Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça, com o objetivo de ajudar os antigos combatentes a reconstituir o puzzle da memória da guerra da Guiné (1961/74). Iniciado em 23 Abr 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência desta guerra. Como camaradas que fomos, tratamo-nos por tu, e gostamos de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 6 de dezembro de 2022
Guiné 61/74 - P23850: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VI - Gadamael Porto... Continuando
VI - Continuando…
Parte da primeira companhia de comandos africanos, comandada pelo célebre e temido João Bacar Jaló e pelo segundo comandante Zacarias Saeigh, logo a seguir, apareceu em Gadamael Porto, com indicação de que ficariam uns dias, participando em operações com a nossa companhia.
Aqui estava parte da razão da nossa espera em Bissau, até ao dia 27 de Novembro pois, parte deles, tinha participado na operação de que lhe falarei, a seguir.
Recordo alguns dos elementos: o Jalibá, o Bari, o Tomaz Camara, o Justo, o João Lomba, um felupe com dois metros, sempre de catana à tiracolo, que fazia colecção de crânios do inimigo, segundo diziam os outros, com convicção.
Tenho fotos de recordação com alguns deles.
Tinham feito parte da operação Mar Verde, invasão à República da Guiné-Conacry, em 22 de Novembro, ainda bem marcados e feridos pelos resultados.
Só por curiosidade, uma das nossas operações, em que alguns deles participaram, durante uma emboscada, o Tomaz Camara foi baleado na cabeça, mas de tal forma que a bala entrou pela fronte, não penetrou na parte óssea e deu a volta, ao longo do couro cabeludo, ficando retida na parte posterior da cabeça.
Concluiu-se que aquela bala foi sendo amortecida pelos ramos e folhagem das árvores, chegando à cabeça do Tomaz Camara já com pouca capacidade, a grande sorte dele.
Foi evacuado para o hospital de Bissau e lá se safou, após cirurgia adequada.
Voltando aquela operação Mar Verde, só para o Daniel ter uma ideia, foi uma operação liderada pelo capitão-tenente fuzileiro Alpoim Calvão, com o máximo sigilo e de forma a evitar que algum sinal pudesse indicar como obra de forças armadas portuguesas.
A equipa foi formada por fuzileiros do continente, fuzileiros guineenses formados no local e alguns comandos africanos.
Parte da equipa foi treinada pelo temido Marcelino da Mata, que também participou, de que lhe falarei, se me lembrar.
Como acontecia em outras operações, as armas e os uniformes teriam de ser iguais ou idênticas às usadas pelos militares do PAIGC, além das pinturas a negro, na cara.
Os próprios veículos usados nas operações teriam de ser o mais discretos possível, sem inscrições que os pudessem denunciar, assim como as próprias equipas que deviam ser caracterizadas de forma a confundirem-se com o inimigo, neste caso, africanos.
O objectivo seria destruir bases militares e equipamento, assim como pontos estratégicos que convinha neutralizar, libertar prisioneiros de guerra portugueses e prisioneiros políticos contra o regime de Sékou Touré, tendo em vista um golpe de estado que pudesse aniquilar Sékou Touré e Amílcar Cabral.
Mas o objectivo não foi conseguido, na sua totalidade, claro.
Foram libertados 26 prisioneiros portugueses, cerca de 400 prisioneiros políticos guineenses, além de destruído bastante equipamento militar e causadas centenas de baixas aos guerrilheiros do PAIGC e população, inevitável…
Como era de esperar, as organizações internacionais receberam as queixas por parte do governo da Guiné-Conakry, nada de extraordinário, considerando a gravidade…
Segundo o relatório desta operação, parte do insucesso da operação deveu-se ao mau trabalho da PIDE, nomeadamente, deficientes passos no campo das informações.
Lembro-me da insatisfação do João Bacar Jaló, pelo facto de não termos comida suficiente, além da rotura do stock de ração de combate.
Já tínhamos enviado rádios para Bissau, solicitando alguns mantimentos, mas nada aparecia.
Foi preciso um rádio, com código do João Bacar Jaló, para enviarem frescos, de imediato.
Os frescos eram constituídos, normalmente, por peixe congelado, frango congelado, ovos, lançados em rede por um hélio, com o impacto no solo que se prevê…
Era assim, o reino do Sr Spínola, em Bissau!... O João Bacar Jaló veio a falecer, em combate, uns meses depois, penso que em Abril, na designada operação ‘nilo’.
"O Adolfo fala dessa sua passagem por África com alguma frieza, mas acredito que deixou muitas marcas, como todos sabemos e o Adolfo melhor saberá…"
Sim, mas já tive tempos mais difíceis do que agora.
Quando andava nos quarenta, quarenta e tal, recordo-me de dias e noites bem difíceis, com um grande esforço para evitar transparecer aos que me rodeavam, na empresa e na família.
Uma sensação de distúrbio mental, principalmente, durante a noite, com perturbações de sono, uma certa ansiedade sem razão aparente, uma mistura de revolta com instabilidade, desânimo, saltos repentinos da cama, o gesto tantas vezes lá repetido, tudo isso relatei aos médicos, neurologista e psiquiatra, que definiram como parte das consequências resultantes de momentos vividos neste tipo de cenários.
Não me imaginava a desabafar e, até, a chorar, mas foi uma realidade, logo justificada pelos médicos.
Falaram em stress traumático de guerra, o que atingiu alguns elementos da companhia, com graves consequências para o resto da vida, como constatado, aquando dos nossos encontros/convívio/almoços anuais.
Alguns medicamentos, por pouco tempo, também ajudaram.
Sabe, Daniel, nós só acreditamos nestas coisas quando, realmente, nos tocam pela porta, directamente.
Mas há gente que não compreende, nem os nossos sentimentos, nem a nossa linguagem, mas nós estamos preparados para compreender essa gente que não nos compreende…
A par dos acontecimentos próprios daquela guerra, como já lhe disse, o clima deixava-nos de rastos.
Humidade do ar, na ordem dos noventa por cento, temperatura, na ordem dos quarenta graus, um factor determinante de um certo desespero diário, sem nada se poder fazer para o evitar.
As operações de rotina, tantas vezes, dentro de matas virgens desbravadas à custa de catana, quase de rastos, incluíam entrar em regatos de águas geladas, que nunca viam o Sol, ou lamas negras que se agarravam ao camuflado.
Quando saíamos da mata e entrávamos nas designadas lalas, com aquelas temperaturas, as lamas coziam e eram como lâminas a rasgar a pele, provocando irritações e queimaduras, um tormento, só possível aliviar à custa de fórmula cinco, de que resultava um ardor tal, que só aos saltos!…
Dentro do camuflado, nem pensar em cuecas...
Outras agressividades nos surpreendiam, quando em progressão pelos trilhos ou dentro das matas, como os carreiros de formigas vermelhas, os enxames de vespas e as cobras cuspideiras.
As formigas começavam a entrar, não sabíamos por onde, e alojavam-se pelo corpo, principalmente, nas partes íntimas, cravando as tenazes nos testículos, o que deixava qualquer um desnorteado, pelas dores.
E nós tínhamos o camuflado bem apertado sobre as botas!...
Quando tentávamos tirá-las, a cabeça ficava cravada e apenas saía o corpo.
Os enxames estavam pendurados em ramos das árvores e, logo que algum de nós lhes tocava, elas começavam a sair, endiabradas, ferrando tudo o que podiam, do que resultavam uma espécie de monstros!
Aliás, diziam-nos que os próprios guerrilheiros do PAIGC preparavam esses enxames e colocavam-nos em locais estratégicos, picadas e carreiros de progressão que usávamos, nas nossas operações.
As cuspideiras, pequenas e verdes como os ramos das árvores, cuspiam nas partes brilhantes, logo, nos olhos.
Como imaginará, a população de baratas e formigas com asas, cá conhecidas por agúdias, era uma enormidade, mas habituámo-nos a viver com elas, a dormir com elas.
Também as limitações de alimentos e água ‘bebível’ faziam parte da nossa festa diária…
Tivemos um período que nem ração de combate havia, diziam que estava esgotada!
Outro problema era o paludismo, quando forte, podia matar.
Felizmente, foi coisa que não me tocou!
Mas as diarreias eram um cenário quase comum, deixando muitos de nós de rastos.
No meu caso, felizmente, um só episódio, mas levou-me a ‘buracos do mato’ um monte de vezes, num só dia, que ficaram bem registados!
"Ouvi falar de doenças desse tipo, como o paludismo, e também dos problemas provocados pelas águas, problemas em cima de problemas que vocês tinham de contornar - ossos do ofício…
Se calhar, era o tipo de problemas para o qual não estavam preparados".
Daniel, depois desta experiência, concluo que estamos preparados para muito pouco…
Também me lembro de um quadro muito engraçado, algumas vezes fazendo parte do nosso cenário, quando em progressão pelos carreiros ou picadas: as famílias de sancus (macacos).
Imagine que tínhamos de parar, com os riscos inerentes, para que as famílias atravessassem os carreiros ou as picadas, o pai de um lado, a vigiar o espaço, garantindo a segurança da família, enquanto a mãe ia atravessando com os filhos, todos de mão dada, até chegarem todos ao outro lado, sempre olhando-nos nos olhos e como que a dizerem-nos alguma coisa, numa linguagem acompanhada de um rosnar tipo cão.
Aliás, o macaco-cão abundava e dizia-se muito apreciado pela etnia Fula, que não consumia carne de porco.
E sabia-se que, muitas vezes, os bifes não eram de vaca, porco ou gazela, mas de macaco-cão…
A etnia Balanta criava e consumia porco.
Quando chegava correio, tarde, mas chegava, uma enorme festa para alguns, mas uma tristeza para outros, pois não eram contemplados.
Lembro-me de aerogramas partilhados, um gesto de solidariedade e amizade.
Algumas vezes, quando se ouvia um ligeiro ruído característico do héli, associávamos a correio, logo, toca a pegar no aerograma e escrevinhar qualquer coisa, à pressa, como: ‘meus queridos pais e irmãos, espero que estejam bem, eu estou bem, o resto vão ler aos anteriores, beijinhos.’
Também chegou a acontecer aparecer um héli e, ao dar a entender que tencionava baixar, um dos soldados pegou na G3, apontava para o ar, enquanto outro avisava, pelo radio móvel, que não se aventurassem a baixar, caso não trouxessem correio!…
As revistas da altura, como a Plateia, quando lá chegavam, enviadas por familiares e amigos de alguns, constituíam um alimento para o espírito de todos.
E liam-se, e reliam-se, e reliam-se,…
De vez em quando, eu recebia aerogramas das minhas amigas, que não me esqueciam, cujo significado e efeito não têm tradução, por palavras.
Uma delas enviava-me, de vez em quando, algumas cassetes com gravações de músicas acabadas de sair, o que me permitia estar ao corrente do que se ia passando, na ‘civilização’.
Ainda bem que tinha comprado o tal leitor de cassetes e que podia ouvi-las, sempre que chegavam à minha mão - um verdadeiro milagre…
Algumas vezes, quando se ouvia um ligeiro ruído característico do héli, logo associávamos a correio…
"Ó Adolfo, por falar nisso, lembro-me do Movimento Nacional Feminino que, embora algo contestado, ainda conseguia fazer alguma coisa válida, no apoio aos militares que chegavam feridos e aos familiares dos que morriam. Pelo menos, era o que me constava…"
Sim, Daniel, era um movimento interessante, mas…
mais qualquer coisinha desagradável…
Mas nem tudo o que me chegava era agradável.
Recebo uma carta da minha mãe, não aerograma, com um texto normal de mãe, mas juntando uma foto dos meus pais com a criança Carla ao colo.
Claro que não incluía a mãe, por precaução.
Não foi preciso pensar e não respondi, como se nunca tivesse recebido aquela carta.
Obviamente, associei este quadro ao que o meu irmão me tinha relatado sobre uma Guiomar, embora sem pormenores, mas qualquer coisa seria de desagradável.
Mais tarde, recebi novo aerograma da minha mãe, pedindo-me autorização para levantar dinheiro da minha conta, pois a tia Jú estava aflita com umas despesas inesperadas que tinha de cumprir e a minha mãe já tinha ajudado, um pouco, mas não podia ajudar mais.
Logo respondi que sim, poderia levantar tudo o que a tia Jú necessitasse - para a tia Jú, tudo!
No entanto, deixou-me a pensar na coisa, pois era estranho...
Mesmo com algum problema inesperado, a tia Jú tinha o seu emprego, o marido o seu emprego, a avó Júlia a sua pensão, a sogra a sua pensão, as duas sem despesas, logo, porquê?!
Paciência, mais tarde teria oportunidade de conhecer a resposta e, no momento, era melhor esquecer.
"Adolfo, não consigo imaginar o que sente uma pessoa, em cenário de guerra e de falhas no mais elementar, como a comidinha, ao receber notícias da família, com situações que suscitam dúvidas e criam preocupações…"
Realmente, Daniel, era difícil conciliar a situação com algumas notícias que lá nos chegavam…
Mesmo o pouco tempo de descanso era assaltado por estas dúvidas e preocupações, apesar de sabermos que nada podíamos fazer.
Mas o meu relacionamento com toda a companhia continuava óptimo, em espírito de grupo saudável e imprescindível, com os condicionalismos próprios do contexto, mas com uma grande vontade de, em conjunto, procurarmos vencer todas as dificuldades que nos iam surgindo, sempre motivados pela esperança de um regresso a casa, sãos e salvos.
Mas as situações delicadas não podiam ser contornadas, pois faziam parte daquela realidade, e surgiam a cada momento.
Já com baixas, a moral ia ficando debilitada, mas o nosso espírito ia amadurecendo, a forma possível de continuarmos a nossa marcha.
Pouco mais de dois meses decorridos, durante uma emboscada que sofremos logo uns minutos depois do arame farpado do aquartelamento, ainda no início de mais uma operação, o capitão Assunção e Silva, um ranger bem preparado e bom líder, morre, com tiro certeiro no coração.
Além do capitão morto, mais dois ou três feridos, apenas.
Sim, mais uma operação, designada de reconhecimento, em que saía o primeiro grupo, do Ponte, o capitão Assunção e Silva, um ou dois dos comandos africanos e alguns milícias.
Como era necessário mais um graduado, o Ponte manifestou interesse em que eu participasse nesta operação, apesar de não ser o meu grupo, mas a solidariedade ‘obrigada’ sobrepunha-se a tudo, dadas as circunstâncias.
Mas não me esqueço de que, neste dia, eu estava muito mal disposto, com os meus problemas do aparelho digestivo, já conhecidos, e que se foram agravando.
Mas o cenário que vivíamos não tolerava más disposições…
Como o Daniel saberá, o desenrolar de uma emboscada pode durar segundos ou minutos, depende das circunstâncias.
Início, troca de tiros, uns segundos e… já está - final e retirada estratégica de ambas as partes…
Como o Daniel já deve ter ouvido, sempre que em situações como esta, toca a despir camuflados para apoiar em G3 e improvisar macas, até chegarmos ao aquartelamento, tudo rápido e em silêncio, claro, mais uma experiência para a vida.
Confesso que fiquei bastante abalado quando vi o capitão caído, já sem vida!
Aliás, um sentimento geral, em toda a companhia, quando entrámos no aquartelamento!
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 4 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23843: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte V - Chegada a Gadamael Porto
sexta-feira, 11 de novembro de 2022
Guiné 61/74 - P23775: Fauna e flora (21): "Ó Falcão, o Jagudi não vai ao fanado, mas olha que não é parvo de todo!"... Uma "fabulosa fábula" guineense sobre o último dos últimos, o que ri melhor...
Portal dos animais > Abutres
O jagudi (abutre-de-capuz, nome científico Necrosyrtes monachus) não é ágil, elegante, superior, altivo, nobre, aristocrático e guerreiro como o falcão, mas nem por isso deixa de ter o seu lugar na criação e de desempenhar o seu papel na natureza. É certo que ele é pouco considerado tanto pelos humanos como pelos outros animais. É feio, é repelente, é necrófago...
Que o diga, aliás, o provérbio crioulo-guineense:
Mas também há um outro provérbio que, de certo modo, vem em defesa do jagudi:
Em suma, uma estória que vem a propósito da História (com H grande) dos nossos dois países, Portugal e a sua ex-colónia da Guiné que, quase meio século depois da independência (política), ainda está longe de ter encontrado os caminhos seguros da paz, da construção da unidade nacional, da liberdade, da democracia, da tolerância, da justiça, da equidade e do desenvolvimento sustentado. Coisas, de resto, que nunca estão asseguradas de uma vez por todas, mesmo no melhor dos mundos (dos EUA à Suécia)...
(...) Falcão é o nome genérico dado a várias aves da família Falconidae, mais estritamente aos animais classificados dentro do género Falco. Os falcões são as menores aves de rapina medindo cerca de 15 a 60 cm de comprimento. São também muito leves pesando entre 35 g a 1,7 kg.
Os falcões podem ser identificados pelo fato de não planarem em correntes termais, como outras aves de rapina. O falcão-peregrino, especializado na caça de aves médias e grandes em voo, pode atingir 430 km/h em voo picado e é o animal mais rápido da terra. Diferentemente das águias e gaviões, que matam suas presas com os pés, os falcões utilizam as garras apenas para apreenderem a presa, matando-a depois com o bico por desconjuntamento das vértebras, para o que possuem um rebordo em forma de dente na mandíbula superior.
Na Idade Média, os falcões eram apreciados como animais de caça acessíveis apenas à elite (reis e nobreza). (...)
Depois de trocarem um breve e seco cumprimento, o falcão, sempre palrador, fanfarrão e irrequieto, começou a insultar o jagudi, chamando-o de desprezível, de cobarde, de preguiçoso, de oportunista e de muitos outros termos insultuosos e pejorativos que lhe vieram à cabeça, à sua cabeça, tonta e leviana. Acusou-o, repetidamente, de ser a mais miserável e feia das criaturas de Deus.
O jagudi ouviu tudo, sem nunca ter tido o mais pequenino gesto de impaciência, protesto ou de indignacão. Nisto, passa entre os dois, a grande velocidade, uma linda ave, de penas multicores.
Logo o falcão se lançou em perseguição da pobre vítima. Mas fê-lo de maneira tão desenfreada que por azar foi bater, em cheio, com o peito, de encontro a um tronco robusto de uma árvore da floresta que se lhe atravessara no caminho. Louco, cheio de dor, lançando pios lancinantes, caiu ao chão, mortalmente ferido, sobre o tapete de folhas secas que cobria o trilho da mata.
Nesse preciso momento, o jagudi levanta voo, com o seu ar pesado e pachorrento, e toma o seu lugar, imperturbável, à cabeceira do moribundo. O falcão, no estertor da agonia, ainda teve tempo de descortinar, horrorizado, a silhueta tenebrosa e agoirenta do jagudi, o seu bico afiado como aço e o seu pescoço descarnado.. E, trémulo, perguntou-lhe:
— Que vens aqui fazer, jagudi?
Ao que este respondeu, impávido e sereno:
— Aguardo o teu fim, meu amigo.
Fonte: Adapt. de Nóbrega, Álvaro (2003) - A luta pelo poder na Guiné-Bissau. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCPS). Universidade Técnica de Lisboa (UTL). 2003.23.
[ Revisão / fixação de textos / negritos, para efeitos de publicação deste poste:
(*) Vd. poste de 9 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23772: Fauna e flora (20): crime contra a natureza: mortos, por envenenamento, em 2020, segundo a revista "Science", mais de dois milhares de jagudis (Necrosyrtes monachus) na Guiné-Bissau (José Belo, Suécia)
sexta-feira, 5 de agosto de 2022
Guiné 61/74 - P23495: Notas de leitura (1471): "Memórias de um Tigre Azul - O Furriel Pequenina", por Joaquim Costa; Lugar da Palavra Editora, 2022 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Agosto de 2022:
Queridos amigos,
Joaquim Costa teve a amabilidade de me oferecer as suas memórias de Cumbijã, edição Lugar da Palavra Editora (telef 220994591/ telem 915416141), tocaram-me pela singularidade com que homenageia pais e irmãos, como faz a apologia da camaradagem sem precisar de bater as palmas e a discrição com que narra a criação de um quartel em terra de ninguém, tudo com o objetivo de procurar asfixiar a prazo a presença do PAIGC na região sul, designadamente naquelas reentrâncias da mata do Cantanhez. A epopeia dos homens ficou lavrada, mas em 1973, ali bem perto, no mês de maio, Guileje cedeu, nada ficaria como dantes, e a Operação Grande Empresa esmoreceu, o 25 de Abril foi a última gota. Foi bom que Joaquim Costa deixasse o seu testemunho, todo ele de emoção contida.
Um abraço do
Mário
Recordar Cumbijã, um dos pilares da Operação Grande Empresa
Mário Beja Santos
O livro de Joaquim Costa, largamente referenciado em textos do blogue, é credor da nossa elevada consideração, a diferentes níveis: a tocante homenagem que presta a pais e irmãos, se é certo que há testemunhos de arromba sobre estas memórias afetivas, inescapáveis, o que Joaquim Costa nos oferece é tocante como homenagem do seu coração.
Primeiro, a homenagem à família, ele é o sétimo filho de José e de Gracinda, um casal que viveu a miséria em tempos conturbados, o pai Zé trabalhou numa pedreira, abriu uma pequena mercearia/taberna, ele não esqueceu uma viagem que fez na sua companhia até Ermidas do Sado para ir visitar o irmão Manuel, que estivera na Guiné e regressara com uma grande pneumonia; a mãe Gracinda é a imagem da devoção maternal, levanta-se pela alva para preparar os comes, tudo sem um queixume. E fala-nos do mano mais velho, o Eduardo, da sua paixão pelos pombos, da Maria, a irmã mais velha, uma cúmplice deste furriel do Cumbijã. E deixo ao leitor a faculdade de saber mais sobre o Avelino, o Manuel, o João, a Noémia, o Joaquim, os sete manos vão aparecer em bela fotografia, há mesmo casacos e gravatas para se entender que o clã lutou pela vida para conhecer dias mais risonhos.
Segundo, a ficha curricular, com todas aquelas peripécias nos coube experimentar, no caso dele Caldas da Rainha, Tavira, é um sargento de armas pesadas que vai dar instrução a Chaves, segue-se Estremoz (que lhe deixou imensas saudades), já está delineada a CCAV 8351, os Tigres de Cumbijã, tendo como maestro Vasco Augusto Rodrigues da Gama, a quem tive a honra de dar instrução em Mafra e de descrever em sede própria que daria um competentíssimo comandante de companhia.
Terceiro, cumprida a missão de proteger colunas para Buba e dar proteção ao grupo de Engenharia na construção da estrada Mampatá-Nhacobá, vamos ao âmago da história, toca a marchar para Cumbijã, o PAIGC não queria abrir mão de Nhacobá, não bastava a estrada a partir de Mampatá, havia que estender o cerco. Chega-se a Cumbijã e levantam-se cerca de 30 minas, assim vai começar o calvário dos estropiados e mortos, as imagens são eloquentes, faz-se um quartel de raiz, ele diz com simplicidade:
Assim se chegou ao 25 de Abril, é o regresso a casa, as durezas da adaptação. E há os acasos da sorte, Joaquim tem o filho a trabalhar na Guiné na construção da Ponte S. Vicente, é o regresso, a vida continua, o Cumbijã não lhe sai da memória, vai trabalhar como professor, orientador pedagógico e dirigente escolar.
Região de Tombali > Construção da estrada Mampatá / Cumbijã, no fim de mais um dia de trabalho. Foto gentilmente cedida por Joaquim Costa.
Região de Tombali, Cumbijã > O capitão da CCAV 8351 (Os Tígres de Cumbijã) e o Sargento Redondeiro. Foto gentilmente cedida por Joaquim Costa.
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Nota do editor
Último poste da série de 1 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23480: Notas de leitura (1470): Como nasceram as fronteiras da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)
domingo, 8 de maio de 2022
Guiné 61/74 - P23244: Manuscrito(s) (Luís Graça) (213): Memória dos lugares: a rua da tua infância...
Luís Graça, Candoz, 13 de abril de 2022
Foto (e legenda): © Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. [Edição : Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1/100. Domingo à tarde!… Um dia, algures na
tua infância, começaste a detestar os domingos à tarde: ou chovia ou fazia
vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Sobretudo nada acontecia,
no domingo à tarde. E até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da
igreja da tua terra, a que chamarás doravante a tua aldeia.
Só não sabes exatamente quando começaste a detestar os domingos à tarde. De manhã havia a missa, e à tarde jogava-se à bola no campo pelado do largo do convento. Talvez tenha sido num final de verão, depois das vindimas, quando a miudagem ia ao rabisco [1]… E passou a ser desoladora, descarnada, esquálida, a vinha do Senhor, depois da vindima e depois do rabisco …
Seguramente foi algures, no fim da tua infância. No campo
pelado da bola. Três paus a servirem de baliza. Uma baliza sem rede. Daí a
ideia, tão nostálgica quanto tardia, desta
“viagem na tua terra”, desta “viagem ao
fundo da rua da tua infância”, a rua dos
Valados…
A infância é, metaforicamente falando, uma rua. Labiríntica. E, como todas as ruas, tem
um começo e tem um fim. E é atravessada por ruelas e becos. E, como todos os labirintos , tem um fio de
Ariadne. Pode ser uma rua mais ou menos comprida, ou até ter uma praça, um
largo, um chafariz. Com casas de um lado e do outro. Mas toda a rua tem um
princípio e um fim, tem um cabo, tem um fundo.
E a infância também. Ou se calhar não tem, porque se prolonga sob a forma de
saudade. Ou nostalgia. Ou memória. Ou do exercício da memória, como lhe queiras chamar. Ou até da recusa em
sair dela, da magia e da segurança da infância. Estás mais inclinado a pensar
que as ruas da infância não têm cabo nem fundo nem fim, são circulares. O que fica na
memória é uma espécie de caleidoscópio ou um “puzzle” onde faltam peças. Ou ainda mais exasperante, no fim, há peças que
não encaixam. Há umas a mais, e outras a menos. E, pior, não encontras mais a
ponta do fio de Ariadne.
Não sabias quantos números de polícia tinha a tua rua. Pouco
mais de meia centena, sessenta e tal, confirmarás mais tarde. Ia do Castelo às Aravessas. Era comprida
naquele tempo. A tua casa era o nº 47. E,
talvez por estranha coincidência ou não, tu tinhas nascido em 1947, no pós-guerra de
todas as guerras. A que deveria ser a última, ouvirás muito mais tarde ao teu
pai. Não herdaste dele o seu saudável otimismo e a genuína crença na bondade
humana. Afinal, nasceste e cresceste em plena guerra fria, dois anos depois de
Hiroshima. Ouvirás falar de Hiroshima. Muito mais tarde. E perceber então todo
o horror de Hiroshima. E o que era o “mal absoluto”.
Sabias lá tu o que se passava pelo mundo, largo e profundo… Nem muitos menos onde ficava Hiroshima. Não vinha no mapa-múndi da tua escola. O mundo era a tua rua e pouco mais. A tua aldeia. E tinha princípio, meio e fim. Mais tarde arrancar-se-ão vinhas e pomares, na periferia da tua aldeia. E abrir-se-ão novas ruas. E construir-se-ão prédios altos como na cidade grande. De cimento armado. Com elevador. E mais tarde rotundas. Para parecer a cidade grande. Tudo em nome da ordem e do progresso, e segundo um qualquer plano de urbanização. Mas essa já não era a tua aldeia, quando a revisitaste.
2/100. Nada acontecia no domingo à tarde… Ao
domingo folgavam os corpos, era o dia do Senhor. Por isso era bom que nada acontecesse no domingo à
tarde. Nada que te tirasse da pasmaceira dos dias, semanas, meses e anos.
Podias escutar a boa nova do padre vigário, no largo do Convento,
ora sombrio ora soalheiro, mas a vida ia, sem alarde, no sentido inexorável dos
ponteiros do relógio: “dextrorsum” (que “palavra cara”, aprendê-la-ás, mais
tarde, na escola).
Ou, por palavras, mais
simples, “do berço à cova, donde ninguém escapava”,
os novos sucedendo-se aos velhos na fila da morte. “E quem acabava, sua cova
tapava”.
Não podias queixar-te do destino (se é que ele já existia nesse
tempo, mas já devia existir). E muito
menos dizer que “mais valia a morte que tal sorte”… Felizardo, não sabias ainda
o que era a morte. A morte dos que te
eram próximos. A morte à tua volta. A
morte dos corpos, que das almas ainda sabias muito pouco ou nada. Muito menos a
morte em massa. Dos alinhados contra os muros, e fuzilados de olhos vendados.
Dos esmagados sob os escombros dos bombardeamentos das cidades. Dos empilhados
nas carroças da morte nos campos de concentração. Eras filho do pós-guerra. E
essa, a guerra, não chegara, felizmente, à tua aldeia. "Da peste, da fome e da guerra... e do bispo da nossa terra, libera nos, Domine".
Quanto à tua morte, essa, também não a podias vivenciar. Nem sequer a
imaginar. Não tinhas consciência da morte. Não te lembravas sequer de fingir de
morto, nem por brincadeira, dentro de um
caixão, a tampa aberta, num velório, com toda a família e vizinhos à tua volta,
uns a rir, outros a chorar, outros a contar anedotas ou a comer pevides e
tremoços. Ou um pires de arroz doce com delicados desenhos feitos, a dedo, por um fio de canela em pó. Ou a
abrir a boca de sono e de enfado. Ou uma velha desdentada, carpideira, a
enxotar as moscas da tua cara esverdeada, picada das bexigas, da varíola. Ou o Brutamontes de sobrepeliz branca e
cornos negros como os do diabo, a encomendar a tua alma.
Não, não se brincava com a morte, quando eras menino. A não
ser nas brincadeiras de guerra (não se dizia brincar mas reinar), no alto do Castelo, nas escadinhas da rua do Cemitério ou no largo do Convento. Nunca querias ser índio, porque tinhas que fingir de
morto, um olho aberto, outro fechado. E usar arco e flecha. Os cobóis, esses, nunca morriam. Eram os
heróis gregos dos tempos modernos. Mas nenhum se chamava Ulisses. E tinham revólveres
e espingardas. E todos queriam ser o xerife.
Tu querias imitar o Cary Cooper ou o John
Wayne que chegarás a ver no cinema do Clube, um casarão que começava
na tua rua e ia até à outra rua abaixo
da tua. (Infelizmente, nada resta do edifício, nem sequer uma placa, foi mais
uma vítima do camartelo camarário, e do tsunami que varreu a memória coletiva
da tua aldeia.)
Enfim, essa era a vantagem de seres menino e moço e de ainda
não teres uma imaginação mórbida nem seres masoquista. Sê-lo-ás mais tarde, ao
desejares ser órfão!... Aos onze ou doze anos, quando já fores um ser híbrido,
um púbere, uma amostra de gente, mas eleito
de Deus. Enfim, tudo fruto das dores do crescimento, dir-te-ão mais tarde, prosaicamente.
Mas é quando se deseja ser órfão, que acaba a infância e desaparece a rua onde
foste menino. A rua da tua infância. Até então os teus pais eram os teus
heróis. E a tua rua era o teu palco de brincadeiras, a extensão da tua casa, o
centro do teu pequeno mundo.
Se algum bebé morria na vizinhança, era logo metido num
pequeno caixão branco, com pegas de latão amarelo. A morte vestia-se de branco, naquele tempo. Da cor das
asas e dos fatos dos anjinhos e das colchas das procissões, das noivas e das
flores da laranjeira. Não havia grandes choros. “Deus o deu, Deus o levou”. Tão
simples quanto isso.
Não podes hoje jurar que te lembravas de algum anjinho,
na tua rua. Aliás, era feio jurar, dizia a tua mãe. A memória hoje prega-te partidas, é
seletiva, tantos anos depois. Por certo deves ter apanhado no ar bocados de conversas da tua mãe ou das vizinhas, a
bichanar entre elas para que as crianças não ouvissem e não se perturbassem e não
fizessem xixi na cama à noite. A morte
perturbava os vivos, que se vestiam de preto quando morria algum adulto. Nunca
se falava da morte e dos mortos à mesa. Muito menos dos que lançavam uma corda
por cima do barrote da adega e se enforcavam. Nunca se falava da morte e dos
mortos à frente das crianças. Nem da
morte nem do sexo. Eram tabu, o sexo, a morte, Deus, a Pátria e a Família.
Mas, se não foi na tua rua, terá sido na rua abaixo. Ou no largo da Bica. Anjinho não
tinha nome próprio, muito menos sexo, nem
morada. Tinha direito apenas a uma cova, pouco funda. E um número em chapa de
ferro. Era apenas isso, um anjinho. A não ser que a parteira ainda fosse a tempo
de o batizar, “in extremis”, e na ausência do padre… Davam-lhe então nome,
cristão, que seria o mesmo da próxima criança a nascer, no seio da mesma
família, se fosse do mesmo sexo. Mas
deve ter havido algum anjinho na tua
rua, que a mortalidade infantil era alta nos anos quarenta e tal do pós-guerra em
que nasceste[2].
Se algum bebé morria, ou nascia
já morto, na tua rua ou na rua abaixo, ou ruelas e travessas perpendiculares, metiam-no
logo no caixão branco, de tábuas de pinho, e levavam-no para o talhão dos anjinhos no cemitério que ficava logo
ali, a 100, 200 ou 500 metros. Acompanhado de meninos de sobrepeliz branca. Não tinha direito a padre, como os suicidas
ou os infiéis ou as mulheres públicas. Nem caldeirinha de água benta. E muito menos a uma lápide tumular com o RIP dos romanos, o requiescat in pace. E lá ia direitinho, coitadinho, para o
“limbo”. Nunca te explicaram o que era o “limbo”: uma nuvem muito grande que
funcionava como depósito dos “anjinhos” que não tiveram tempo de ser batizados
como cristãos. Por quanto tempo ficavam lá ? Não sabias, nunca te souberam
explicar isso, direito. Mas a tua curiosidade também era limitada, naquele tempo.
A rua dos Valados
era também a rua do Cemitério. Para
ti era a mesma rua, com o mesmo empedrado, não fazias distinção. E era
comprida. Ia do Castelo às Aravessas.
Para os enterros poderem levar muita gente. Sobretudo os enterros dos ricos.
Isto é, dos importantes. Na tua terra confundia-se por vezes os ricos com os
que mandavam e eram importantes. Os ricos não precisavam de mandar. Tinham os
criados e os feitores que mandavam por eles, em nome deles. E as demais “forças
vivas”, que estavam sempre do seu lado. E tinham charretes e cavalos e galgos e
podengos para correr atrás nas lebres e das perdizes no Cercal do Alentejo. E mastins para
açular os amigos do alheio.
Aliás, mandar era uma
chatice, um incómodo, uma boldreguice. Às vezes era precisar calçar as botas de cano alto e afogar em sangue os que
não queriam ser mandados e alçavam a cabeça, como os burros, os machos e os
cavalos, quando se lhe punha o cabresto. Era para isso que servia o chicote que
deixava o corpo do recalcitrante em carne viva no tempo em que ainda havia escravos. Já não te lembras desses tempos, só dos criados de lavoura e das criadas de servir.
Que a importância social do habitante da tua aldeia, media-se,
quando morto, pelo número de acompanhantes do seu féretro e pela riqueza
ou grandeza do jazigo da família. Ou pelo número de padres de fora que
abrilhantavam as cerimónias fúnebres… E pelo número de vozes no coro que
cantavam o Requiem. Havia vozes lindas no coro da igreja da tua aldeia. E uma
delas era a da Branca de Neve, a tua
catequista.
Ao longo da ruela principal do cemitério velho, alinhavam-se os
jazigos de família, em estilos revivalistas. Cobertos de musgo e líquenes, os jazigos das famílias
importantes datavam do virar do século XIX e da 1ª primeira metade do século XX.
Parte da história recente da tua aldeia
estava lá inscrita nas lápides dos jazigos, desde que se construíra o cemitério
na segunda metade do século XIX [3].
E, depois, havia o talhão dos Anjinhos
e o dos Combatentes da Grande Guerra,
de quem já ninguém se lembrava nada, a não ser o nome de rua de algum coronel
de bigode façanhudo, sobrevivente das "campanhas de pacificação" em África ou das trincheiras na Flandres. Anjinhos e antigos combatentes não se misturavam com o
povo das catacumbas. Nunca vistes ninguém rezar por eles. Ninguém rezava aos heróis que tinham morrido pela Pátria, e muito menos aos anjinhos que iam parar ao limbo.
Se algum velho morria, os putos da tua rua não davam conta. Os putos só queriam era reinação. Os filhos, sim, esses é que se preocupavam com os velhos que morriam. Porque passavam, os
filhos, a dar um passo em frente na fila da morte. E depois dos filhos, eram os
netos.
Era tudo muito mais simples aos teus olhos de menino e moço. Simplesmente, deixavam,
os velhos, de estar à janela, o nariz
esborrachado contra o vidro embaciado, o olhar vidrado, a respiração rouca. Horas
a fio, como as múmias do Egito que nunca viste. Ou então como os bonecos de palha que se punham nos
campos de trigo, a servir de espanta-pardais.
Era uma terra, então, de searas de trigo e de vinhas e de
moinhos, a tua aldeia, estendendo-se
por montes e vales, até às arribas do mar. E todas tinham dono, até as arribas. Só mar, não, porque era livre e selvagem com um potro. Estava tudo cadastrado. Até as Berlengas tinham dono. Com nome registado nas
finanças e na conservatória do registo predial.
Ou então ficavam sentados à porta da tasca, os velhos, a
fumar a sua beata, entre dedos enrugados, trémulos e amarelecidos. Como o teu
avô paterno, Domingos Henriques,
natural do Mont’oito. Casou três
vezes, teve três famílias, contava-te o teu pai. E “tinha três pinhais e sete
fazendas”…
Não te lembras da sua morte. Nem da sua vida. Só das suas
muletas de pau, almofadadas na extremidade superior, e do seu barrete preto onde guardava as beatas
e os tostões para o “copo de três”. E da
sua farfalheira. A última vez que o viste, coitado, foi sentado à porta da taberna do Macaco (ou ainda era a do Maneta ?).
Não te lembras de ir ao funeral do teu avô. Nem de alguma vez
de ele te ter afagado o rosto. “Ficou entrevado dos resfriados do mar”, dizia o
teu pai. Delapidou o património com a “filharada” e os “amigos do petisco”,
contar-te-á mais tarde, quando fores mais crescido e tiveres o entendimento das
coisas comezinhas da vida. O teu pai resumia muito bem, e com humor negro, a história
de vida do seu pai, e teu avô, que do segundo e terceiro casamentos “tivera 11
filhos e um suplente", ou seja, "uma equipa de futebol”.
Aliás, havia poucos velhos na tua aldeia. “Na era de trinta e um, poucos moços, velhos nenhum”. O teu
pai nunca esqueceria a morte da mãe, tinha ele dois anos. Morreria jovem, aos vinte e tal anos, a tua avó. Tuberculosa.
“Tísica”, como então se dizia. Nunca lhe
deu um beijo, ao teu pai. Punha-lhe a mão em cima da cabeça, num gesto
derradeiro de despedida, sabendo que
iria partir em breve para a viagem sem
retorno. Depois de ter cumprido o seu curto papel na terra, que era parir.
Essa imagem ficou gravada a ferro e fogo na pele da memória
do teu pai. De todo improvável, aos dois anos de idade, dirão todavia os
psicólogos. Mas tu acreditavas mais no teu pai do que nos psicólogos. Nesse
tempo ainda não existiam. Ou, se existiam, tu nunca tinhas visto nenhum.
Sabias lá tu o que era a doença, a pneumónica, a tuberculose, a tísica, a morte, a dor lancinante da perda de uma mãe ou de um pai. Ou a tragédia da perda de um filho. E muito menos sabias o que era a sorte. “Até à morte, dura a sorte”, assegurava-te o teu pai, sempre com uma “fezada” (o termo era dele) na “sorte grande”, a lotaria em que ele jogava (ainda não havia o totoloto) e que lhe saía sempre “em branco”… Pelo menos, foi feliz, em vida, o teu pai, contrariando o rifão: “A felicidade é como a sorte grande: só sai aos outros”. (...)
(Excertos)
_______________[1] Noutras terras, diz-se rebusco, respigo…
[2] Cerca de 125 por mil nados vivos em 1945
___________
Nota do editor:
Último poste da série > 22 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23186: Manuscrito(s) (Luís Graça (212): Em memória de Maria Irene Martins (Lisboa, 1944 - Grenoble, França), assistente social, imigrante, católica progressista, ativista política contra a guerra colonial e o Estado Novo, amiga e colega da Alice Carneiro, assistiu semi-clandestinamente em Lisboa ao 25 de Abril de 1974segunda-feira, 7 de março de 2022
Guiné 61/74 - P23054: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - III (e última) Parte: 14-15 de junho de 1998, "lar, doce lar"...
Foto (e legeenda) © Renato Monteiro (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Fajonquito > c. 1972/74 > Rua principal de Fajonquito. Foto do álbum do José Cortes, ex-Fur Mil At Inf (CCAÇ 3549, Fajonquito, 1972/74
8º dia, 14 de junho, domingo, Bafatá: recordações dos tempos de estudante e da OPAD - Organização Pioneiros Abel Djassi (1975/79)
Ao atravessarmos a ponte de Finete, perto de Bambadinca, entrámos na zona controlada pelos governamentais que, a acreditar naquilo que tínhamos visto no caminho, oferecia maior segurança as populações civis. Junto à ponte estava um destacamento de tropas da Guiné-Conacri e alguns tanques de guerra dissimulados no meio do arvoredo. Tudo novinho em folha.
Mas antes, o camião atravessou a ponte sobre um braço do rio Geba, por onde corria a água turva carregada de material orgânico com que fertiliza as bolanhas nas suas margens, passou pela antiga fábrica de cerâmica, atravessou a rua Porto, passando pelo Liceu, o nosso velho Liceu onde está situado o memorial de Amílcar Cabral e foi parar no Bairro de Sintchã Bonódji, na saída para Gabú.
Sem contar com o número de pessoas que tinha afluído a esta cidade leste do país, fugindo da guerra de Bissau, não se notava qualquer diferença. Sim, Bafatá era ainda a mesma cidade de sempre, preguiçosamente estendida no dorso de um planalto meio adormecido que tínhamos deixado 27 anos atrás, quando partimos para continuar os estudos em Bissau (em 1979).
Esta cidade não será, certamente, a pior localidade da Guiné, mas para mim foi um inferno durante uns longos anos dos quais conservo uma péssima recordação dos tempos de estudante. Aqui, de rafeiro saído de um antigo quartel de brancos e filho querido de um lojeiro de uma pacata aldeia que, no fulgor da sua inocência, pontapeava o prato de farinha de milho que a avó lhe trazia à noite, tinha-se transformado num verdadeiro cão vadio. Nunca e em lugar algum tinha merecido tanto este animalesco cognome.
Lembrei-me de Boma (situada à frente do quartel), suas árvores frondosas e a água fresca das suas nascentes onde íamos esconder-se das brasas do calor que arrasavam os Bairros situados na parte mais elevada do planalto e a Ponte Nova e onde, também, íamos enganar a fúria das nossas fomes insaciáveis de estudantes sem tecto, fingindo estudar.
Foto à esquerda: OPAD - Organização Pioneiros Abel Djassi. Foto de perfil, página do Facebook (com a devida vénia...)
Vindos de Contuboel, Gabú, Sonaco, Cossé, Pirada, Bajocunda, Paunca, Pitche, Bambadinca, Quebo, entre outras localidades, e abandonados numa cidade inospitaleira, o nosso bando era formado por jovens de todas as regiões, de todas as cores, com uma particularidade bem marcante. Todos tinham nascido e crescido com a guerra colonial e todos eram originários de antigos centros de aquartelamento de tropas portuguesas e muitos tinham aprendido as primeiras letras com soldados e oficiais portugueses.
Esta era, para todos os efeitos, a primeira geração formada nas escolas portuguesas dentro da comunidade Fula e talvez de todos os grupos étnicos (chamados gentílicos) na zona leste da Guiné-Bissau.
Quando apanhavam um dos nossos durante os saques, os outros vinham em grupo ajudar o companheiro infeliz. Tínhamos regras a que éramos muito fieis, ajudar um ao outro e nunca faltar às aulas, com ou sem fome. Era a mesma lógica no enfrentar das situações de perigo e de necessidade. Roubar ou morrer de fome.
9º dia, 15 de junho, segunda feira, Fajonquito: "lar, doce lar"...
Podia estar orgulhoso do meu trabalho, pois apesar das dificuldades, tinha conseguido tirar de Bissau duas famílias, ou seja, 10 pessoas. Também, já não restavam dúvidas que esta guerra iria durar. Foi com este pensamento que me despedi deles e da cidade de Bafatá, rumo à minha terra natal.
Engraçado, agora que estava a alguns quilómetros da minha tabanca, lembrei-me que o meu filho, nascido e criado na cidade, não sabia falar a nossa língua, como dizem os Fulas, era macaco que não sabia trepar.
Cherno Abdulai Baldé
Postes anteriores da série :
sábado, 5 de março de 2022
Guiné 61/74 - P23050: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Bissau, 7-11 de junho de 1998
Guiné-Bissau > Bafatá > Setembro de 2000 > O filho mais velho do Cherno Baldé e de Geralda Santos Rocha, de seu nome Abduramane Santos Baldé, "junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito, em Setembro de 2000. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964"... Hoje formado em engenharia de energias pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB.
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sector de Contuboel > Fajonquito > 2006 > Os quatro filhos de Cherno Baldé e de Geralda Santos Rocha.
Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2010). Todos os os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Estimado amigo e irmão Luís Graça,
Juntamente envio mais um texto fazendo parte das minhas habituais crónicas ou memórias do passado. Mudando um pouco de cenário, desta vez, os acontecimentos retratados são mais recentes e centrados sobre as tribulações de uma pequena família, melhor, do seu desajeitado chefe, no início da guerra de Bissau em 1998. Propositadamente, passei por cima do período que vai dos tempos de estudante em Bafatá, depois Bissau e da passagem pela antiga URSS. Voltarei, mais tarde, a este período se houver interesse. (**)
O presente texto foi por mim escrito em 2000, alguns meses antes de emigrar para Portugal onde participei, em 2001/2002, na construção do complexo Alvalade XXI (onde se enontra o novo Estádio José Alvalade, como servente de qualquer coisa, na verdade não tinha as qualidades requeridas mas contava com a "cunha" ou ajuda de uma família Portuguesa com a qual mantínhamos excelentes relações de amizade e estima.
PS - A foto mostra o meu filho junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito, em setembro de 1998. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964.
Na madrugada do dia 7 de Junho de 1998 (**), ainda na cama ouvimos, de longe, tiros de armas de guerra. Na manhã do mesmo dia, ouviram-se tiros de armas pesadas, acompanhados de rajadas de metralhadoras.
Pessoalmente, e sem estar informado de nada, já estava do lado dos revoltosos. Podia ser da idade ou simplesmente pela mania das revoluções. Fosse quem fosse, na minha opinião, achava que já era tempo de varrer o regime vigente para instaurar uma nova ordem, inverter a marcha que estava a afundar o país e aprofundar o fosso da desigualdade económica e social entre uma elite parasitária vivendo à custa do Estado e a maioria da população, cada vez mais paupérrima e despojada de recursos e de oportunidades.
Por volta das 8h00, o governo, através do seu ministro da defesa nacional, comunicou pela rádio que um grupo não identificado tinha assaltado o quartel-general (QG) mas que tinha sido rechaçado e que todos ficassem em casa até ordens ao contrário.
– É um golpe de estado, de certeza! – disse para a minha mulher, quase com satisfação.
Entretanto, pediam calma a população enquanto nos quartéis havia uma grande agitação. Todas as estradas de acesso ao centro da cidade estavam bloqueadas, havia confrontos em Santa Luzia (QG), muita agitação nos aquartelamentos de Brá e na Base Aérea, onde tropas do governo tentavam desalojar os revoltosos ou vice-versa.
Seguiu-se uma acalmia de algumas horas e, no início da tarde, houve um ataque ao quartel de Brá com armas ligeiras, sem qualquer efeito especial, pois a situação mantinha-se na mesma, ou seja, de vez em quando ouviam-se tiros de armamento pesado, seguido de um compasso de espera.
A partir do segundo dia, 8 de junho, começaram a circular algumas informações sobre o levantamento. Agrupados a volta do antigo CEMGFA, Brigadeiro Brick-Brack (por sinal, mais um voluntário, chefe de guerra, originário dos países vizinhos, na senda de Abdul Indjai e Companhia), uma parte das tropas e antigos combatentes tinham-se amotinado contra o regime.
Com a intensificação dos confrontos fomos avisados pela parte governamental de que devíamos evacuar a zona onde habitávamos, temporariamente, senão arriscávamo-nos a ficar entre dois fogos e sermos alvo de bombardeamentos.
O meu irmão mais velho convocou uma reunião de emergência para nos informar que os membros da nossa família, enquadrados por ele, deviam afastar-se um pouco, mais a leste nos confins do Bairro militar, eu deveria ficar para cuidar da casa. Não houve contestação e assim, sem preparação adequada, as mulheres, pegando naquilo que podiam mais as crianças, rapidamente, seguiram para cima, a leste do Bairro, onde ficariam ao abrigo da artilharia que estava a visar a nossa zona.
Esta forma simplista e confiante de pensar que tudo se resolveria rapidamente revelou-se depois muito prejudicial, pois, o que se previa ser para algumas horas viria a durar mais de um ano, e passo a passo seriamos obrigados a seguir para mais longe, longe e longe, e finalmente seria o refúgio.
3º dia, 9 de junho, terça feira: saída da família do Bairro Militar para o Bairro da Ajuda
No terceiro dia, 9 de Junho, o meu irmão comunicou-me a sua decisão de sair de Bissau e partir para Fajonquito, nossa aldeia natal, onde iria esperar pelo desfecho da guerra em que se tinha transformado o levantamento de alguns dissidentes do regime.
Com o dinheiro que tinha, fui comprar alguns mantimentos pois calculava que dentro em breve podia não haver nada para vender ou comprar. No mercado alguns cacifos estavam abertos, as pessoas estavam agrupadas à volta de aparelhos de rádio ouvindo as poucas informações que a RTP fornecia e comentavam os últimos acontecimentos que circulavam de boca em boca.
Voltei para casa, abri o rádio para acompanhar a RTP, única rádio em funcionamento, que tentava conseguir informações sobre as razões do motim e os nomes dos cabecilhas. Tornou-se evidente que a situação no terreno não era tão favorável aos governamentais como faziam crer pela rádio nacional. Passei a noite em claro pois, os tiros eram esporádicos mas repetitivos.
4º dia, 10 de junho, quarta-feira: relembrando o pesadelo de Kiev, em 1990 ("Matem o macaco preto!")
Na manhã do quarto dia de conflito, 10 de junho, sai de casa, atravessei a estrada principal do Bairro militar, tendo reparado que a estrada estava bloqueada e vigiada por tropas governamentais e que não havia circulação de viaturas.
Lembrei-me dos tempos de estudante em Kiev e, da tensão permanente em que vivíamos, atravessando as ruas, com medo da agressão dos jovens locais que não perdiam uma única oportunidade para nos maltratar, física e verbalmente.
De repente senti que alguém me segurava por trás, impedindo-me de avançar. Estava com medo, mas nem por isso vacilei, virei-me para enfrentar quem quer que fosse. Os homens presentes diziam: "Matem o macaco preto!"...
No momento, nesse dia 10 de junho de 1998, também estava com medo. Um medo indefinível e amplo que acariciava todo o meu corpo e apresentava-se no horizonte da minha vida que ainda agora começava a florir.
Apesar do medo e da urgência do momento, acabei por fixar o meu olhar nela de forma insistente. Havia qualquer coisa de invulgar na sua forma de andar. Sobretudo, tinha reparado no movimento ondulatório das suas ancas.
Era estranho, os habitantes de Bissau viviam sob o choque de uma brutal guerra de quartéis, por enquanto, e eu devia pensar em coisas sérias, ia encontrar-me com a minha família e devia pensar numa forma de os tirar de lá. O meu irmão já tinha saído e toda a cidade estava em fuga. Eu não, estava ali colado atrás de umas nádegas que não conhecia de lado algum mas que me atraíam como as flores atraem as abelhas.
Impávido e feliz por aquele momento divino de contemplação, já não andava, corria, corria atrás daquela figura que parecia uma luz brilhante no horizonte inacessível da minha vida povoada de cenários de guerras. Sim, uma luz como a lua cheia numa noite escura que brilha mas não ofusca a vista, visão celestial. Corria como um sonâmbulo com as mãos em concha estendidas para a frente, num gesto ridículo e egoísta de não deixar cair nenhuma gota daquele mel doce da minha alucinação.
Julgo que caminhámos três quilómetros. Ou foram sete? Não sei dizer. Aquele cenário não me era estranho de todo. Onde o teria visto ou vivido? Ah! Sim, foi no caminho de fuga entre Berécolon e a fronteira do Senegal, ainda criança na inesquecível noite do ataque dos eternos terroristas da nossa terra em 1964.
– Amí tchoma Diminga, Diminga de Bithame.
A velha, sorrindo insiste:
– N´hundê ku-na bai ?
– N´na bai djubi nh´ome k´stá na frénti – responde esta.
É isso, é a Diminga que está a minha frente. Chegamos à travessia d´água. A menina pára e vira-se para mim olhando, pela primeira vez, e cruza-se com o vazio dos meus olhos de sonâmbulo, fixos nas suas ancas largas e apercebe-se, num relance, da enormidade do desejo que me aflige. Ou não se apercebe? Pega na minha mão para ajudar-me a atravessar a água lamacenta. Sem perder tempo, aproveito o momento e a mão estendida para abraçar o seu corpo inteiramente e adormecer feito criança.
– Já cheguei! – diz ela.
– Já cheguei a minha casa, agora podes continuar o teu caminho! – repetiu ela.
Aproveitando a abertura do seu sorriso, balbuciante, perguntei:
–Kuma kí´ú nomi?
– Nha nomi´i Rosa – respondeu, baixando o seu rosto para fugir do meu olhar prenhe de angústias.
Esquecido do mundo e da guerra, fiquei especado no chão a olhar infinitamente como se aquela imagem que se perdia lá longe levava também consigo o fim da minha atribulada existência de combatente do nada num mundo em constante mutação e de fugas para a frente. Lutas de libertação e/ou de apropriação, as aldeias queimadas e os campos abandonados, o fardo das regras e religiões que chegaram com o mundo novo, tudo, temperado no inevitável processo de esvaziamento da alma, a globalização, o gesto ridículo do mimetismo cultural, golpes e contra golpes, programas de ajustamento, crises financeiras…
Ela não disse se era de Bitháme. Será que isso interessa? Também não tinha perguntado. Cheguei ao Bairro d´Ajuda sem saber se tinha caminhado ou voado com as asas que a visão daquela Rosa-Diminga me tinha incorporado.
– Não! – disse-me prontamente –Vamos esperar até amanhã.
Mais tarde soube que afinal ela não se tinha decidido a sair porque os seus vizinhos ainda não o tinham feito. Voltei para casa. Os tiros tinham cessado. Àquela hora da noite, já não havia nenhum movimento nas ruas do Bairro Militar e certamente as casas também encontravam-se vazias. A noite foi silenciosa, longa e tensa. Eu, a tentar dormir, os ratos a explorar regiões antes proibidas na casa deserta, lá fora as BM (“baevie machine” - que literalmente significa máquinas de guerra em russo) a cuspir fogo de Estaline.
5º dia, 11 de junho, quinta-feira: a guerra civil em marcha
Na manhã do dia seguinte ainda continuaram os tiros dos obuses. Dirigi-me ao mercado. Ainda havia gente aglomerada em alguns pontos tentando encontrar alguma coisa para provisão da casa ou do caminho.
(Continua)
Notas do autor:
(1) “Não pila, não cozinha mas come do melhor “– Uma elegia masculina dedicada ao balanço ondulatório das nádegas da mulher africana, na lingua Fula.
(2) Amilcar Cabral (1924-1973), antologia poética.
3. Comentário do editor LG:
Os portugueses, felizmente, não sabem o que é uma guerra civil desde os anos de 1830 (lutas entre liberais e absolutistas, 1828-1834) nem o que é a invasão do solo pátrio por tropas estrangeiras desde as invasões napoleónicas (1807-1810)...
Podemos, no entanto, tentar pôr-nos na pele dos nossos amigos guineenses, o Cherno Baldé e família, o Pepito e família, o Patrício Ribeiro e outros, que estavam lá, em 7 de Junho de 1998, quando a Junta Militar de Ansumane Mané tentou derrubar 'Nino' Vieira (o que viria a acontecer quase um ano depois, em maio de 1999, após um conflito sangrento, que incendiou todo o país e que levou muitos guineenses ao exílio (caso do Pepito e da Isabel Levy, por exemplo, que foram viver para Cabo Verde durante cerca de um ano)ou a ref+ugio da terra natal (como foi o caso do Cherno Baldé e família).
É um período da história recente da Guiné-Bissau mal conhecido dos antigos combatentes portugueses que fizeram a guerra colonial... Nessa altura (1998/99) andávamos distraídos com outras coisas e, se calhar, tínhamos pouca pachorra para sequer ouvir e entender os eternos problemas dos nossos pobres amigos guineenses... Além disso, Lisboa estava em festa, com a Expo 98, que decorreria entre maio e setembro de 1998...
O Cherno dá a verdadeira dimensão, humana, ao conflito político-militar que levaria à queda de um regime, à invasão do país de tropas estrangeiras (Senegal e Guiné-Conacri), à desertificação e pilhagem de Bissau, à miséria, fome e pobreza, enfim, ao agravamento, ainda mais brutal, das condições de vida dos guineenses... No final, o conflito saldou-se por alguns milhares de mortos e a duas ou três centenas de milhares de refugiados,
No caso do Cherno, era preciso pôr a família a salvo, numa viagem de mais de uma semana, de sobressaltos, de Bissau a Fajonquito (menos de 200 km), passando por Nhacra, Mansoa, Bambadinca e Bafatá... Tinha o seu filho mais velho três anos...
Obrigado, Cherno, é mais um depoimento comovente mas ao mesmo atravessado por surpreendentes reflexões filosóficas e éticas sobre a condição humana...
____________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 17 de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7002: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (19): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (I Parte)
(**) Trata-se de 7 de Junho de 1998 e não 1997, como por lapso escreveu o autor. Foi o início da longa e sangrenta guerra civil na Guiné-Bissau. Nesse dia de domingo, 7 de Junho de 1998, um grupo de militares, liderado formado pelo brigadeiro Ansumane Mané (antigo chefe do Estado-Maior) fez um golpe de Estado com vista à queda do presidente 'Nino' Vieira. As tropas militares rebeldes entraram em confronto com as forças presidenciais, que serão ajudadas pelo Senegal e pela Guiné-Conacri.
Este conflito vai provocar centenas de mortos e milhares de refugiados guineenses, não só em Bissau como noutras localidades, que se espalharam pelo interior e por diversos países (incluindo Portugal).
Haverá uma primeira tentativa de acordo nos dias 25 e 26 de julho de 1998, altura em foi celebrado o "Memorando de Entendimento", um documento que, em 25 de agosto, viria a dar lugar ao cessar-fogo. As delegações do Governo da Guiné-Bissau e a Junta Militar, de Ansumane Mané, concordam em fazer um trégua.
Fonte: Adaptado de Nino Vieira. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-09-17].Disponível em http://www.infopedia.pt/$nino-vieira.