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segunda-feira, 7 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3030: In Memoriam (6): General Hélio Felgas (Torcato Mendonça)

Mensagem do Torcato Mendonça, de 25 de Junho



Luís Graça e Editores,

Ontem quando li a notícia fiquei triste. Aos poucos – costuma dizer-se: da lei da Morte ou da Vida se vão libertando... Prefiro dizer: faleceram.

Neste caso, faleceu o General Hélio Felgas e já tinham falecido o Marechal Spínola, o Coronel Pimental Bastos, o Payne (médico BCaç 2852). Pessoas com as quais convivi, mais ou menos, na minha passagem pela Guiné.

Todos eles me mereceram e continuam a merecer o meu respeito. Nunca diria deles Caco Baldé, Pimbas ou outro "nome" a qualquer. Aceito que outros o usem. É problema que me transcende.

Mas outros militares foram desaparecendo, alguns que comigo ou contigo, Luís - estivemos na mesma zona – não conviveram, caso do Capitão José Neto e a todos, mais certamente aos que de perto com ele privaram, deixou (deixaram) grande saudade. São, queiramos ou não "bocados" de nós, que se vão aos poucos perdendo. É natural, é a lei da vida. Mas é triste, como era lá, meus caros. Todos por isso passamos.

Conheci o General Hélio Felgas. Antes da Lança Afiada, durante esta operação, quando estive em Galomaro, no COP 7, a trabalhar para a CCAÇ 2405, na operação que levou à destruição do acampamento do Mamadu Indjai e à captura do Malan Mané. Tudo davam estórias e mostravam facetas do Homem e Militar que Ele foi. Estás a pensar: Que raio, o tipo está a ficar militarista. Nada disso. Estou é a sentir que aos poucos muitos vão desaparecendo e, muitos ou alguns deles, em vida deviam ter tido melhor tratamento.

Repara, que não falo na cambança do Cheche: porquê? Aponto só dois motivos: o Alf Diniz era do meu curso e conheci-o; ouvi o relato feito por um ou dois militares que lá estiveram (um o Capitão Neto, de Nova Lamego) e aceito o relato dos nossos camaradas da 2405. Nessa data estava em Portugal, em férias. Dava um bom dossiê e não difícil de formar. Até convinha…Como convinha o dossier Lança Afiada e o erro da falta de mais apoio aéreo (Leia-se bombardeamentos – da minha responsabilidade – e emprego de forças especiais que, devido á sua mobilidade teriam provocado outro desenlace, ou seja, baixas ao IN).

Permitam-me uma sugestão:

(i) Que se faça uma página no blogue com nome e curta biografia destes Homens;

(ii) Que certas operações, ou casos polémicos, tenham página própria para rápida consulta e estudo. (Certamente seriam melhor completados)!

À vossa consideração

Um abraço,

Torcato Mendonça
Apartado 43,
6230-909 Fundão
__________

Notas:

1. Fixação do texto: vb
2. Artigos relacionados em:

24 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2980: In Memoriam (5): Morreu ontem o Major General Hélio Felgas, antigo comandante do Agrupamento nº 2957, Bafatá (1968/69)

24 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2981: Hélio Felgas, com Spínola, em Bambadinca (Jaime Machado)

25 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2984: Op Mabecos Bravios: a retirada de Madina do Boé e o desastre de Cheche (Maj Gen Hélio Felgas † )

25 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2985: Homenagem ao meu professor da Academia Militar, Hélio Felgas (António Costa, Cadete aluno nº 11/650, Curso ART 1964/67)

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16599: Inquérito 'on line' (74): as primeiras 41 respostas: 20 dos nossos leitores estiveram no mato com familiares nossos, não guineenses: esposas (13) ou esposas e filhos (7)... O prazo termina em 20/10/2016, 5ª feira, às 6h52, e era bom que chegássemos às 100 respostas...


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCS/BART 2917 (1970/72) > Convívio no bar de sargentos, em meados de 1970: ainda estávamos em "lua de mel", os "velhinhos" da CCAÇ 12, e os "piras" do BART 2917, aqui representados pelo 2º Comandante, maj art José António Anjos de Carvalho, sempre fardado, hoje cor art ref, e o 1º srgt art Fernando Brito (1932-2014)...

As senhoras: à direita do Brito, a Helena, mulher do alf mil at inf António Manuel Carlão, do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 (o casal vive hoje em Fão, Esposende); à direita do Anjos de Carvalho, a esposa do major art, Jorge Vieira de Barros e Bastos (mais familiarmente conhecido por Bê Bê, era o major de operações do comando do BART 2917; hoje cor art ref);  e à sua direita, Isabel, a esposa do José Alberto Coelho, o fur mil enf da CCS/BART 2917 ) (o casal vive hoje em Beja). 

Não me parece que tivesse sido o jantar de Natal, ou coisa parecida: nessa altura, as relações com o major art Anjos de Carvalho, a três meses de acabar a nossa comissão, eram muito tensas... A CCAÇ 12, como companhia de intervenção, africana, estava adida ao comando do setor L1.

Inclino-me mais para uma festa de anos, talvez do 1º Brito, que era de facto um "senhor 1º sargento", e que matinha com a malta da CCAÇ 12 uma "relação muito especial"...  A festa terá ocorrido nos  primeiros tempos, após a chegada do BART 2917 a Bambadinca, que veio render o BCAÇ 2852 (1968/70)... (Pede-se ao pessoal da CCAÇ 12 e da CCS/BART 2917, para completar as legendas.)

Mas, na altura, estas eram as três senhoras, brancas,  que existiam no quartel de Bambadinca (, não contando com a senhora professora do ensino primária, caboverdiana, que raramente era vista, mas que vivia dentro das nossas instalações militares, no edifício da escola, a dona Violete da Silva Aires). E não havia miúdos, a não ser os da escola e da população local... Os militares guineenses (da CCAÇ 12 e outras subunidades, como os Pel Caç Nat que estiveram connosco) em geral eram casados e tinham consigo as famílias mas fora do arame farpado, vivendo em Bambadinca ou em Bambadincazinho.

No tempo do BCAÇ 2852, e até ao ataque a Bambadinca, em 28/5/1969, julgo que pelo menos estava lá três senhoras, a começar pela  a esposa do comandante, o ten cor inf Manuel Maria Pimentel Bastos (também conhecido seu "nick name", Pimbas), já aqui bastas vezes evocado pelo seu amigo e admirador Mário Beja Santos. O tenente SGE Manuel Antunes Pinheiro, chefe da secretaria do Comando do BCAÇ 2852, também lá teria a esposa até essa data. E creio que também  a esposa do médico, David Payne.

O Torcato Mendonça confirma: "Bambadinca era uma maravilha para nós [, CART 2339, Mansambo, 1968/69]. Vivia-se lá um clima de tranquilidade e de bom convívio. Para isso contribuía o Comandante e vários militares. Como a segurança era boa, estavam lá as esposas do comandante, do médico e do tenente da secretaria".

Foto: © Vitor Raposeiro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Leiria  > Monte Real > Ortigosa > Quinta do Paul > IV Encontro Nacional do nosso blogue > 20 de junho de 2009 > Os nossos grã-tabanqueiros Regina Gouveia e Fernando Gouveia, um adorável casal, transmontano, do Porto, que fez uma comissão na Guiné (Bafatá, 1968/70).

Recorde-se que o Fernando Gouveia, hoje arquiteto reformado,  foi alf mil Pel Rec Inf, Comando de Agrupamento 2957, Bafatá(1968/70) na altura em que era comandado pelo Cor Hélio Felgas, já falecido.

A Regina Gouveia é escritora com obra feita e publicada.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados.



I. INQUÉRITO 'ON LINE':  "NO MATO NO(S) SÍTIO(S) ONDE EU ESTIVE, NA GUINÉ,
HAVIA FAMILIARES NOSSOS"...


As primeiras 41 respostas

1. Sim, esposas (não guineenses) > 
13 (31%)

2. Sim, esposas e filhos (não guineenses)  > 
7 (17%)

3. Sim, familiares guineenses (sem ser das milícias)  > 
8 (19%)

4. Não, não havia  > 
18 (43%)

5. Não aplicável: não estive no mato > 
0 (0%)

6. Não sei / não me lembro  > 
0 (0%)


O prazo termina em 20/10/2016, 5ª feira, às 6h52.  O inquérito admite até duas respostas: por exemplo 1 e 3; 2 e 3.

Resposta a ser dada diretamente no nosso blogue, no canto superior da coluna da esquerda.



II. Comentário do editor:

Na decisão de levar ou não levar a família para o teatro de operações, deviam pesar muitos fatores... Não era uma decisão fácil, no final da década de 1960, nove anos depois de ter começado a guerra colonial... Sobretudo para os militares do quadro, alguns já com 3 comissões de serviço (se contarmos com a Índia, Macau, Timor)... 

É verdade, dirão alguns,  que foi a "vida" que escolheram, os oficiais e os sargentos dos três  ramos das forças armadas portuguesas... Por razões logísticas e de segurança, era mais difícil aos militares do exército levarem, para o mato, as famílias, as esposas sem filhos ou as esposas com filhos...

Mesmo assim, dependia da companhia (CCS ou unidade de quadrícula, região, localidade, acessibilidade, instalações, segurança relativa,  etc.). Não me lembro de ver famílias de militares, não guineenses, nas unidades de quadrícula do BCAÇ 2852 e do BART 2917, no setor L1: Xime, Mansambo, Xitole, Saltinho (que depois passa para o setor L5)... Muito menos em destacamentos onde as condições hoteleiras eram deploráveis...

Para os jovens milicianos, furriéis e alferes, "just married", acabados de casar, ou que casavam a meio da comissão, ainda sem filhos, era uma decisão aparentemente mais fácil, lógica e natural, mas não isenta de riscos, sobretudo se o militar fosse um operacional... Também não terá havido muitos "operacionais" com as esposas no TYO da Guiné, memso em Bissau (por ex, tropas especiais).

Apesdar da "milicianização" e "africanização" da guerra,  ninguém estava à espera de fazer uma guerra que iria durar 11/12/13/14 anos... Sobretudo entre os militares de carreira, ninguém estava preparado para estar muitos anos longe da mulher e dos filhos (e com estes a crescer)... Mas esse foi o cenário em que viveram muitas famílias portuguesas ao longo dos séculos, desde os Descobrimentos: uma viagem de ida e volta à Índia podia demorar 2 anos...

Faltam-nos testemunhos dos homens e mulheres que cresceram com os pais, militares, em comissões de serviço em África... Salazar, que não era casado nem tinha filhos, nunca poderia saber avaliar os custos (emocionais, afetivos, etc.) que a "guerra do ultramar" também teve para os militares  e as suas famílias, os homens (e as mulheres) que a fizeram (e a sofreram)...
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quarta-feira, 8 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8388: A minha CCAÇ 12 (18): Tugas, poucos, mas loucos...30 de Março-1 de Abril de 1970, a dramática e temerária Op Tigre Vadio (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) (*) > A sempre penosa progressão no mato...


Foto: © Arlindo T. Roda (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.  Todos os direitos reservados



Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > CCS/BART 2917 (1970/72) >  Um heli Al III, no heliporto de Bambadinca...



Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > CCS/BART 2917 (1970/72) >  Pescadores do Rio Udunduma, afluente do Rio Geba... Na margem direita do Geba Estreito começava o regulado do Cuor... No Sector L1, só havia dois destacamentos no Cuor: Missirá (1 Pel Caç Nat + 1 Pel Mil) e Finete (1 Pel Mil)... Era uma região (o regulado do Cuor), a sul do Oio,  onde o PAIGC se movimentava com relativa à vontade. Segundo o comando do BART 29917, a população sob o controlo do IN, nesta região, na península de Madina/Belel,  andaria à volta dos 1900 habitantes (**)...


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > CCS/BART 2917 (1970/72) >  O Rio Geba (Estreito) em Bambadinca ou Bafatá (?)..
.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > CCS/BART 2917 (1970/72) > O espaldão do morteiro 81... 

 Fotos: © Benjamim Durães (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.  Todos os direitos reservados




A. Continuação da série A Minha CCAÇ 12 (*), por Luís Graç


(9) Março de 1970: Op Tigre Vadio, 300 homens na península de Madina/Belel, no regulado do Cuor


Esta foi seguramente a mais dramática (e talvez a mais temerária) operação conjunta que a CCAÇ 12 efectuou enquanto esteve de intervenção ao Sector L1, às ordens do Comando do BCAÇ 2852. Podia ter dado para o torto...

A missão confiada às NT era bater chamada península de Madina/Belel, no limite do regulado do Cuor, a fim de aniquilar as posições IN referenciadas do antecedente e eventualmente capturar a população que nela vivesse (espalhada por locais como Madina, Quebá Jilã, Belel e Banir, esta localização já no Oio).

Em Madina, localizada em MAMBONCÓ 8G-1, havia uma população sob controlo do IN, estimada em 1500 habitantes. Mais 400, em Banir, cuja localização era em MAMBONCÓ 8H-9 (**).

Segundo as informações de que se dispunha, existiria 1 bigrupo nesta região, pertencente à base do Enxalé e dispondo de 2 Morteiros 60, 1 Metralhadora Pesada Goryonov, além de armas ligeiras (Metr Degtyarev, Esp Kalashnikov, Pist Metr PPSH, etc).

Admitia-se também que este bigrupo estivesse reforçado com 1 grupo de Mort 82, pertencente ao Grupo de Artilharia de Sara-Sarauol [a noroeste de Madina/Belel, vd. carta de Mambonco].

A última operação com forças terrestres realizara-se em Fevereiro de 1969, não tendo as NT atingido o objectivo devido à fuga do prisioneiro-guia e ao accionamento dum engenho explosivo que alertou o IN. Verificaram-se ainda vários casos de insolação (Op Anda Cá)[ Vd. poste de 23 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1542: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (34): Uma desastrada e desastrosa operação a Madina/Belel ].



Veja-se este diálogo saboroso, mas surreal, entre o Ten Cor Pimentel Bastos, comandante do BCAÇ 2852, e o seu subordinado (e amigo), Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52:


"- Meu Comandante, há duas noites que não durmo a pensar nesta operação que dentro de dias vem para o Cuor. O que me foi dito pelo Major Pires da Silva é que há dois destacamentos que deviam partir juntos e teme-se que não haja condições para tal. Gostava que revêssemos outras possibilidades para não deslocarmos mais de 300 militares em bicha, com todas as desvantagens. Por favor, peço-lhe como seu amigo que converse comigo em particular nas próximas horas. (...)


"O Pimbas cofiava o bigode, aclarou a voz, olhou-me com estima e não escondeu as suas dificuldades:
- Ouve lá, tu até és capaz de ter razão mas o Pires da Silva tem desenhado esta operação com minúcia e está muito determinado. Faz-me o favor de não o causticares, actua como se ele tivesse razão" (...).



Releia-se outro escrito do Mário, aqui publicado no blogue (em 29 de Junho de 2006):


(...) "Soube da Tigre Vadio  em finais de Fevereiro de 1970, quando o Major de operações de Bambadinca [, Sampaio,] me convidou para um passeio numa Dornier sobre os céus do Cuor. Foi uma viagem que permitiu medir o crescimento militar e populacional de Madina/Belel e a sua ligação a Sara/Sarauol, uma enorme base do PAIGC com um hospital de campanha.

"No regresso desse prolongado voo de reconhecimento, o oficial informou-me discretamente que lá para os finais de Março eu iria revisitar Madina. Era o que menos me interessava a 15 dias do meu casamento, que se veio a realizar na Sé Catedral de Bissau, [com a Cristina Allen]. O ano tinha-se iniciado da pior maneira. Desde que, em Novembro anterior, passara a prestar serviço em Bambadinca, não havia um dia de descanso: colunas ao Xitole, correio a Bafatá, noites na ponte de Udunduma, patrulhamentos alucinantes à volta da pista, toda ela bem iluminada, operações no Xime, emboscadas, segurança nas obras do alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca" ...


Mais recentemente, em 5 de Março de 1970, forças heli-transportadas tinham destruído vários acampamentos na área de Mamboncó, reagindo o IN com mort 60 na região de Belel durante a Op Prato Verde. Os RVIS apontavam para a existência de uma razoável, e já mal dissimulada, rede de comunicações (trilhos bem batidos) que, do Oio, permitiam fazer infiltrações de homens e material, na zona leste, através do Sector L1.

Participaram na Op Tigre Vadio as seguintes forças (num total de 300 homens, incluindo carregadores civis que transportaram 2 morteiros 81, granadas de morteiro 81 e de bazuca, ... mas alguém se esqueceu dos jericãs com o precioso líquido chamado... água!):

(i) CCAÇ 2636 (2 Gr Comb) + Pel Caç Nat 52 (Destacamento A)

(ii) CCAÇ 12 a 3 Gr Comb reforçados (Destacamento B)

(iii) Pel Caç Nat 54 + 1 Esq Mort 81 / Pel Mort 2106 (Destacamento C).




Guiné-Bissau > Região Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > 1970 > Pel Caç Nat 54 >  Uma unidade constituída por nharros, tugas e até turras!... A legenda é do açoriano Mário Armas de Sousa: " 1ª fila da direita para esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro sou eu, furriel miliciano Mário Armas; o terceiro é o 1º cabo Capitão; 2ª fila da direita para a esquerda: o primeiro é o soldado Amarante; o segundo é o soldado Bulo; o quinto é o furriel miliciano Inácio; o sexto é o 1º cabo Tomé; o nono é o soldado Samba; 3ª fila da direita para a esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro é o furriel miliciano Sousa Pereira; o quinto é o alferes miliciano Correia (comandante de pelotão); o sétimo é o 1º cabo Monteiro; o oitavo, africano, é o soldado Pucha (era guerrilheiro do PAIGC, foi capturado e ficou no nosso exército)"...


Foto: © Mário Armas de Sousa (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.

O verdadeiro comandante das NT, envolvidas na Op Tigre Vadio, foi na prática o Alferes Mil Beja Santos, o nosso Mário, profundo conhecedor da região, na qualidade de comandante do Pel Caç Nat 52, agora colocado em Bambadinca. Depois do desastre da Op Anda Cá, repetiu-se a cena, com o comando do BCAÇ 2852 a querer fazer ronco, à conta dos pretos e dos açorianos... (Estava-se no término da comissão, não se quis sacrificar nenhumas das subunidades de quadrícula do batalhão, espelhadas pelo Sector L1)...


No 2º volume do seu livro de memórias (Diário da Guiné: 1969-1970: o Tigre Vadio), o próprio Mário dá a entender que esta missão terá sido uma espécie de prenda de casamento, mas envenenada… Antes de o deixarem ir a Bissau para casar, embora com baixa psiquiátrica (por ter levado uma porrada, não podia ir de férias...), o comandante do BCAÇ 2852, Ten Cor Pamplona Corte Real (que substituiu o famoso Pimbas), e o major Sampaio (que foi para o lugar do Pires da Silva), preparam-no para "o banho de sangue no corredor do Oio" (sic) (p. 271).

Quem são as forças que o comando de Bambadinca quer meter na boca do lobo, para vingar o desaire da Op Anda Cá ? Como se disse atrás, mais uma vez  "os pretos e os açorianos"...




A CCAÇ 2636, mobilizada pelo BII 18, tinha partido para o CTIG em 22/10/1969, ainda era portanto periquita (menos de seis meses de Guiné). Era comandada pelo Cap Mil Inf Manuel Medina e Matos. Passou por Có, Bafatá e Sare Bacar. Regressaria a casa em 6/9/1971. Em Março de 1970, a açoriana CCAÇ 2636 estava aquartelada em Bafatá. 

[Imagem à esquerda: Guião da CCAÇ 2636 a companhia açoriana a que pertenceu o nosso camarada João Varanda (Có/Pelundo e Teixeira Pinto, 1969/70; Bafatá, Saré Bacar e Pirada, 1970/71)].

A africana CCAÇ 12, por sua vez, era comandada pelo Cap Inf C
arlos Brito, a escassos meses de ser promovido a major. Deste o fim da época das chuvas, que não tínhamos tempo para nos coçarmos... 


Desenrolar da acção:

Em 30 de Março de 1970, as forças empenhadas na Op Tigre Vadio concentrar-se-iam em Missirá (destacamento agora guarnecido pelo Pel Caç Nat 54, por troca com o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos, então conhecido como o Tigre de Missirá, que fora colocado desde Novembro de 1969 em Bambadinca).

A marcha em direcção ao objectivo (Madina e Belel) iniciou-se às 23h00.  Anteriormente, para despistar e confundir os olhos e os ouvidos do PAIGC em Bambadinca, as NT seguiram não para Finete (como seria normal), mas para Fá. Atravessaram o Rio Geba de sintex (uma cambança morosa...), e dali seguiram para Missirá.

Por falta de trilhos e por dificuldade do terreno, muito arborizado, não foi possível fazer a progressão por itinerários paralelos, como estava inicialmente previsto, pelo que o Dest B (CCAÇ 12) teve de seguir na rectaguarda do Dest C (Pel Caç Nat 52 + Esq Mort 81 /Pel Mort 2106).

Sancorlá só foi atingida três horas e meia depois, pelas 2.45h do dia 31 de Março, por dificuldades de orientação dos guias e pelas frequentes paragens no decorrer da acção.

Quase seis horas depois da partida, por volta das 4h40, fez-se uma paragem de meia hora para descanso do pessoal.

Atingir-se-ia Salà às 7h e Queba Jilã às 8h, não se tendo detectado até aqui quaisquer sinais da presença ou passagem do IN e utilizando-se sempre um antigo trilho, muito arborizado dos lados, o que impossibilitava a progressão por colunas paralelas.

Depois de um novo alto em que se entrou em contacto com o PCV [Posto de Comando Volante], as NT atingiram o início da península onde depararam, pelas 9h, com uma extensa cortina de fogo, em frente a Madina. Pediu-se então ao PCV novas indicações e orientação, uma vez que já não se podia cumprir o plano estabelecido para a batida a desenvolver em linha conjuntamente pelos Dest A e B.

Dada ordem pelo PCV para seguirem na direcção W, torneando a queimada linear feita pelo IN, as NT encontrariam um trilho muito batido no sentido N/S e na direcção de Belel.

Seguindo o trilho, iriam detectar por volta das 14h, no píncaro do calor, um acampamento IN do lado direito, composto por oito moranças de colmo e sete de adobo. O Dest A (Pel Caç Nat 52 + açorianos) tomou imediatamente posição para o assalto enquanto 1 Gr Comb do Dest B (CCAÇ 12) se dispunha de maneira a cortar a retirada ou o eventual afluxo de reforços vindos de Madina e os outros montavam à rectaguarda e à direita a fim de interceptar quaisquer fugas para Norte.

Desencadeado o assalto com bazuca, foi abatida imediatamente a sentinela e incendiadas as barracas de colmo. Como o IN reagisse com RPSH (costureirinhas) e RPG-2 enquanto iniciava a fuga para NW, foi aberto fogo de armas automáticas, dilagrama e morteiro 60.

O Dest C (Pel Caç Nat 54 + Esq Mort 81 / Pel Mort 2106), instalado na rectaguarda dos grupos de assalto,  fez fogo com os dois Mort 81, batendo a mata para onde os elementos IN se refugiaram. 
  


Os Gr Comb que montavam segurança à direita (CCAÇ 12), viram aparecer na orla da mata vários grupos fugindo para norte, pelo que imediatamente abriram fogo, tendo uma das granadas caído no meio dum grupo de 3 elementos que não mais foram vistos (sic). Numa rápida batida à orla da mata, encontraram-se muitos rastos de sangue que conduziam à mata onde o IN se internou.

Depois do assalto foram referenciados mais onze elementos abatidos e nove rastos nítidos de sangue na direcção NW, além de ouvidos gritos de dor nas imediações (segundo o relatório da Op Tigre Vadio). Na busca realizada ao acampamento, verificou-se haver numa das barracas a arder seis armas carbonizadas que pareciam ser Pist Metr PPSH. Também foi vista uma bicicleta no meio do incêndio, o que vinha comprovar a utilização por parte do IN daquele meio de transporte e comunicação no corredor do Oio.

As oito casas de colmo arderam completamente, tendo-se depois completado a destruição das sete casas de adobe, assim como de todos os meios de vida existentes. Foi impossível recolher ou capturar armamento ou munições pois o fogo ateado desenvolveu-se rapidamente, começando também a mata a arder devido ao vento que soprava.

No assalto ficou ferido o soldado Mauro Balbé (3° Gr Comb da CCAÇ 12), com um tiro no antebraço, além dum outro soldado do Pel Caç Nat 52 com um estilhaço de granada de RPG-2 no peito.

Devido ao violento ataque de abelhas que se seguiu, muito material e munições (principalmente o que era transportado pelos carregadores civis) ficaram abandonados, não tendo sido possível a sua recuperação total.

Entretanto, não se conseguiu pedir mais evacuações devida à avaria dos micros do único AN/PRC-10 que nessa altura ainda funcionava (!), nem aliás a DO e o helicóptero com o reabastecimento de água chegariam já a localizar as NT naquele dia. 



O que aconteceu nessa tarde ? Eis mais um excerto do testemunho Beja Santos, de 29 de Junho de 2009 (reproduzido, de resto, no seu livro de 2008):


(...) "Foi nessa altura que pedi um helicóptero para ir buscar água a Bambadinca. Negociámos uma clareira com o oficial aviador e, ao levantar, uma rajada estilhaçou o vidro. Ainda hoje me interrogo sobre a proveniência do fogo, e longe de mim insinuar que foi gente menos calma entre os nossos. O que interessa é que quando cheguei a Bambadinca, o Comandante [do BCAÇ 2852] perguntou-me porque é que eu deixara o teatro de operações. Olhei-o a direito e perguntei-lhe se ele sabia o que era um estado de desidratação total, desafiando-o a vir comigo...

"Lá regressei à mata cheio de garrafões, o helicóptero dançava com os vidros partidos, a ligação ar/terra não se fez e o oficial convidou-me a desembarcar com os garrafões num sítio qualquer. Perguntei-lhe se ele tinha consciência que não estávamos num filme de aventuras na selva e então levou-me até ao Xime, dizendo que regressava a Bissau e que depois da reparação me viria buscar. Até hoje. Dormi no Xime, sem nenhum êxito na tentativa de comunicar com as forças do Tigre Vadio" (...).



O helicóptero trouxe também o médico do batalhão, o Alf Mil Med Vidal nSaraiva... que acabaria por perder a boleia, de regresso a Bambadinca. Andou todo o resto da tarde, de 31, e toda a noite, do dia 1 de Abril, com a destroçada e desmoralizada tropa...


Os Destacamentos continuaram a progressão a corta-mato em direcção a Enxalé, transportando os feridos em macas (improvisadas) e amparando os elementos mais debilitados.

Devido à escuridão e à vegetação densa, os Destacamentos acabaram inevitavelmente a fraccionar-se, perdendo-se completamente a unidade de comando, enquanto o Pel Caç Nat 52 caminhava na vanguarda orientando-se pela bússola, uma vez que os guias, da inteira confiança do Alf Mil Beja Santos,  davam provas de não conhecer a zona. 



A progressão tornou-se, de resto, cada vez mais penosa devido aos crescentes casos de esgotamento físico e psicológico provocado pela marcha quase ininterrupta durante uma noite e um dia (31 de Março), e sobretudo pela terrível desidratação e pelo brutal ataque de abelhas.

Pelas 22h, as várias fracções dos Destacamentos que, embora seguissem trilho feito pelo Gr Comb que ia na frente, não tinham ligação visual ou contacto-rádio entre si, estacionaram para pernoitar a uns 8 quilómetros do Enxalé.

Reiniciou-se a marcha, ao amanhecer, a 1 de Abril, depois dos 3 Destacamentos se reorganizarem, tendo o grupo da frente atingido o Enxalé por volta das 10h da manhã, com o auxílio do PCV que orientou o deslocamento. A maior parte do pessoal, porém foi transportado de viatura a partir do cruzamento de São Belchior, depois de se ter sofregamente dessedentado com água trazida em bidões. (Assisti a cenas que julgava nunca poder ver em vida, e que são reveladoras do mais básico instinto de sobrevivência do ser humano; essas cenas inspirara-me o texto poético, já aqui publicado, O Relim Não é um Poema).


Em resultado da acção das NT, o IN sofreu quinze mortos (entre referenciados e confirmados), dez feridos confirmados e baixas prováveis, não sendo possível discriminar os elementos combatentes dos elementos pop. (Cito o relatório da operação).

Desta operação o Comando colheu os seguintes ensinamentos, conforme também consta no dito documento:

(i) A surpresa conseguida deve-se ao facto de se ter atingido o objectivo pelas 14h, hora que o IN abranda a vigilância por que sabe que as NT fazem habitualmente um alto entre as 11h e as 16h;

(ii)  Outra razão foi ter-se convencido que as NT retiravam devido à cortina de fogo que havia lançado ao capim;

(iii) Um ataque de abelhas tem pior consequências que uma flagelação, pois que naquele caso as NT entram em estado de pânico, abandonando armamento e equipamento num instinto de defesa e tornando impossível a manobra de comando.
 Faz-se por fim, para os devidos efeitos,  a transcrição da mensagem 1404/C do Com-Chefe (Rep Oper):  



COM-CHEFE MANIFESTA SEU AGRADO REALIZAÇÃO RESULTADOS OBTIDOS OP TIGRE VADIO. Fontes consultadas:


(i) Diário de um Tuga, de Luís Graça. Manuscrito.

(ii) História da Companhia de Caçadores 12 (CCAÇ 2590): Guiné 1969/71. Bambadinca: CCAÇ 12. 1971. Cap. II. pp. 28-29.Policopiado

(iii) História do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Policopiado

(iv) Santos, Mário Beja - Diário da Guiné: 1969-1970: o Tigre Vadio. Lisboa: Círculo de Leitores / Temas & Debates. 2008. 

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sexta-feira, 1 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1806: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (48): Junho de 1969: Missirá em estado de sítio


Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 28 de Maio de 1969 > Aerograma enviado pelo Beja Santos à sua noiva, Maria Cristina Allen, logo a seguir ao ataque do PAIGC a Bambadinca, sede do sector L1 da Zona Leste (1). O aerograma, que tem a data do correio de 31 de Maio de 1969, dá pormenores do ataque e confirma a ida (temerária) do Beja Santos com um grupo de voluntários em socorro de Finete (que se julgava estar a ser atacada nessa noite) e depois, possivelmente, já pela manhã, a sua visita a Bambadinca, ainda não refeita do susto. Passo a transcrever (LG):

(...) "Mas foi Bambadinca que foi atacada! Julguei delirar, impossível! Mas lá fomos a toda a velocidade pela bolanha [de Finete] fora até ao cais, onde já nos esperavam três tanques ligeiros do Machado [, coamdnate do Pel Rec Daimler]; após travessia com lodo até à cintura, lá chegámos à área desvastada, onde os meus camaradas iam dando pormenores da refrega.

"Os rebeldes vieram pela pista de aviação e cemitério, atacaram o quartel frente à porta de armas, a tabanca fula [Bambadincazinha,], onde o Almeida [, comandante do Pel Caç Nat 63,] tem a sua tropa nativa, começou a ser incendiada, enquanto as morteiradas caíam na central eléctrica, residência de oficiais e sargentos.

"Todos, que nunca sonharam ser possível um tal arrojo, encheram-se de pânico, e vieram para a a parada onde desataram a fazer fogo desnorteado, e só um milagre salvou os resultados trágicos. Os abrigos encheram-se, mas ninguém fazia fogo. Só o Capitão Neves se pôs no morteiro, e a tropa do Almeida repeliu os rebeldes que já avançavam para a residência de oficiais. E lá retirarm quando o pesado morteiro de Bambadinca começou a fazer os seus estragos. Muitos quartos esburacados, tectos desfeitos. Crises de histeria entre a filharada e mulheres de oficiais e sargentos.

"Com a nossa chegada, só aquela espontaneidade possível em actos de guerra - abraços, a rapaziada negra dando aso ao seu contentamento por não ter havido mortos nem feridos graves. Só o apontador do morteiro do Almeida, que de manhã estivera em Finete, enquanto fôramos a Chicri, foi atingido , mas sem consequências de maior" (...).

Fotos: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

Caro Luís, aqui vai folhetim da semana, com o texto revisto. Toma esta como a versão definitiva. Reenvio-te uma fotografia do furriel Pires. Sexta feira 18, reencontrarei o Augusto e o Calado para falarmos da flagelação de Bambadinca a 14 de Junho. Voltarei ao teu contacto a partir de 14. Os livros aqui referidos seguem pelo correio. Quando tiveres um período mais brando no teu trabalho, não te esqueças que me prometeste as cartas de Bambadinca/Mansambo/Xitole e Bambadinca/Xime. Adeus e até ao meu regresso, Mário.

48ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2). Texto enviado a 9 de Maio de 2007. Subtítulos do editor do blogue.

A noite em que Missirá viveu em estado de sítio, por Beja Santos


O Pires sugeriu que o nosso encontro se realizasse na Livraria Barata, na Avenida de Roma, em Lisboa, pelas 18 horas. Foi mais pontual do que eu, o que deu para eu me ir aproximando e medir as transformações operadas neste camarada da guerra, de quem me despedira em 1970.

Ainda nos encontrámos uma vez a seguir ao 25 de Abril, numa récita da ópera La Bohéme, no Coliseu dos Recreios, mas não pudémos conversar. O Pires, que depois do Saiegh e do Casanova foi o furriel a quem devo mais atenções, mantém o seu sorriso doce, modos calmos, voz ponderada mas o rosto está marcado por uma exaustão patológica (virei a saber que teve um enfarte, há mais de 10 anos).


O reencontro com o Furriel Pires

Escrevera-lhe a pedir esta reunião, explicando-lhe taxativamente que gostava de ter a sua ajuda, nomeadamente para os acontecimentos de Junho de 69 em diante. Rememorou episódios depois de me ter advertido que tudo estava esfumado e com pouca sequência.

Chegara a Bissau em Janeiro desse ano, vindo no Alfredo da Silva. Estivera uns meses em Bissau até que foi informado que ia partir para Missirá. Tinham-lhe dito que era uma zona calma. Chegado a Bambadinca, talvez para o praxarem, a informação passou a ter um sentido totalmente oposto . O que mais o chocara fora a falta de informação sobre usos e costumes, o tipo de guerra, as melhores respostas para conviver com a população civil, a total ausência de informação cultural, religiosa ou etnográfica.

Lembrava-se dos episódios da flagelação de 17 de Julho, da brutalidade da época das chuvas, da dureza dos nossos abastecimentos, dos bidões a rolar de Missirá para a fonte de Cancumba e desta para o balneário de Missirá, dos macacos cães a roubarem a batata doce e os agricultores aos gritos. Trazia algumas fotografias, e de repente vejo-o perto do poço cuja construção tinha vindo a ser adiada desde a visita do Capitão Neves, em Fevereiro. O régulo Malã tinha dúvidas se era possível captar água no centro de Missirá. Depois, descobriu-se um especialista em fazer poços e lá para Maio arranjou-se uma verba, o especialista veio do Cossé, era um mandinga que se sentava com as pernas cruzadas, começava a cavar à volta dele, tirava terra e voltava a cavar, desbastou , foi fazendo buracos dentro de um círculo onde formou paredes e que eram o seu suporte para subir e descer enquanto fazia o poço. Até que um dia que nos avisou que havia água a 5 metros de profundidade. O poço nunca foi muito utilizado e curiosamente ficou danificado na flagelação de 17 de Julho.


Um mês de Junho de 1969, a ferro e fogo

Eu procurava intervir e fazer perguntas, em muitos casos havia o bloqueio de "não me recordo" ou "não sei se estava lá". Não, não se lembrava daquela noite em que eu ficara angustiado com doze soldados mais inválidos que sãos e uma população civil armada de Mauser, à espera do pior, depois de ter ouvido fogo para lá de Finete e ter esperado horas em vão pela vinda da coluna comandada pelo Casanova. Vale a pena contar.

O mês de Junho foi vivido a ferro e fogo em todo o sector L1 [da Zona Leste] : emboscadas, ataques brutais a tabancas em autodefesa, minas, operações com e sem contacto, flagelações nas operações de desmatelação, de Xime a Amedalai, do Xitole à Ponte dos Fulas, obuses sobre Mansambo, a surpresa e o pavor do fogo a todos tocou.

A 4, a meio da manhã, o Pimbas saiu de surpresa de um helicóptero e veio ver o andamento dos trabalhos, creio que por imposição do Felgas. Será a sua derradeira visita a Missirá Aproveitou para desabafar:
- Olha, ficas a saber que devo ter os dias contados aqui. A toda a hora recebo questionários de Bafatá, o Felgas fala-me com rispidez, acusa-me de inoperância. Sei que não vou aguentar esta pressão. Pá, faz as tuas emboscadas nocturnas, vai a Mato de Cão, não me peças mais tropa que não tenho, vamos dividir o mal pelas aldeias, mantém o quartel limpo para evitares novas reprimendas e aproveito para te agradecer teres ido naquela noite de flagelação a Bambadinca.

A 14, Bambadinca voltaria a ser flagelada durante alguns minutos e a partir daí o Pimbas não voltou a ter descanso e acabaria por ser punido. É por essa altura que nasceu a peregrina ideia de fazer o destacamento no rio de Udunduma, um buraco onde havia uns abrigos mal amanhados, umas valas, e nada para fazer já que a tropa ali sediada não podia abandonar, fosse em que circunstâncias fosse, a posição defensiva.

Em Missirá, com cada vez gente mais doente, íamos à Aldeia do Cuor para vigiar o que se passava do lado de lá em Bissaque, já que o roubo de vacas passara a ser denunciado por gente de Mero em Bambadinca.

Mato de Cão, escrevi eu, passa a ser uma penitência duas vezes ao dia, o que obriga a duas colunas de 15/20 homens cada e a fazer com que metade de Finete esteja permanentemente a circular pelas picadas de Malandim até Gambaná, encontrando-se com os elementos de Missirá. O Geba, pelas minhas contas, está a escoar toda a mancarra do Leste e a trazer cada vez mais munições e armamento pesado.

É no meio deste pesadelo de fogo que se ouve no fim da tarde pela madrugada fora, de gente que vai carregada de malária para os reforços, de colchões que aparecem a boiar nos abrigos depois de dias seguidos de intempérie, que pelas 10 de manhã o Casanova à frente de uma coluna vai buscar arroz para uma esfomeada população civil. Antes destas partidas, fazíamos as contas até uma ginástica impossível de garantir contigentes em Finete e Missirá, gente em Mato de Cão e mais alguma gente a aprovisionar o Cuor. Seriam 6 da manhã quando negociei os horários:
- Fico aqui com doze homens nas obras, nos postos de sentinela estarão civis, vocês regressam o mais tardar pelas 5, eu parto para Mato de Cão às 8 da noite , os doze que ficam irão para uma emboscada não mais de duas horas, no regresso irão também fazer reforço. Que ninguém saia de Finete, entrega esta carta ao Bacari Soncó, regressarei de Mato de Cão ao amanhecer e ele partirá para novo patrulhamento pelo meio dia. Não quero confusões nos horários.

Passaram-se as cinco e as seis da tarde, anoitece e ouve-se fogo de canhões sem recuo, morteiros e bazucas, há quem diga que é Amedalai, talvez Demba Taco, talvez o Xime, a serem flagelados . Não será Finete? Não estará o Casanova a defender Finete? O escuro sepulcral esbate todas as formas, obriga a tomar decisões urgentes, extraordinárias. Convoco o chefe de tabanca Mussá Mané que me ouve atónito: até chegar a coluna de Finete, as mulheres e as crianças vão para os abrigos; a partir dos 16 anos, todos os homens pegarão nas suas Mausers e estarão nos postos de vigia, levem toda a comida que possam, ninguém está autorizado a voltar às cubatas; os doze militares disponíveis, caçadores nativos e milícias, são distribuídos pelas metralhadoras, recebem dilagramas, vão para os morteiros. O régulo aparece e faz perguntas. Eu respondo:
-Estamos em estado de sítio, não sei se vai haver ataque, até acredito que nada aconteça, mas o pior seria não estarmos precavidos. Conto que me vai ajudar, ninguém dorme até chegar a coluna de Finete.

E assim aconteceu e se viveu a noite mais insólita de Missirá, com o choro de crianças, os civis a bombear petromaxes , um soldado a dormitar junto do morteiro enquanto outro vigiava, o Teixeira a fazer perguntas para Bambadinca, mensagens sem resposta. Ninguém sabia da coluna de Finete, não havia pormenores sobre as flagelações, no meio dos equívocos já me perguntavam se Missirá fora atacada, pediam-me para não sair.

A coluna de Finete chegou às 8 da manhã e encontrou uma população barricada e ensonada. Como África é África, tudo acabou às gargalhadas, já que havia uma explicação plausível para o Casanova não ter saído de Finete. A coluna estava pronta para sair pelas 5 da tarde, altura em que se ouviram tiros de obus no Xime e pensou-se que havia uma grupo rebelde a cambar o Geba perto de Mato de Cão ou Enxalé. Fizeram-se contas e pensou-se que era a vez de Finete ser atacada. Por isso a coluna permanecera até ao amanhecer, à espera do pior. Ouvi tudo a cair de sono, fui tomar banho e parti para Finete. Rezei a todos os santos para que nunca mais voltasse a ter uma experiência como esta.


Passou um ano desde que desfilei no 10 de Junho no Terreiro do Paço

O meu estado de saúde não melhorou desde que o David Payne me pediu para repousar e eu desobedeci. O correio em chamas da minha família deixa altas colunas de fumo na minha ala. Sei que não posso contar com mais tropa e que esta época das chuvas está a deixar muita gente enfermiça. Consulto amigos, escrevo e peço conselhos: devo casar por procuração, deixar a Cristina em Bissau, à espera de uma transferência para um território mais pacífico? Não posso tomar decisões de ir a Lisboa, ainda não recebi o veredicto ao meu recurso. É uma época em que escrevo pedaços de diário num aerograma, adormecendo a meio, deixando frases ininteligíveis com que devo assustar quem me lê do outro lado do oceano.

Passou um ano desde que desfilei no 10 de Junho, no Terreiro do Paço. Sente-se que a guerra está a conhecer uma nova evolução e nós impotentes. Os vermes do cansaço, os gestos automatizados, as viaturas atascadas, as colunas de víveres com transporte a tiracolo, é o que recordo deste tempo dominado pelos tornados, chuvas torrenciais, soldados e civis à porta da enfermaria de Bambadinca, um PAIGC que instalou a supremacia da surpresa. Vou ainda tentar reagir.

Para a semana, ainda sem saber que em breve haverá modificações na constituição dos sectores e que Enxalé sairá do sector de Mansoa e passará para o sector de Bambadinca, meto-me à estrada e regresso a esse Enxalé donde os meus soldados partiram para Missirá, em 1966 . Não há sinal de qualquer reacção à emboscada de Sinchã Corubal. No fim do mês, farei uma viagem relâmpago a Bissau para ir testemunhar a favor de Ieró Djaló. Consola-me ler no aerograma que vieram algumas toneladas de materiais e que o Serifo Candé ficou a tomar conta do gerador. Haverá ainda uma pequena flagelação, mas será a partir de Julho que o bigrupo de Madina/Belel irá estar presente na evolução da nossa guerra. É o que por ora vos tenho para contar, relembrando com calafrios os segundos, minutos e horas daquela noite de estado de sítio.

O Leproso, um conto do Miguel Torga cuja leitura me marcará durante décadas

Exausto , procurei releituras ou leituras aligeiradas. A minha mãe emprestou-me Novos Contos da Montanha, uma edição de 1945. Até então Torga para mim era A Criação do Mundo e os Bichos. Comove a grandiosidade destes relatos onde a paisagem rural predomina, entre pedras, barrocos e pastoreio, uma religiosidade trágica, relatos de contrabando, ajustes de contas à facada e a tiro de zagalote.

Capa, da autoria de Victor Palla, do livro de Miguel Torga, Novos Contos da Montanha, Coimbra Editora, 1945.

Foto: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


Mas destes contos um vai ficar, impressivo, a boiar na memória e entrará em funções décadas mais tarde. Trata-se de "O Leproso". Durante uma cava, Julião fez a corte a Margarida que o trata por "leproso dos infernos". De uma horrível inquietação passou-se mesmo à condenação como Torga descreve:

"Havia muito que qualquer coisa em si medrava como o morrão nas espigas por amadurar. Cresciam-lhe na cara gomos de carne dura, insensível e vermelha...". Votado ao abandono, ninguém quer saber do Julião, todos fogem dele, imagem da peste. Confirmada a doença, resta-lhe ainda uma última esperança, um remédio que o livre da sua cruz. Então toma banho em azeite, cheio de fé olhando os pés transformados em patorras, os caroços no peito, sôfregos como cogumelos numa podridão. Depois, agarrou na vasilha e revendeu o azeite em que se banhara a um comerciante que por sua vezo passou para a população. Um dia soube-se tudo e instalou-se o terror no povoado:

"Ficavam como petrificados no mesmo sítio, invadidos de nojo, agoniados, a deitar contas à última almotolia que tinham comprado. E no fim, quando a dura certeza se lhes impunha, queriam arrancar o estômago, purificar-se daquela peçonha, vomitar no mesmo instante a lepra que já sentiam no sangue".

Mais tarde, quando precisei de um texto que falasse de terrores alimentares foi a este "O Leproso" que recorri, lido a horas desencontradas no novo abrigo de Missirá. Releio igualmente Ficções de Jorge Luís Borges, mas confesso que estes caudais de cultura, prodigiosamente redigidos, deslumbram mas parecem ser alimento de pouca dura. Mal sei eu que este Borges vai permanecer um grande companheiro, um mestre insuperável que ajuda a tornar mais simples as complexas maquinações do conhecimento.

Em Bafatá encontrei Mickey Spillane e o seu mais fogoso cavaleiro andante, Mike Hammer. Em O Reverso do Espelho este detective digno dos livros da série negra é confrontado com um génio criminoso, uma criança obrigada a crescer e usada à exposição do seu génio até saltar todas as fronteiras da perversidade. Nesta época, o gráfico da Colecção Vampiro é o pintor Lima de Freitas que nos deixa neste livro a marca do seu talento.

Capa, da autoria do pintor Lima de Freitas, do romance policial de Mickey Spillane, O reverso do espelho. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vampiro, 235).

Foto: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


Antes de adormecer, escrevo a 11 de Junho à Cristina:

"Peço-te o favor de visitares a D. Alzira Pimentel Bastos, a mulher do meu Comandante, que se encontra em Lisboa a cuidar da sua octogenária sogra. A morada é Rua Ponta Delgada, 65, 2º esq, telefone 44033. Chove agora muito, as trovoadas voltaram, há formigas e bicharada que nos obriga constantemente a levantar de noite. Tenho tantas saudades tuas!".

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Nota de L.G.:

(1) vd. post de 25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1786: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (47): Finete já está a arder ? Ou o ataque a Bambadinca, a 28 de Maio de 1969

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7598: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (39): Na Kontra Ka Kontra: 3.º episódio




1. Terceiro episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 11 de Janeiro de 2011:




NA KONTRA
KA KONTRA


 3.º EPISÓDIO

Sempre que ia ver um filme trocava algumas impressões com o porteiro Ibraim. Ibraim como o filho do profeta. Este, em determinada altura, diz-lhe que tornando-se sócio do Sporting Club de Bafata os bilhetes para o cinema lhe ficam mais baratos, pois as sessões tinham lugar no ringue de patinagem do Sporting Club. Passam a conviver com mais assiduidade. Muitas vezes se vê o Alferes com o Ibraim na esplanada do Restaurante Transmontana, o Alferes bebendo uma “meia cerveja” enquanto o Ibraim, muçulmano, toma uma “fanta”. Tornam-se verdadeiros amigos. Muita coisa o Alferes fica a saber sobre os hábitos dos africanos, que duma maneira geral são bastante fechados. O Ibraim conta-lhe episódios passados com as suas namoradas e o Alferes imagina o dia em que “sairá” com uma bajuda. Chega a levá-lo a um baile nativo na tabanca da Ponte Nova, onde o nosso Alferes, jogador como é, se sente como uma carta fora do baralho. A casa de “bajudas” existente na tabanca da Rocha, perto do início da estrada para Bambadinca também não o motiva, pelo que os seus estados depressivos se sucedem. A “lerpa” é o seu refúgio.

A ordem para seguir para Madina Xaquili foi entendida pelo Alferes Magalhães como um bom presságio. Ia mudar de ares. Contrariamente às bajudas da cidade, talvez as das tabancas fossem mais “acessíveis”.

Neste KA KONTRA, na ida para Madina Xaquili, o Alferes Magalhães segue primeiro numa coluna auto, de Bafata para Bambadinca onde pernoita. Antes, e cumprindo ordens, permanece junto de um abrigo até depois da meia noite, tudo porque o pessoal e sobretudo o comandante, mais conhecido por “Pimbas”, ainda está traumatizado com o primeiro ataque a Bambadinca, quinze dias antes. Nada se passa nessa noite e no dia seguinte parte, sorte a dele, noutra coluna para Galomaro, onde ouve o segundo ataque a Bambadinca. Aí e porque ainda se está a construir o novo quartel, dorme num antigo celeiro de mancarra, juntamente com todos os elementos da Companhia, do último soldado ao Capitão. No dia seguinte uma coluna de três Unimogs leva-o a Madina Xaquili.

Bambadinca.

Dentro duma normalidade castrense e porque já se vinha ouvindo o barulho dos motores da coluna há algum tempo, o Alferes de segunda linha, João Sanhá, comandante do Pelotão de Milícia, está à sua espera. Descarregado todo o material e géneros que tinham vindo de Galomaro para possibilitar a vida naquele fim do mundo, a coluna rapidamente se põe a caminho da sede da Companhia tanto mais que já se está no princípio da época das chuvas e os caminhos começavam a ficar intransitáveis. A pedido do Alferes Magalhães o João Sanhá indicou as moranças disponíveis para instalação dos oito elementos metropolitanos acabados de chegar.

Enquanto o elemento que mais tarde se viria a saber já ter pertencido à Legião Estrangeira ia tratar de fazer o primeiro almoço, outro trata da instalação de uma antena para se comunicar com Galomaro e os demais vão à procura de alguns paus para, com a ajuda de umas tábuas que tinham trazido, construírem uma mesa e dois bancos corridos para futuramente se poder comer decentemente e não como na primeira refeição, que se comeu em cima dos joelhos.
Cabe ao Alferes Magalhães, juntamente com o João Sanhá, dar uma volta pela tabanca ver com o que pode contar, nomeadamente os abrigos, para depois pensar em tudo o que havia a melhorar para a defesa de um possível ataque do PAIGC.

Não foi preciso andar muito. Junto a uma morança, uma mulher que mais parece uma bajuda, tem ao colo uma criança de cerca de ano e meio. A beleza da mulher, o olhar meigo, o transvazar do seu sorriso ternurento, o peito desnudado, causaram alguma perturbação ao Alferes.

– Estou na tabanca certa, teria pensado.

Depressa se apressou o João a explicar:

- Esta é a Bobo, mulher do milícia Sadjuma, com o meu filho Bonco ao colo.

A Bobo com o Bonco, filho do João Sanhá.

Continuam a inspecção, tendo o Alferes Magalhães manifestado interesse em ver a zona da fonte, tanto mais que a água que tinham recolhido na passagem pela tabanca de Umaro Cossé, era branca, parecia leite ou cal de pintar paredes. Descem a pequena encosta desembocando numa zona ensombrada onde mulheres lavam roupa. Por se ter passado duma zona com muita luz para a obscuridade o nosso Alferes tem alguma dificuldade em distinguir todos os vultos presentes. Porém um sobressai de imediato pelo seu porte altivo. Rapidamente os olhos do Alferes, forçados pelo desejo incontido, se adaptaram àquela luz difusa não precisando de antes ter fechado um olho como tinha aprendido na instrução no Quartel do Convento de Mafra. O que tinha à frente dele reportou-o por momentos ao tempo em que, na Escola de Belas Artes do Porto, tinha estudado a história da Grécia antiga e a perfeição das suas mulheres representadas na profusa estatuária da época.

Fim deste episódio

Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7589: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (38): Na Kontra Ka Kontra: 2.º episódio

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5467: FAP (40): Em defesa da honra da minha dama, na Op Lança Afiada (Jorge Félix)




*-

Cópia da caderneta de voo do Jorge Félix: Março de 1969 > BA 12 > Grupo Operacional >


Fotos:  © Jorge Félix (2009). Direitos reservados







1. Mensagem do Jorge Félix, ex-Alf Mil Pil, Heli Al III, BA 12, BIssalanca, 1968/70:


Assunto - Fiofioli e FAP


Caro Luis,
 

Lido o P5456, "Esta noite fomos ao Fiofioli" (*), duas notas em abono da tão mal tratada FAP. Não é o excelente texto do António Costa que tem o meu reparo, são as tuas
"Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

15 de Outubro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

9 de Novembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal (Luís Graça)"

Voltamos á "Operação Lança Afiada", e pq também pedes: "Seria interessante ouvir, entretanto, o depoimento de camaradas do BCAÇ 2852 que participaram na Op Lança Afiada. ...",  cá estou. novamente
.

Julgo já ter falado nisto, mas como as tuas sugestões não vão parar à minha versão da "Lança Afiada" (**),  aqui vai para que fique associada quando se falar na dita operação.

Há um relatório:



Fonte: Extractos de: Guiné 68-70. Bambadinca: Batalhão de Caçadores nº 2852. Documento policopiado. 30 de Abril de 1970. c. 200 pp. Cap. 58-61. Classificação: Reservado (Agradeço ao Humberto Reis ter-me facultado uma cópia deste valioso documento em formato.pdf), onde sobre a FAP está escrito o seguinte:

8. Apoio aéreo

a.Ligação Ar-Terra

Foi relativamente boa.

b.Resultados da acção aérea

Não houve propriamente acção aérea se por acção aérea se pretende significar: apoio aéreo pelo fogo. Só no dia 12 de Março, o helicanhão actuou na margem oposta do Rio Corubal contra a tabanca de Inchandanga Balanta. E em 14 de Março, a FA [ Força Aérea ] bombardeou a mata de Fiofioli, não tendo as NT notado no dia seguinte quaisquer vestígios deste bombardeamento.

Não se teve conhecimento de outras acções aéreas pelo fogo.

c. Apoio aéreo

Inicialmente o apoio aéreo, no que respeita a reabastecimentos, revelou-se deficiente. O facto de não ter sido cedido o heli ao Comandante da operação, dificultou a acção de comando e influiu nos rendimentos dos meios à disposição, pois previra-se que esse heli colaboraria com o das evacuações e com o dos reabastecimentos.

Além disso, a coordenação levou o seu tempo a rodar, o que é naturalíssimo pois não tem havido muitas operações como esta.

Em terceiro lugar, os meios aéreos não deram inicialmente o rendimento que se esperava, uns por avarias, outros por serem desviados para outras missões e outros por estarem na altura das inspecções e revisões.

A situação quanto ao apoio aéreo era a seguinte em 13 de Março de 1969, às 13H45 (MSG 735/I/BCAÇ 2852):

- 1 DO estava avariado havia 2 dias;
- O outro DO só começou a trabalhar às 10H00;
- O heli trabalhava pouco mais de 1 hora, seguindo para Bissau;
- O outro heli seguira às 08H00 directo de Bafatá para Bissau (parece que podia ter ido ficar a Bissau na véspera);
- O helicanhão saira para Bissau às 10H30, só regressando no dia seguinte às 11H00;
Os helis que haviam seguido para Bissau só foram substituídos cerca das 11H00 ; só depois desta hora, portanto, se regularizou o serviço de reabastecimentos e evacuações.

No dia 13 a actividade dos meios aéreos fornecidos para a operação foi a seguinte:

- A DO levantou de Bafatá para a área 9 [ Mina – Gã Júlio ]às 07H20 com o Comandante do Agrupamento Táctico Sul, o Major Negrão da FA e o Cap Lopes que ia assumir o comando do Dest G e ficou no Xitole; à tarde foi para Bissau;

- Os 2 helis levantarm às 07H30 com o comandante da operação para Bambadinca (serviço normal);

- O helicanhão, saído da zona de operações em 11 de Março, às 10H30, e regressado a 12, às 11H00, fez escolta ao heli de Sexa Comandante-Chefe; não prestou serviço à operação, que se tivesse conhecimento;

- A DO chegou de Bissau, foi a Piche buscar o Coronel Neves Cardoso para uma reunião em Bambadincas onde chegou às 11H00; à tarde voltoiu a levar a Piche o mesmo oficial.

- A DO chegou de Bissau, foi a Piche buscar o Coronel Neves Cardoso para uma reunião em Bambadincas onde chegou às 11H00; à tarde voltoiu a levar a Piche o mesmo oficial.

Em 14 os helis chegaram a Bambadinca às 08H30 e só aqui é que se abasteceram (pelo menos um). Podiam tê-lo feito em Bafatá. No entanto, a situação melhorou por vários motivos. Primeiro, porque se acabou com os recomplementos. Segundo, porque a selecção natural fez baixar o número de evacuações. Terceiro, porque os meios aéreos ficaram mais tempo na zona da operação. Quarto, porque a coordenação ar-terra ganhou experiência e tornou-se por isso mais eficiente.
.....
c) A inicial deficiência do apoio aéreo podia ter acarretado consequências graves se o IN tivesse reagido com maior agressividade." [ o meu filho teria escrito -LOL].




Noutra altura enviei uma foto da minha caderneta de voo, dos dias em que estive envolvido na operação Lança Afiada, hoje vou redigir o que lá está e junto fotos [vd. acima].

Dia 12 de Março de 1969 Hel AlIII nº 9279 DESP- Bs-Buba-Bambadinca 2 ater 1:40 horas
Dia 12/3/09 TGER-TEVS- Bambadinca-ZOPS-Bambadinca. 5 Aterragens 1:40 horas
Dia 12/3/09 TGER-TEVS- Bambadinca-Zops-Bambadinca 2 aterragens 35 minutos.
Dia 12/3/09 TGER-TEVS- Bambadinca-Mansambo-Zops 10 aterragens 1:20 horas
Dia 12/3/09 TGER-TEVS- Bambadinca-Zops-Bambad 2 aterragem 30 minutos
Dia 12/3/09 DESP- Bambadinca- Bafata 1 aterragem 15 minutos

Dia 13/3/69 Hel AlIII nº 9275 DESP Bambadinca -Bissau 1 aterrag 50 minutos
Dia 13/3/69 Hel AlIII nº 9279 DESP Bafata Bambadinca 1 aterrag 15 minutos
Dia 13/3/69 TGER- TEVS-Bambadinca- ZOPS (3x) 10 aterrag 1:45 Horas
Dia 13/3/69 TGER-Bambadinca-Zops- Bambadinca 2 aterrag 30 minutos
Dia 13/3/69 TGER Bambadinca ZOPS-Bambadinca 2 aterragens 25 minutos
Dia 13/3/69 TGER Bambadinca-ZOPS-Bafatá 10 aterragens 1:50 horas

Dia 14/3/69 Hel AlIII 9276 AESC Bafatá-Bambadinca-Zops 4 aterragens 2:10 Horas

Dia 15/3/69 Hel AlIII 9279 TEVS- Bafatá-Bambadinca-BS 3 aterrag 1:25 Hora
Dia 15/3/69 DESP-Bs- Bambadinca 1 aterrag  45 mint
Dia 15/3/69TGER-TEVS Bambadinca-Zops 16 aterragens 2:20 Horas
Dia 15/3/69 TGER-TEVS Bambadinca-Zops 10 aterrag  2:oo horas
Dia 15/3/69 DESP Bambadinca-Bafatá 1 aterrag 15 minutos

Dia 16/3/69 DESP Bambadinca Bafatá Bambadinca 2 aterrag 2:00 Horas
Dia 16/3/69 Av DO27 3470 DESP Bamb-Bafat-Bambadinca 2 aterragens 30 minutos

Dia 18/3/69 AlIII 9276 TMAN BS Zops (2x) BS 5 aterg 45.

(esta operação no dia 18 já não é em Bambadinca, e o voo em DO27 foi talvez de apoio ás Forças terrestes, navegação, orientação pelo ar.)

Entre os dias 12 e 16 de Março voei 23:00 Horas na ZOPS da operação Lança Afiada.

Depois de comparar o registrado na minha caderneta tenho que concluir que o relatorio "Batalhão de Caçadores nº 2852" [Bambadinca, 1968/70], acerca da Operação Lança Afiada, tem muitas inverdade que desta vez não vou destacar. Julgo que basta o testemunho da minha participação para verificar quanto de exagero há na apreciação á prestação das FAP naquela operação.

Quando se falar da Operação Lança Afiada, gostaria que juntasses as informações que te enviei, e estou convencido que não fui o ínico a voar para a Lança Afiada.
A FAP não necessita da minha defesa, mas sinto necessidade de a defender.

(...) Caro Luis,  recebe os Votos de um Bom Natal que são extensivos a todos os "Tertulianos". Jorge Félix

(quando reli o email passei os olhos pela foto junta e lembrei que no dia 7 de Março com base em Catií fui alombar ao Quitafine ond haviam quatro anti-aéreas. No dia 5 passei por Buba e Zops, e para terminar, entre dois whiskies fui no dia 1 a Aldeia Formosa fazer uma TEVS. Hoje vou sonhar com Fiofioli em cor de rosa)


2. Comentário de L.G.:


Como te disse, Jorge, o relatório tem a chancela do então Cor Hélio Felgas, já falecido como Maj Gen Ref. Tem ‘picardias’ em relação à FAP; transcrevi o relatório; agora é altura de acrescentarmos outros depoimentos como o teu… Houve 110 evacuações… Imagino a tua trabalheira… (***)
_______________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 13 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5456: Memórias de um Capitão (António Costa) (1): Esta noite fomos ao Fiofioli

(**) Vd. poste de 28 de Fevereiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2592: Voando sob os céus de Bambadinca, na Op Lança Afiada, em Março de 1969 (Jorge Félix, ex-Alf Pil Av Al III)


(***) Iniciada em 8 de Março de 1969 com a duração de 11 dias, a Op Lança Afiada foi uma das grandes operações que se realizaram na época , ainda no início do consulado do brigadeiro António Spínola (1968-73), um mês depois da trágica retirada de Madina do Boé, em 6 de Fevereiro de 1969.

A Op Lança Afiada envolveu cerca de 1300 homens, entre militares, milícias e carregadores. Houve cerca de duas dúzias e meia de flagelações das NT por parte dos guerrilheiros, os quais no entanto se furtaram ao contacto directo. As populações sob controlo do IN no triângulço Xime-Bambadinca-Xitole passaram, com alguma segurança, para o lado do rio Corubal. Os fuzileiros não puderam ou quiseram participar nesta operação, que também não envolveu outras tropas especiais (comandos e páras). Foi, pois, uma operação só com tropa macaca, embora a nível de regimento, sendo comandada por um coronel (Hélio Felgas). Quase um terço dos efectivos eram carregadores.

Pensava-se que em Mina, junto ao Rio Corubal, estaria sedeado o Comando do Sector 2, da estrutura político-militar do PAIGC. Pensava-se também que havia um grande hospital, com médicos e enfermeiras... cubanos!

Do ponto de vista militar, a operação foi um bluff... Em contrapartida, houve inúmeras evacuações (n=110) dos nossos combatentes, devido a problemas de desidratação, desnutrição, esgotamento físico e stresse psicológico... É interessante a análise do autor do relatório sobre os sucessos e os insucessos desta megaoperação de...limpeza.

Tratando-se de uma fotocópia de um documento dactilografado e possivelmente policopiado a stencil, com data de 1970, há erros e omissões [no relatório, de que se publicam alguns excertos] que eu procurei colmatar ou corrigir, sempre que possível. Também substituímos algumas abreviaturas para tornar o texto mais legível para os paisanos ou os que não fizeram tropa nem estiveram na Guiné.

A Op Lança Afiada foi talvez uma das maiores e mais dramáticas operações terrestres que se realizou na Guiné, ou pelo menos na Zona Leste, quer pelo número de efectivos envolvidos (cerca de 1300 homens, sendo cerca de 800 militares mais 380 carregados, enquadrados por 100 milícias), quer pelo número elevado de heli-evacuações (mais de 100), devido não tanto a baixas provocadas pelo IN como sobretudo a casos de fadiga extrema, insolação, doença e ataque de abelhas.

Esta operação, em que as NT varreram toda a região da margem direita do Rio Corubal, entre este rio e a linha Xime-Xitole, durante 11 dias (de 8 a 19 de Março de 1969), teve um impacto mais psicológico do que militar, apesar da destruição de importantes meios de vida e infra-estruturas, necessários à guerrilha e às populações sob o seu controlo (animais domésticos, arroz, casas, escolas, hospitais de campanha...).

Esta operação pôs à prova (e revelou os limites de resistência, física e psicológica, de) os militares portugueses, num terreno e num clima duríssimos. Basta citar uma das conclusões do relatório, que temos vindo a publicar:

"A Op Lança Afiada decorreu durante 11 dias. As temperaturas verificadas neste período foram as seguintes: Máxima à sombra – Entre 39 e 43,6 graus centígrados; Máxima ao sol – Entre 70 e 74,5 graus centígrados. Estes números são elucidativos. Por um lado justificam que um homem necessite muita água (entre 8 a 10 litros por dia). Por outro lado aconselham as NT a deslocarem-se e a actuarem ou de noite ou ao amanhecer. Entre as 11 e as 16h, o melhor é parar, se possível à sombra".


O próprio autor do relatório não se coibe de comentar: "(...) processava-se a selecção natural: os mais fracos não resistiam à fadiga, ao calor e à deficientíssima alimentação proporcionada pelas rações de combate tipo normal. Por outro lado a falta de água era um tormento que só quem já sofreu pode avaliar".

As forças que entraram, vitoriosas, em Fiofioli, no dia 15 de Março de 1969, constituíam o Agrupamento táctico sul, baseado no Xime e comandado pelo Ten Cor Jaime Tavares Banazol: Dest F > CART 2339 (Mansambo); Dest G > CCAÇ 2405 (Galomaro); Dest H > CART 2413 (Xitole); Dest I > CCAÇ 2406 (Saltinho).

Recorde-se que a companhia de Galomaro, a CCAÇ 2405, pertecente ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70),  tinha justamente acabado de sofrer, em 6 de Fevereiro de 1969, a perda de 17 homens, na trágica travessia do Rio Corubal, em Cheche, aquando da retirada das NT em Madina do Boé.

Por sua vez, o Agrupamento táctico norte, baseado no Xitole e comandado pelo Ten Cor Manuel M. Pimentel Bastos, era constituído por: Dest A > CART 2338 ; Dest B > CART 1746 (Xime); Dest C > CART 1743 ; Dest D > CCAÇ 2403 (Fá Mandinga).

O comandante da força era o Coronel Hélio Felgas (já falecido como Maj Gen, conhecido especialista em questões geopolíticas africanas, e na já na altura autor de um livro sobre "A guerra da Guiné", de 1967, comandante do comando operacional de Bafatá - no meu tempo era o COP 2-, mas que, segundo creio, não morria de amores por Spínola).

É extenso o relatório da Op Lança Afiada em que, durante 11 dias, de 8 a 19 de Março de 1969, a região delimitada pela margem direita do Rio Corunal e a linha Xime-Xitole foi palco de uma orgia de fogo e de destruição de todos os meios de vida encontrados pelas nossas tropas: arroz, porcos, vacas, galinhas, escolas, livros, cadernos, hospitais, tabancas, moranças... 

A Lança Afiada foi sobretudo a maior "churrascada" que alguma vez se fez na Guiné, durante a guerra colonial: tudo o que era porco, leitão ou galinha foi consumido, in loco, pelos esfomeados tugas que deitaram fora as suas intragáveis rações de combate...

A realização de uma operação desta envergadura era justificada pelo facto de a região ser "considerada uma zona de refúgio e preparação do IN": a profundidade continental da região, a sua espessa arborização (excepto na franja marginal do Rio Corubal), a falta de trilhos e caminhos, a grande distância a que ficam os aquartelamentos mais próximos (Xime, Mansambo e Xitole), eram apontadas pelos especialistas militares como as principais razões da existência, permanência e "relativa tranquilidade" (sic) da guerrilha do PAIGC na região, praticamente desde o princípio da guerra, em 1963.

E foi com relativa ordem, calma e segurança que o o PAIGC conseguiu, antes da chegada das NT, transferir para a margem esquerda do Rio Corubal as populações (balantas e beafadas) que viviam sob o seu controlo e administração, enquanto as NT lançavam o seu cilindro compressor sobre este, até então, santuário do IN (região libertada, na terminologia do PAIGC)...

No relatório, não se esconde o número e a importância das tabancas que viviam sob a bandeira do PAIGC, fora portanto do controlo da "soberania portuguesa", em pleno coração da Guiné, ao longo da parte superior do Rio Corubal: Ponta Luís Dias, Mangai, Tubacutá, Mina, Cancodea, Satecuta, Fiofioli... Nunca se dão números sobre as populações, mas a leitura do relatório sugere-nos uma ideia da sua grandeza:

(i) "Os Dest A e B aproximaram-se de Tubacutá (área 5). Durante a noite anterior ouviram um motor dum barco fazendo travessias do Rio Corubal na região entre Queroane e Fiofioli. O movimento durara desde as 19H00 do dia 12 e as 4H00 do dia 13";

(ii) "Os Dest C e D continuaram destruindo a enorme tabanca de Ponta Luís Dias, com uma grande escola onde havia muitos livros e cadernos";

(iii)"Por seu lado, o Dest C, às 7H30, destruíra cinco canoas em local com indícios de ter tido grande movimento durante a noite";

(iv) "Os Dest C e D atacaram a enorme tabanca de Mangai, também recém abandonada, tendo começado a destruir as moranças, muitas toneladas de arroz e centenas de animais domésticos (incluindo vacas)";

(v) "Os Dest F e G avançaram sobre Cancodea Balanta enquanto os Dest H e I passaram para Candodea Beafada. Todos capturaram e consumiram (sic) centenas de animais domésticos, começando também a destruir as 2 tabancas (onde havia escolas importantes e grande quantidade de arroz";

(vi) [No Fiofioli] o Hospital antigo surgiu pouco depois com as suas enfermarias separadas para homens e mulheres, quarto dos médicos cubanos, banco, etc.";

(vii) "Batida a mata, desceu-se à tabanca de Fiofioli, recém abandonada, dispondo de bons edifícios e 2 escolas com imensos livros e cadernos"...

Constata-se também a enorme diferença do esforço que era pedido à tropa-macaca, por comparação com as forças especiais (que, estranhamente, não participaram nesta operação)... Por outro lado, os meios aéreos eram escassos e a descoordenação parecia ser  grande...

Os resultados finais acabavam por ficar aquém das expectativas dos responsáveis militares e não justificar o emprego de meios tão vultosos e caros: 5 guerrilheiros mortos (confirmados), "17 nativos capturados, na sua maior parte mulheres" (sic), para além da apreensão de material de guerra (muitos milhares de munições de armas ligeiras) e da destruição das tabancas abandonadas...

Só numa viagem de duas horas, o helicóptero gastava tanto (30 contos) como os vencimentos mensais dos quatro alferes de uma companhia... Ora nesta operação, para além dos reabastecimentos periódicos de água (absolutamente vitais), os helicóperos tiveram que fazer 110 evacuações (por ferimentos em combate, mas sobretudo insolações, ataques de abelhas, stresse, doença), para além das viagens de regresso com os recomplementos (oficiais, sargentos e prças que vieram substituir os camaradas evacuados)...

Não admira, por isso, que esse tipo de operação de limpeza acabe por ser abandonada pela equipa de estrategas de Spínola. Tinha, além disso, uma grande impacto negativo na população nas "regiões libertadas": afinal de contas, eram elas as grandes vítimas destas "operações de limpeza"... As crianças, as mulheres e os idosos, cujo apoio era preciso conquistar... através da acção psico-social e não do terror.

Isso talvez explique por é que do outro lado do Rio Corubal, na margem esquerda, não havia forças emboscadas ou prontas a intervir para cortar a retirada do IN, acossado pelos tropas envolvidas na Op Lança Afiada... O autor do relatório, visivelmente incomodado e até irritado, refere-se várias vezes a este "buraco na rede", consentido (ou até querido) por Bissau... No preâmbulo do relatório pode ler-se:

"O IN sabe que detecta facilmente qualquer tentativa de aproximação das nossas Forças Terrestres. Se a aproximação terrestre é difícil, a actuação das FN [Forças Navais] parece facilitada pela existência do Rio Corubal. E a tal ponto que, em estudo realizado por este Comando, a área da margem direita do Rio Corubal, desde a Ponta do Inglês a Cã Júlio, foi considerado uma área que devia ser batida pelas NT em operação conjunta de meios navais e helitransportados"...

Ora, o que o Coronel Hélio Felgas não conseguiu fazer foi essa grande operação conjunta de forças terrestres, navais e helitransportadas, que bem poderia ser a cereja no bolo da sua carreira militar... Regressadas as NT aos quartéis, no dia 19 de Março de 1969, o Rio Corubal lá continuou "interdito", como dantes, à nossa navegação...

Eu, pelo menos, no período em que andei por aquelas bandas (Julho de 1969/Fevereiro de 1971) nunca lá tomei banho e todas as vezes que nos aproximámos das suas margens fomos corridos a tiro, morteirada e roquetada... E a nossa valente marinha de guerra também nunca lá mais voltou a pôr uma lança de desembarque (grande, pequena ou média...).

Em Abril e Maio de 1969, a guerrilha mostrava de novo os dentes, no triângulo Xime- Bambadinca - Xitole ), pondo os oficiais superiores do BCAÇ 2852 à beira de um ataque de nervos... Dois meses depois da Op Lança Afiada, era a própria sede do sector L1, Bambadinca, que era atacada em força, durante 40 minutos, pela primeira e única vez durante toda a guerra...

Foi, obviamente, uma resposta taco a taco. As consequências também foram mais psicológicas do que militares. Mas não deixaram de ter implicações nas carreiras dos militares do quadro que detinham o comando do BCAÇ 2852, os quais foram todos (ou quase todos) punidos por Spínola e despachados para casa, por alegada incompetência... (Sobre esta "flagelação", o documento sobre a história do BCAÇ 2852 dedica aopenas 3 linhas telegráficas, em contraste com as dezenas de páginas escritas sobre a Op Lança Afiada)...

De qualquer modo, não deixa de ser curiosa, deliciosa mesmo, e até reveladora de alguma familiaridade com a literatura maoísta da época (!), a expressão usada pelo autor do relatório, quando conclui, com ar triunfal, depois da conquista do Fiofioli no Dia D + 7 (15 de Março de 1969) o seguinte: "o mito do Fiofioli desaparecera na mentalidade dos nossos soldados. A mata do Fiofioli fora um tigre de papel"!...

A operação, comandada pelo coronel Hélio Felgas (o patrão do Agrupamento 2947, mais tarde comando operacional de Bafatá, COP 7, se não me engano), coadjuvado por dois tenentes-coronéis, Jaime Banazol (liderando o Agrupamento Táctico Sul, com mais de 500 homens que partiram do Xitole e de Mansambo) e Manuel Pinto Bastos (comandante do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70), que encabeçava o Agrupamento Tático Norte (com cerca de 750 homens, que partiram do Xime). Ao todo 1300, entre soldados metropolitanos, milícias e carregadores...

Foi uma das últimas grandes "operações de limpeza", realizadas no primeiro ano de Spínola, enquanto Governador Geral e Comandante-Chefe (que fez questão de estar presente, junto das NT, no Dia D + 9, ou seja, 17 de Março de 1969, partilhando inclusive o transporte naval que levou os nossos esgotadíssimos camaradas da Ponta Luís Dias à Ponta do Inglês, no regresso ao Xime.

Apesar dos elevados meios humanos e materiais envolvidos, a correlação de forças não se modificou e, depois de um rápido processo e reorganização, a guerrilha voltava a obrigar as NT a acantonarem-se nos seus aquartelamentos onde flutuava a bandeira verde-rubra (Bambadinca, Xime, Mansambo e Xitole) e destacamentos dispersos. A população civil, sob a administração do PAIGC, terá sido a grande vítima desta megalómana e descoordenada operação.

Os soldados portugueses serviram, por sua vez, de cobaia num teste de resistência, a que o autor do relatório, sem despudor, chama processo de "selecção natural" (sic)... Num total de 700 e tal homens metropolitanos (o resto eram milícias e carregadores, habituados às duras condições do terreno), conclui-se que um sétimo fora mal seleccionado para o TO da Guiné, já que no decorrer da operação teve de ser evacuado, de helicóptero, por "insolação, ataque de abelhas e doença" (sic).

É o próprio relatório a reconhecer que, nesta época (tempo seco), as temperaturas andarvam entre os 39 e os 44 graus, à sombra, e entre os 55 e os 70º ao sol, e que nesas condições, (i) a guerra tinha que parar das 10 da manhã às 16h da tarde, precisando um soldado metropolitano de 8 a 10 litros de água (!)...

Nesta operação em que os guerrilheiros e a população por eles controlada passaram simplesmente para o outro lado do Rio Corubal (com os cães, os porcos, as galinhas...) (não havia páras, comandos nem fuzos do outro lado...), o verdadeiro inimigo das NT foi, de facto, a desidratação, além dos problemas alimentares: o tipo de rações que deram aos nossos soldados (a ração dita normal) era tão má que provocava uma sede horrível: ao segundo dia, já não se comia; ao terceiro, começava a haver problemas...

Tratou-se de uma operação onde se foi a lugares míticos, como a mata do Fiofioli, junto ao Corubal, mas ninguém encontrou médicos e enfermeiras cubanas... Hospitais de campanha, sim, mas já abandonados, uns meses antes. Destruiram-se muitas toneladas de arroz, mataram-se milhares de animais, queimou-se tudo o que era tabanca e culturas... Em contrapartida, houve 24 flagelações do IN, mas os guerrilheiros seguiram as regras da guerrilha: retirar quando o inimigo, ataca: atacar, quando o inimigo retira... O autor do relatório, irritado, queria que os tipos do PAIGC se apresentasse de peito feito às balas e dessem luta...

O mais caricato e divertido desta operação é que o pessoal deitou fora as rações de combate e desatou a comer leitão assado no espeto!

Este é um cínico relato da dura condição da guerra da Guiné, vista pelo lado dos tugas. Por outro lado, há críticas veladas, do autor do relatório, ao Comandante-Chefe, ao Quartel General e à Força Aérea (que se teria comportado como uma verdadadeira prima dona, segundo Hélio Felgas, que não esconde a sua irritação e frustração...).

Há coisas, pouco abonatórias paras as NT, que se passaram neste operação e que eu deixo à atenção e consideração dos tertulianos e demais visitantes deste blogue. Cada um de vós que faça a sua leitura desapaixonada... Aqueles de nós, que foram operacionais, rever-se-ão mais facilmente no cenário que foi o da Op Lança Afiada... Sobre o desempenho dos actores, já não vale a pena assestar as baterias da crítica... Felizmente que a guerra acabou! War is over, baby!

Para uma correcta localização das povoações ao longo da margem direita do Rio Courbnal, consulte-se o mapa, dos Serviços Cartográficos do Exército, relativo ao Xime, disponibilizado, mais uma vez, pelo nosso amigo e camarada Humberto Reis, ex-furriel miliciano da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71). O mapa do Xime deve ser complementado por outros como Fulacunda, Xitole e Bambadinca, também disponíveis on line.

Deixem-me só lembrar que, dois meses depois desta operação, o PAIGC retribuiu a visita das NT e apareceu às portas de Bambadinca em força: mais de 100 homens, três canhões sem recuo, montes de LGFoguetes, morteiros... Esse ataque ficou célebre: a malta de Bambadinca foram apanhados com as calças na mão, faziam quartos de sentinela sem armas; enfim, um regabofe... Claro que no dia seguinte o Caco Baldé deu porrada de bota a baixo, nos oficiais todos, do tenente-coronel (o célebre Pimbas) até ao capitão da CCS...

Um caso exemplar, divertido e hilariante, da guerra da Guiné... A sorte dos nossos camaradas de Bambadinca foi os canhões s/r terem-se enterrado no solo e a canhoada cair na bolanha... Quando nós, periquitos da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), lá passámos, uma semana depois, vindos de Bissau e do Xime a caminho da nossa estância de férias (Contuboel, um mês e meio de paraíso... seguido depois de 18 meses de inferno...quando fomos justamente colocados no Sector L1), os nossos camaradas da CCS do BCAÇ 2852 ainda estavam sem pinga de sangue...
- Podíamos ter morrido todos - dizia-me 1º cabo cripto Agnelo Ferreira, da minha terra, Lourinhã...

Fomos depois nós, para lá, com os nossos nharros  [fulas], e em 18 meses nem um tirinho (em Bambadinca): que o respeitinho (mútuo) era muito bonito... Porrada, porrada, era só quando a gente se atrevia a meter o bedelho na terra deles, que já estava "libertada"... Eu faria o mesmo, na minha terra...

Na história do BCAÇ 2852, o ataque a Bambadinca é dado em três linhas, em estilo telegráfico: "Em 28 [de Maio de 1969], às 00H25, um Gr In de mais de 100 elementos flagelou com 3 Can s/r, Mort 82, LGF, ML, MP e PM, durante cerca de 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros".