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quinta-feira, 18 de março de 2010

Guiné 63/74: P6013: Camaradas na diáspora (1): João Crisóstomo, ex-Alf Mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), militante de causas nobres, a viver em Nova Iorque



Coruche > 19º Encontro Nacional da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missitá, 1965/67)> O Mário Beja Santos, ao centro, tendo  à sua direita, o Henrique Matos (o 1º Comandante do Pel Caç Nat 52), o João Crisóstomo e na ponta o Jorge Rosales (Pel Caç Nat 54); à sua esquerda, estão dois camaradas que Freitas e o Sousa (segundo informação do João)


Coruche > 19º Encontro da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole  e Missirá) > O Mário mais o Henrique, ambos do Pel Caç Nat 52, e outros dois camaradas que não identificamos (As fotos vieram sem legendas: talvez o João  Vaz Neto e o Cunha)


1.  Há dias recebemos (e já publicámos) uma mensagem,  de 8 do corrente, subscrita pelo Mário Beja Santos, na sequência do 19º encontro da CCAÇ 1439 (1965/67), a que compareceram também outros membros da nossa Tabanca Grande, como o Henrique Matos (Pel Caç Nat 52) e o Jorge Rosales (Pel Caç Nat 54) (*).

Escreveu o Mário:

"(...) Foi graças ao blogue que cheguei à fala com o Henrique Matos Francisco, 1º Comandante do Pel Caç Nat 52. Em Missirá, naqueles idos de Agosto de 1968, os soldados falavam-me de Luís Zagalo Matos, um dos seus heróis, era o seu irã. Escrevi-lhe, pedi-lhe fotografias para as fazer chegar aos soldados de Missirá, mas também aos Soncó e aos Mané.

"Com a publicação dos livros, vieram outros contactos. Por exemplo, o João Crisóstomo, alferes da CCaç 1439, estavam no Enxalé quando aqui chegou o Pel Caç Nat 52" (...)

Mas quem é afinal este camarada João Crisóstomo, já anteriormente evocado pelo Mário ? (**)

"O João Crisóstomo vive em Nova Iorque, o nosso país tem com ele uma dívida incomensurável (os principais jornais dos EUA, as grandes cadeias de televisão, apoiaram-no na defesa do povo de Timor e na preservação do património de Foz Coa, por exemplo), há uns tempos pediu-me notícias do Zagalo, acabámos por ir os dois visitá-lo na Casa do Artista, onde ele vive muito debilitado, depois de um tremendo AVC" (...).

"O almoço[, em Coruche, ] foi um turbilhão de surpresas [, a começar pelo João Crisóstomo]. Fiquei ao lado do Jorge Rosales, foi ele quem em Bolama preparou os soldados do Pel Caç Nat 52. Fiquei em frente do João Neto Vaz, um dos furriéis do Pel Caç Nat 52 que,  ao fim de 20 meses de comissão,  apanhou uma senhora porrada e foi despachado para Catacunda [, CART 1690], na região de Geba (Bafatá), onde foi capturado e metido numa prisão em Conacri, de onde foi libertado em finais de 1970, como é de todos sabido.(***)

"Conheci também o Cunha que,  no dia em que pretendia ir a Bafatá tratar dos papéis para o casório, foi ferido gravemente num joelho, durante uma emboscada entre Xime e Amedalai.

"A companhia dos madeirenses [, a CCAÇ 1439,] entrara na minha vida pelos relatos dos soldados, era um dos meus temas preferidos quando andava de noite pelos postos de sentinela, conversava com eles, enquanto olhávamos para o interior da mata, iluminada a petromax. Esta companhia ficou no Enxalé até Abril de 1967, seguir-se-á a CART [, e não  CCaç, ] 1661 [, a que pertenceu o nosso camarada Abel Rei, autor do livro Entre o paraíso e o inferno: de Fá a Bissá, Memória da Guiné, 1967/68." (...)




Guiné > Zona Leste > Enxalé > CCAÇ 1439 > Set de 1966 > Foto 1 > Na messe: 1 - Cap Mil Pires, Cmdt da Companhia [CCAÇ 1439]; 2 - Alf Mil Sousa; 3 - Alf Mil Zagalo; 4 - Médico do Batalhão; 5 - Eu [, Alf Mil Henrique Matos, Cmdt Pel cAÇ nAT 52];  6 - Alf Mil Marchand, Cmdt do Pel Caç Nat 54; 7 - Fur Mil Antunes, falecido em combate; 8 e 9 - Fur Mil Monteiro e Altino, do meu Pelotão.

Foto: Fur Mil Viegas, do Pel Caç Nat 54. Cortesia  e legenda do Henrique Matos





Foto 2 > Na enfermaria > Copos com pessoal da Companhia: de camuflado o Alf Mil Crisóstomo, ao lado estou eu de cigarro nos dedos (para variar); por trás do Crisóstomo, está o Alf Mil Freitas.

Foto: Leiria, Condutor da CCAÇ 1439. Cortesia e legenda do Henrique Matos


2. Comentário de L.G.:

O João Crisóstomo é um português das Arábias....Um dos muitos camaradas nossos que, depois do regresso da guerra, fez-se à vida, e quis conhecer o mundo largo e farto...Que na casa materna, a nossa Pátria, não cabiam todos...ou só cabiam alguns.  A história, invulgar, deste nosso camarada, vim a descobri-la na Net... Confirma-se que é um militante de causas nobres (Gravuras Rupestres de Foz Coa, Memória de Aristides Sousa Mendes, autodeterminação de Timor Leste e do Sahara Ocidental).

É o primeiro a inaugurar esta série dos Camaradas na diáspora (que, de resto, já são bastantes, na nossa Tabanca Grande).

O João ainda não faz parte, formalmente, da nossa Tabanca Grande, aguardando-se a sua resposta ao convite que lhe foi endereçado pelo Carlos Vinhal.

Peço à jornalista Maria João Veloso, autora da prosa (em português e inglês),  que me deixe, com a devida vénia, citar alguns (largos) excertos... A artista e o retratado bem o merecem (Os nossos leitores farão depois o favor de ler o texto na íntegra e comentá-lo):

Up Magazine > Português no Mundo > João Crisóstomo - Nova  Iorque > 22/12/2009  [ Texto: Maria João Veloso; Foto: Marisa Cardoso, editada com a devida vénia]

(...) Chamam-lhe o mordomo activista. A viver em Nova Iorque há 34 anos, João Crisóstomo gasta os tempos livres a lutar por causas em que acredita. Os finais felizes para as gravuras de Foz Côa e da autodeterminação do povo de Timor-leste, contaram com a sua ajuda. Um par de causas apenas, entre tantas outras que tem abraçado.


(...) João Crisóstomo cresceu numa família com grande tradição católica. Muitos dos seus parentes seguiram a vocação religiosa e dedicaram a vida ao sacerdócio. Ele próprio, na juventude, frequentou um seminário de franciscanos, mas acabou por seguir outro rumo. Deste percurso, ficou a vontade de ajudar o semelhante: “Não sou um católico fervoroso, mas a base da minha vida é seguir a palavra de Cristo”, admite. Pode dizer-se que, nas últimas décadas, o português radicado em Nova Iorque se tem dedicado a causas quase sempre relacionadas com Portugal ou os portugueses.


Se hoje em Foz Côa existe o maior museu paleolítico ao ar livre do mundo, João Crisóstomo tem a sua quota-parte de responsabilidade, através da campanha internacional que lançou, em 1995, apelando a que não afogassem este santuário de arte rupestre. “O caso, para mim que vivo no estrangeiro, foi uma surpresa. Não fazia a mínima ideia da existência de Foz Côa e, quando li o artigo no New York Times, achei que nos EUA podia dar alguma ajuda.”


O emigrante publicou então uma carta aberta ao editor do periódico nova-iorquino que explicava o que se estava a passar em Portugal. Mandou também uma outra carta, a Boutros Ghali, então secretário-geral da ONU, onde mostrava a sua preocupação com o facto das obras da barragem de Vila Nova de Foz Côa obrigarem à submersão das figuras. O Times, a BBC, o Le Monde e o Liberation, deram-lhe um grande apoio. Da mesma forma, chegaram a Portugal epístolas suas para jornais como o Público, o Expresso, ou o Diário de Notícias. (...)

O percurso do activista português é no mínimo sui generis. Saiu de Portugal para a Europa para aprofundar os conhecimentos em línguas, tencionando depois regressar e tornar-se profissional de turismo. Mas a vida reservava-lhe várias surpresas. Andou por Inglaterra, França e Alemanha, sempre a trabalhar na área da hotelaria, tirando em simultâneo cursos de inglês e francês. Na década de 1970 rumou ao Brasil, onde começou por trabalhar na recepção de um hotel, aproveitando para tirar um curso de hotelaria na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 

A convite de um professor, foi até aos EUA, onde aproveitou para estudar na universidade de Cornell. Quando se preparava para voltar ao Brasil, soube que havia uma senhora a precisar de um mordomo. Jacqueline Kennedy Onassis. “Foi uma experiência extraordinária. Ela era uma senhora em todos os sentidos. Carinhosa, diplomata, muito inteligente, tinha todos os predicados para ser uma primeira-dama.”

Terá sido um bom exemplo, nos anos em que trabalhou para ela, vê-la ajudar prisioneiros, com iniciativas de vária ordem, entre as quais mandar livros para as prisões, ou não hesitar em sair para a rua com cartazes contra a demolição do Grand Central Terminal, a emblemática estação de comboios nova-iorquina. “Inconscientemente fui influenciado pela sua determinação. Nos movimentos que entretanto lancei ela não teve influência directa, mas o John John Kennedy (o filho) sim”.

A actividade como mordomo, e depois como maître de um banco, pô-lo em contacto com personalidades de relevo americanas, da esfera da alta finança e da política, o que tem facilitado a sua actividade como defensor de causas. 

A seguir a Foz Côa, João Crisóstomo lutou pela independência de Timor-leste. Quando lhe pediram para abraçar a causa do país do sol nascente, conheceu Anne Treseder, advogada norte-americana bastante informada sobre o assunto. Os conselhos que lhe deu levaram-no, por outro lado, à descoberta do cônsul português Aristides de Sousa Mendes que, a partir de Bordéus, salvou milhares de judeus dos campos de concentração durante a segunda Guerra Mundial.

“Para ajudar Timor-Leste, impunha-se conseguir o apoio da imprensa. Ora, esta é bastante controlada pela comunidade judaica. Se quer o apoio deles, fale-lhes de Aristides de Sousa Mendes, disse-me a advogada”. O cônsul português em Bordéus tornou-se assim uma porta, e “uma causa apaixonante para mim”. 

O LAMETA – Movimento Luso-americano para a Autodeterminação de Timor-leste –, da qual é presidente, deu seguimento a várias iniciativas de pressão junto das autoridades norte-americanas, como uma petição ao presidente Bill Clinton: “Quando lhe mandei o abaixo-assinado, fazia notar que estavam ali assinaturas conscientes, por exemplo de líderes portugueses e membros prestigiados da comunidade internacional, como Patrick Kennedy (filho de Ted Kennedy).” A contribuição foi decisiva para que a Indonésia mudasse a política em relação a Timor e aceitasse a realização de um referendo, passo em direcção à autodeterminação do povo timorense.

Entretanto, ao conhecer a história de Sousa Mendes, João Crisóstomo começou paralelamente um outro movimento para que se fizesse justiça ao nome do diplomata português que, com um simples carimbo no passaporte, salvou cerca 30 mil vidas, entre as quais as de 10 mil judeus. 

Na exposição Visas For Life, em Junho de 2003, no Museu da Herança Judaica de Nova Iorque, destaca-se Sousa Mendes, embora o mordomo português tenha lembrado ao curador da mostra, a relevância de outros diplomatas portugueses e brasileiros, nomeadamente Luís Martins de Sousa Dantas, Sampaio Garrido, Teixeira Branquinho e Guimarães Rosa, cuja acção diplomática permitiu salvar também milhares de judeus do holocausto.

A acção mais extraordinária desta causa, contundo, aconteceu a 17 de Junho de 2004. Por iniciativa de Crisóstomo – para assinalar o dia em que Sousa Mendes iniciou a concessão de vistos (em 1944) – organizou-se, com o apoio da Fundação Raoul Wallenberg e de vários cardeais, uma missa de Acção de Graças em 22 países, lembrando não apenas o cônsul português, mas também o sueco Wallenberg e o suíço Carl Lutz considerados por Israel como “justos entre as nações”. Em Abril do ano seguinte, aquando dos 50 anos sobre a sua morte, o nosso entrevistado conseguiu também que o “Schindler português” voltasse a ser homenageado no Museu de Herança Judaica.

João Crisóstomo conta-nos que a luta do momento se prende com a independência do Sara Ocidental
: “Dizem que consigo tudo o que quero, mas só trabalhando com muito afinco”. Até hoje, tendo como quartel-general a sua casa, e como “arma” um fax, o mordomo activista tem conseguido mover montanhas.

Maria João Veloso

[ Selecção / revisão / fixação de texto / links:  L.G.]
____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

 10 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5969: Convívios (112): 19º Encontro da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole, Missirá, 1965/67)

12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5983: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (22): As voltas que o mundo dá, graças a um blogue que congrega uma diáspora de combatentes (Beja Santos)

  (**) Vd. poste de 2 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5392: Em busca de... (104): Luís Zagallo (ex-Alf Mil, CCAÇ 1439) - Um pedido de ajuda do João Crisóstomo (EUA) que me encheu de lágrimas (Beja Santos)

Sobre o Luís Zagalo, há uma curta nota na Wikipédia que diz o seguinte: Luís Zagalo [n. 1940, em Lisboa,] é um actor português com uma carreira no teatro, na televisão e no cinema. Em 1993 participou na telenovela "A Banqueira do Povo", em 2001 em "Olhos de Água", em 2003 em "Morangos com Açúcar" e em 2006 em "Floribella". Também fez parte do elenco das peças de teatro cómicas: "Pijama para 6" e "Uma cama para 7". (....)

 Foi também encenador, com conforme cartaz que aqui se reproduz, e onde se vê o Luís a contracenar com o Tozé Martinho. Esteve em cena, por exemplo, no Bombarral, em 31-01-2009 - Comédia “O Meu Menino” - TZM Produções:

"Encenação: Luís Zagalo. Interpretação: Tózé Martinho, Luís Zagalo, Fernanda Sargedas, Inês Simôes, Florbela Meneses, Rita Simões, Daniel Garcia e Gonçalo Bettencourt. Autores: Franz Arnold e Ernest Bach"...  Cartaz reproduzido, com a devida vénia, do sítio da Câmara Municipal do Bombarral, que tem como único propósito homenagear um camarada nosso, atingido pelo infortúnio da doença. O Luís vive hoje no lar na Casa do Artista,

(***) Vd. poste de 13 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3057: A Guerra estava militarmente perdida (26)? A situação político-militar na Guiné. A. Marques Lopes.
 
(...) 10 de Abril [de 1968]– Cerca da meia-noite, ataque do PAIGC ao quartel de Cantacunda, causando um morto e fazendo 11 prisioneiros. Os outros, nove, foram obrigados a abandonar o destacamento. O ataque foi conduzido pelo comandante Braima Bangura (fuzilado em 12 de Julho de 1986, juntamente com Paulo Correia e outros, por ordem de Nino Vieira, sob acusação de tentativa de golpe de Estado em 17 de Outubro de 1985) e teve a conivência do régulo Braima Candé e da população. (...)

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16383: Notas de leitura (869): "Memória de elefante", a literatura de guerra, por António Lobo Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
Quando surgiram "Memória de Elefante" e "Os Cus de Judas" houve a clara perceção de que se tratava de uma nova arremetida literária. Primeiro, a autobiografia cáustica, mas também poética, os sofrimentos pelo amor perdido, a crítica acerada ao pindérico do funcionamento da instituição psiquiátrica: "A sala de consultas compunha-se de um armário em ruína roubado ao sótão de um ferro-velho desiludido, de dois ou três maples precários com o forro a surgir dos rasgões dos assentos com cabelos por buracos de boina, de uma marquesa contemporânea da época heróica e tísica do Dr. Sousa Martins".
É no seu romance de estreia que Lobo Antunes convoca recordações da sua vivência angolana e testemunha com irrecusável frontalidade o que pensa sobre guerra que travámos em África.

Um abraço do
Mário


"Memória de elefante", a literatura de guerra, por António Lobo Antunes

Beja Santos

“Memória de Elefante” é o primeiro romance de António Lobo Antunes, obra marcadamente autobiográfica, temos aqui o olhar do psiquiatra pelos seus doentes, pela instituição onde trabalha, acompanhamos o seu sofrimento no processo da sua separação conjugal. Obra por vezes dilacerante, acompanhamos uma quase via-sacra de quem anda ao abandono à procura de pistas para o futuro, e depois de muitas ínvias incursões e deambulações culminará num processo da redescoberta, numa autêntica profissão de fé, assim: “Amanhã recomeçarei a vida pelo princípio, serei o adulto sério e responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda, chegarei a tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo para tranquilizar os pacientes, mondarei o meu vocabulário de obscenidades pontiagudas”.

Será na obra seguinte “Os Cus de Judas”, também publicado no final da década de 1970, que Lobo Antunes revelará, com absoluta crueza, e com aspetos pícaros e burlescos, a sua experiência como médico em Angola. A seu tempo, procuraremos glosar o fundamental deste romance, agora é só para destacar as referências que ele faz à guerra em “Memória de Elefante”.

Tudo começa com uma conversa entre colegas, um médico pergunta-lhe se ele se vê a comer à mesa com um carpinteiro, ele responde: “Porque não?”, o que desaustina o outro, que o apoda de anarquista, de marginal, de alguém que aprova a entrega do Ultramar aos pretos. Segue-se uma tremenda catilinária de Lobo Antunes:  
“Que sabe este tipo de África, interrogou-se o psiquiatra à medida que o outro, padeira de Aljubarrota do patriotismo à Legião, se afastava em gritinhos indignados prometendo reservar-lhe um candeeiro da avenida, que sabe este caramelo de 50 anos da guerra de África onde não morreu nem viu morrer, que sabe este cretino dos administradores de posto que enterravam cubos de gelo no ânus dos negros que lhes desagradavam, que sabe este parvo da angústia de ter de escolher entre o exílio despaisado e a absurda estupidez dos tiros sem razão, que sabe este animal das bombas de napalm, das raparigas grávias espancadas pela Pide, das minas a florirem sob as rodas da camionetas em cogumelos de fogo, da saudade, do medo, da raiva, da solidão, do desespero? Com sempre que se recordava de Angola um roldão de lembranças em desordem subiu-lhe das tripas à cabeça na veemência das lágrimas contidas: o nascimento da filha mais velha silabado pela rádio para o destacamento onde se achava, primeira maçãzinha de oiro do seu esperma, longas vigílias na enfermaria improvisada debruçado para a agonia dos feridos, saíra exausto a porta deixando o furriel acabar de coser os tecidos e encontrar cá fora uma repentina amplidão de estrelas desconhecidas, com a sua voz a repetir-lhe dentro – Este não é o meu país, este não é o meu país, este não é o meu país, a chegada às quartas-feiras do avião do correio e da comida fresca, a subtil e infinitamente sábia paciência dos luchazes, o suor do paludismo a vestir os rins de cintas de humidade pegajosa, a mulher vinda de Lisboa com o bebé de surpreendentes íris verdes para viajar com ele para o mato, sua boca quase mulata a sorrir comestível na almofada (…) durante vinte sete meses morei na angústia do arame-farpado por conta das multinacionais, vi a minha mulher a quase morrer do falciparum, assistir ao vagaroso fluir do Dondo, fiz uma filha na Malanje dos diamantes, contornei os morros nus de Dala-Samba povoados no topo pelos tufos de palmeiras dos túmulos dos reis Gingas, parti e regressei com a casca de um uniforme imposta no corpo, que sei eu de África?”.

E o romance segue o seu curso, Angola agora está longe, a memória deambula pela infância, mas a vivência angolana, o profundo afeto reacende-se, fulminante:
“Como em África, pensou ele, exatamente como em África, aguardando a chegada miraculosa do crepúsculo do jango da Marimba, enquanto as nuvens escureciam o Cambo e a Baixa do Cassanje se povoava do eco dos trovões. A chegada do crepúsculo e a do correio que a coluna trazia, as tuas compridas cartas húmidas de amor. Tu doente em Luanda, a miúda longe de ambos, e o soldado que se suicidou em Mangando, deitou-se na camarata, encostou a arma ao queixo, disse Boa-noite e havia pedações de dentes e de osso cravados no zinco do teto, manchas de sangue, carne, cartilagens, a metade inferior da cara transformada num buraco horrível, agonizou quatro horas em sobressaltos de rã, estendido na marquesa da enfermaria, o cabo segurava o petromax que lançava nas paredes grandes sombras confusas. Mangando e os latidos dos cabíris nas trevas, cães esqueléticos de orelhas de morcego, madrugadas de estrelas desconhecidas, a soba de Dala e os seus gémeos doentes, o povo para a consulta nos degraus do posto a tiritar paludismo, picadas destruídas pela violência da chuva. Uma ocasião estávamos sentados a seguir ao almoço perto do arame, naquela espécie de lápide funerária com os escudos dos batalhões pintados, e eis que surgiu na estrada da Chiquita um espampanante carro americano coberto de pó com um senhor careca dentro, um civil sozinho, nem Pide, nem administrativo, nem caçador nem brigada da lepra, mas um fotógrafo, um fotógrafo munido dessas máquinas de tripé das praias e das feiras, inverosímil de arcaica, propondo-se tirar o retrato a todos, isolados ou em grupo, presentes para enviar carta à família, recordações da guerra, sorrisos desbotadas do exílio. Não havia comida para bebés em Malanje e a nossa filha tornou a Portugal magra e pálida, com a cor amarelada dos brancos em Angola, ferrugenta de febre, um ano a dormir em cama de bordão de palmeira junto das nossas camas de quartel, estava a fazer uma autópsia ao ar livre, por via do cheiro quando me chamaram porque desmaiaras, encontrei-te exausta numa cadeira feita de tábuas de barrica, fechei a porta, acocorei-me a chorar ao pé de ti repetindo Até ao fim do mundo, até ao fim do mundo, até ao fim do mundo, certo da certeza de que nada nos podia separar, como uma onda para a praia na tua direção vai o meu corpo, exclamou o Neruda e era assim connosco, e é assim comigo só que não sou capaz de to dizer ou digo-to se não estás, digo-to sozinho tonto do amor que te tenho, demais nos ferimos, nos magoámos, nos tentámos matar dentro de cada um, e apesar disso, subterrânea e imensa, a onda continua e como para a praia na tua direção o trigo do meu corpo se inclina, espigas de dedos que te buscam, tentam tocar-te, se prendem na tua pele com força de unhas, as tuas pernas estreitas apertam-me a cintura, subo a escada, bato ao trinco, entro, o colchão conhece ainda o jeito do meu sonho, penduro a roupa na cadeira, como uma onda para a praia, como uma onda para a praia, como uma onda para a praia, na tua direção vai o meu corpo”.

Tratava-se de uma escrita que anunciava uma rutura em formas e conteúdos, como se veio a comprovar nas dezenas de livros que se seguiram a esta auspiciosa estreia.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16380: Notas de leitura (868): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VI: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (II): Na margem direita do rio Corubal, na mata do Fiofioli: «¿Tú piensas aguantar la mecha esta?, olvídate, que no duras ni tres meses" / "Tu pensas aguentar esta ratoeira? Esquece, pois não duras nem três meses”...

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12565: O Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - As acções especiais durante o segundo semestre de 1973 (parte I) (Jorge Araújo)

1. Mensagem do Jorge Araújo (ex-Furriel Mil. Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 25 de Novembro de 2013:

Caríssimo Camarada Luís Graça,
Os meus melhores cumprimentos.
Depois de três narrativas tendo por enquadramento histórico a «Ponta Coli» [Postes: 9698; 9802 e 12232], eis outra, agora referente à presença dos camaradas militares da CART 3494 na «Ponte do Rio Udunduma».
Entre a “Ponta…” e a “Ponte…” o que muda é a vogal, uma vez que a substância da nossa missão era a mesma: «SEGURANÇA», mas em diferentes pontos [locais] na Estrada Xime-Bambadinca, afastados, entre si, meia-dúzia de quilómetros.
Ora leiam a 1.ª parte.

Obrigado
Jorge Araújo
Nov/2013


O DESTACAMENTO DA PONTE DO RIO UDUNDUMA 
(XIME-BAMBADINCA) 

- As acções especiais durante o 2.º semestre de 1973 [parte I] -

1. A génese da segurança à Ponte do Rio Udunduma 
 - Antecedentes históricos 

A história diz-nos, enquanto memória de um passado que continua presente, que a segurança à 1.ª Ponte [velhinha] do Rio Udunduma, situada na Estrada Xime-Bambadinca, teve o seu início no dia 29 de Maio de 1969, 5.ª feira, na sequência da dupla acção do PAIGC, levada a cabo na noite do dia anterior (28/29Mai69) por dois bigrupos (cerca de 100 elementos). Essas duas acções tiveram como alvos o ataque ao Aquartelamento de Bambadinca, sede, à época, do BCAÇ 2852 (1968/70), e, simultaneamente, à Ponte do Rio Udunduma, situada a cerca de quatro quilómetros desta localidade, a qual foi dinamitada, resultando desse acto ter ficado parcialmente danificada, conforme se pode observar nas imagens a baixo.

Foto 1 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma – Jul/1973] – imagem de como ficou a ponte velha na sequência da explosão de 28Mai1969, obtida ao nível do solo.

Foto 2 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma – Jul/1973] – imagem da ponte velha, obtida da nova estrada onde foi construída uma nova ponte sobre o rio, inaugurada entre finais de 1971 e início de 1972. 

Os primeiros operacionais das NT a avançar para esse local foram os do 3.º GComb da CART 2339 (1968/69), sediada em Mansambo, sob o comando do Furriel Carlos M. Santos (Vd Postes: 7459 e 7859).

Foto 3 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma – Jul/1973] – imagem da estrada velha, assinalando-se a ponte semidestruída em 1969, e Bambadinca, ao fundo, como local mais próximo, a quatro quilómetros desta. Na linha do horizonte, vê-se a nova estrada na qual é possível contar uma coluna de mais de uma dezena de viaturas civis, em direcção ao Cais do Xime. 

Recuperado o controlo daquela pequena fracção de terreno circunscrita ao afluente do Geba e da bolanha contígua, a Ponte do Rio Udunduma, mesmo depois de ter ficado bastante danificada, não mais voltou a estar/ficar desprotegida até ao fim da guerra de guerrilha [Abril/1974], devido à decisão de aí se instalar uma força militar [especial] que, com o decorrer do tempo, haveria de dar lugar à organização de um Destacamento [amostra de… ou mini…].

Entretanto, uma nova ponte haveria de ser construída a seu lado, a poucas dezenas de metros, maior e perfeitamente adequada ao grande fluxo rodoviário, civil e militar, que diariamente circulava nesta estrada, com ligação a toda a zona leste do território, com maior destaque para as localidades de Bafatá, Nova Lamego, Piche, Canquelifá, Galomaro e Saltinho. Segundo julgo saber, a sua construção esteve a cargo da empresa Tecnil, e a sua inauguração deverá ter ocorrido entre finais de 1971 e início de 1972.

Foto 4 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma – Jul/1973] – imagem da nova ponte construída pela empresa Tecnil. Ela foi obtida da ponte velha.

Durante cinco anos, muitos foram os camaradas que aí permaneceram vigilantes, num contexto desprovido de qualquer retaguarda de apoio militar, em que cada um de nós estava completamente abandonado à sorte da divina providência e à sua couraça, tendo como mais-valia a capacidade de sobrevivência, pois se tivesse acontecido algum ataque, ele seria sempre de surpresa, e, por esse método, nem os peixinhos se salvavam. Em suma: miserável e degradante, já que não tinha rigorosamente nada. Ou melhor, tinha o que as imagens abaixo deixam entender.

Foto 5 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma – Jul/1973] – imagem de um buraco aberto no chão, coberto de troncos de palmeira, terra e chapas de zinco a cobri-los, protegido no exterior com bidões de gasóleo cheios de terra, com uma pequena abertura, tendo no seu interior uma cama de ferro, especial do mobiliário militar, com colchão adequado …a um sono tranquilo [que enorme ironia].

A cama tinha um mosquiteiro comprado em Bafatá, nas “libanesas”. Este acabaria por ter uma dupla função, na medida em que, protegendo-nos dos mosquitos e das melgas, servia também de cama elástica e/ou trampolim para treino de flexibilidade e destreza dos ratos do mato que nos visitavam durante a noite, em sessões contínuas. Para além desta actividade físico-desportiva em ginásio coberto, sem necessidade de inscrição prévia ou celebração de contrato de fidelização, a equipa de roedores ainda tinha a pouca vergonha de nos levar os sabonetes e as meias para a sua comunidade, algures nas redondezas, certamente muito importante na sua higiene.

Era, então, um contexto maravilhoso … e com muita animação.

Foto 6 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma] – o mesmo chalé T0 quatro anos antes, com o camarada furriel Humberto Reis, do 2.º GComb da CCAÇ 12, em momento de reflexão (P7481), aguardando… talvez a passagem do carteiro? ou, ainda, uma boleia para a metrópole? OU…? Só o próprio nos poderá dizer!

Entre o tempo das fotos 5 e 6 [quatro anos], outros camaradas por lá passaram de diversos Grupos de Combate destacados das Unidades instaladas naquele Sector (L1), considerado um dos de maior vastidão em todo o TO, nomeadamente: CART 2339 (1969), de Mansambo – CART 2520 [1969 - 2 secções], do Xime – CCAÇ 12 [1969-71], de Bambadinca – PEL CAÇ NAT 52 [1972] – PEL CAÇ NAT 63 [Out/1972] – CART 3493 [Mar/1973 - 2 secções], de Mansambo – CART 3494 [Abr/1973-74 - 1 secção +], de Mansambo-Xime.


2. As acções especiais durante o 2.º semestre de 1973 

Com a transferência do Xime para Mansambo, ocorrida nos primeiros dias de Março de 1973, a CART 3494, através dos seus diferentes GComb, passou a ter uma agenda e missões muito distintas das que tinha tido anteriormente no Xime, o que é perfeitamente natural e normal, pois não havia [não há] dois contextos iguais.

No nosso caso, foi-nos atribuída mais uma missão especial: a de comandar uma “secção +” do meu pelotão [o 1.º], num total de doze elementos, com o objectivo de proteger a(s) Ponte(s) do Rio Udunduma, actividade que registava já quatro anos.

Avançámos com armas e [poucas] bagagens, na medida em que as condições logísticas e físicas do local eram incrivelmente pouco dignas e, por essa razão, um desafio permanente à superação de qualquer ser mortal.

Não havia nada… mas mesmo nada… com excepção de capim, três buracos no chão, muitos mosquitos e alguns ratos, conforme relatos anteriores. Electricidade cá tem. Água cá tem. Comida cá tem. Mas criatividade e improvisação… muita.

Dois petromax e a claridade da lua; alguns lustres de garrafas de cerveja; poucas velas de cera, reforçadas com meia-dúzia de isqueiros [os dos fumadores], era esta a panóplia de instrumentos que iluminavam os nossos olhos e ideias e aqueciam, simultaneamente, os nossos corações, durante as noites. Mas, como o ser humano é um ser de assimilação e de acomodação [tal como se verifica nos tempos de hoje], as semanas e os meses lá foram passando ao ritmo de… um dia de cada vez.

Esse ano de 1973 foi um ano muito duro para todos nós, militares no CTIG. E no local da Ponte do Rio Udunduma não foi diferente ou excepção. As orientações recebidas dos meus superiores, em particular do comando da CCS, de quem o “grupo especial” dependia logisticamente, assentavam num dualismo cartesiano [de René Descartes, 1596-1650], construídas na ideia de que de dia era para trabalhar, à noite era para estar vigilante. Enfim… já passaram quarenta anos.

Como não fomos para a Guiné em viagem de turismo, as alternativas eram escassas ou quase nulas, pelo que, a bem da defesa pessoal e da melhoria das condições de vida naquele contexto, lá metemos as mãos à(s) obra(s), levando-nos a alterar, significativamente, a sua paisagem por via de algumas benfeitorias.

Dito isto, passaremos em revista três dessas acções especiais, organizadas por fases, e que completam a primeira parte desta história da nossa vida colectiva.


A) – FECHO DO CONDOMÍNIO…


Fotos 7 e 8 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma] – a primeira acção especial desenvolvida por elementos do 1.º GComb, da Cart 3494 [um grupo constituído por uma dúzia de militares = a 1 secção +], foi a delimitação do território, do então designado «Destacamento da Ponte», ou, ainda, por «Condomínio da Ponte». Merece relevo a elevada capacidade técnica de todos os seus executantes. [O 1.º, na foto 8, é o soldado Joaquim Cerqueira, do lugar da Valinha - Amarante].

Tratou-se de uma experiência de alto valor pedagógico, na justa medida em que fez apelo à motricidade fina do efectivo aí residente, por via de não existirem protecções das mãos, vulgo luvas, na manipulação do arame farpado. De referir, que esta acção aconteceu na época das chuvas.


B) – CONSTRUÇÃO DE NOVAS MORADIAS…


Fotos 9 e 10 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma] – as imagens dão conta do modelo de arquitectura da nova moradia T1. Era rectangular, com duas águas, e tinha dois quartos e uma sala de jantar, mas não havia comer. Os alimentos, confeccionados em Bambadinca, na CCS, chegava-nos às diferentes horas do dia, segundo a sequência das refeições. 

O edifício foi construído junto ao caminho da “estrada antiga” [picada].
Como estará hoje?


C) – CONSTRUÇÃO DA “ROTUNDA DA PONTE” – A 1.ª NO MATO …


Fotos 11 e 12 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma] – as imagens referem-se à «Rotunda da Ponte» que decidimos construir [sem projecto, logo sem aprovação autárquica] como ícone da CART 3494, através da reprodução do seu símbolo. Para a sua construção foi utilizado o cimento sobrante da moradia e as pedras foram retiradas dos espaços envolventes da nova ponte. Para sinalizar a aproximação à rotunda foi pintada a base [disco] de um bidão de gasóleo com “obrigatório circular” e colocado em local visível, na extremidade de um tubo de ferro. Como curiosidade, todos os veículos que por lá passavam [em particular o jipe do CMDT OP do BART 3873], os seus condutores cumpriam o código da estrada. 


D) – INSTALAÇÕES DE APOIO…

Foto 13 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma] – imagem referente às óptimas condições higiénicas do aldeamento… de muitas estrelas… sobretudo à noite.

É possível, ainda, observar os nossos animais da/de companhia, em processo de socialização… e de solidariedade.

Com esta imagem, damos por concluída a primeira parte da história referente à nossa passagem pela Ponte do Rio Udunduma – 2.º semestre de 1973.

Espero que tenham gostado de a ler, independentemente de aqui e ali ter utilizado alguma ironia e imagens metafóricas, e de ver as imagens seleccionadas.

Como complemento, acredito que a narrativa tenha servido, quiçá, como elemento de comparação com um vasto leque de outros exemplos que constam do currículo de muitos de Vós, e que ainda estamos a tempo de dar conta na nossa «Tabanca».

Um forte abraço para todos, com muita saúde e energia.
Jorge Araújo.
Nov/2013

terça-feira, 18 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19899: 15 anos a blogar desde 23/4/204 (9): o ataque a Sare Banda, destacamento da CART 1690 (Geba, 1967/69), em 8 de setembro de 1968: o alf mil Carlos Alberto Trindade Peixoto e o fur mil Raul Canadas Ferreira jogavam às cartas, à luz de petromax, foram mortos por uma roquetada (A. Marques Lopes)



Guiné > Região de Bafatá >  Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamentos e aquartelamentos > 1968 > A CART 1690, com sede em Geba, tinha vários destacamentos: Banjara, Cantacunda, Sare Banda, Sare Ganá... Os destacamentos não tinham luz eléctrica e as condições de segurança eram precárias. O IN tinha uma importante base em Sinchã Jobel, a oeste de  Geba, a sul de Banjara, a sudeste de Mansabá. (*)

Infografia: © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados.





Guiné > Região de Bafatá >  Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > 1968 > O destacamento não tinha população civil e era defendido por um pelotão da CART 1690. Distava 45 km de Geba. O ataque a Banjara, a 24 de julho de 1968, às 18h00, já aqui foi descrito há 14 anos por A. Marques Lopes.


As instalações que se veem na foto pertenciam à antiga serração do empresário Fausto Teixeira ou Fausto da Silva Teixeira,
um dos primeiros militantes comunistas a ser deportado para a Guiné, em 1925,  dono de modernas serrações mecânicas aqui, em Fá Mandinga e em Bafatá, a partir de 1928, exportador de madeiras tropicais, colono próspero e figura respeitável na colónia em 1947, um dos primeiros a ter telefone em Bafatá, amigo de Amílcar Cabral, tendo inclusive ajudado o Luís Cabral a fugir para o Senegal, em 1960...




Guiné > Região de Bafatá > Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > 1968 > O abastecimento das NT era deficiente, pelo que se recorria aos "produtos naturais" da região...

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Bafatá > Sare Banda > 2001 > Restos do antigo destacamento de Sare Banda > Na foto, o ex-presidente da Câmara Municipal de Chaves Altamiro Claro, membro da nossa Tabanca Grande, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3548 / BCAÇ 3884 (Geba, 1972/74).

Foto (e legenda): 
© Altamiro Claro (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de abril de 2006 > Uma bomba da FAP (Força Aérea Portuguesa), das muitas que foram lançadas sobre a base do PAIGC, durante a guerra colonial, e que não chegaram a explodir. Na foto, o nosso amigo e camarada A. Marques Lopes. Em finais de 1967, Sinchã Jobel passou a ser uma ZLIFA (Zona Livre de 
Intervenção da Força Aérea). Ficava no regulado de Mansomine, entre Mansabá e Bafatá. A foto, histórica, é do organizador desta viagem, do Porto a Bissau, em abril de 2006, o Xico Allen [ex-1.º cabo at inf, CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada, 1972/74]. Levou o jipe, que lá ficaria para futuras viagens. O grupo regressaria depois de avião. Acompanhou, em 22 de abril de 2006, o A. Marques Lopes neste regresso, emocionante, à mítica Sinchã Jobel. (*)

Foto (e legenda): © Xico Allen (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Bafatá > Sare Banda > 2001 > Restos do antigo destacamento de Sare Banda > 22 de abril de 2006, "a caminho de Sinchã Jobel"


Fotos (e legenda): © A, Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Um ataque a Sare Banda, em 8 de setembro de 1968

por A. Marques Lopes


(i) amigo e camarada, um histórico da nossa Tabanca Grande, com 240 referências no blogue;

(ii) lisboeta, filho de pais alentejanos, que vive em Matosinhos;

(iii) cor art DFA, na reforma, ex-alf mil art, CART 1690, Geba, e CCAÇ 3, Barro (1967/68)];

(iv) ferido em combate e evacuado para o Hospital Militar Principal, na Estrela, onde esteve em tratamento durante nove meses, voltando depois ao TO da Guiné para completar a sua comissão de serviço; 

(v) em abril de 2006, (re)visitou Guiné-Bissau, num viagem de grupo organizada pelo Xico Allen; 




Sare Banda estava perto de Sinchã Jobel, e é natural que fosse atacada. O alferes morto foi o Carlos Alberto Trindade Peixoto, o meu segundo substituto [, o "Aznavour", por ser parecido com o Charles Aznavour, sendo natural de Moçamedes, Angola]. O outro morto foi o fur mil Raul Canadas Ferreira [, natural da metrópole]. Mas as circunstâncias da morte deles não estão devidamente relatadas. (**)


Foi assim: este, como todos os destacamentos da CART 1690, não tinham luz eléctrica, nem mesmo um miserável gerador. Eles estavam os dois numa tenda a jogar às cartas, com um petromax aceso. Para os guerrilheiros foi muito simples, foi só apontar o RPG. 

As fotografias de Sare Banda que mando tirei-as em Abril 2006, quando a caminho de Sinchã Jobel, passando por Geba, Sare Ganá e Sinchã Sutu.

8 de setembro de 1968 : desenrolar da ação

(i) Acção inicial do IN

Em 8 de setembro de 1968, às 20h21, um numeroso grupo IN, estimado em cerca de 100 elementos instalados em semi-círculo nas direcções NE-SW e SE-NW, atacou o destacamento de Sare Banda com o seguinte armamento:

- Canhão s/recuo- Morteiro 82
- Lança granadas RPG-2
- Lança granadas P-27 "Pancerovka"
- Metralhadoras pesadas
- Metralhadoras ligeiras
- Armas automáticas
- Armas semi-automáticas



O ataque foi iniciado com um tiro ao canhão S/R e dois Lança Granadas Foguete, dirigidos contra a cantina e depósitos de géneros que atingiram mortalmente o Alferes, Comandante do Destacamento e um furriel e provocaram ferimentos numa praça. 

Estes tiros iniciais do IN atingiram e destruíram ainda o mastro da antena horizontal do rádio, ficando assim o destacamento de comunicações cortadas com toda a rede de Geba. 

No seguimento da acção do IN atingiu com uma granada incendiária uma barraca coberta por 2 panos de lona de viaturas pesadas, onde costumavam dormir vários elementos das NT por não caberem todos nos abrigos, o que provocou a destruição de todo o material lá existente e iluminação das posições das NT.


(ii) Reação das NT


a) Das forças do destacamento



Após a surpresa inicial, os elementos que se encontravam fora dos abrigos correram para os mesmos e reagiram imediatamente ao ataque IN. Não obstante terem ficado sem o seu Comandante e sem comunicações logo aos tiros iniciais, nunca perderam a calma e o moral, opondo tenaz resistência aos intentos do IN. 

Refira-se que, logo no início da reacção, as NT atingiram com tiros de morteiro a guarnição IN do canhão s/r,  calando-o definitivamente, e em determinada altura do ataque repeliram energicamente uma tentativa de penetração de elementos IN ao destacamento, que para o efeito haviam conseguido chegar junto da rede do arame farpado. 

Essa reacção, feita só à base de tiros de espingarda G-3 e granadas de mão em virtude de se ter avariado o Lança Granadas Foguete (bazuca, 8.9), foi verdadeiramente eficaz e decisiva para o desenrolar dos acontecimentos, pois o IN foi obrigado a recuar deixando no terreno 3 mortos, além de armamento e arrastado consigo outros elementos feridos e mortos.

O IN sempre perseguido pelo fogo das NT recuou cerca de 200 metros, instalando-se entre Sare Banda e Sinchã Sutu, donde continuou a flagelar o destacamento até cerca das 22h30 (1 hora e 30 minutos depois do início do ataque), altura em que desistiu dos seus intentos retirando definitivamente.

b)Das forças de Geba (CART 1690)

Em virtude das péssimas condições atmosféricas não foram ouvidos em Geba os rebentamentos de forma a poderem ter sido localizados. Refira-se ainda que o facto do destacamento de Sare Banda ter ficado sem comunicações logo de início do ataque, só permitiu que em Geba se tivesse conhecimento do sucedido cerca das 09h02, do dia seguinte,  de 9 de setembro de 1968, e através de 2 praças do destacamento que haviam vindo a pé voluntariamente comunicar a ocorrência.


Prontamente saiu de Geba uma coluna de socorro que, ao atingir Sare Banda às 017h45, fez um reconhecimento nos arredores seguido de batida de madrugada, mas já não conseguindo contactar com o IN, que havia retirado na direcção de Darsalame e se dirigindo para Sinchã Jobel. 

(iii) Resultados obtidos:

Baixas sofridas pelo IN: 8 mortos confirmados. Muitos feridos sendo possível que hajam mais mortos devido aos rastos de sangue encontrados no carreiro de retirada do IN.


Material capturado ao IN:


- 1 Espingarda semi-automática SIMONOV cal. 7,62 mm
- 1 Espingarda automática G-3 / 7,62 mm
- 1 Granadas de canhão s/r
- 2 Granadas de lança-granadas foguete
- 1 Granadas de morteiro 82 mm
- 2 Granadas de mão ofensivas RG-4
- 8 Carregadores de Met. Lig.
- 2 Fitas de Met. Lig.
- 2 Facas de mato
- 2 Bolsas p/transporte de munições
- 2 Cantis
- Diversas Munições de armas aut.

Além de uma bolsa de medicamentos, com o seguinte material:

- 3 Streptomycin. Sulphite-ampolas de 5.000.000 (Frascos)
- 1 Éter (frasco)
- 1 Mercúrio cromo (frasco)
- 1 Bálsamo (frascos)
- 10 Injecções (desconhecidas em ampolas)
- 178 Aspirinas comprimidos (carteiras)
- 96 Madexposte em comprimidos
- 6 Chinim Sulfur (comp. emb. de 5)
- 5 Codemel (carteiras de 10 Comprimidos)
- 1 Adesivo (rolo)
- 1 Algodão cardado (maço)
- 1 Garrote
- 20 Ligaduras de gaze de 10 cm x 5cm
- 1 Seringa de plástico c/agulha


A. Marques Lopes
Alf Mil da CART 1690 


[Revisão / fixação de texto: LG](***)

____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


5 de outubro de 2015> Guiné 63/74 - P15202: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte V): a partir da Op Invisível, de 18-19/12/1967, passa a ser uma ZLIFA (Zona LIvre de Intervenção da Força Aérea)... O alf mil Fernando da Costa Fernandes, de Santo Tirso, é morto, não sendo possível resgatar o seu corpo, e o soldado Manuel Fragata Francisco, de Alpiarça, é gravemente ferido, aprisionado e levado para Ziguinchor onde é tratado pelo dr. Mário Pádua e mais tarde, em 15/3/1968, entregue à Cruz Vermelha Internacional



(***) Último poste da série > 13 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19887: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (8): O soldado Machado, de etnia cigana: 'Ó Barrelas, pagas-me uma bejeca ?!'... Uma "estória" bem humorada do Mário Pinto (1945.2019)


sexta-feira, 24 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14518: Memória dos lugares (290): Os derradeiros sobreviventes de Ponate (Armando Teixeira da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Armando Teixeira da Silva (ex-Soldado Atirador da CCAÇ 1498/BCAÇ 1876, que esteve em Có, Jolmete, Bula, Binar e Ponate), com data de 7 de Abril de 2015:

Caro Carlos Vinhal:
Os meus melhores cumprimentos, extensivos a toda a Tertúlia.

Teixeira da Silva


OS DERRADEIROS SOBREVIVENTES DE PONATE

Quis o destino que um conjunto de 48 atónitos maçaricos - um pelotão reforçado - da CCAÇ 1498, acabadinha de desembarcar, comparecesse em Ponate a fim de render tropas do BCAV 790 que estavam em mudança para o Quartel de Pelundo.

Assim, após um dia inteiro de marcha, em que as surpresas sucediam a cada instante, surgiu, imperceptível, numa área desmatada, um lastimável aquartelamento nunca antes imaginado.

 Ponate - Vista geral do quartel

Passado o cavalo-de-frisa, depararam com a mais humilhante miséria:
- Um casebre construído em adobes de argamassa, coberto a chapa zincada, para alojamento de pessoal, sem distinção de postos ou classes;
- Duas barracas, em colmo, a servirem de cozinha e refeitório;
- Três atalaias - cinco a seis metros acima do solo - com sentinelas cercadas por bidões de gasolina;
- Quatro paliçadas em cibes carcomidos sitiavam toda a desgraça.

Aonde é que nos viemos meter? – Se estavam atónitos à chegada, estarrecidos ficaram quando o sol se escondeu!
A iluminação era a petróleo: candeeiros Petromax em redor do arame farpado e mechas de gaze - em gargalos de garrafas - na caserna, cozinha e refeitório. No resto, a escuridão era absoluta.

Equipamentos destinados a cuidados de higiene? Nenhuns! – Nada que pudesse garantir saúde, bem-estar físico e mental, de modo a evitar doenças. Em vez de latrinas abriam-se valas, fora do arame farpado, e em vez de duches existiam selhas feitas de barris de vinho, serrados ao meio.
O estado das coisas motivou um lamento: tratam-nos como bandoleiros. - A frase inspirou a criação de um topónimo para colocar, logo nesse dia, à entrada do principal cavalo-de-frisa: “HOTEL BANDIDO DE PONATE”.

Ponate - Junto ao topónimo

Mas o pior ainda era a falta de água. A privação deste precioso líquido sujeitava o pessoal a riscos diários, em deslocações a Bula, percorrendo 13 Km, em cada sentido, com uma cisterna de 1000 litros atrelada.

Ocupando uma área com cerca de 3000 m2 e sem população à vista, o Quartel situava-se nas proximidades da mata de Jol, não muito distante da assombrosa bolanha de Nhaga. – A missão do seu reduzido efectivo consistia em assegurar liberdade de acção entre Bula e o Cais de São Vicente, na margem Sul do rio Cacheu, mantendo-se ao corrente de todos os acontecimentos e em total ligação com o comando do sector.
A segurança das instalações era inquietante: Refúgios ou abrigos, praticamente nem existiam e as paliçadas dificilmente aguentariam um simples ataque. Daí elaborarem um plano de obras a executar em duas fases:
1 – Construção de 3 refúgios subterrâneos, bem como um conjunto de chuveiros e latrina, sem dispensar a reconstrução de todas as paliçadas.
2 - Edificação de uma “casinhota”, em blocos de cimento, para instalação de um gerador eléctrico. - Nada serviu esta edificação, porquanto, embora prometido, o gerador jamais ali apareceu.

Ponate - Abrindo um abrigo subterrâneo - Armando Teixeira da Silva ao meio com a pá

Estas obras realizavam-se sem prejuízo das actividades a desenvolver além do arame farpado, ou seja: escoltas diárias à cisterna da água, patrulhamentos diurnos e/ou nocturnos, inspecções às tabancas e consequentes controlos da população indígena, reconhecimento de trilhos e caminhos, e de quando em vez, montagem de emboscadas. E como se já não bastasse, ainda ajudavam Companhias de intervenção, em operações na confinante e arriscada mata do Jol. Isto é: em Ponate, a missão, além de perigosa, era árdua e difícil.
Até dentro do arame farpado a situação era delicada, sobretudo, pela indigência das instalações e das privações de toda a espécie – mesmo alimentares. Apesar de tudo lá iam sobrevivendo.

 Ponate - Se não fossem os petiscos...

 Ponate - Momento de lazer
Fotos: © Armando Teixeira da Silva
Editadas por Carlos Vinhal

Até que, inesperadamente, uma mensagem, recebida no ANGRC 9, melhora-lhes as expectativas. – Bula comunicava-lhes o fim da sua presença em Ponate. O primeiro a saltar, de contentamento, foi o radiotelegrafista. Outra coisa, porém, ainda estava para vir.
Continuando a tradução da mensagem concluíra-se que o próprio Quartel, simultaneamente, desapareceria do mapa. Jamais uma mensagem fora tão marcante. Acontecimento para comemorarem de modo muito especial - emborcando cerveja até o stock se esgotar.

Assim, abruptamente, extinguiu-se o Quartel de Ponate. Decisão que os maiorais tomaram quando perceberam, a meu ver tardiamente, a evidência dos perigos a que as tropas estavam sujeitas e as condições deploráveis (porventura infra-humanas) em que se encontravam. A mensagem surgiu-lhes ao cair da noite, todavia, a vontade de mudarem de ares era tanta que se dispensaram de dormir. Puseram mãos à obra e foi até ser dia.

Entretanto, já o sol raiava, vêem chegar camaradas especialistas em minas e armadilhas, transportando engenhos explosivos para armadilhar os pontos mais susceptíveis, na expectativa de o IN os virem a despoletar.
Por fim, com as viaturas a abarrotar a seu lado, percorreram, a pé, os 13 Km que os distanciava de Bula, em cujo Quartel já tinham missão determinada.
A história da guerra considerá-los-á os derradeiros sobreviventes de Ponate. - O calendário assinalava, então, 04/Dezembro/1966. - Entretanto a guerra duraria mais sete anos e meio.

Ao que sabemos, jamais outro qualquer Quartel ali foi edificado. Naquele espaço de tempo - superior a 10 meses - houve minas que os feriram, emboscadas que os massacraram, bolanhas que os inundaram, picadas que muito os agastaram, trilhos e caminhos que os emaranharam, tempestades que os atemorizaram. – Todavia, também houve, em abono da verdade, momentos aprazíveis, de amizade e júbilo, que muito os distraíram e estimularam.

 Localização de Ponate. Vd. Carta de Bula 1/50.000

O último efectivo em Ponate:

Agostinho Costa Ferreira
Albino Baptista Barroso
Albino Sá Júnior
Alfredo Lopes Correia
Amadeu Pereira Couto
Amândio Sá Silva
António Ascensão Nascimento
António Beatriz Pedro
António Guilherme Silva
António Joaquim Inverneiro
António José Carneiro Santos
António José Martins Correia
António Mingote Mouco
António Montana Silva
Armando Barbosa Lemos
Armando Teixeira Silva
Carlos Alberto Rodrigues
Carlos Silva Martinho
Daniel Cabaço Sordo
Dias Cabo-verdiano (fur)
Francisco João Viegas Piedade (fur)
Fernando António V. Lisboa
Henrique António Nunes
Hilário Viana Cruz (fur)
Isidro Mesquita Almeida
João de Barros
João Luís Barros Coelho
João Maria José
João Teotóneo Marques Leal
Joaquim Santos Pinto Caldas
Joaquim Vidigueira Ferreira (fur)
Joaquim Luís Barata
José Jorge Sousa Melo (alf)
José Manuel Felício Manco
José Rodrigues Chaves
Lourenço Silva Machado
Manuel Alves
Manuel Alves Martins
Manuel Ferreira Pinto
Manuel Gomes Ferreira
Manuel José Lopes Gonçalves
Manuel Sampaio Leal
Manuel Serafim C. Ferreira
Manuel Silva Loureiro
Mário Pereira Cunha
Orlando Santos Espadaneira
Virgílio Justo Marques
Victor Manuel M. Chaveiro

Armando Teixeira da Silva
ex-Soldado Atirador
CCAÇ 1498/BCAÇ 1876
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14514: Memória dos lugares (288): Gentes do Geba, parte I (A. Marques Lopes, coronel inf, DFA, na situação de reforma, ex-alf mil da CART 1690, Geba, 1967; e da CCAÇ 3, Barro, 1968)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 – P5528: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (26): O “regresso” do Soldado Manuel



1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias (a 26ª), com data de 20 de Dezembro de 2009:


Camaradas,

O autor desta história é desconhecido e o meu "mérito" terá sido encontrá-la num jornal da minha região, jornal esse que foi publicado já lá vão 45 anos.

O texto - posso dizê-lo porque não é meu - é muito bem escrito.

UM EPISÓDIO DE GUERRA NA GUINÉ PORTUGUESA
(O “regresso” do Soldado Manuel)

Na parede de adobe, mal caiada, e onde esverdeadas manchas de humidade alastravam, o calendário (Ano de 1963) marcava uma data: 24 de Dezembro.

Com a janela aberta, por onde apenas entrava, na abafada, sufocante noite tropical, uma suspeita de frescura, o jovem oficial miliciano, à luz de uma vela, escrevia: «… Minha Querida Mãe, são 21 horas e 40…

À luz de uma vela, porque a chama do petromax é alvo demasiado visível para qualquer atirador especial terrorista, alcandorado, ao longe, no cimo de alguma árvore. Mas ouve-se um estampido. Podia bem ser a rolha de uma garrafa de champanhe a saltar…

Ao estampido segue-se, porém o assobio quase imperceptível de uma bala que vai cravar-se na húmida parede de adobe, coisa de um metro acima da cabeça do oficial. Este apaga logo a vela. Depois, às apalpadelas, no escuro, procura o capacete e a pistola.

Quando finalmente sai já o duelo – a tiros de espingarda e rajadas de metralhadora - está a travar-se entre os terroristas (ocultos na floresta) e os seus soldados abrigados por detrás da muralha – só aparentemente frágil – de velhos bidões de gasolina cheios de areia. Entre uns e outros a cerca de arame farpado.

Está isolada a pequena força do destacamento de Caçadores.

O posto mais próximo é a muitos quilómetros de distância. Antes que amanheça, nenhum auxílio podem esperar estes homens. Mas será que os terroristas se aprestam para um ataque frontal? Horas iguais de uma noite abafada e húmida.

Aos soldados e ao oficial também, o que sobretudo os irrita é que aquele inoportuno tiroteio aconteça em noite de Natal, já com a mesa posta para a consoada.

E havia broas, uma galinha assada, algumas garrafas de bom vinho.

A noite, entretanto, povoa-se de clarões – as armas de fogo que disparam incessantemente, assinalando cada segundo com um tiro. E as horas passam.

Mas o jovem oficial nem tempo tem para ver as horas no pequeno mostrador luminoso do seu relógio de pulso. E nem sequer pensa no perigo – ali entrincheirado e tendo pela frente um inimigo bem armado, que a palmos conhece o terreno e vê de noite, como o jaguar.

Agora só pensa naquela carta que teve de interromper: «… são 21 horas e 40…».
Mas quando é que isso foi?

Era noite de Natal. Ele escreveu à luz discreta de uma vela de estearina, algures no mundo , nesse mundo onde não há clarões de armas de fogo, nem assobios de balas, ardiam círios nos altares, centenas de círios, milhares de círios, que não era preciso apagar à pressa no princípio de uma carta…

E agora? Sim. A meia-noite deve estar próxima. Talvez o padre, algures, já esteja a encaminhar-se para o altar. Mas o jovem oficial não o sabe de certeza – e não pode ter um olhar para o mostrador luminoso do seu relógio de pulso. A pistola-metralhadora palpita-lhe nas mãos como se fosse dotada de vida própria e chispas de fogo, desdobradas em leque, correm, segundo a segundo, em direcção à negra cortina de arvoredo.

No mundo em que não há guerra já decerto agora o sacerdote acabou de celebrar a Missa do Galo.

Aqui, o fogo começa, enfim, a esmorecer.

Naturalmente, os terroristas principiam a retirar, para que os aviões ao amanhecer, se viessem bombardear a floresta, já não os encontrem…

Uma a uma, calam-se as armas automáticas do inimigo. Uma a uma, a intervalos certos, como se houvesse, algures no mato, a batuta de um maestro.

Mas será de facto a retirada? Não será antes o silêncio de mau agoiro que sempre antecede a gritaria de um assalto frontal?

Não. É efectivamente a retirada. E devagar, como se lhe custasse a acordar de um pesadelo, o jovem oficial recolhe ao seu quarto, risca um fósforo, acende a vela, atira para um canto o capacete, que está a queimar-lhe a testa, e suado, exausto, com os nervos num feixe, senta-se, de novo, à mesa para escrever: «… pois agora, minha querida mãe, são 3 horas e 20.Eu e os meus soldados tivemos uma noite de Natal muito divertida .Nem imagina… As broas que nos mandou souberam a pouco. E das garrafas mandadas pelo pai diga-lhe que não ficou nem uma gota».


21 horas e 40. 3 horas e 20.

Menos de seis horas na vida de um homem. Mas deitado numa padiola, com uma bala na cabeça, o Manuel, o seu impedido, é um corpo que rapidamente arrefece, como no verso de Fernando Pessoa.
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Agora, no hotel, em Bissau, sentado ao meu lado, almoça. Está no porto o barco que o vai levar de regresso a Lisboa. Trouxe este barco 800 homens. Vai partir com outros tantos, aproximadamente. Os que chegam passam, em camiões, a cantar.

Também cantam os que partem. Entretanto, o jovem oficial diz-me, com simplicidade:

- À minha mãe é que nunca hei-de contar o que foi aquela noite…

Mas logo acrescentando:

- «Agora uns meses à boa vida e depois a África outra vez, como empregado em qualquer empresa de Angola ou de Moçambique: este veneno de África entrou-me para sempre no sangue».

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Artigo não assinado. Publicado em «O ALCOA» em 8 de Fevereiro de 1964 (Ano XVII-Nº.876)


A partir daqui é comigo.

O subtítulo «O “regresso” do Soldado Manuel» é da minha responsabilidade.

“Regresso” no sentido de pesquisa e homenagem à memória deste militar português que terá morrido na noite de Natal do longínquo ano de 1963.

Desde há cerca de 2 anos que tento descobrir dois mistérios que resultam deste artigo de O ALCOA”:

1) Quem é o Alferes Miliciano?

Só pode ser da região de Alcobaça. Regressou à Metrópole num navio que deixou Bissau em Janeiro de 1964.Há um navio que saiu de Bissau em 17 de Janeiro de 1964.

Já localizei as Companhias e Pelotão de Morteiros e AAA que regressaram nessa altura. Esses militares estiveram cerca de dois anos na Guiné onde a guerrilha começa a ter importância no terreno a partir dos primeiros meses de 1963.
(C.Caç. 600, C.Caç. 512, C.Caç. 506, C.Caç. 513, C.Ca. 356, C. Caç. 599.)

Para se ser Alferes Miliciano nesse tempo era preciso ter habilitações literárias no mínimo equivalentes ao 3º. Ciclo dos Liceus (antigo 7º. Ano).

Pesquisei no arquivo da C. M. de Alcobaça os registos de mancebos respeitantes aos anos de 1958, 1959, 1960 e 1961.

Encontrei vários nomes, consegui alguns contactos pessoais mas... nada.

Ou, por outro lado, é o narrador que é da região de Alcobaça e o Alferes Miliciano é de outra região qualquer!?

Passaram mais de 40 anos e posso andar à procura de uma pessoa que já não esteja neste mundo.

2) Quem é o militar que morreu na véspera de Natal de 1963?
Nos registos oficiais do E.M.E. só há um militar das milícias locais que morreu por acidente em 24 de Dezembro de 1963 – JARGA SEIDI, soldado-atirador da CCS/Bat. Baç. 508, em Contubel.

Com nome de Manuel há um registo em 28 de Dezembro de 1963:



MANUEL RAMALHO CAPELAS
1º.CABO-ATIRADOR
CCAV 567
BINAR
DATA DE FALECIMENTO – 28 DE DEZEMBRO DE 1963
FERIDO EM COMBATE
Mortos em Campanha – Guiné – livro 1, pgs.42


Não é impossível um engano nos registos mas não é nada vulgar…

Há outras “incoerências” que não encaixam na história: Binar não é um posto fronteiriço e um primeiro-cabo não era habitual ser “impedido” de um Alferes. Por outro lado a CCav 567 só acabou a sua comissão em meados de 1965!

Resumindo e concluindo:

Passo a minha angústia e o meu mistério à nossa Tabanca Grande.

Alguém alguma vez ouviu alguma coisa deste ataque a uma pequena força de um destacamento de Caçadores na noite de Natal de 1963?

«…Menos de seis horas na vida de um homem. Mas deitado numa padiola, com uma bala na cabeça, o Manuel, o seu impedido, é um corpo que rapidamente arrefece, como no verso de Fernando Pessoa.»

«…Malhas que o Império tece

(O Manuel)

Jaz morto e apodrece…».
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A minha intenção ao evocar o “Soldado Desconhecido” desta história – o Manuel – é acima tudo de homenagem e de respeito.

Se não houver respeito, melhor ainda, se não houver grandeza de alma e memória Portugal não merece os que morreram em seu nome.
Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: