quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1347: Concurso O Melhor Bagabaga (1): Bambadinca (Humberto Reis / Luís Graça)

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Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1969 > Um bagabaga nas imediações de Bambadinca. No topo vê-se o Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


O bagabaga era(é) um dos fenómenos naturais de África, em geral, e da Guiné, em particular, que faziam (fazem) as delícias dos nossos fotógrafos amadores... No nosso tempo, não havia militar que se prezasse que não mandasse para casa uma foto, de pé, garbosamente, - qual Teixeira Pinto, estatuado! - em cima de um bagabaga, uma elevação de terreno que está para a formiga como os Himalaias estão para nós...

Até eu, que era avesso a tirar fotografias e a escrever aerogramas, não escapei à fatal atracção que exercia o bagabaga. Bateram-me uma chapa em cima de um babaga, em pose triunfal, como o caçador colonial de antanho em cima dum mastodonte de um elefante acabado de abater...
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (que é um monumento vivo da lusofonia!), bagabaga (assim que se escreve, sem hífen) é um substantivo, masculino, que significa: (i) térmite; (ii) termiteiro... Trata-se de um vocábulo crioulo que aparece por volta de 1899, e que é de uso escrito e oral entre os lusófonos, em especial Guiné-Bissau e Cabo-Verde.
O temo térmite é a designação comum aos insectos da ordem dos isópetros, de que há cerca de 2200 espécies reconhecidas, e que são particularmente abundantes nos trópicos. São animais sociais, alimentando-se de madeira e outros materiais vegetais, e construindo ninhos, bem visíveis, de estrutura piramidal (termiteiros ou termiteiras). Os bagabagas são, pois, aglomerados de terra e outros resíduos, edificados pelastérmites e que constituem o seu ninho. São muiyto resistentes, mas infelizmente tal como a floresta tropical não resistem aos bulldozers...
Temos a obrigação de ajudar os guineenses a preservar estes monumentos vivos da natureza... Este pequeno concurso (fotográfico) é uma forma de sensibilizar os nossos tertulianos e demais visitantes para o património (natural e edificado) da Guiné-Bissau... Nós, ex-combatentes, quer portugueses, quer do PAIGC, temos um enorme respeito pelo bagabaga: ele fazia parte do nosso cenário de guerra... Hoje deve ser um símbolo da paz e da biodiversidade...
Amigos & camaradas da Guiné: mandem fotos de bagabagas (tenho mais alguns, que vou publicando...), façam os vossos comentários e... votem nos vossos favoritos. Os critérios de apreciação são os vossos: forma, altura, volume, beleza, qualidade da fotografia, etc.

Guiné 63/74 - P1346: PAIGC - Propaganda (1): morte aos colonialistas portugueses e seus cachorros (Carlos Vinhal / Mário Dias / Luís Graça)

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Um guerrilheiro do PAIGC no seu posto de sentinela, na margem de um rio. Fonte: Pelas regiões libertadas da Guiné (Bissau). República Popular da China, Pequim: Edições de Línguas Estrangeira. 1972.

Foto: © Agência de Notícias Xinhua (1972) (com a devida vénia...) (1)





Guiné > Panfleto propaganda do PAIGC, escrito em crioulo (frente e verso). Sem data. A tradução de Mário Dias, reproduzida mais abaixo.

Fotos: © Carlos Vinhal (2006). Direitos reservados.


1. É verdade, João Tunes (2): O nosso blogue não conta a verdade toda, não representa o verso e o reverso da medalha. É inevitavelmente parcelar. Objectivamente, estávamos de um lado. Como em qualquer guerra, há sempre dois lados, duas trincheiras, duas bandeiras, dois exércitos, dois povos... Infelizmente, falamos aqui pouco dos homens e das mulheres, guineenses, caboverdianos e cubanos, que, na Guiné, lutaram contra nós (e nós contra eles). Somos parcos em palavras, quando nos referimos a eles (e elas): IN, inimigo, turras, PAIGC… Uma vez por outro, guerrilheiros, combatentes, militantes… A linguagem era depreciativa, mas no fundo havia respeito e temor pelo inimigo...

Tínhamos uma visão local, maniqueísta e redutora, do conflito: gente de Madina/Belel, escreve por exemplo o Beja Santos em Missirá…Um eufemismo de hoje ? Vizinhos, ao fim e ao cabo. Indesejáveis vizinhos que lutavam pelo controlo de recursos, território, bolanhas, rios, trilhos, picadas e, sobretudo, populações… Fazíamos visitas uns aos outros, de vez em quando. Nada amistosas, por sinal. E a desoras. Às tantas da manhã, ou da noite. Muito raramente ao meio dia. A hora do almoço era sagrada. Só me recordo uma vez termos atacado, justamente em Madina/Belel, um objectivo IN, às duas da tarde... É certo que pagámos caro a quebra do acordo tácito... Porque também havia acordos de cavalheiros naquela guerra que oficialmente não existia... Por outro lado, tínhamos uma estranha maneira de nos cumprimentar quando nos cruzávamos no mato… Às vezes, aleijávamo-nos mutuamente. Às vezes matávamo-nos, uns aos outros.

Que sabíamos nós, uns dos outros ? Muito pouco ou nada. Da gente do mato (sic), conhecíamos as suas armas, sabíamos distinguir o cantar da costureirinha , o matraquear da kalash, o silvo do morteiro… A cor e o feitio das granadas, de RPG ou de canhão sem recuo, com caracteres chineses ou cirílicos (russos)… Mas, e os homens, e as mulheres, as crianças e os velhos que viviam no mato (regiões libertadas, diziam eles) ? Viamo-los, ao longe, quase sempre do ar, a cultivar o arroz na bolanha ou na montar segurança na orla da floresta… Uma vez por ano, fazíamos raides punitivos, queimávamos umas tantas moranças, abatíamos as suas vacas, destruíamos algumas toneladas de arroz… Mas a maior parte dos dias, das semanas e dos meses, ficávamos nos nossos aquartelamentos e destacamentos a guardar a bandeira nacional, o símbolo da nossa soberania, e a curtir a nossa depressão (cacimbados, diziam eles), contando os dias que faltavam para o regresso a casa, ao puto, a milhares de quilómetros de distância...

Quem era essa gente que nos atacava, quase sempre, à socapa, emboscada, escondida atrás das árvores e dos bagabagas, ocultos pelo capim alto ou pelo breu da noite ? Às vezes lá apanhávamos um ou outro, vivo, armado ou desarmado…

Quem era essa estranha gente que nos combatia e que, mais tarde, já lá para o final da guerra, é capaz de gritar, perante as câmaras da televisão francesa, Viva Portugal, abaixo o colonialismo... ?
Vamos começar aqui a divulgar a informação e o conhecimento que temos sobre o PAIGC, que foi objectivamente o nosso inimigo.

2. Mensagem do Carlos Vinhal, de 18 de Novembro de 2006:

Luís: Já agora para compor o ramalhete, envio-te cópia de um impresso (frente e verso) exemplo de acção de contra-psico por parte do PAIGC.

Dá um pouco de trabalho a traduzir, mas é curioso o facto de eles chamarem aos nossos seguidores cachorros de dois pés.

Um abraço

Carlos Esteves Vinhal
Ex-Fur Mil Art MA
CART 2732
Mansabá 1970/72
Leça da Palmeira
Telemóvel > 916032220


3. Mensagem que mandei ao Mário Dias, o nosso assessor principal para as questões étnico-linguísticas da Guiné, o tradutor oficial da nossa tertúlia para o crioulo, fundador dos comandos da Guiné, hoje retirado no Portugal Profundo, dedicando-se à música coral:

(i) Lá terás que que fazer mais um favor aos teus amigos e camaradas, da Guiné o de traduzir isto, que é para continuares a treinar (e não esquecer) o teu crioulo...

(ii) Já agora diz-me se o crioulo do PAIGC era o da Guiné ou o de Cabo Verde... Ou se estava mais ou menos correcto (refiro-me a esta amostra)...

(iii) Como a população do mato era analfabeta, tenho dúvidas sobre a eficácia destes panfletos, que eram dirigidos aos guineenses que estavam do nosso lado... Que achas ?

(iv) O crioulo de Cabo Verde (havia um para cada ilha...) é diferente do da Guiné ?

Boa continuação no Portugal Profundo



Guiné > Bissau > 1959 > Os 1ºs Cabos Milicianos Mário Dias (o primeiro, de pé, do lado direito) e Domingos Ramos (o primeiro da frente, do lado esquerdo). O Mário e o Domingos fizeram juntos a recruta e depois o 1º Curso de Sargentos Milicianos que se realizou em Bissau, em 1959, e no qual participaram os os primeiros filhos da Guiné. Domingos Ramos era filho de um quadro local da administração colonial portuguesa, com o estatuto de assimilado, expressão cínica usada na época pelas autoridades portuguesas. Ao que sugere o Mário, o Domingos ter-se-á alistado nas fileiras do PAIGC, em Novembro de 1960, depois de ter sido vítima de uma grave injustiça enquanto 1º cabo miliciano, por parte de um oficial português (3).

Antes de morrer prematuramente em combate, em 1966, em Madina do Boé, e de tornar-se um dos heróis da luta de libertação nacional, o Domingos haveria de encontrar-se com o seu amigo e ex-camarada de armas Mário Dias, pela última vez, em 1965... Em circunstâncias insólitas... É uma das estórias mais fantásticas que já li sobre a guerra e a grandeza humana que pode haver mesmo numa situação de guerra.... Foi na região do Xitole, na zona entre Amedalai e os rápidos de Cussilinta, perto da estrada Xitole-Aldeia Formosa-Mampatá... Vale a pena reler o segredo que o Mário guardou estes todos e revelou, em primeira mão, aos seus amigos e camaradas de tertúlia (4). Foi um dos momentos altos do nosso blogue (5).

Froto: © Mário Dias(2006). Direitos reservados.



4. O Mário, que é uma jóia de pessoa, regressado do Portugal Profundo, teve a infinita paciência e a grande generosidade de nos traduzir os panfletos. Mais uma vez (6). Aqui vai o texto dele:


O crioulo da Guiné é diferente do crioulo de Cabo Verde em vários aspectos. Na pronúncia - que varia de ilha para ilha - e na existência em Cabo Verde de um vocabulário mais alargado e adaptado à linguagem contemporânea, com a introdução de palavras mais eruditas que facilmente acrioulam.

O crioulo da Guiné tem-se mantido mais fiel às suas origens no português arcaico sendo, portanto, relativamente menos evoluído. Assim, verifiquei, enquanto vivi na Guiné [, entre 1952 e1966, ou seja, desde os 15 anos até ao0s 29], que, qualquer palavra que não existisse no crioulo tradicional, era simplesmente dita na sua versão portuguesa.

Como já tive ocasião de referir, na Guiné o crioulo era apenas falado, não existindo, pelo menos oficialmente, na forma escrita. Aliás, as próprias autoridades não o permitiriam.

Analisando os panfletos editados pelo PAIGC em crioulo, sou levado a concluir que os mesmos, embora no crioulo da Guiné, terão sido escritos por elementos cabo-verdianos. Neles existem vários termos pouco usuais no crioulo da Guiné e, por outro lado, a escrita nem sempre corresponde à pronúncia que eu ouvia por toda a Guiné. Por exemplo mufunessa (que significa azar, desgraça, pouca sorte) sempre ouvi pronunciar mufneza.

Também não me recordo de ouvir alguém dizer morti mas sim morte; nem portuguis mas português; nem cu sé catchuris mas sim cu si (ou sê) catchoros.

É certo que as línguas são vivas e têm a sua própria dinâmica que vai provocando alterações. Porém, tendo eu saído da Guiné em 1966, e os panfletos em análise serem anteriores a 1974, me parece pouco provável diferenças tão notórias em tão pouco tempo. Daí, eu pensar que a escrita dos panfletos seja de alguém de Cabo Verde, tanto mais que na Guiné não existia o crioulo escrito, enquanto em Cabo Verde já os intelectuais dessa antiga colónia se dedicavam à sua escrita e havia já tentativas da criação de uma gramática de crioulo.

Creio que estes panfletos, que apenas seriam lidos por um reduzido número de guineenses alfabetizados, nem sempre poderiam ser globalmente entendidos devido às diferenças no uso de alguns termos bem como no facto de a grafia usada não corresponder fielmente à pronúncia comummente usada na Guiné.

Feito este pequeno preâmbulo, passemos então ao mais importante: a tradução dos panfletos, respeitando, dentro do possível, a pontuação e grafia.


Irmãos que estão nas tabancas e que receberam armas das mãos dos tugas.


Vede bem o que estais a fazer! Pensai bem no perigo em que vos estais a pôr agora,

porque todos os filhos da nossa terra que pegarem em armas contra nós acabarão

mal, mais dia ou menos dia, quando o tuga verificar que já não lhe servis, fazem-vos

aquilo que fizeram à população de Beli, população de Amdalai e noutros lados.



Irmãos que receberam armas das mãos dos tugas.


É melhor que se juntem a nós, antes que seja tarde de mais porque todo aquele que

repara no erro em que se encontra e quiser juntar-se a nós, não tenha medo de nada

porque na nossa luta não queremos tomar vingança, não queremos matar ou castigar

os filhos da nossa terra! a nossa luta é pela liberdade, respeito, justiça e progresso de

todos os filhos da Guiné e Cabo Verde, que não são cachorros dos tugas! nossa luta,

é luta pela liberdade do povo Africano!


VIVA P.A.I.G.C.!


Morte para os colonialistas portugueses e seus cachorros de dois pés!



Este último panfleto é de difícil tradução por conter expressões com vários sentidos tais como djungutu que significa agachar, baixar-se, e também saltar. Qual o sentido que o autor lhe quis dar?

Contém uma expressão, i ca ta pembi na ragas! que desconheço por completo. As minhas desculpas por tal facto. Não se trata de falta de memória mas sim nunca a ter ouvido.


IRMÃOS,

É bom livrarmo-nos do azar que nos atinge !


Não aceitem que colonialista tuga vos agache (esconda?) atrás dos seus

quartéis, porque todo aquele que se agacha (baixa; esconde) i ca ta pembi

na ragas! [não sei traduzir esta frase] não aceitem receber armas da mão do

colonialista tuga, porque todo aquele que pegar arma do inimigo contra nós,

é inimigo da nossa terra, é inimigo do nosso povo! Não aceitem mais escutar

as mentiras dos colonialistas, porque querem–vos mansos e submetidos

debaixo do seu cativeiro, com vossas mulheres e vossos filhos!



IRMÃOS

Largai o caminho da desgraça e vinde pegar o caminho certo, para a

nossa terra ir para diante.



VIVA P.A.I.G.C.!



Morte para colonialistas portugueses e seus cachorros de dois pés!



Tradução do crioulo: © Mário Dias (2006) (2) . Direitos reservados.


_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 27 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXVII: Com os jornalistas chineses nas 'regiões libertadas' (1972) (A. Marques Lopes)
(2) Vd. post de 4 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1337: O campo de concentração da Ilha das Galinhas (João Tunes)
(3) Vd post de 2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCI: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)

(4) Vd. post de 2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIII: Domingos Ramos e Mário Dias, a bandeira da amizade (Luís Graça / Mário Dias)

(5) Vd. post de 2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIV: O segredo do Mário Dias, ex-sargento comando


(6) Vd. pos de:

16 de Maio 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIX: Panfletos de propaganda dirigidos ao 'homem do mato' (Manuel Mata / Mário Dias)

11 de Abril 2006 > Guiné 63/74 - DCXCIV: Panfleto de propaganda, em crioulo, do PAIGC: Irmãos...(1970) (Manuel Mata / Mário Dias)

quarta-feira, 6 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1345: Questões politicamente (in)correctas (11): O Queta Baldé, a Associação de Comandos, o A. Mendes e eu (Beja Santos)

Resposta do Beja Santos a um comentário do nosso camarada A. Mendes, sobre o Queta Baldé, ex-soldado do Pel Caç Nat 52 e da 2ª Companhia de Comandos Africanos (1):

Clarificação
por Beja Santos

Meu caro Amílcar Mendes, meus caros tertulianos:

Visitei o Queta Baldé (2) ao tempo em que ele viveu em Chelas J, onde, aliás, viveu igualmente outro protagonista dos acontecimentos de Missirá e Bambadinca, Cherno Suane, meu guarda costas e também militar da 2ª Companhia de Comandos Africana.

A expressão alfurja pode parecer injusta para quem, como a Associação de Comandos, procurou desveladamente encontrar tecto para camaradas perseguidos e à busca de pátria. Contudo, a casa onde ele vivia, em cimento pintado de branco tinha de ser lavada todas as semanas com banho de água e líxivia, tal a quantidade de fungos instalados. O Queta tem um filho asmático cuja doença se agravou pela insalubridade das instalações.

Nada do meu texto leva a apontar qualquer responsabilidade à vossa gloriosa associação. Eu vi as instalações e ouvi os lamentos da mulher do Queta que seguramente tu conheces, a Cadi. Não há uma só referência no meu texto de qualquer negligência ou incúria praticada pelos comandos com os seus camaradas africanos.

O Queta vem cá trabalhar comigo na próxima quinta feira, dia 7. Se achares bem, telefonas-lhe (965666621) e vens dar-nos um abraço. O Queta exige ajudar-me a rememorar episódios que eu tinha atirado para o fundo do poço, desde a Operação Tigre Vadio (3) em que ele garante a pés juntos que entrei aos tiros no acampamento de Madina e só depois fui buscar água para os nossos feridos até operações onde ele participou comigo entre Janeiro e Março de 1969, e eu igualmente esqueci.

Feito o esclarecimento, ergamos um copo e brindemos à Associação de Comandos e à sua indefectível solidariedade entre camaradas.

Mário Beja Santos.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 4 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1339: Queta Baldé: um exemplo da solidariedade entre comandos (A. Mendes, 38ª CCmds)

(2) Vd. post de 30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

(3) Vd. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

Guiné 63/74 - P1344: Estórias cabralianas (15): Hortelão e talhante: a frustração do Amaral (Jorge Cabral)

A 15ª estória do Jorge Cabral, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71 (1)

Hortelão e Talhante – A frustração do Amaral
por Jorge Cabral

Chamavam-lhe, os africanos, o furriel Barril, não sei se pela sua compleição física, se por via da fama e do proveito que ganhara como bebedor quotidiano e calmo. Estou a vê-lo ao serão, bebendo à colher, com paciência e estilo, enquanto o alferes declamava, e o maqueiro Alpiarça escrevia a uma das dezenas das madrinhas de guerra.

Junto à fonte o Amaral havia construído uma viçosa horta, na qual os tomateiros, as alfaces e as couves medravam fortes, e dera-lhe na cabeça fabricar presuntos utilizando quartos traseiros de onças. Desta actividade lembro o cheiro nauseabundo, que até os mosquitos afastava.

Um dia aconteceu. Três vacas do mato, bichos que pareciam burros, invadiram a horta, banqueteando-se, com as saborosas verduras, o que o deixou, em fúria. Ciente que o criminoso volta sempre ao local do crime, eis na manhã seguinte o Amaral, emboscado, pronto a vingar-se. Pum, pum, pum, três tiros certeiros, e logo, eufórico, pedindo-me para ir a Bamdadinca transaccionar a carne.

Desmanchados os bichos e face à avaria da única viatura, contratou carregadores, aos quais pagou. Fazendo de cabeça as contas, anteviu um lucro fácil que lhe atenuasse a dor da horta destruída. Chegados ao Batalhão, porém, o vaguemestre olhou, cheirou e concluiu. Carne estragada, imprópria para consumo. Catorze quilómetros ao tórrido calor ...tinham sido fatais.

Gastou dinheiro, perdeu a horta e nunca o vi tão triste. Para o animar, aventurei-me a provar dos seus presuntos. Intragáveis, quase vomitei...

Ai, Amaral, Amaral porque não te dedicaste à pesca!...

Jorge Cabral
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Nota de L.G.:


(1) Vd. post de 24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1313: Estórias cabralianas (14): Missirá: o apanhado do alferes que deitou fogo ao quartel (Jorge Cabral)

Guiné 63/74 - P1343: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (2): O primeiro ataque ao quartel de Có, os primeiros revezes do IN

Guiné > Região do Cacheu > Pelundo > Có > CCAÇ 2402 (1968/70) > 1968 > Vista aérea do aquartelamento.

Guiné > Região do Cacheu > Pelundo > Có > CCAÇ 2402 (1968/70) > 1968 > Lavadeiras de Có.


Guiné > Região do Cacheu > Pelundo > Có > CCAÇ 2402 (1968/70) > 1968 > Fonte sanitária de Có.
Guiné > Região do Cacheu > Pelundo > Có > CCAÇ 2402 (1968/70) > 1968 > Beleza Nativa de Có.

Texto e fotos: © Raul Albino (2006)

Segunda parte das memórias de campanha de Raul Albino, ex-alf mil da CCAÇ 2402, pertencente ao BCAÇ 2851 (, Mansabá, Olossato, 1968/70), que embarcou no Uíge, em finais de Julho, juntamente com o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (1).

Caro amigo Luís,

Aqui vai o meu texto nº 2 sobre a CCAÇ 2402. Li num dos posts uma referência ao Capitão Vargas Cardoso, então já Major, como 2º Comandante do Batalhão 3884, sedeado em Bafatá em 72/74. Estive com ele há pouco tempo, mas ele tem sido parco nas suas manifestações sobre essa época. Alegando desculpas de vária ordem e promessas nunca cumpridas, acabou por a sua participação no meu livro se limitar à versão oficial dos Factos e Feitos Mais Importantes da companhia. Muito pouco para aquilo que ele seria capaz de fazer se quisesse. Daí a minha curiosidade de saber como decorreu essa outra comissão em Bafatá, descrito por quem lá tenha estado nesse período.Um abraço e até breve,
Raul Albino

Primeiro ataque ao quartel de Có ou... Quando a inexperiência e curiosidade ditam a sorte da batalha
por Raul Albino


Cheiros que não nos saem da memória

Chegámos à localidade de Có a 1 de Agosto de 1968. Não me esqueço desta data porque assim que saltámos das viaturas de transporte para o chão, cansados da viagem e completamente atarantados, pensávamos que íamos tomar um banho, conhecer as instalações e arrumar os nossos haveres. Qual história qual quê, assim que pisámos o chão, grita logo o Capitão Vargas:
- O terceiro Pelotão vai já fazer um patrulhamento pela periferia da povoação, orientado por alguns milícias, e só depois é que faz a sua instalação!

Eu, pessoalmente, já tinha vindo para a Guiné antes da Companhia. Agora calhava-me a primeira patrulha de reconhecimento. A comissão de serviço estava a começar bem ...
Este patrulhamento foi feito pelo interior da povoação, num trajecto escolhido pelos milícias nativos, de risco reduzido, para adaptação das tropas. Só que tínhamos acabado de chegar, desconhecíamos essa realidade e todo o percurso, cheiros e contacto com o ambiente local e população nativa, nos impressionou e seguramente ficou gravado na memória de todos aqueles que me acompanharam nessa primeira missão.


Menosprezar a inexperiência saiu caro ao inimigo

Em 29 de Agosto de 1968, menos de um mês após a nossa chegada, sofremos o primeiro ataque inimigo ao aquartelamento de Có. Foi um teste do inimigo à real capacidade desta nova unidade, chegada recentemente ao local, em termos militares. Por termos militares entenda-se, poder de fogo, coragem e capacidade de reacção.

Às 6.25 horas da manhã, um grupo estimado entre 20 a 30 elementos atacou o quartel pelo lado da pista durante cerca de 15 minutos, utilizando tiro de morteiro 60, metralhadoras pesadas, armas automáticas ligeiras e lança-granadas foguete.

Logo após os primeiros tiros, o Capitão Vargas dá-me ordem para sair com o meu grupo (3º Pelotão) em perseguição do inimigo. Como eu dormia com parte do meu grupo num abrigo mesmo ao lado da porta de armas, a saída pôde processar-se com grande rapidez e, acompanhados por alguns milícias nativos, entre eles o seu chefe Dayan, iniciámos a perseguição ao inimigo atacante.

Este homem de nome Dayan, chefe de Cipaios, era uma figura curiosa. Não era novo, magro e seco, leal, bom combatente, respeitado e líder incontestado dos milícias nativos. Custava-me a acreditar que uma pessoa com a idade dele pudesse ainda ter energia para chefiar a sua gente no terreno, mas ele não era uma pessoa qualquer, era um homem extraordinário por quem eu tinha uma consideração e admiração enormes.

A sua presença inspirava confiança e dava segurança e disciplina ao seu grupo de milícias em combate. A importância deste tipo de líderes era grande porque, nos primeiros tempos, houve muita dificuldade em perceber a maneira de pensar dos combatentes negros, amigos ou inimigos, e eles eram a nossa correia de transmissão entre duas culturas diferentes. Digamos que se fez, durante algum tempo, uma aprendizagem mútua.

Mas, voltando à perseguição, como o ataque foi curto, quando chegámos ao local de onde o inimigo tinha iniciado os disparos, já se tinha feito silêncio no tiroteio e não estava qualquer inimigo à vista. Só no terreno as pegadas denunciavam a sua presença na zona alguns minutos atrás. Em princípio e deduzindo que eles já tinham ido embora, o normal seria também nós regressarmos ao quartel, porque quando o inimigo se retira, perfeito conhecedor do terreno, dispersa-se e só volta a unir-se num ponto de encontro previamente estabelecido por eles.

O normal seria acontecer o que atrás descrevi, mas este dia não ia ter muito de normal. Em primeiro lugar o plano de ataque do inimigo foi pensado para ser efectuado em duas fases. Primeiro um ataque rápido, seguido de retirada, e quando as nossas tropas estivessem a tratar dos feridos e a avaliar estragos, fazer um segundo ataque, eventualmente mais violento que o primeiro. Daí a que o inimigo tenha feito uma volta de despiste e após alguns minutos já se encontrava de novo em posição de nos atacar o quartel.


Guiné > CCAÇ 2402 (Có / Mansabá, 1968/70) > Emblema da unidade


Estratégia muito engenhosa, mas eles não contaram com uma circunstância inesperada. Eu e o meu grupo éramos inexperientes neste tipo de luta, pois só nos encontrávamos na Guiné há menos de um mês. Ligada à inexperiência eu tive na altura uma curiosidade enorme de saber para onde aquelas pegadas se dirigiam, nunca pensando que eles tinham voltado a dirigir-se ao quartel para repetir o ataque. De tal modo que quando o inimigo iniciou a segunda flagelação às nossas instalações, nós estávamos atrás deles sem eles saberem.

A nossa reacção foi imediata e o inimigo, para sua surpresa, viu-se entre dois fogos, o nosso e o do quartel. Sofreram dois mortos e dois feridos confirmados, tendo sido um dos corpos sepultados na área do aquartelamento. Retiraram desordenadamente, sofrendo um pesado revés, especialmente na sua estratégia que saiu completamente gorada.

Erros de principiante ou maçarico


As peripécias não ficaram por aqui. Quando eu e o meu grupo saímos do quartel, viemos acompanhados por um radiotelegrafista com um enorme rádio às costas. Na altura, ainda em início de comissão, estes rapazes podiam trazer consigo uma arma de defesa pessoal, neste caso uma pistola Walter 9 mm. Não tenho a certeza, mas creio que se tratava do Catarino, recolhido atrás duma árvore ou qualquer outro abrigo, decidiu participar no combate e volta não volta, disparava um ou dois tiros (o carregador duma pistola tem poucas munições).

Eu, que me encontrava abrigado no chão junto a uma vala de cultivo de amendoim, ouvia os disparos do inimigo cada vez mais distantes, à excepção destes disparos que se assemelhavam ao som produzido pelas armas automáticas do inimigo quando disparadas tiro a tiro. As nossas G3 tinham um som característico inconfundível, completamente diferente do som produzido pelas armas deles. Durante algum tempo pensei que estes disparos eram dum turra, que, devido à posição em que eu estava ou à posição de qualquer outro militar, não conseguia fugir com os seus companheiros. Fiquei parado uns minutos preciosos, na esperança de poder capturar este turra descuidado.

Só quando o tiroteio terminou pude constatar o que realmente tinha acontecido e os problemas causados pela acção desnecessária do homem do rádio. Creio que a partir daqui poucos radiotelegrafistas voltaram a usar estas armas para defesa pessoal, passaram a acreditar que nenhum dos seus colegas o abandonaria no campo da luta.

Dentro do azar, a sorte esteve comigo

Já no regresso ao quartel ainda houve um pequeno incidente passado comigo próprio. Foi pequeno, mas poderia ter sido muito grande, pelo menos para a minha integridade psicológica. Vinha acompanhado pelo Dayan, lado a lado, e cada passo que dávamos era mais um pequeno salto entre as partes cimeiras das valas de amendoim (os nativos chamavam-lhe mancarra).

Trazia a G3 na mão, ainda pronta a disparar na posição de tiro-a-tiro, com a bandoleira (correia para suspensão da arma no ombro) pendida. Então não é que, num daqueles pequenos saltos, a fivela da bandoleira engancha no gatilho da arma e provoca um disparo que acertou a cerca de um palmo do pé do meu companheiro Dayan. Fiquei aparvalhado a olhar para ele e para a arma. Ele foi compreensivo a acalmou-me do meu nervoso. A minha admiração por ele aumentou ainda mais neste dia.

Acabou por ser o meu dia de sorte, dentro do azar, porque se lhe tivesse acertado, mesmo que fosse só no pé, não iria viver bem com a minha consciência a partir daí. Só de imaginar o que seria se a arma estivesse na posição de rajada, me deixava enlouquecido.

De qualquer modo, em termos militares, este dia ficou-nos na memória, porque o inimigo acabou por sofrer um forte revés nas suas intenções de intimidar a Companhia maçarica instalada em Có.
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

Vd. também os seguintes posts anteriores:

17 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1082: Notícias da CCAÇ 2402 e do BCAÇ 2851 (Raul Albino)

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1105: Como escrever um livro de memórias de guerra 'à la carte' (Raul Albino, CCAÇ 2402)

2 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1142: Um dia no mato: parabéns ao Vitor Junqueira pelo seu texto (Raul Albino, CCAÇ 2402)

4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1246: O meu livro Memórias de Campanha da CCAÇ 2402 (Raul Albino)

(2) Uma outra companhia que esteve em Có, foi a CCAÇ 2636, do nosso camarada João Varanda. d posts de:

15 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCI: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (1): De Santa Margarida ao Cupilom... (João Varanda)

16 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCIII: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (2): "Periquito vai no mato, que a velhice vai p'ra Bissau"... (João Varanda)

26 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXIV: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (3): O espírito de grupo (João Vranada)

26 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXV: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (4): A acção psicossocial (João Varanda)

19 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXXIX: CCAÇ 2636 (Có, 1969/70) (5): Gastando o primeiro par de botas e as letras do alfabeto (João Varanda)

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1342: Poema: os meninos da Ilha de Luanda (... pensando nos meninos de Bolama, de Chamarra, de Mansambo ou de Saré Ganá) (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Sare Gana > 1968 > CART 2339 (Fá e Mansambo 1968/69) > Crianças disputando os restos da comida das NT...


Foto: © Carlos Marques dos Santos (2006). Direitos reservados.

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Chamarra > Novembro de 2000 > Meninos da tabanca...

Foto: © Albano Costa (2006). Direitos reservados.



Angola > Luanda > Setembro de 2004 > Algures no centro da cidade (Av Nkrumah, se a memória me não falha), um velho mural do MPLA, já descolorido, e onde curiosamente o pintor se esqueceu das crianças...


Foto: © Luís Graça (2004). Direitos reservados.



Angola > Luanda > Ilha de Luanda > Setembro de 2004 > Uma das praias, não vigiadas, por onde os putos ainda têm liberdade de circulação... Foto tirada do Restaurante Coconuts onde só entra quem tem dólares, independentemente da cor da pele... O dinheiro, em toda parte, fazendo a segregação socioespacial...

Foto: © Luís Graça (2004). Direitos reservados.


1. Mensagem do editor do blogue, a pensar nos meninos da Mansambo do Torcato Mendonça, da Bolama do Leopoldo Amado ou da Saré Ganá do A. Marques Lopes, do Carlos Marques dos Santos ou do Henriques, ou ainda da Chamarra do Zé Teixeira e do Albano Costa (que por lá passou em Novembro de 2000) (1)... 


A pensar também no menino Jesus que nasceu em Belém, na Palestina, há 2006 anos, muito longe de África, longe de Angola ou da Guiné-Bissau...A pensar no país que não se escolhe quando se nasce...A pensar no tempo e no lugar que nos coube em sorte... Temos a obrigação de os tornar melhores. Um Inverno Saudável, amigos e camaradas. L.G.


os meninos da ilha de luanda


os meninos da ilha de luanda
são filhos de pescadores
são filhos de náufragos
são filhos da deriva dos continentes
são filhos bastardos da guerra e da paz
são filhos dos sonhos do dia e dos pesadelos da noite
são crisálidas
são puras formas de ser
são filhos dos homens
que nunca foram meninos

pergunto-me
como é que eles poderão um dia
chegar a ser homens

luís graça

(poema inédito, ilha de luanda, setembro de 2004)


___________

Nota de L.G.:



(1) Vd. posts de:
5 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1340: Blogoterapia (10): o meu segundo país (Torcato Mendonça)

30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1328: Blogoterapia (8): É hora de pensar no nosso primeiro... blook (Leopoldo Amado)

18 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLVIII: Bajudas, nem vê-las! (Carlos Marques dos Santos)

19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969

30 de maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu (Luís Graça)

28 de maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXIX: Um ataque a Sare Ganá (1968) (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P1341: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (23): Alah Mariu Mansô (Deus é todo poderoso, em mandinga)


Capa de Uma abelha na chuva, de Carlos de Oliveira, 3ª ed. ervista. Lisboa: Portugália Editora. 1963. (Contemporâena, 46). Capa de João da Câmara Leme.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.

Guiné > Bissau > Outubro de 1969 > "A uma mes de café, junto das docas de Bissau. Barbosa, o herói das emboscadas, o condutopr Areal, o bom amigo Teixeira. Momentos de garto convívio de gente que partilhava com ressignação os mesmos sacrifícios. A ver se tomamos uma bica nesta mesma mesa daqui a 2 meses" (Beja Santos, que aparece na foto, em primeiro plano, do lado direito. O Barbosa faz-se acompanhar da sua inseparável boina...verde).

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados

Texto recebido em 8 de Novembro de 2006.


Caro Luís, conforme prometido, aqui vai mais uma contribuição semanal. Estou a escrever sobre Novembro de 1968. Começou o derramamento de sangue no Cuor. Mas há peripécias fartas, muito barro do quotidiano e começo a ter o pelotão fisicamente esgotado. Não me peças sugestões para ilustrações, pois não tenho mais nada a não ser a capa do livro Uma Abelha na Chuva que hoje vai seguir pelo correio. Contudo, faço referência a uma fotografia que está em teu poder, com o furriel Ferreira, o Adão enfermeiro e o Barbosa da boina verde, entre outros. Tudo farei para nos encontrarmos no princípio de Dezembro e festejarmos precocemente o Natal (um bom Natal festeja-se todos os dias). A minha prenda será o meu livro Este consumo que nos consome que entretanto já estará editado (Porto, Campo das Letras, 2006) (1).

Nada mais por hoje e recebe um grande abraço do Mário.

Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, o Tigre de Missirá - como era conhecido entre os as chefias militares e os seus camaradas de Bambadinca-, ex-comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2).


Alah Mariu Mansô (Deus é todo poderoso, em mandinga)

por Beja Santos

À saída de Finete, onde vim depois de patrulhamento de Mato de Cão acompanhar as obras em dois abrigos, sou apresentado a Braima Mané. É um homem sorridente que me vem oferecer pepinos e ovos, nos trinta anos, de bigodinho bem aparado e, reparo, um braço tolhido. Bacari Soncó dá-me explicações. Braima foi uma das grandes vítimas do ataque a Missirá, em Maio de 1966, uma infelicidade monumental aconteceu-lhe: uma granada de morteiro destrui-lhe a morança e matou-lhe duas mulheres e dois filhos. A desgraça não ficou por aqui, pois Braima enquanto procurava salvar a família foi atingido no peito com estilhaços e um outro maior rasgou-lhe os nervos da mão e do braço, agora em irremediável imobilidade. Braima, que estava nas milícias, foi dado como incapaz para servir nas fileiras, e preferiu viver em Finete.

Combinámos que ele vai ser visto por David Payne, o novo médico de Bambadinca. E, na semana seguinte, ele irá a uma consulta a Bissau, e um dia ele regressará ao Cuor mostrando como os seus braços mexem e estão igualmente ágeis.

Cherno Suane, o novo guarda-costa do nosso alfero

Ieró, o meu precioso guarda costas, parte de férias e sugere substituto, Cherno Suane. Mal sei eu que vai nascer a mais gratíssima das amizades. Até agora, Cherno era o herói do morteiro 60, na noite de 6 de Setembro [de 1968]. A partir de amanhã será ele que me vai arrumar a morança com absoluto desvelo, lavar as botas de lona, engraxar as de cabedal, sacudir as esteiras e o folhelho do meu colchão, arrumar os livros, dobrar a roupa, remover as teias de aranha e sacudir a mosquitada.

Falamos do mesmo Cherno que, a 15 de Março próximo, se quer atirar para dentro de casa para salvar as coisas de alfero (felizmente, foi impedido de se imolar nas chamas e nos rebentamentos subsequentes), se vai salvar milagrosamente na mina anticarro de Canturé, que me acompanhará em todas as operações, ombro a ombro. Este mesmo Cherno, não caberá nesta história, conhecerá o inferno com a independência e virá comigo para Portugal em 1991. É hoje cidadão português, passa temporadas na Guiné e trabalha como a segurança num armazém de electrodomésticos no Bairro Angola, em Camarate.

Casanova e o pequeno Braima, uma história de amor

Quero falar de uma outra história de amor e que envolve outro Braima. Este é raquítico e filho de Galem e Mariá. O furriel Casanova tomou a iniciativa de o alimentar. Um dia fomos a Bambadinca, a pretexto de termos de ir a Bafatá buscar os vencimentos dos caçadores nativos e dos milícias, o Casanova foi a uma farmácia comprar um biberão e uma lata de Nestogeno. Não vai ser invulgar o Casanova olhar para o relógio, chamar um miúdo que passa pela parada e dizer-lhe:
- Vai ali a casa da Mariá e dizer-lhe que são horas de o Braima comer. Serão meses de idílio, o Braima ganhará peso, ninguém se atreverá a brincar com os sentimentos do Casanova.


Tenho o pelotão exausto, muita gente doente, faço o possível para manter os patrulhamentos, pedi mesmo ajuda aos milícias de Finete, a escola funciona bem, com a intervenção do professor que fui buscar a Bambadincazinho mas também com o Ferreira, o Casanova e o Zé Pereira.

Sempre que posso, a meio da tarde, convido o Malã e Lansanâ para tomarmos chá. Lânsana mostra-me as suas poesias religiosas que ele desenha em árabe em tábuas de pau sangue e vai-me dando explicações:
- Esta oração quer dizer Deus abençoe a bianda (refeição); aqui está escrito alarramano melafo (obrigado Deus pelas boas chuvas que nos dão a comida deste dia) - . Mas quanto perguntei ao Abudu Soncó o verdadeiro significado desta expressão, ele disse-me que esta frase não existe... mas como a registei, peço a todos que aceitem com o mesmo sentido como me pareceu ter interpretado).

Escrevo para Lisboa a pedir a todos que mandem pelos oficiais, sargentos e praças que foram de férias comida natalícia, o que vai acontecer e será um bálsamo no nosso Natal desolador.

Aumentámos as medidas de prevenção pois a guerrilha tem-se intensificado e há flagelações por toda a parte. Amanhã, a mulher grande de Missirá, Jaira, a octogenária mãe de Quebá Soncó, vai à consulta e peço ao David Payne para ver o que se pode fazer do seu corpo esquelético. Em sua companhia seguirá Sari, a mulher de Bacari Soncó, hoje régulo do Cuor. Sari está grávida de três meses e sofre de paludismo.

A morte, emboscada, em Chicri


Acaba de chegar o Teixeira com uma mensagem que diz "Cavalgue Berlim", o que significa "Pelo meio dia amanhã esteja em Mato de Cão". Informo os furriéis que, depois de pôr os doentes em Finete, sigo para Mato de Cão e depois vou fazer uma emboscada nocturna em Chicri. Saio de Mato de Cão pela uma da tarde, comemos o nosso farnel e seguimos para Chicri. Está um céu de chumbo, tem chovido muito, percorremos a velha tabanca à procura de indícios de passagem recente da gente de Madina/Belel.

À saída da tabanca, perto de uma estrutura rochosa, encontra-se um caminho bem pronunciado com marcas de pés calçados e recente. Anoitece e organizo com Bacari Soncó e Fodé Dahaba uma emboscada em meia lua, uma bazuca e um morteiro nos extremos, a meio eu, dois apontadores de dilagrama e de pé um vigia, para poder avistar uma eventual chegada a partir de Gambaná do grupo rebelde, e assim termos tempo de inverter o grupo emboscado.

É uma noite sem lua, não há o piar das aves, ao fundo o bruxulear das luzes do porto de Bambadinca. Depois de instalado o grupo, com auxílio do Domingos Silva explico aos 20 e tal homens (e Domingos precisa tudo em crioulo) que a ordem de atirar partirá de mim, que o primeiro fogo será de Mamadu Djau, o nosso bazuqueiro, que a retirada será igualmente decidida por mim e que o itinerário a seguir passará por Gambaná, Canturé e Missirá, ninguém poderá ficar para trás, de meia em meia hora far-se-à uma paragem e a verificação dos presentes.

Todos a postos, o silêncio adensa-se, e pelas 7:30 da tarde Mamadu Camará avisa-me ao ouvido: - Está gente a aproximar-se, vejo sombras a sair da mata -. E de facto, um grupo de mais de uma dezena de pessoas avança de uma forma despreocupada (ou fui eu que pensei que a coluna rebelde não vinha com muita precaução).

Quando estão a cerca de 20 metros de nós, exactamente no trilho onde estava ajoelhado, levanto-me sem ruído e grito:
- Fogo, muito fogo! - E o fogo foi atordoador, logo com a bazuca, o morteiro e os dilagramas que alvejam quem ainda vem dentro da mata, aterrorizando, desbaratando, impedindo qualquer reacção. E assim como o fogo teve uma cadência infernal, assim se silenciou quando decretei a retirada.

A boina verde do Barbosa

Lestos, correndo pela picada, alcançámos a estrada de Mato de Cão, aqui fez-se a contagem dos homens, o grupo estava coeso e arfante. Em passada rápida rumámos para Canturé, por dentro do mato, por sinal usando um trilho alternativo quando íamos para Mato de Cão. É aqui que se vai passar um episódio insólito. O Barbosa (que consta de uma fotografia ao lado do Quim motorista, do furriel Ferreira e do Adão enfermeiro), chega ao pé de mim e diz-me com voz trémula e quase ciciando:
- Meu alferes, perdi a minha boina verde em Chicri, não sei viver sem ela, vou voltar para a recuperar.

Seguiram-se alguns minutos amalucados em que eu procurava lembrar ao Barbosa que ele não podia comprometer mais de 20 vidas por causa de uma boina. Na noite escura, ele abanava a cabeça e insistia que não saía dali:
- Ou volto convosco ou vou lá sozinho!

Debalde os camaradas insistiam na insignificância da boina. A conversa arrastava-se num círculo delirante e tive que jogar o mais mirabolante dos acordos possíveis:
- Barbosa, nós vamos regressar todos a Missirá, e garanto-te sob palavra de honra que amanhã eu e os mesmos homens que aqui estão viremos contigo buscar a boina.

E assim foi. Só numa guerra daquelas é que era possível fazer um contrato de mais 25 km de perigos para ir procurar um objecto fetiche. Nessa noite converso com Lânsana e peço-lhe que reze por nós. O que ele respondeu eu não percebi, mas o Cherno explicou-me:
- O que o Marabu acaba de dizer é que Deus é grande. Ele vai rezar para que nada nos aconteça.

E de facto, nada aconteceu. A aproximação de Chicri foi penosa, à procura de qualquer sinal onde encontrássemos uma cilada à nossa espera. O terror que infringimos fora poderoso. Dois cadáveres jaziam a céu aberto. Foram enterrados mesmo com o ar contrafeito de tropa. A boina apareceu no local onde tínhamos estado emboscados e regressámos sem beliscadura.

Uma abelha na chuva.. em Missirá

Continua a chover a cântaros, andamos enlameados e procuro estar atento ao sofrimento físico dos militares. O Ramadão caminha para o auge e fui convidado para a cerimónia da mesquita. O irmão de Braima Mané, um alfaiate exímio, está a fazer-me uma sabadora com um belo bordado em azul e fio dourado. Irei usá-la (aliás, como todo o traje de cerimónia) nesse dia e tirarei uma fotografia ao lado de Malã e o seu séquito.

É muito importante que vos fale das minhas leituras, nesse momento. A razão é muito simples: acabei de ler um dos livros mais influentes da minha vida, Uma abelha na chuva, do Carlos de Oliveira.

Este escritor neo-realista era um operário da escrita. A minha mãe tinha a primeira edição desta obra, li as outras duas edições seguintes, tudo diferente, o estilo cada vez mais castigado, as imagens mais ricas, o ritmo avassalador. A abelha é uma história de timbre ultra-romântico e talvez o mais significativo romance com história rural até aos anos 60, em contexto modernista. É uma escrita que vai directa ao fim, mostrando a decadência de uma fidalguia provinciana obrigada a alianças de conveniência com os negociantes. Maria dos Prazeres é figura dessa fidalguia obrigada a suportar um marido cobarde, Álvaro Silvestre. A trama inclui uma paixão destruída pelo vingativo Álvaro Silvestre que, cavilosamente, desperta o ódio do pai de Clara que vai matar Jacinto numa das cenas mais empolgantes do romance (2).

Eu leio e releio a obra de Carlos de Oliveira nessas noites de Missirá, é o prazer da escrita é o saber pelos ambientes de fatalidade, é o saber que aquele mundo ainda existe mas que está em vias de extinção. Um dia de província asfixiante que arrasta todos os sonhos e projectos. E assim termina a obra:

"A abelha abriu as asas, atirou-se ao voo e foi apanhada pela chuva. Sofreu de tudo: os fios do aguaceiro a enredá-la; golpes de vento a ferirem-lhe o voo; sacolojões, vergastadas, impulsos. Deu com as asas em terra e a chuva espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas".

A ironia do destino é que a Cristina me mandou outra obra prima que a partir de agora vai andar sempre comigo, como se de uma nova pele se tratasse: O Delfim, do José Cardoso Pires, publicado neste ano. Leio e degusto. Finalizo um capítulo e recomeço como se a emoção cheia fosse segura por uma cabeça vazia.

É uma história marialva passada na Lagoa que faz parte da Gafeira. Lá longe há um oceano, há dunas e até um mouchão, a vila estará a mais de 100 km de Lisboa. Personagens principais: o Engenheiro, Maria das Mercês, o narrador disfarçado de caçador e o maneta, uma espécie de escudeiro desse marialva que dá pelo nome de Tomás da Palma Bravo. O Delfim é a agonia de uma ruralidade mesclada pelas incursões de uma industrialização e de um ciclo de progresso que está a asfixiar a velha ordem personificada por esse engenheiro culto, tradicionalista e amigo da sua gente que teme e repudia os novos valores que começam a chegar à Gafeira.

Não será a última vez que iremos falar aqui desta obra prima. Só depois, já em Lisboa, me vou render à escrita de Nuno Bragança e Maria Velho da Costa. Com os anos 80, irei admirar Saramago e Lobo Antunes. Mas naquela Guiné este livrinho que ainda hoje guardo apodrecido por tantas andanças e sacolejos foi bálsamo e revelação definitiva do mundo que vai morrer em 25 de Abril de 74.

Daqui até Dezembro iremos viver outras atribulações. Aproxima-se o Natal e eu vou viver o presépio de Chicri. Não sei se terei a coragem de contar.

_________

Notas de L.G.:

(1) Nota da editor, Campo das Letras, Porto:

"Este consumo que nos consome / Mário Beja Santos [ver biografia]

"O mais recente livro do professor universitário Mário Beja Santos, pioneiro da defesa dos direitos do consumidor em Portugal, Assessor Principal do Instituto do Consumidor, editor do Jornal dos Consumidores e fundador da Plataforma Saúde em Diálogo. Este livro não é um ensaio nem um manual prático dos direitos dos consumidores. Trata-se de um compêndio de diferentes olhares em torno das realidades do consumo no mundo actual. O funcionamento da sociedade de consumo mudou radicalmente, e é preciso dizer como, onde e em quê. O principal desafio a que me propus foi oferecer a todos os interessados pelo consumo uma explicação abrangente e não alinhada acerca das transformações a que este fenómeno aparece associado no nosso tempo (Beja Santos).

(2) Vd. último post desta série > 30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

(...) "Dou comigo a pensar que estamos a entrar num dos períodos mais duros, com os patrulhamentos a Chicri. No primeiro, morrerão civis, ao cair da noite. No segundo, irá acontecer o Presépio de Chicri, o meu maior sofrimento que não desejo a ninguém. Disse-me o Queta que toda a gente sabia que os de Madina/Belel cambavam o Geba junto de Malandim, e iam até Nhabijão Bulobate e Nhabijão Imbume e Bedinca. Com um ar muito sereno disse-me o Queta:-Tinham uma canoa enterrada na lama. Trocavam comida e obtinham informações sobre o que se passava em Bambadinca. Nosso alfero tirou-lhes o sossego" (...).

(3) Extractos de Uma abelha na chuva, de Carlosd e Oliveira, 3ª ed. rev. Lisboa, Portug´+alia Editora, 1963, pp. 136-139:


Saíram-lhe no rasto, cautelosos como dois ladrões. E foram acoitar-se entre o arvoredo, ao pé da fonte.
- Quem é que está com ela ? – quis saber o velho.
- Nãos e vê quase nada, mas penso que é o ruivo.
- O cocheiro do Silvestre ?
- parece-me que sim.
- Parece-te ou é mesmo ?
Marcelo firmopu a vista no crepúsculo:
- É ele.
O cego puxou-lhe pela manga:
- Toca para a azinhaga.
- Fazer o quê, mestre António ?
- Há-de por lá passar o cão no regresso da fonte.
A chuva engrossava pouco a pouco. Ao longe, o céu abriu-se ao fogo dum relâmpago.
- Aí vem a trovoada, mestre. Sente-a?
- Não.
Rodearam a fonte e, cortando pelas terras de cultivo, caíram na azinhaga.
- Já é noite cerrada ?
- Quase.
Estiveram em silêncio algum tempo, abrigados nas moitas. E depois, Marcelo perguntou, um pouco receoso:
- Que vamos nós fazer ao ruivo?
O velho perdeu a paciência:
- Estás a roer a corda, malandro? Queres ou não queres a rapariga?
E Marcelo calou-se. A chuva, cada vez mais pesada, ia ajoujando os sillvedos. O vento crescia e arrastou da distância o marulho dum trovão maior.
- Ouviu agora, mestre ?
Mas o cego deu-lhe uma cotovelada rápida:
- Cala-te, ladrão. O que eu oiço são passos.
Ficaram alerta, de respiração suspensa. O velho ciciou:
- Vai agarrando no cacete, Marcelo.
O vulto surgia ao topo da azinhaga. Uma sombra móvel entre montões de espinheiros derreados de água. Cantarolava. Reconheceram-lhe a voz e mestre António segredou ao moço:
- Arreia-lhe a matar.
Uma sombra quase indistinta não é bem um homem. Falta-lhe a luz dos olhos, o sorriso, as feições, a alma à flor da pele. É uma coisa anónima e sem rosto, mesmo quando tem voz e passa a cantar pelas azinhagas. Custa menos a ferir que um homem verdadeiro, à luz do dia.
A cajadada de Marcelo apanhou Jacinto pela cabeça:
-Ai!
Abriu os braços e foi de escantilhão aninhar-se no lamaçal da estrada. Chape. Inerte como um pedregulho.
Mestre António ordenou:
- Temos de o deixar escondido no silvado e dar um pulo a casa, não vá a rapariga suspeitar da ausência. Come-se o caldo e, mal ela disser as boas-noites, saltamos ao palheiro. Traz-se o jumento, como quem não quer a coisa, põe-se-lhe o corpo em cima e ala para o mar. As águas lá se encarregam de lhe dar sumiço.

E assim fizeram.

Guiné 63/74 - P1340: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (2) : o meu segundo país

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Novembro de 2000 (1) > Crianças de Mansambo, à beira da nova estrada... alcatroada. Tal como há 30 e tal anos: a única diferença é que não havia estrada... alcatroada.

No meu tempo (1969/71) e no tempo do Torcato Mendonça (1968/70) não havia população de Mansambo. Apenas existiam, a viver dentro do arame farpado, meia dúzia de famílias, as dos guias e picadores que trabalhavam para as NT... Estes e restos da malta da destroçada CCAÇ 12 ficaram por lá, depois da independência... (LG)


Foto: © Albano Costa (2006). Direitos reservados.

Mensagem do Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69). Na série Blogoterapia publicam-se textos sobre a nossa tertúlia e o nosso blogue, apresentam-sos novos amigos e camaradas da Guiné. Tem um registo mais intimista. O termo foi usado por mim em Junho de 2005 para dar um título a um post do Torcato Mendonça em que ele terminava nestes termos: "Desculpa este desabafo. Estou mais calmo. Será isto uma terapia?" (2).

Caro Leopoldo Amado:

Quebro uma regra ao responder directamente a um post. Abri o blogue e leio as aventuras de Missirá (3). Continuo e aparece-me outro post. É-me, em parte, dirigido. Mais, pede-me para eu escrever sobre a minha passagem pela Guiné (4). Engano? Os meus escritos são simples, despretensiosos, mas sentidos e procurando relatar a minha guerra. Partindo do princípio que não houve engano, digo-te:

Procurei esquecer aqueles tempos, aquela terra, aquelas gentes. Foi impossível. Felizmente, tenho hoje o Blogue do Luís Graça e Camaradas da Guiné. É o meu segundo País, eu que sou um pouco de vários sítios. Não fui santo nem diabo. Comandei Homens, meus irmãos de armas, europeus ou africanos. Para mim só há uma espécie – A Humana.

Escrevo quando me dá na bolha e ao correr da pena ou tecla. De quando em vez, mando algo ao Luís Graça. Por vezes penso que mando e aí fica.

Falas em miúdos (4). Gostava muito deles, o riso nas escolas que inventávamos, a ginástica e o banho com Life Boy ? – um sabonete - , o rancho partilhado… e a beleza dos bebés… Os Futa-Fulas …lindos…

Passou, meu caro e nem tudo foi mau. A nostalgia, a lentidão no bater da tecla e, por que não, um apertozito e uma humidade no olho…

Caro Luís, perdoa o quebrar da regra. Coisas de velho militar duro que o tempo amoleceu… Ainda bem…

Caro Leopoldo, conta a História dos nossos Povos… Gosto de história e, se não a conhecermos, não sabemos quem somos!

Um abraço,

Torcato Mendonça
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 5 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXIII: Mansambo revisitado (Novembro de 2000) (Albano Costa)

(2) Vd. post de 1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1331: Blogoterapia (9): Quando a Pátria não é Mátria para ti (João Bonifácio, Canadá, antigo vagomestre da CCAÇ 2402)

(3) Vd. post de 30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

(4) Vd. posts de:

30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1328: Blogoterapia (8): É hora de pensar no nosso primeiro... blook (Leopoldo Amado)

25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P907: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (1): A nossa blogoterapia

segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1339: Queta Baldé: um exemplo da solidariedade entre comandos (A. Mendes, 38ª CCmds)

Amadora > Regimento de Comandos > 1977 > Cópia do cartão do 1º Cabo Comando A. Mendes, assinado pelo Coronel Jaime Neves.

Foto: © Amilcar Mendes (2006). Direitos reservdaos.


Mensagem do Amilcar Mendes (ex-1º cabo, 38ª Companhia de Comandos, Guiné, Brá, 1972/74) (1):


Sem pretender ser um gajo chato e depois de ler o que escreveu o Beja Santos (2), gostaria de tecer algumas considerações, se mo permitirem, sobre o que li :

(i) Conheço o Queta Baldé, da 2ª Companhia de Comandos Africanos, com quem trabalhei na Guiné: pergunte-se-lhe se ele se lembra de Kadike-Yalá no Cantanhês, no Natal de 73...

(ii) Além disso, convivi com ele, aqui em Lisboa.

Sabe, amigo Beja Santos, que tal como o Queta vieram para Portugal dezenas de ex-comandos africanos e foi a Associação de Comandos (3) quem lhes conseguiu o visto para virem através do Senegal.

Foi a dita associação quem lhes arranjou as casas em Chelas que o amigo chama de "uma autêntica alfurja"... Foi a dita associação quem lhes arranjou os primeiros empregos onde alguns ainda hoje se mantêm (por ex., cemitério do Alto de São João, castelo de São Jorge, seguranças privadas etc.) ...

Quando eles chegaram a Portugal, muitos ficaram a dormir durantes meses na Associação de Comandos e também a comer...

É que nós, os ex-comandos, sempre tratámos os comandos africano, não como africanos mas como comandos... O Beja Santos pode perguntar ao Queta se o que eu escrevo faz sentido.
Se ele mostra um semblante marcado pelo sofrimento, é natural, pois o que os ex-comandos naturais da Guiné passaram, marca qualquer um, mas nós aqui à distância sempre nos preocupámos com eles.

Fui testemunha de muitos aqui, em Lisboa, para elaborar os processos de ferimentos em combate para atribuição de pensões e trabalhei com muitos aqui em Lisboa em missões de segurança .

Muito do que ficou por fazer deveria ser o Estado Português a fazê-lo. Desculpe, amigo Beja Santos, se estou a ser injusto, mas penso que o Queta não lhe contou tudo.

Um abraço a todos os bloguistas.

A. Mendes


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Notas de L.G.:






(...) "Queta Baldé: ex-comando, exilado no Senegal, segurança em Lisboa


"O Queta apareceu-me aqui há uns dias no trabalho pelas 8:30, vindo da sua noite como segurança numa empresa entre o Saldanha e o Marquês de Pombal. Conheci-o a arrastar os pés e não se tornou mais ligeiro com a idade. Às vezes, quando vem conversar aqui comigo lança-me um olhar que parece de um animal doído com os raspanetes do dono.


"Ele tem algumas razões para mostrar um semblante marcado pelo sofrimento. Em 71, saiu do Pel Caç Nat 52 e alistou-se na 2ª Companhia de Comandos Africanos. Em 74, com a independência, fugiu de Cuntima para não ser baleado num daqueles delírios de ajuste de contas. Viveu sete anos no Senegal, lá conseguiu um visto, depois adquiriu nacionalidade portuguesa, trouxe filhos do primeiro casamento, voltou a casar e foi viver para Chelas J, numa autêntica alfurja. Mas não resistiu a ser útil a nosso alfero, que lhe pediu para retorcer os subterrâneos da memória" (...).


(3) A Associação de Comandos, com sede em Lisboa, tem delegações nas seguintes localidades:












Fora do Continente, tem ainda delegações em:



O sítio (oficial) da Associação de Comandos tem um link para uma das nossas páginas > Subsídios para a história da guerra colonial > Guiné (12) > Brá: Comandos



Guiné 63/74 - P1338: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (5): estreia dos Órgãos de Estaline, os Katiusha















Continuação da publicação das memórias do Paulo Santiago, ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53 (Saltinho , 1970/72). Texto enviado em 20 de Novembro de 2006. Há dias (30 de Novembro de 2006) ele comunicou-nos que a sua esposa ia levá-lo, de manhã, de carro, a Porto Marin, perto de Pontevreda, para depois fazer, a pé, o resto do caminho de Santiago. E que esperava dentro de quatro a cinco dias chegar a Santiago. Tinha feito uma tentativa anterior, em Agosto passado, gorada por falta de tempo.

Desta vez, ele pode queixar-se da mochila que vai "um pouco mais pesada, devido à roupa da época"... Mas esperemos que as mazelas contraídas no Saltinho (no episódio que ele relata neste post) não o deixem ficar mal, nem perante o Santo - que era mui fero e guerreiro, como o Paulo - nem perante os seus camaradas da Guiné que muito o estimam e admiram... Muito provavelmente ele hoje já está em Santiago de Compostela e seguramente que lá, no famoso santuário cristão, também pensou em nós, nos seus amigos e camaradas da Guiné, e até é capaz de ter rezado por nós, santos e pecadores...
Em sua homenagem (dele, Paulo, peregrino, caminheiro, ex-comandante de um pelotão de caçadores nativosniurra incarnação), deixo-vos aqui algumas fotos do caminho de Santiago que eu fiz, no verão passado, comodamente, como turista... Devo dizer-vos que não é (nem pode ser) um santo da minha devoção, sendo eu meio-cristão e meio-mouro... Sempre o achei, de resto, muito guerreiro, para o gosto de paisano... De qualquer modo, apesar da massificação do turismo, Santiago de Compostela ainda é um lugar desta jangada de pedra onde há sortilégio, magia e espiritualidade, onde o profano e o sagrado se casam bem... Se lá forem, passam pelo Gato Negro e bebam uma malga de vinho do Ribeiro por mim, por todos nós, pobres de Cristo, que palmilhámos as terras da Guiné e trouxemos de lá uma sede tamanha que só a água de Lisboa podia matar... Em Santiago de Compostela não se morria nem morre de seda: é, de facto, uma das cidades não só da nossa querida Galiza como de toda a Espanha, com mais bares de tapas, bodegas, tabernas e chiringuitos por metro quadrado... Ou não tivesse o santo também olho para o negócio... (LG)

Fotos: © Luís Graça (2006). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L5 (Galomaro) > Saltinho > 1971 > O comandante do Pel Caç Nat 53 (1970/72), Paulo Santiago, tomando o seu banho à fula no Rio Corubal.

Foto: © Paulo Santiago (2006). Direitos reservados.

Em 6 de Janeiro de 1971, fiz vinte e três anos de idade e um ano de tropa. Tinha entrado para o calhau em Mafra, precisamente no dia em que fiz vinte e dois anos, foi o pior aniversário da minha vida, completamente perdido naquele labirinto de escadas e corredores.

Este 6 de Janeiro no Saltinho foi bem bebido, muito whisky a acompanhar umas rodelas de tomate com sal.

Em 21 de Janeiro, aí pelas 21.00 horas, entra um militar da CCAÇ 2701 pelo bar de Sargentos e Oficiais e informa, meio esbaforidamente, que um dos sentinelas está a avistar uma pequena luz numa curva do Corubal, situada aí a uns 500 metros na margem oposta à do quartel.

Saímos todos a correr em direcção ao posto de sentinela, verificando, haver de facto uma pequena luz a mover-se no local indicado. Acrescento que a zona em causa daria uma boa base de fogos para uma flagelação ao Saltinho, com uma posterior retirada pelo rio. O abrigo do [Pel Caç Nat] 53 ficava ali ao lado, e foi onde me dirigi, agarrando no morteiro 60 e duas granadas.

Procuro um local, com visibilidade para a curva do rio, instalo o morteiro, joelho direito em terra, mão direita no tubo, calculo a inclinação e aí vai granada. Tudo foi feito com rapidez., esquecendo-me que a zona do Saltinho ,contrariamente à maior parte da Guiné, era rochosa, o que resultou em azar. Não vi, estava escuro, o prato da arma ficou assente num afloramento de rocha. À saída da granada o prato desliza na pedra, atingindo-me a perna direita acima do joelho. A pancada foi tão forte que caí para o lado, cheio de dores, pensei logo ter ossos partidos.

O Cap Clemente e o Alf Julião que estavam ao meu lado, agarram-me ao colo e trazem-me para o Posto médico, onde me deitam na marquesa. Felizmente o osso ficou à vista, mas não estava partido. Havia que coser a perna, trabalho para o Fur Mil Enf Freire.

Como não havia anestesia, estavam quatro matulões a imobilizar-me e eu a sentir a agulha a coser-me, a repuxar músculos e peles. Hoje suporto a dor com alguma rusticidade, deverão ser
ainda resquícios do que passei naquela noite. Levei exteriormente quinze pontos e fiquei
inoperacional um mês e poucos dias.

No dia seguinte, deveria ficar de cama, não consegui e rebentei de imediato com um dos pontos. Agarrado a uma pseudo-bengala lá vim beber uns copos para o bar. Foi um mês de grandes exageros (ainda mais) com as bebidas. O maior problema passou a ser o banho, não podia mergulhar no rio, então protegia o penso com um plástico, sentava-me à beira da rio e, com uma bacia, ia virando água por cima da cabeça, um banho à fula.

Chegamos ao Carnaval e resolvem fazer um baile na escola que ficava junto do quartel ,ficando eu a beber uns copos no bar . Por volta das vinte horas, ouço várias saídas de arma que não sei determinar. Venho agarrado à bengala dar uma espreitadela à parada, vejo o rasto de vários foguetões (?) dirigindo-se na direcção de Aldeia Formosa, ouço o estrondo dos rebentamentos, repetindo-se de imediato a mesma cena, várias saídas, o rasto dos foguetes e respectivos rebentamentos.

Chega entretanto o pessoal que andava no baile, ficando também a assistir aquela chuva de foguetes e a ouvir os rebentamentos. Aparece o Fur Rui das Transmissões, informando que o quartel de Aldeia Formosa acaba de perguntar se estávamos a ser atacados, e quais as armas utilizadas no ataque.

Chegou-se à conclusão que as granadas estavam a cair em zona entre Saltinho e Quebo
e a arma era desconhecida. Passados alguns dias veio informação do Com-Chefe: naquele ataque falhado a Aldeia Formosa, o IN tinha utilizado pela primeira vez Foguetes Katiusha, também conhecidos por Órgãos de Estaline.

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Guiné 63/74 - P1337: O campo de concentração da Ilha das Galinhas (João Tunes)

Guiné > Região de Tombali > Catió > Mato Farroba > Abril de 1970 > Em primeiro plano, o ex-Alf Mil Transmissões e hoje nosso estimado camarada João Tunes .


Foto: © João Tunes (2005). Direitos reservados.


Mensagem do João Tunes, já enviada a toda a tertúlia.

Sobre os Outros
por João Tunes

Caro Luís e restantes camaradas,


Como era incontornável, o nosso blogue, cada vez mais rico e recheado de facetas mais encadeadas, assenta sobretudo na visão da guerra de um dos lados, o das NT. Não podia ser de outra forma. Mas, julgo eu, sobretudo a esta distância no tempo, não entenderemos o que passámos e lá estivemos a fazer, sem compreender o outro lado, o lado do IN. Só numa compreensão abrangente das duas metades, é que, nós e os guineenses, podemos ter a percepção da epopeia daquele drama comum e que nos ficou a unir.

Infelizmente, da parte do PAIGC, há uma exiguidade de produção histórica e tratamento documental e testemunhal sobre a sua luta. A par do facto terrível de que a grande maioria dos antigos combatentes do PAIGC ou morreu ou para lá caminha proximamente sem deixar lavrados os seus imprescindíveis relatos e testemunhos (é muito curto o horizonte de vida na Guiné).

Esperemos que a saída à luz do dia, e em breve, da tese académica do nosso amigo tertuliano Leopoldo Amado compense uma parte das lacunas que nos atrapalham a visão larga da memória da guerra na Guiné (1).

Entretanto, aproveitando para o divulgar e recomendar, saiu um livro importante da Dalila Cabrita Mateus (*) em que ela apresenta um conjunto de depoimentos recolhidos e verificados junto dos prisioneiros africanos no período da guerra colonial. Julgo até que este livro é de leitura impositiva pois possibilita, coisa rara, que se oiçam vozes do sofrimento daqueles que
combatemos e nos combateram. O que é útil a vários níveis - permite-nos relativizar os nossos sofrimentos enquanto combatentes coloniais; traz à luz do dia uma bestialidade escondida no tratamento da pessoa humana que era o lastro do suporte ao nosso combate e sobrevivência. Sem aquilo, sem aquela PIDE, poucos de nós estaríamos aqui a escrever e a contar.

Uma parcela importante do livro de Dalila Cabrita Mateus é composta de entrevistas com prisioneiros da segunda fase de funcionamento do Campo de Concentração do Tarrafal (Ilha de Santiago - Cabo Verde). Como se sabe, o Campo (também conhecido como Campo da Morte Lenta) funcionou entre 1936 e 1954 para prisioneiros políticos portugueses e o seu encerramento deveu-se ao escândalo internacional devido à demasiada semelhança com os campos nazis.

Após o declarar da guerra em Angola, o então Ministro do Ultramar Adriano Moreira (o mesmíssimo académico hoje celebrado como o grande visionário geoestratégico do desígnio português no mundo), firmou despacho legislativo para que o Campo do Tarrafal fosse reaberto para os prisioneiros capturados nas colónias. Esta medida coincidiu com o fim dos julgamentos, em Tribunal Militar, dos prisioneiros africanos. A partir de então, os prisioneiros passaram a ser dispensados de julgamento e, depois de interrogados e torturados, era-lhes fixada administrativamente (pelos Governadores sob proposta da PIDE) residência por tempo indeterminado num dos campos de concentração existentes em África.

No que respeita à Guiné, os prisioneiros que não eram liquidados pelas NT e pela PIDE, passaram a ir para a ilha das Galinhas (Bijagós-Guiné) (2) ou para o Tarrafal. Neste Campo,
além de alguns caboverdianos, estiveram, até 1974, muitos prisioneiros angolanos mas o grosso do número foram guineenses (várias centenas). E uma norma imposta era a proibição de qualquer contacto entre os prisioneiros das várias nacionalidades. Mas, os prisioneiros guineenses não só perfaziam a maior percentagem como estavam sujeitos a piores condições relativas (3).

Primeiro, ao contrário da maioria dos angolanos, não recebiam ajuda dos seus familiares (em géneros, em dinheiro, em correio). Segundo, cúmulo do sadismo administrativo, a alimentação dos presos fornecida no Campo era diferente pela razão que o orçamento era diferenciado consoante a origem. Uma regra estabelecia que eram os governos das províncias que custeavam a alimentação dos presos e enquanto o Governo Provincial de Angola dotava de 20$00 os
cofres do campo para a alimentação diária de cada prisioneiro angolano, Spínola atribuía apenas 5$00. O que levava a que, na alimentação dada a cada prisioneiro guineense, se gastasse um quarto do custo havido com cada angolano!

Imagine-se o resultado pois não havia suplementos alimentares por falta de apoios familiares. Foram inúmeras as mortes por doença entre os prisioneiros guineenses, nomeadamente por défice vitamínico que conduziu a várias mortes por escorbuto (!). E como não eram permitidos quaisquer contactos entre prisioneiros angolanos e guineenses, obviamente que a solidariedade inter-africana não tinha meios para se verificar.

Naquelas terríveis e ainda pouco conhecidas condições, compreende-se o desânimo e o desespero de grande parte dos prisioneiros guineenses. E como a PIDE nem ali dormia, entende-se também que ela tenha conseguido trabalhar um grupo de combatentes aprisionados no Tarrafal para os levar á traição dos seus e colaborado com a formação do grupo libertado que se reinfiltrou no PAIGC e levou a cabo o assassinato de Amílcar Cabral em 1973 (3).

Depois da PIDE reduzir aqueles homens à miséria humana ainda encontrou matéria-prima para que alguns dos miseráveis se prestassem a reproduzir a miséria.


Abraços para todos os camaradas.

João Tunes

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(*) - Memórias do Colonialismo e da Guerra, Dalila Cabrita Mateus, Ed. ASA . Sobre este livro, coloquei post no meu blogue > Água Lisa (6) > 27 de Novembro de 2006 > A África e Nós
Cópia da capa do livro de Dalila Cabrita Mateus > Memórias do Colonialismo e da Guerra. Porto: Edições ASA. 2006. Colecção: Arquivos Históricos. 672 pp. Preço: 24,00 € (com IVA).


Fonte: © Edições ASA (2006) (com a devida vénia...).


(...) "Neste quadro, assume um relevo extraordinário o trabalho da Professora Doutora Dalila Cabrita Mateus, do ISCTE, que tem vindo, desde há vários anos, a debruçar-se sobre a guerra colonial no período 1961-1974 e que culminou numa monumental tese de doutoramento sobre o tema após aturadas investigações nos arquivos e na recolha de testemunhos orais em Portugal e em África. Desta tese, a Editora Terramar já havia publicado a síntese do corpo principal (**) incidindo sobre a acção da PIDE nas colónias africanas.

"A Editora ASA acaba agora de editar (***) um complemento de enorme valor testemunhal e que são os depoimentos orais que a investigadora recolheu, aferiu e cruzou junto de portugueses e africanos que foram protagonistas, nos vários cenários coloniais, do drama do conflito-estertor do colonialismo português, esse banho de sangue com que quisemos selar o fim da presença portuguesa em África, na teimosia de contrariar os ventos da história.

"Significativamente, os depoimentos recolhidos por Dalila Mateus entre 1999 e 2001 e sistematizados neste segundo livro, são quase todos acompanhados de uma nota em que se refere os falecimentos da maior parte dos depoentes antes da edição do livro. O que demonstra que essa recolha, para além dos seus valores próprios e impressivos, foi salva à tira, ou seja, mais uns poucos anos passados e testemunhos únicos e riquíssimos perdiam-se na poeira das leis da vida.

"Para um português, não deixa de ser inovador e perturbador ouvir as vozes das elites dos africanos que nos sofreram em África. Dando-nos uma dimensão mais profunda à nossa vergonha necessária. E obrigando-nos, até, a relativizar o nosso próprio quadro europeu de sofrimento da ditadura e do consequente preço pelo alcance da democracia. E o único consolo que resta, no quadro abrangente do regime ditatorial, é que a brutalidade estremada utilizada no cenário colonial (basta comparar as práticas da PIDE na metrópole e nas colónias, lá mais brutal para os prisioneiros que cá, lá mais apoiada que cá pela população branca) acabou por ser a pá de cal deitada no caixão da ditadura.

"Vem aí o Natal, época de prendas. Para os outros e para nós. As minhas sugestões ficam aqui. Porque não há melhor oferta que a de nos ajudarmos a entender. E essa obra de entendimento (do eu, de nós, dos outros), ideia minha, é mister sobretudo dos poetas e dos historiadores. Sem uns e outros, seremos apenas, por muito bem que cantemos, pássaros à janela (para sair ou entrar)" (...).

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(**) –A PIDE/DGS na Guerra Colonial (1961-1974), Dalila Cabrita Mateus, Ed. Terramar. 2004.

(**) – Memórias do Colonialismo e da Guerra, Dalila Cabrita Mateus, Ed. ASA. 2006.


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Notas de L.G.:

(1) Há vários posts do Leopoldo Amado no nosso blogue. Vd., por exemplo, posts de:


22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte

25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVI: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte


(2) Ilha das Galinhas: fica situada a sudoeste da Ilha de Bolama, separada desta pelo Canal de Bolama. Por lá passaram muitos dirigentes e militantes do PAIGC, incluindo um dos seus fundadores, Rafael Barbsa:

(...) "Ora, para lá do provável ou mesmo real empolamento de Pindjiguiti e da justeza ou não das formas e conceitos, sempre discutíveis, sobre a forma como Pindjiguiti foi etiquetado (contenda laboral, massacre ou carnificina) ou ainda do quantitativo de mortes que se saldou na decorrência do acontecimento enquanto tal, temos para nós que o que se afigura importante é o reconhecimento da importância e o alcance históricos que o mesmo teve, à jusante e à montante da guerra colonial/guerra de libertação, no contexto do processo libertário do povo guineense.

"Aliás, não foi por acaso que depois de Pindjiguiti o PAIGC logrou atingir uma assinalável mobilização que permitiu o desencadeamento da luta armada de libertação. Também, não foi por acaso que no decorrer da guerra colonial/ guerra de libertação, invariavelmente, o PAIGC normalmente assinalava a efeméride com ataques simultâneos a várias localidades, inclusivamente os centros urbanos, sobretudo a partir de 1968.

"Não foi igualmente por acaso que em 1962, os vários partidos e movimentos de libertação que pululavam em Dakar e Conakry (mais contra o PAIGC do que contra o colonialismo português) decidiram criar a 3 de Agosto desse mesmo ano uma frente de luta, a FLING.
"Por fim, não foi também por acaso que Spínola, por ironia do destino, mas com objectivos claramente à vista, procedeu, no âmbito da sua política da Guiné Melhor, a 3 de Agosto de 1969, a uma espectacular libertação de cerca de uma centena de prisioneiros políticos guineenses, dos quais Rafael Barbosa, ex-Presidente do PAIGC, bem como todos os que se encontravam na colónia penal d da Ilha das Galinhas, da Colónia Penal de Tarrafal em Cabo Verde e os que se encontrvam no Forte de Roçadas, em Angola, em pleno deserto de Moçamedes" (...).

(3) Vd. blogue de Leopoldo Amado, Lamparam II > 14 de Maio de 2006 > Simbólica de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau



Fonte: Guiné-Bissau Contributo (blogue de Didinho)


Também José Carlos Schwarz (que não tem qualquer parentesco com o nosso Pepito) esteve desterrado na Ilha das Galinhas.O pioneiro da moderna música da Guiné-Bissau - poeta, músico, compositor e intérprete - nasceu na capital em 6 de Dezembro de 1949. Fez os seus estudos em Bissau e Dacar. Preso político, foi deportado para a Ilha das Galinhas. Após a independência, foi director do Departamento de Arte e Cultura do Comissariado da Juventude e Desportos e encarregado de negócios da Guiné-Bissau em Cuba. Foi, de resto, aqui que encontrou a morte, num dedsastre de aviação, ocorrido a 27 de Maio de 1977 .