sido recentemente reconstruída. Bana pertenceu ao primeiro grupo de jovens que aprendeu guerrilha na China e formação política em Conacri com Amílcar Cabral. Segundo ele, no início de 1962, eles eram oito os guerrilheiros com responsabilidade para desencadear a luta armada, o líder era Osvaldo Vieira, tinham como missão ocupar a zona Balanta, a zona Mandinga e a zona Fula e Saracolé, no Oio. Nesse tempo, havia enorme crispação em Dacar, vários partidos procuravam sobrepor-se ao PAIGC, caso do Movimento para a Libertação da Guiné, rapidamente se veio a descobrir que eram quadros sem apoio das populações. Bana refere a ofensiva lançada pelas tropas portuguesas em finais de 1962, é o exato momento em que começa a separação das águas, os que foram para o mato e os que persistiram em ficar à sombra da soberania portuguesa. A comitiva faz agora o seu retorno para o Senegal, passa-se de novo por Maké, Djagali, Osvaldo Vieira vai explicando como se processara a luta armada a partir de meados de 1963 na região, e os resultados obtidos em 1964 e 1965. Em Djagali, Amílcar Cabral arengou num comício para cerca de três mil camponeses, entusiasma as massas, lembra que as tropas portuguesas começam a ficar confinadas aos seus campos fortificados, que qualquer dia vão ter que abandonar o Boé, onde a guerrilha não lhes dá descanso. A comitiva põe-se ao caminho, atravessa a fronteira e a última parte do livro de Chaliand é uma súmula sobre a luta armada em toda a África.

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Em 2011, nas suas memórias intituladas “La Pointe du Couteau”, Volume I, Edições Robert Laffont, Chaliand recorda esta viagem que o marcou profundamente, ele era o quarto estrangeiro a entrar clandestinamente na Guiné-Bissau. Antes dele, tinham lá estado dois jornalistas franceses e Mario Marret que realizou o filme Lala Quema. São memórias em que ele lembra todos os guerrilheiros com quem conversara e que já tinham falecido e termina o seu relato dizendo que ao longo da sua vida recusara polidamente altas distinções e condecorações de toda a espécie, a única que não recusou foi a Medalha Amílcar Cabral, concedida pelas autoridades de Cabo Verde, e como se falasse para si recorda o extraordinário dirigente político que ele sempre considerou como um dos raros africanos do século XX que podem ser alçapremados ao nível dos grandes dirigentes do mundo contemporâneo, apesar da pequenez do país.

“Tenente General Alípio Tomé Pinto, o Capitão do Quadrado”, por Sarah Adamopoulos e Alípio Tomé Pinto, Ler devagar, 2016, é uma biografia de alguém que viveu intensamente os tempos do BCAV 490 no Norte da Guiné. Observa a quem o entrevista: “A Guiné mudou-me. A minha mulher diz que quando eu fui para lá era ainda um miúdo, apesar dos meus 28 anos, e que quando voltei parecia ter envelhecido 10 anos. Penso que ela tem razão”. Ele recorda Binta, o Oio, a gente afeta ao PAIGC a cirandar com todas as facilidades, quando ele pôs os pés em terra à frente da CCAÇ 675. E escreve- no livro que só um mês depois de ter chegado a Binta ele se abalançou a sair com as viaturas para percorrer os escassos 16 quilómetros que distavam entre Binta e Farim, onde estava o BCAV 490. Com prudência e astúcia, atirou-se ao trabalho, começou por uma batida à região de Lenquetó, onde estaria reunido um grupo do PAIGC na presença do seu chefe. Esta operação fez dezenas de mortos e gerou quarenta prisioneiros. Resultados animadores que levam à multiplicação dos patrulhamentos ofensivos, golpes de mão e batidas; aos poucos, os grupos do PAIGC recuam, desistem mesmo de pôr abatises nas estradas. É ferido em combate e recupera. Segue-se uma operação no Oio, tudo correu bem. Afastados os guerrilheiros, Tomé Pinto e os seus homens dedicam-se a reerguer a povoação de Binta, a população, outrora apavorada, metida entre dois fogos, começa a regressar. É nisto que chega a notícia de que fora admitido ao curso do Estado-Maior. Com enorme emoção, despede-se de Binta.

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O escritor Luís Rosa combateu na Guiné entre 1964 e 1966, escreverá uma obra alusiva “Memória dos Dias Sem Fim”, Editorial Presença, 2009. É colocado em Sangonhá, no Sul, assim definido:  
“Um corredor estreito de cerca de três quilómetros, esganado entre o rio Cacine e a linha imaginária da fronteira. Terra de imprevistos, onde a guerrilha se movia à vontade e se construía uma linha de quartéis, tentando conter a infiltração”.
Descreve a construção do quartel, naquele ponto, entre Gadamael e Cacine constroem-se as defesas, espessas paredes de chapas abertas de bidão, profundas fossas circulares, abrigos, isto entre flagelações e emboscadas. Rasga-se uma pista de aviação. Fazem-se surtidas, autênticas manobras punitivas sobre as forças do PAIGC.
A vida em Sangonhá parece renascer, distribuíram-se sementes, desbravou-se a terra, semeou-se a mancarra, o resultado foi uma colheita abundantíssima. Ali perto, em Guileje, já se vive às portas do inferno. É transferido para Farim, e o que parecia ser um paraíso traz-lhe um novo fragor da guerra.
Um romance com algumas páginas muito belas e que nos faz situar em vários pontos da Guiné, entre 1964 e 1966, com intensidade, e com raras exceções, na Guiné continental a guerrilha não dava tréguas.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 24 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20589: Notas de leitura (1258): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (42) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 27 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20599: Notas de leitura (1259): "Memórias Boas da Minha Guerra", por José Ferreira - Recordar, recolher, semear alegrias e solidariedades: Um incansável ex-combatente que ata e desata entre o passado e o presente (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20027: Tabanca Grande (483): Lúcio Vieira, ex-fur mil, CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67), natural de Torres Novas, jornalista, poeta, dramaturgo, encenador: senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 794


O fur mil cav Lúcio Vieira, da CCAV 788  / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67),  no rio Mansoa 


O fur mil cav Lúcio Vieira, CCAV 788 / BCAV 790, em Bula... A barrica parece ter a seguinte inscrição: "Água Brasuca" (ou será "Água Dragões" ?)...O Vieira estava de sargento de dia...


O fur mil cav Lúcio Vieira, CCAV 788 / BCAV 790, em São Vicente, com o "exótico Machado" 


Fotos (e legendas): ©Lúcio Vieira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O Lúcio Vieira, ex-furriel miliciano de cavalaria,  BCAV 790 / CCAV 788 (Bula e Ingoré, 1965/67), aceitou o nosso convite para integrar, formalmente, a Tabanca Grande,  formulado por ocasião do nosso XIV Encontro Nacional, realizado em 25 de maio último, em Monte Real. Costuma também participar, com o seu amigo e camarada Carlos Pinheiro, nos convívios da Tabanca do Centro.

Será o grã-tabanqueiro n.º  794. E é, obviamente, bem vindo.  Não tínhamos até à data nenhum representante da CCAV 788. (*)

O Lúcio Vieira, além de uma nota curricular (, assinada elo seu amigo Américo Brito), e das fotos da praxe, mandou-nos textos para oportuna  publicação e também a seguinte informação sobre o seu batalhão e a sua companhia:

(...) "O Batalhão, o BCAV 790,  formou-se em Cavalaria 7 (Calçada da Ajuda - Lisboa) e foi comandado pelo então Ten.Coronel Henrique Calado. Quinze dias após o desembarque, saímos de Bissau (BAT 600) e fomos colocados em Bula, juntos com a CCS do Batalhão, como Companhia de intervenção. 

Após seis meses e porque a Companhia, a CCAV 788,  acusava algum desgaste, fomos render a Companhia que se encontrava no Ingoré. E foi pior do que o tempo de intervenção em Bula.

Comandava a 788 o,  já falecido, Capitão Costa Ferreira, oriundo de Castelo Branco.
Regressámos em Janeiro de 1967." (...)

O Batalhão editou o jornal "Clarim". Diretor: Ten-Cor Cav Henrique Calado.


2.  Lúcio Vieira, síntese curricular, por Américo Brito

António Lúcio Coutinho Vieira - Poeta, Dramaturgo, Encenador, Investigador e  Jornalista

Após os estudos académicos concluiu, anos mais tarde, um curso intensivo no Centro de Estudos Psicotécnicos, em Lisboa e, posteriormente, um outro de Relações Públicas.

Foi responsável, ao longo de treze anos, pelo departamento de Comunicação e Relações Públicas do CEP 4 ( ex-Rodoviária Nacional ). 

Em paralelo com as funções profissionais, das quais nunca se afastou, desenvolveu, ao longo dos anos, uma vasta actividade, nas áreas da cultura e da comunicação, principalmente nos sectores do Teatro, do Jornalismo, do Audiovisual e da Rádio.

Ocupou o cargo de Vice-presidente do Cineclube de Torres Novas, o de director-encenador no Centro de Juventude e, posteriormente, na Casa de Cultura da cidade, ambos na área do Teatro.

Fundou e dirigiu o Grupo de Jograis da USTN, o Grupo Cénico Claras, o TET-Teatro Experimental Torrejano e o Teatro Estúdio, nos quais, ao longo de vários anos, encenou textos de autores portugueses e estrangeiros, em cuja lista se incluem, para além do próprio autor, entre outros os nomes de Gil Vicente, Miguel Torga, Luís-Francisco Rebello, Carlos Selvagem, Jaime Salazar Sampaio, Luís de Sttau-Monteiro, Sófocles, Molière, Marivaux.

Das várias montagens que assinou, algumas em obras de sua autoria, destacam-se a estreia universal da farsa de Jerónimo Ribeiro, Auto do Físico ( séc. XVI ), uma arrojada versão da Antígona, de Sófocles e a célebre farsa de Luís de Sttau Monteiro, "A Guerra Santa", que haveria de marcar politicamente, em Portugal, o Verão de 1977 e a farsa trágica, "Dulcinea ou a Última Aventura de D. Quixote", de Carlos Selvagem. 

Adaptou obras teatrais, clássicas e contemporâneas e é autor de vários originais de teatro, alguns para o público infanto-juvenil.

Iniciou, na SPA–Sociedade Portuguesa de Autores, as 1ªs. Jornadas de Interpretação Teatral, onde pontuaram actores como Rogério Paulo e Canto e Castro, entre outros. A sua peça "Aldeiabrava" – 2º. lugar "exaequo", no concurso nacional promovido pela ATADT ( 1967 ) - viria a ser escolhida pela SPA, para representar o teatro português, numa mostra de livros portugueses em Moscovo.

Ao longo dos anos, vários títulos haviam de integrar a lista de obras dramatúrgicas do autor: "A Flor Mágica do Sábio Constelação" e "A Ilha das Maravilhas" – ambas destinadas ao público infanto-juvenil -, "O Vértice", "Aldeiabrava" (com  prefácio de Luíz-Francisco Rebello). Ou a "Odisseia", "A 7.ª Guerra Mundial", "SOS - Sistema Optimizado de Saúde", ou o monólogo "Eu, Sofredor me Confesso", são alguns desses títulos. 

Destinado a estudantes do ensino secundário surgiu, recentemente, uma colectânea de curtas peças, sob o título genérico de “Pequeno Teatro Académico”.

No prefácio à sua peça "Aldeiabrava", o então presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, teatrólogo e dramaturgo, Luiz-Francisco Rebello, amigo pessoal do autor, compara essa sua obra, nos aspectos temático e de conteúdo, a "O Exército na Cidade", de Jules Romains, a "Numancia", de Cervantes e a "Fuenteovejuna", de Lope de Vega.

É autor de vasto número de letras de canções e fados, principalmente de parceria com Paco Bandeira e com o maestro António Gavino e de vários temas da banda sonora da telenovela "Filhos do Vento"  (RTP-1997). Para além de Paco Bandeira, gravaram igualmente os seus poemas, António Mourão, Vasco Rafael, Margarida Bessa, Maria Amélia Proença, os solistas das Orquestras Típicas, Scalabitana e de Rio Maior, entre outros.

No prefácio que dedicou ao seu livro de poemas "Re Cantos", outro velho amigo do autor, Pedro Barroso, deixa escrito que, lendo-se a sua poesia “sentimos o fulgor de uma enorme explosão de beleza pessoal; passa por ali o génio dos grandes” (...) “este livro fica aí para ler-se toda a vida como consultor e conselheiro. Como terapeuta das horas e breviário dos sentidos (...)”. 

Já o Prof. António Matias Coelho, presidente da Associação Casa-Memória de Camões, em Constância e membro do júri que elegeria como vencedora a obra “25 Poemas de Dores e Amores”, diria a propósito deste seu último livro: “(…) Senti que lia um grande poeta. Esta é da melhor poesia que já li (…)”

Foi redactor principal no semanário "O Almonda", publicou reportagens na revista "Domingo Magazine", do diário "Correio da Manhã" e colaborou, ao longo dos anos, com vários jornais regionais.

É autor do script e da realização de curtas-metragens de cinema de ficção para a Equipa Fotograma e de vários documentários em vídeo. Foi director de estação e director de programas, em diversas estações regionais de rádio.

Vencedor de alguns festivais de canção de âmbito regional, obteve o 2.º  lugar no Festival Nacional da Canção de Leiria ( 1987 ), possui prémios de rádio (programa Auditório – RCL ) e de teatro: "Aldeiabrava" viria a obter o 2º. lugar, "ex aequo", no Concurso Nacional da ATADT (Portugal) vencendo o Festival de Teatro Português de Toronto (Canadá) em 1990.

António Lúcio Vieira foi distinguido, em 1997, com os diplomas de Mérito e de Louvor, pela Casa do Ribatejo, em Lisboa.

Em 2015 o Município de Alcanena atribuiu-lhe a Medalha de Ouro de Mérito Cultural.

É Prémio de Poesia “Médio Tejo Edições” ( 2017) para “25 Poemas de Dores e Amores”. É membro da SPA – Sociedade Portuguesa de Autores.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18590: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (55): Explicar a guerra colonial e o 25 de Abril aos alunos do 12º ano, da escola secundária Miguel Torga, Massamá (Jorge Araújo)


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3
Fotos (e legendas): © Jorge Araújo (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O nosso coeditor Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,
CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974).


"DA GUERRA COLONIAL AO 25 DE ABRIL" - PALESTRA NA ESCOLA SECUNDÁRIA MIGUEL TORGA, EM 23 DE ABRIL DE 2018 (Jorge Araújo)


Nota prévia:

Na Foto nº 1, acima, vê-se a entrada principal da antiga Escola Secundária de Massamá, hoje Escola Secundária Miguel Torga [pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha (1907-1995)] nome atribuído de acordo com o Despacho 68/SEAE/96. Este complexo escolar foi implantado no ano lectivo de 1985/1986, num terreno de cultivo com uma área de 14 mil metros quadrados.

Dez anos depois da sua construção, a então Escola Secundária de Massamá, localizada na Freguesia de Monte Abraão, em Queluz, Sintra, escolheu para seu patrono o poeta, contista e memorialista Miguel Torga (Prémio Camões de 1989, o mais importante da língua portuguesa), tendo por fundamentos os constantes no Despacho 68/SEAE/96, e que seguidamente se transcrevem:

“A História que era preciso ensinar nas escolas não devia mostrar Carlos, O Temerário, a morrer diante de Nancy. Devia mostrar mas é esta junta de bois aqui á minha porta, atrelada a um carro, à espera que o dono acabe de beber um copo. Que importa lá à humanidade a bazófia do senhor francês? (Diário, 26105144) – Quem o afirma é Miguel Torga, exemplo de poeta, pensador, cidadão de corpo inteiro, que nos deixou uma das obras mais marcantes deste século em Portugal [séc. XX].

Como disse David Mourão-Ferreira (1927-1996), a posição de Miguel Torga “nas nossas letras continua a ser a de um grande isolado – que, no entanto, ou por isso mesmo, consubstancia e representa, da forma mais directa ou através de inevitáveis símbolos, quanto há de viril, vertical, insubornável no homem português contemporâneo”. Que melhor exemplo para educadores e educandos?

O contributo que deu à literatura e cultura portuguesas e a referência da sua vida e obra para todos e, em particular para a juventude portuguesa são as razões positivas de sobra que estiveram na origem da proposta do Conselho Directivo da Escola Secundária de Massamá, Sintra, com a concordância da Câmara Municipal, no sentido da atribuição do nome de Miguel Torga ao referido estabelecimento de ensino.

Assim e preenchidos que estão os requisitos e demais finalidades previstos no Dec.-Lei 387/90, de 10/12, determino:

1 - A Escola Secundária de Massamá, Sintra, passa a denominar-se Escola Secundária Miguel Torga, Massamá, Sintra.

2 - A Escola referida no número anterior constará da portaria a que se refere o nº 1 do artº 8 do Dec.-Lei 387/90, de 10/12, com a denominação que lhe é atribuída nos termos do presente despacho.


Em 2-7-1996, o Secretário de Estado da Administração Educativa, Guilherme de Oliveira Martins”.

1. INTRODUÇÃO
Feita a apresentação das razões que deram o nome à actual Escola Secundária Miguel Torga, importa agora referir a minha participação na palestra em título, realizada nessa Escola no passado dia 23 de Abril, 2.ª feira, a propósito das comemorações do 44.º Aniversário do “25 de Abril de 1974”. O evento organizado pelo Departamento de História da Escola tinha por destinatários os alunos de três turmas do 12.º Ano [cartaz elaborado para o efeito, ao lado].

O convite surgiu por intermédio da Professora Helena Neto, que em parceria com a Professora Conceição Carpinteiro lideraram este projecto enquanto docentes da Disciplina de História. Por ser nossa amiga de longa data e saber da minha condição de ex-combatente na Guiné, logo ela se lembrou de mim para essa (boa) causa.

Aceitei o convite, sem dificuldade, uma vez que tinha disponibilidade de agenda para esse dia.


2. A SESSÃO

O meu encontro com a comunidade escolar, alunos e corpo docente, decorreu no auditório da Escola, num ambiente de grande empatia, certamente pela novidade dos conteúdos aflorados, tendo-se registado uma participação de sete dezenas de indivíduos.

Durante duas horas, das dez ao meio-dia, abordei várias temáticas relacionadas com a evolução histórica do conflito, sinalizando algumas das minhas experiências, entre as mais “pesadas” e as mais “levezinhas”, acumuladas ao longo dos dois anos da comissão ultramarina, justamente até ao 25 de Abril de 1974, uma vez que nessa data ainda era militar, pois havia chegado a Lisboa, a bordo do N/M Niassa, vinte dias antes.

No final da apresentação dos pontos estruturados para a sessão, dei a palavra aos presentes, os quais colocaram diferentes e pertinentes questões, com relevância para os alunos de origem africana (Guineenses, Cabo.verdianos e Angolanos) incluindo, caso interessante, uma aluna luso-timorense. Como curiosidade, um dos presentes prometeu enviar-me os contactos do seu avô, também ele ex-combatente na Guiné, que, segundo crê, teria sido mobilizado durante a segunda metade dos anos sessenta.

Coincidindo com o aniversário da «Tabanca Grande», que aproveitei para o referir, os conteúdos do blogue foram também utilizados como “pano de fundo”, por um lado, para complementar algumas das minhas abordagens e, por outro, como fonte de informação privilegiada para a elaboração dos trabalhos que os alunos terão de apresentar no âmbito da Disciplina de História, e na sequência desta Reunião plenária.

Creio que os jovens e as jovens ficaram satisfeitas com o que ouviram… Vamos ver o que nos reservam os seus trabalhos finais.

Para encerrar este texto, ao jeito de ‘reportagem’, apresento acima duas fotos [nºs 2 e 3] que me foram cedidas relacionadas com o evento.

Com um forte abraço de amizade.
Jorge Araújo.
27ABR2018
_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 22 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18446: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (54): A "mindjer grandi" Maria da Graça de Pina Monteiro, nascida em 1900, e que viveu em Bafatá e depois em Bissau... Conhecida pela Mariquinha, era casada com um chefe de posto português, sr. Eiras (Vieira), e tinha 3 filhas, e entre elas a Judite e a Linda Vieira... "Meus amigos da Tabanca Garandi, alguém por acaso chegou de conhecer algum membro dessa família?" (Ludmila Ferreira)

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16758: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (1): Amílcar Cabral e os desertores portugueses: os casos dos 1ºs cabos Armando Correia Ribeiro e José Augusto Teixeira Mourão


Guiné  > Região Óio > PAIGC > Base de Sará > c. 1966 > É muito provável que os indivíduos, brancos, sentados, e assinalados por elipse a vermelho, sejam os desertores portugueses José Augusto Teixeira Mourão e Armando Correia Ribeiro. Tinham "livre trânsito"  nas bases do PAIGC mas provocaram alguns dissabores a Amílcar Cabral, antes do posterior envio para Argel... Desconhece-se o fim desta história...
Foto do Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum, com a devida vénia. (JA)

Citação:

(1963-1973), "Guerrilheiros do PAIGC, base no interior da Guiné", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43576 (2016-11-20).





Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009), em Ciências da Actividade Física e do Desporto; professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona. Damos início a uma nova série, da sua autoria, "(D)o outro lado do combate".


1. Introdução 

Na elaboração da anterior narrativa [P16721] (*), a terceira relacionada com a entrevista ao médico-cirurgião Virgílio Camacho Duverger (1934-2003), foram incluídas referências a casos de deserção de militares das NT, nomeadamente o dr. Mário Moutinho de Pádua, considerado o primeiro oficial desertor da história da Guerra do Ultramar, ocorrida em Outubro de 1961, em Angola [Alf Mi Médico do BCAÇ 88].

Decorridos seis anos após essa sua tomada de decisão, o dr. Mário Pádua acabaria por integrar uma equipa de clínicos cubanos em missão de apoio ao PAIGC, primeiro no Hospital Militar, em Boké, na Guiné-Conacri, durante os meses de julho e agosto de 1967, fixando-se depois no Hospital de Ziguinchor, no Senegal.

Referiram-se, ainda, os casos de David Ferreira de Jesus Costa [David Costa], soldado da CART 1660 (1967/1968), aquartelada em Mansoa, que em 17 de maio de 1967 foi aprisionado na mata circunvolvente ao quartel por grupo de guerrilheiros, e o de Manuel Fragata Francisco [Manuel Fragata], soldado da CART 1690 (1967/1969), sediada em Geba, que ao ficar ferido em combate na “Op Invisível”, realizada em 19 de dezembro de 1967, na mata do Oio, não lhe permitiu retirar-se do local por ausência de mobilidade própria, sendo igualmente aprisionado. Em ambos os casos os militares portugueses foram levados para a base [Lar/Hospital] de Ziguinchor.

Por lapso, associei o nome de David Costa ao de Daniel Alves [militar identificado com "dupla deserção"] e que fora noticiada por Amílcar Cabral [1924-1973] em nota, por si manuscrita, enviada aos seus camaradas no início de janeiro de 1969 [P16722] (**).

Da pesquisa realizada para encontrar alguma referência acerca do caso do Daniel Alves, fugido de Dacar no final do ano de 1968, tendo por fonte privilegiada a «Casa Comum – Fundação Mário Soares», ela não produziu qualquer resultado. Porém, tive acesso a outros documentos relacionados com o tema “deserções”, pelo que decidi partilhá-los convosco, elaborando, por ordem cronológica de acontecimentos, mais esta pequena narrativa.


2. OS casos de Armando Correia Ribeiro, da CCAV 789, e de José Augusto Teixeira Mourão [, unidade desconhecida] 

A referência a estes dois militares metropolitanos que decidiram desertar de unidades do exército português em missão no CTIG foi encontrada em documento, sem data, manuscrito por Amílcar Cabral, em francês,  e que abaixo reproduzimos. Os nomes referidos são:

(i) Armando Correia Ribeiro, 1º cabo  ["caporal"], n.º mecanográfico 1919/64, da CCAV 789, com 24 anos de idade, natural de Coimbra, e chegado a Bissau a 28 de abril de 1965. [Repare-se na subtileza do apontamento de Amílcar Cabral: "séjour dans notre pays depuis le 28 avril 1965", ou seja, "permanência do nosso país desde o dia 28 de abril de 1965"];

(ii) José Augusto Teixeira Mourão, 1º cabo, n.º mecanográfico 3426/64, unidade militar desconhecida, com 23 anos de idade, natural do Porto, e chegado a Bissau a 6 de abril de 1965.



Citação:
(s.d.), "Informações relativas a dois militares do exército português", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41210 (2016-11-20)


Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 07058.016.013
Título: Informações relativas a dois militares do exército português
Assunto: Informações relativas a dois militares do exército português: Armando Correia Ribeiro e José Augusto Teixeira Mourão.
Data: s.d.
Observações: Doc incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral 1961-1963
Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Documentos




Galhardete da CCAV 789

Uma vez que não existe no espólio do nosso blogue qualquer elemento historiográfico da CCAV 789, tendente a ajudar-nos a entender as razões ou as motivações que estiveram na origem da deserção do Armando Correia Ribeiro, avançámos para a elaboração do quadro de baixas em combate verificadas nesta unidade durante a sua comissão, com relevância para as respectivas datas
De referir que a CCAV 789, a terceira unidade operacional do BCAV 790, instalado em Bula, chegou a Bissau a 23 de abril de 1965 e o regresso à Metrópole verificou-se a 8 de fevereiro de 1967. As duas viagens foram realizadas a bordo do N/M Uíge. A CCAV 789 esteve aquartelada em Teixeira Pinto e Binar.

Quadro estatístico do autor - Fonte: http://ultramar.terraweb.biz/Convivios_Imagens/BCAV790/BCAv790_osmortos.pdf, (com a devida vénia).

Quanto ao caso do José Augusto Teixeira Mourão, desconhecem-se, igualmente, os antecedentes que o levaram a desertar do exército português, a que se adicionam todos os elementos relacionados com o seu currículo militar [a não ser que o nosso camarada e colaborador permanente do blogue, José Martins,  nos possa ajudar neste âmbito].

No entanto, a primeira referência de que há registo sobre José Augusto data de junho de 1966 e foi relatada pelo médico cubano Domingo Diaz Delgado no primeiro fragmento da sua entrevista [P16234] (***).
Recuperamos essa passagem: 

[…] Lilica Boal [...] levou-me a sua casa [em Dacar], aonde permaneci três ou quatro dias até que me dão a conhecer [junho de 1966] um desertor do exército português, de nome José Augusto [José Augusto Teixeira Mourão], e apresentam-me como admirador do Movimento e que queria participar na guerrilha contra o seu governo. A este ex-militar deram-lhe numerosos detalhes e dizem-lhe que sou cubano. 

Desde aquele momento não fiquei tranquilo e pedi que me mudassem de casa, pois não confiava naquele homem [, o José Augusto]. Mudam-me para outra moradia, onde fiquei mais um dia. […]

 O principal trabalho em Sará [base], durante esses meses [julho a dezembro de 1966], foi a extração de dentes. Tenho um caderno onde registei a quantidade de pessoas que tratei, incluindo o português desertor [José Augusto] que me apresentaram em Dacar, que depois se confirmou tratar-se de um agente da Inteligência portuguesa [PIDE]. Esse homem permaneceu preso no Norte da Guiné, convivendo connosco nesse acampamento. [...]

Creio que podemos validar, com elevada margem de segurança,
a hipótese de a imagem [, que encima este poste], ser referente à base de Sará, na região do Óio, e ao ano de 1966...

Observando-a com mais detalhe [, imagem à direita,] nela se vê um homem jovem , branco, [provavelmente um militar português] vestido “à civil”, com barba de duas semanas, calçando ténis... Ao seu lado é possível identificar a perna esquerda de um outro corpo, cuja situação deveria ser igual à sua.  Daí podermos considerá-los como sendo o José Augusto e o Armando Ribeiro, fazendo fé nas referências produzidas nos vários documentos a seguir identificados. 

Pelo nº mecanográfico, eram dois militares da incorporação de 1964, um com 24 anos o Armando) e outro com 23 (o José Augusto), na altura em que se entregaram ou foram capturados pelo PAIGC em 1967.  É bem possível que tenha havido, também aqui, razões do foro disciplinar para explicar a deserção. O José Augusto já estava, em Dakar,  com o PAIGC em agosto de  1966.


3. Reunião com os desertores portugueses em 31 de agosto de 1967: 

Por decisão de Amílcar Cabral foi realizada, na data em título, uma reunião com os dois desertores portugueses, onde foram abordados os seguintes pontos [resumo]:

– Desculpa-se de só agora os ter podido ouvir [, aos desertorres].

– Fala do significado da deserção. Refere os cuidados que nós [PAIGC] devemos ter também com os desertores. Referiu o caso de um desertor que levado até Dacar fugiu e hoje se encontra em Bissau [será o caso do David Costa ?]. 

Apesar da nossa boa vontade, dos nossos princípios de humanidade, do nosso bom coração, temos de estar vigilantes. Refere os casos de tentativa de fuga, de um deles lá dentro [?] e de outro, de fuga em Dacar, onde se juntou. Diz ainda que os Relatórios mostram contradições nas suas afirmações.

- Mourão (José Augusto) – Chegou a Dacar. Esteve três dias preso. Liberto, foi para o Lar [Ziguinchor?!]. Dois dias depois foi beber uma cerveja com um camarada nosso (Joaquim), numa taberna de um tal Lima (que é Pide). Este pediu-lhe para o ajudar no seu trabalho. Mais tarde conheceu um tal Germano Monteiro (Pide) que o levou à freira. Conversaram na embaixada e fizeram-lhe perguntas. As suas respostas eram comunicadas ao telefone ao embaixador da Suíça. Depois comunicam com a Lilica [Boal] que, segundo afirma, lhe disse que se quisesse ir para Lisboa esta lhe obteria os papéis [documentos oficiais].

- Amílcar – Esclarece que Lisboa começa mesmo em Dacar com qualquer Pide. Esta pode matar em sua casa o desertor, pode fazer desaparecer o corpo e enviá-lo para Lisboa. Pode também liquidá-lo mesmo na Embaixada ou obrigá-lo à força a sair para Lisboa.


- Lilica Boal  [, Maria da Luz Freira de Andrade, n. 1934, Tarrafal, Santiago, Cabo Verde]– esclarece que é falso o que diz e o que se passou foi o seguinte: afirmou-lhe que se quisesse ir para Lisboa o liquidariam.



Nota: O texto acima corresponde à transcrição da página 1, abaixo reproduzida.



- Fala Armando [Ribeiro] (desertor) – Conta que foi com dois camaradas nossos longe do Sará [base] para ir beber e que se embebedou. Voltou à base e começou a falar sozinho. Depois, porque estava a dizer coisas sem nexo, um camarada criticou-o pelo que disse. O José Augusto começou a provocá-lo e depois jogaram à pancada. 

Em consequência disso, aborrecido, saiu da base à noite e depois encontrou um grupo de guerrilheiros que o conduziu à base. Ia às vezes caçar, mesmo sozinho. Outra vez afastou-se para uma Tabanca, tendo depois sido acusado de tentativa de fuga.

- Pergunta de Fidelis (a José Augusto) – Porque mostrou a figura de Amílcar e de outros responsáveis do Partido a um desconhecido que estava numa taberna, cerca da C.R.P. [Casa de Reclusão do Partido?].

- José Augusto – Explicou a coisa.

- Amílcar – Diz que se tratará o problema da melhor maneira possível. Damos-vos comida, tratamo-los bem, damos-lhes dinheiro. Devem ter toda a confiança. Irão conversar com os camaradas Fidelis, Araújo, Vasco e talvez Armando [Ramos]. Diz que podem comunicar com a família.

- PRESENTES – Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Vasco Cabral, José Araújo, Fidelis Almada, Armando Ramos, Joseph Turpin, Nino Vieira e Lilica Boal.


Nota: O texto acima corresponde à transcrição da página 2, abaixo reproduzida.


Citação:
(1967), "Reunião com os desertores portugueses", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41297 (2016-11-20)



Instituição:  Fundação Mário Soares
Pasta: 07072.125.007
Título: Reunião com desertores portugueses
Assunto: Apontamentos da reunião com os desertores portugueses. Presentes: Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Vasco Cabral, José Araújo, Fidelis Cabral de Almada, Armando Ramos, Joseph Turpin, Nino Vieira e Lilica Boal.
Data: Quinta, 31 de Agosto de 1967
Observações: Doc incluído no dossier intitulado Relatórios VI 1962-1971.
Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Documentos


2.2. Pedido de autorização ao Ministro das Forças Armadas da República da Guiné, com data de  5 de setembro de 1967, para envio dos dois desertores do exército português para Argel:

Cinco dias após a realização  desta reunião com os dois desertores portugueses – Armando Ribeiro e José Augusto Mourão – ,  Amílcar Cabral, procurando resolver o problema conforme prometera, solicita, em carta enviada ao Ministro das Forças Armadas da República da Guiné-Conacri [General Lansana Diané (1920-1985)], autorização para o envio daqueles militares para Argel.

Eis a sua transcrição na íntegra [, tradução nossa, do francês para português].

Conacri, 5 de Setembro de 1967

Senhor Ministro das Forças Armadas e do Serviço Cívico 

Conacri

Senhor Ministro e caro companheiro de luta.

Depois de termos desencadeado a nossa luta armada de libertação nacional, vários militares portugueses e africanos desertaram das fileiras das tropas coloniais para se juntarem às nossas forças, abandonando, assim, a guerra colonial. A maioria dos desertores portugueses, dos quais obtivemos o melhor acolhimento, juntaram-se com a nossa ajuda aos movimentos antifascistas de Portugal, após terem passado pela República da Guiné. Outros passaram através do Senegal.

Dois militares portugueses, 1º cabo, n.º 1919/64, Armando Correia Ribeiro, e  1ºcabo n.º 3426/64, José A. [Augusto] Teixeira Mourão, que desertaram das tropas coloniais no Norte do país, foram transferidos para o Sul, encontrando-se presentemente em Conacri. Sujeitos às medidas de segurança necessárias, estes desertores forneceram-nos uma série de informações que considerámos interessantes.

Como os anteriores, gostaríamos de os enviar para a Argélia para inclusão num dos movimentos antifascistas portugueses mais representativo, com o qual temos boas relações [, Frente Patriótica de Libertação Nacional].

É por isso que tenho a honra de lhe solicitar nos conceda, por favor, as autorizações necessárias às suas viagens para Argel.

Aceite, Senhor Ministro e caro companheiro de luta, a expressão dos nossos sentimentos de elevada e fraternal consideração.

P’ Bureau Político do P.A.I.G.C.

Amílcar Cabral
Secretário-Geral

 
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Citação:
(1967), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35016 (2016-11-16)


Instituição:  Fundação Mário Soares
Pasta: 04606.045.134
Assunto: Solicita autorização junto das autoridades de Conakry para enviar dois desertores do exército português para Argel.
Remetente: Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC.
Destinatário: Ministro das Forças Armadas e do Serviço Cívico, Conakry
Data: Terça, 5 de Setembro de 1967
Observações: Doc incluído no dossier intitulado Cartas e textos dactilografados enviados por Amílcar Cabral 1960-1967
Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Correspondência

Para além do escrutínio aos documentos supra, nada mais relevante foi encontrado, pelo que continuará incógnito o que terá acontecido, a partir de 5 de setembro de 1967, na vida de cada um dos nossos dois camaradas, a não ser que, entretanto, surjam novos desenvolvimentos.

Vamos acreditar que tal possa acontecer.  Obrigado pela atenção.

Um forte abraço de amizade com votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
21nov2016.
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de novembro de 2016~> Guiné 63/74 - P16721: Notas de leitura (892): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte XII: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger [III]: o encontro, em Boké,com o médico português Mário Pádua (Jorge Araújo)

(**) Vd. poste de 15 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16722: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (22): Quem terá sido o Daniel Alves, "duplamente desertor" ? Primeiro, fugiu das nossas fileiras, possivelmente em 1967, e depois das fileiras do PAIGC... Amilcar Cabral, traído e preocupado, escreveu: "O Daniel Alves conseguiu enganar a malta (sic) e fugiu em Dacar. É um facto banal numa luta (deserção ou traição), mas pode complicar-nos muito a vida em relação aos amigos"....

(***) Vd. poste de 24 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16234: Notas de leitura (852): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte II: a vida dura nas base de
Sara, na região do Oio (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)