segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2229: Questões politicamente (in)correctas (35): RTP: o (im)possível debate sobre a guerra (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem recente do Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil - e grande fadista! - que, na Guiné (1971/73), pertenceu a três unidades: CART 3492 (Xitole), Pel Caç Nat 52 (Mato Cão / Rio Udunduma) e CCAÇ 15 (Mansoa). Caros Luís e Camaradas da Guiné:

Em 17 deste mês enviei o mail abaixo. Como não obtive qualquer resposta e o assunto me parece ser actual, fiquei na dúvida se o receberam.

Sei muito bem que nem todos os mails que enviamos são objecto de publicação e, seja qual for o critério dos editores, concordo à partida desde já com eles.

Sei que este assunto é polémico mas também sei que se não enfrentarmos as coisas que vivem nas nossas vidas, dificilmente alcançaremos a paz sobre o nosso passado.

Nós não fomos políticos, fomos apenas os soldados que foram chamados a combater pela sua Pátria, independentemente da razão ou não razão da mesma. Em todas as guerras há sempre diversas visões e a maior parte delas colidem umas com as outras. Para termos paz, pelo menos eu, não podemos atribuir virtudes só a um dos lados e o outro ser o condenado.

Por isso falo em termos militares, puramente militares, pois apenas vejo, (parece-me), grandes feitos de um lado, e defeitos do outro, ao qual eu pertencia.

É muito dificil explicar onde quero chegar, e sei, repito, que o assunto é polémico, mas não há dúvidas que falta essa análise sem vergonhas, nem sentimentos de culpa.
Estarei enganado? É possivel, mas a verdade é que sempre me incomodou dar certas coisas como adquiridas, por isso digo que se calhar ainda é cedo para uma análise desapaixonada deste ponto de vista.

Repito que nada disto implica com a condenação da guerra, (esta e qualquer outra), que ainda bem terminou e nunca devia ter acontecido.

Abraço amigo do

Joaquim Mexia Alves
Termas de Monte Real
Tel: +351 244 619 020 / fax: +351 244 619 029


2. Mernsagem de 17 de Outubro, enviada pelo Joaquim Mexias Alves:

Assunto: Prós e Contras

Caro Luís e Camaradas da Guiné:

Também assisti ao [programa] Prós e Contras, mas confesso que me começou a faltar a pachorra e fui-me deitar.

Como o Luís, também acho que aquele formato de programa, já não dá. Fico sempre com a impressão que o programa se podia chamar "Fátima e os seus convidados", pois a maior parte das vezes ela fala mais que os convidados e constantemente interrompe o discurso e linha de pensamento dos mesmos.

Bem esta é a minha apreciação, outros verão de modo diferente!

Quanto ao debate: Apesar de já ter passado muito tempo, provavelmente ainda é pouco, porque se nota que as paixões estão à flor da pele. Ou seja todo o debate está eivado de política e por isso mesmo muitas vezes carece de objectividade.

Claro que seria difícil falar de uma guerra destas sem falar da política ou do ponto de vista político, mas a guerra não se resume apenas à política.

Passaram a maior parte do tempo a discutir se a guerra era do ultramar, se colonial, se de libertação.Ora, abóbora, conforme o pensamento de cada um ela terá a designação que cada um lhe quer dar: (i) Do ultramar, porque uns acreditavam ou queriam acreditar servindo os seus interesses, que aqueles territórios eram parte integrante do "todo nacional"; (ii) Colonial por aqueles que viam ou queriam ver, servindo os seus interesses, aqueles territórios como colónias; (iii) De libertação por aqueles que, sendo desses países a fizeram, porque aqueles que sendo desses países os apoiaram, mas lembrando que alguns, sendo desses países, com ela não concordavam, e por isso não seria para eles de libertação.

Como foi chamada a guerra das Malvinas? Do ultramar pelos ingleses, colonial pelos argentinos, de libertação pela população, ou alguma população?

Não me parece que isso seja muito importante, pelo menos para mim não é.

Agora pode-se discutir esta guerra do ponto de vista político, do ponto de vista militar e do ponto de vista politico-militar.

Naquele debate parece-me ter-se discutido apenas do ponto de vista político e, como tal, deu em nada. Acaba por se ver e ouvir sempre os mesmos a dizerem as mesmas coisas, citando outros, mas sem grandes provas que eles o tenham dito, servindo-se de frases muitas vezes tiradas de contexto, etc, etc.

E os milicianos? E aqueles que não eram militares profissionais e oriundos de diversos pensares e vivências? O que pensam eles? Alguém viu? Alguém sabe? Alguém quer saber?

Afinal quem fez a guerra, na sua esmagadora maioria, foram os militares de carreira ou os milicianos?

Com isto não estou de modo nenhum a colocar de lado os militares profissionais, que os há e muitos, cheios de competência e dignidade, e que me orgulho de ter servido sob o seu comando.

Mas a verdade, e é a minha opinião, é que a maior parte tenta sempre demonstrar que a guerra estava perdida, e isso cheira-me muitas vezes a uma qualquer justificação!

Claro que a guerra estava perdida! Estava perdida politicamente, como qualquer guerra daquele tipo, e pelo desgaste e a pressão internacional, estaria também perdida militarmente, pois demorasse o tempo que demorasse acabaria na independência daqueles povos.

Mas agora, e era isso que gostava de ver debatido com verdade e sem paixões políticas e outras, verdadeiramente porque se diz que a guerra estava perdida militarmente na Guiné?

É uma afirmação permanente, com a qual eu não concordo, e até agora ninguém me demonstrou o contrário.

Com isto não quero dizer que não fico muito feliz com a independência da Guiné, (gostava de ver um país próspero e um povo feliz), mas sim que se pode analisar a situação, não por dois ou três lugares ou acontecimentos, mas pelo todo.

Vejamos a titulo de exemplo:

Estive de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973 na Guiné e durante esse tempo, que eu saiba, não houve nenhuma emboscada ou ataque a qualquer coluna na estrada Bambadinca/Xitole, ou Bambadinca/Bafatá, ou Xitole/Saltinho, ou, julgo eu, Bafatá/Gabu (Nova Lamego)

Não houve, que eu me lembre, qualquer ataque a barcos no Geba, entre o Xime e Bafatá.

Em Mansoa estávamos a abrir a estrada de Jugudul, (salvo o erro), Portogole e a mesma avançava, claro que com algumas acções de guerra, mas nada que a impedisse.

Montei várias vezes protecções a colunas na estrada entre Mansoa e Mansabá, na zona do Morés e as colunas passaram sem incidentes.

Isto são só alguns exemplos que logicamente não retratam também o que se passava em toda a Guiné, mas parece-me que os trágicos episódios de Gadamael, Guileje e Guidage acabaram por determinar essa informação que a Guerra estava perdida militarmente.

Em muitas guerras, em muitos lugares, ao longo da história do mundo, se perderam algumas praças, mas não se perdeu a guerra.

Em Angola a guerra estava perfeitamente controlada e isto penso que é opinião geral. Em 74 e 75 fiz milhares de quilómetros no interior de Angola e nem um pequeno incidente aconteceu. Assim o esforço militar que se estava a fazer em Angola, podia ser desviado em parte para a Guiné, mormente Força Aérea com outras capacidades, o que poderia mudar muita coisa na Guiné.

Com isto não estou a dizer que queria que a guerra continuasse! Não, nem tal me passa pela cabeça, ainda bem que acabou, para todos nós, Guineenses e Portugueses!

Apenas quero dizer que, na minha opinião, a guerra militarmente não estava perdida, ou pelo menos ainda não mo conseguiram demonstrar.

Sei que esta é uma abordagem polémica, e que a análise que aqui faço, (se é que se pode chamar análise a este arrazoado de ideias), não demonstra coisa nenhuma, mas talvez suscite discussão sã sobre os méritos ou deméritos das Forças Armadas Portuguesas, às quais pertencemos, embora alguns dos seus elementos nos queiram esquecer.

Agora, Luís, deixo-te isto escrito para fazeres o que quiseres, no sentido de que só com serenidade, com distância política e emocional é possível fazer uma verdadeira discussão e análise ao que foi a Guerra da Guiné.

Eu sinceramente não sei se tenho essa distância, sobretudo emocional, para me abalançar à discussão. Mas se não formos nós que estivemos no terreno, quem o fará?

Abraço forte do camarigo [camarada e amigo]
Joaquim Mexia Alves

PS - Ah, não revejo o texto, não me apetece, e se calhar se o revir já não o mando.
Perdoem-me também qualquer imprecisão de tempos e lugares, mas a memória já não é o que era.


3. Comentário de L.G.:

O direito à palavra é a regra de ouro da nossa tertúlia! Obrigado, Joaquim, e desculpa o atraso. Deixa-me só dizer-te duas ou três palavras, de amizade e de camaradagem:

(i) Percebo o teu desconforto: como é que vais justificar os três anos da tua vida numa tropa, "tão comprida e tão cumprida", como a tua, como a minha, como a nossa, que até meteu uma guerra pelo meio...

(ii) Concordo contigo: um debate a preto e branco sobre essa guerra só pode levar ao seu enviesamento e emprobrecimento... Debates como os do Prós e Contras são uma armadilha letal, são um espectáculo deprimente... Eu recuso-me, não os vejo, não sou masoquista, não sou maniqueísta...

(iii) Resta-nos fazer as pazes connosco próprios, encontrando entre os velhos camaradas, o maior denominador comum, que são as nossas (contraditórias mas não necessariamente antagónicas) vivências...

(iv) Não escondemos - a generalidade de nós, milicianos e soldados do contingente geral - que partimos com a morte na alma... Parafraseando a letra do teu belíssimo fado da Guiné: Lembras-te bem daquele dia / Enquanto o barco partia / E tu morrias no cais // Braço dado com a morte / Enfrentavas tua sorte / Abafando os teus ais... Impossível esquecer a tua condição de português, mas também acreditando no futuro e na história: Que o suor do teu valor / Que vai abafando a dor / Que te faz manter de pé, // Seja massa e fermento / Desse nobre sentimento / Que nutres pela Guiné.

Guiné 63/74 - P2228: PAIGC - Instrução, táctica e logística (5): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (V Parte): Flagelações (A. Marques Lopes)


Foto e legenda: Luís Cabral, Crónica da Libertação. Lisboa: O Jornal. 1984 (Imagem digitalizada por A. Marques Lopes) (com a devida vénia ao autor e ao editor...). A legenda diz o seguinte: "A condecortação dos corajosos combatentes que em Fevereiro de 1968 realizaram a primeira operação contra o aeroporto de Bissau. O Secretário Geral do Partido [, Amílcar Cabarl,] apõe a medalha ao comandante Joaquim N'Com que secundou André Gomes na direcção da importante operação".


Mensagem de 14 de Setembro de 2007, do A. Marques Lopes (natural de Lisboa, hoje coronel DFA, na reforma, e residente em Matosinhos), com mais um texto extraído do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971:


PAIGC > Instrução, táctica e logística > V parte (1)

[Fixação do texto: A.M.L. e editor L.G.]



FLAGELAÇÕES

(1) Generalidades

Ainda que muitas vezes indetectáveis, o IN realiza normalmente reconhecimentos prévios à zona a flagelar, os quais dispensa se por hábito conhece o local onde vai actuar.

São acções normalmente de pouca duração, violentas, lançadas vulgarmente ao anoitecer ou durante a noite, tendo-se no entanto verificado ultimamente a realização de algumas flagelações durante o dia. Em função da violência e dos efectivos cada vez maiores que o IN emprega nestas acções, não é de estranhar da sua parte venha a procurar o assalto, o que aliás já tem tentado.

Embora em numerosas flagelações o IN seja feliz na justeza com que efectua o tiro, é normal o tiro não ser "justo", obviamente sem consequências para as NT. Normal é também a utilização de observadores avançados que, por intermédio de linhas telefónicas ou E/R tipo SHARP, efectuam regulação de tiro.

O dispositivo empregue é variável com o terreno e com os meios utilizados; podemos dizer que normalmente será articulado em três escalões: (i) o dos atiradores com armas ligeiras e lança granadas foguete; (ii) um segundo escalão com canhões sem recuo; e (iii) um terceiro, mais recuado, com morteiros. Isto para ma flagelação em que foram empregues todos os tipos de armas que o IN utiliza.

Outras há em que apenas são utilizados canhões ou morteiros, em acções que o inimigo denomina de “bombardeamento" incluindo-se nestas as flagelações com foguetão 122, também conhecido por GRAD ou Artilharia pesada. A retirada é feita dos escalões mais recuados para os mais próximos, aqueles a coberto dos fogos destes e feita para local previamente escolhido como ponto de recolha e ulterior fuga.


(2) Procedimentos adoptados segundo declarações do capturado Carlos Silva

Normalmente nas flagelações contra os aquartelamentos o IN adopta o seguinte dispositivo:

- Os elementos de infantaria (bigrupo) divide-se em dois grupos que se instalam próximo do aquartelamento. Estes elementos dispõem de LGFog, MP ou ML e armas ligeiras;
- Os Canhões S/R são colocados atrás da infantaria e a uma certa distância, procurando o melhor local;

- Os Morteiros são colocados à rectaguarda dos canhões.

A uma hora fixada as armas pesadas abrem fogo e em seguida faz fogo a infantaria. A duração da acção está condicionada à quantidade de munições existentes e à reacção das NT. A retirada é feita rapidamente, retirando primeiro as armas pesadas sob a protecção da infantaria. Após a retirada o pessoal reune-se no local previamente determinado. Por vezes esses locais não são utilizados, pois a reacção das NT obriga-os a retirar desordenadamente, pelo que regressam aos seus acampamentos conforme as possibilidades.


(3) Esquemas representativos de técnicas doutrinárias

De um caderno de apontamentos pertencente ao chefe de grupo João Landim, foi extraído o seguinte esquema representativo de um ataque a um aquartelamento das NT:





Comentário: O esquema mostra-nos o desenrolar de um ataque feito por um destacamento IN a um aquartelamento das NT, o qual se encontra figurado a azul. O ataque foi lançado a partir de uma base, sendo o deslocamento do destacamento IN representado pelo tracejado a vermelho.

O deslocamento do “grosso” terá sido precedido por um grupo de exploração, sendo representados os diferentes grupos de ataque, as posições dos morteiros e do canhão s/r e juntodestas dois grupos de protecção.

De notar a montagem de um emboscada no itinerário de acesso ao aquartelemento. É representada a entrada de 2 grupos no interior do aquartelamento.


(4) Método de referenciação de objectivos

Ainda do caderno de apontamentos de João Landim, foi extraído um esquema de referenciação de ob jectivos que o IN elabora com vista à flagelação de aquartelamentos ou povoações:



Comentário: O esquema mostra-nos um método de referenciação expedita de objectivos utilizado pelo IN. A linha N/S corresponde à linha 06HORAS–12 HORAS do relógio. A referência a vermelho é portanto a linha de 15 HORAS.

Os objectivos estão referenciados relativamente à linha de referência por horas, negativas ou positivas conforme se acham no quadrante da esquerda ou direita.
A distância do ponto de estação (centro do relógio) é assinalada, provavelmente, em metros.


FLAGELAÇÕES - CASOS REAIS


(1) Casos reais baseados em relatórios das NT e documentação capturada ao IN


(1a) Táctica prevista pelo IN para o ataque a BUBA em 10 de Outubro de 1969

1. Tradução de documentos capturados ao Capitão do Exército Cubano Pedro Rodriguez Peralta (2)

Documento N.º 1





Informação [do IN]:


Operação realizada no quartel de Buba em 10 de Outubro de 1969. Ao partir da fronteira no dia 2 de Outubro mandou-se, vinte dias antes, um grupo de exploração que tinha por missão obter todos os dados da mesma.

Croquis com áreas em volta, colocação possível para a infantaria, artilharia, além de realizar uma operação artilheira normal [?] e ao mesmo tempo [?] os pontos onde se instalariam os m[orteiros] 82 e GRAD [, foguetão 122 mm] (3)e o posto de observação.

Para isto se designou um companheiro capaz, à frente disto se pôs Júlio – caboverdeano e artilheiro de M [orteiro] e GRAD e o chefe da região, companheiro Chuchu.

À nossa chegada o trabalho realizado deste croquis estava mal, pois que foi feito de noite e não se podia fazer uma boa apreciação.

Discutimos com Nino, até que se ordenou uma nova exploração que depois confrontámos com os companheiros de segurança. Junta-se o plano mais as possíveis forças que defendiam que são aproximadamente mais de quatro centos e picos homens.

Com todos estes dados reunimo-nos, Manuel, Júlio e eu, e depois de analisar a situação do quartel e a sua possível defesa devo declarar que a nossa apreciação foi correcta já porque analisámos todos os possíveis [ pontos ?] de tiro de armas pesadas, o que se comprovou na prática.

Depois analisámos como actuaria a Infantaria e não concordámos porque eles opinavam realizar o ataque por uma única direcção, coisa que lhe expusemos na nossa discussão. Concentrar 5 bigrupos num só lugar serão muitas as baixas da nossa parte, já que era uma frente de 200 metros. Depois propusemos uma variante, fazer o ataque da mesma forma em 2 escalões. Isto foi desejado já que depois de discutir e ao expor-lhe razões de pouca preparação dos bigrupos corríamos um grande risco de baixas pelas nossas próprias forças, mas insistiram no seu planeamento inicial.

Coube-nos a nós fazer a nossa proposta que foi a seguinte: Os portugueses pela situação do quartel deviam ter a seguinte forma de defesa: (i) Pela parte da frente do mesmo mas sobre a direita, por ter mais visibilidade, devia ter sectores de tiro encruzados de autometralhadoras; (ii) Pela rectaguarda um sector de tiro em idênticas condições aproveitando a limpeza e podendo bater todo o rio em caso de tentativa de travessia; (iii) A possibilidade com uma autometralhadora que cobrirá o embarcadouro que está a 50 metros do quartel e uma ou duas peças entre o quartel do lado que dá para a população.

Analisando tudo isto a infantaria devia atacar em duas direcções uma principal e outra secundária, como se segue:

(i) Concentar bigrupos reforçados com bazooka RPG7, metralhadora libiana [=líbia ?,](3) pela porta do quartel e onde termina a pista de aviação, onde pela sua situação ressalta a possibilidade que a ponta da pista não pode ser minada, nem os seus arredores, como medida de segurança podia avançar até chegar a 50 metros do quartel; este seria o golpe principal.

(ii) O secundário seria com o resto dos dois bigrupos e o resto, entrariam por onde se encontra população avançada para entraraz em cunha em relação o outro; desta forma entendíamos que os portugueses não tinham saíd[a] desta situação.

Manuel disse que era correcta mas havia planeado antes, menos Júlio que estava plenamente de acordo. Decidimos apresentar o plano a Nino com tudo o que foi feito e ele, como chefe, decidiria.

Este depois de ver o terreno e tudo o que havia sido feito decidiu que o ataque se fizesse em duas direcções, quer dizer, de acordo com a nossa apreciação, e ordenou as disposições finais e discutimos como devia avançar a infantaria e como se realizaria o fogo no arame, que é como se segue:

(i) Os Combatentes com o RPG7 em primeira linha, com apoio de metralhadora libiana varreriam todos os ninhos de metralhadoras e pontos de resistência no meu avanço.

(ii) Ao terminar isto a infantaria encontrar-se-ia perto do quartel e com as AK em tiro a tiro e apoio de metralhadora libiana avançaria rapidamente para o mesmo. Isto jogava com o tiro de artilharia que explicaremos depois.

Para isto pôs-se o comandante Chuchu, chefe da região, e o companheiro Baro, caboverdeano, como responsável da infantaria, e nos bigrupos que avançariam por ambas as direcções um companheiro em cada um dos comandos como quadros intermediários para dar ordens aos bigrupos para iniciar o combate. Como meio de comunicações teriam desde os responsáveis e os dois companheiros dos bigrupos rádio “Bobitoqui” [walkie-talkie ?] que estavam bons e a comunicarem na perfeição. Também se precisou a hora em que estariam em posição (Esta dá-la-emos com o tiro A.)


Documento N.º 2


Notas sobre o ataque a Buba

Homens inimigos 400 ou mais
Ordem de fogo
B-10 tiro directo 180 granadas
Mort 82 180 granadas
A. X 7 foguetes
Depois de 90 granadas M-82 = tiro comprido, encurtar a distância como se segue:
1.º tiro 150 metros para além do quartel; 2.º tiro 50 metros menos; 3.º tiro 50 metros menos; 4.º tiro 50 menos menos.

Simultaneamente, quando os tiros de morteiro encurtarem, a infantaria avança até entrar em acção depois de terem terminado os morteiros.


Colocar dois bazookeiros na pista de aviação, um RPG7, um RPG2, com um atirador AK, um canhão [s/r] B-10 em tiro directo para o embarcadouro, para evitar a entrada de barco.

2 bigrupos como protecção da artilharia [?] e encarregados da mesma = 12 DCK = AA.



Documento n.º 3


2. Ensinamentos colhidos (do relatório das NT)

A acção empreendida pelo IN em 12 de Outubro de 1969 foi indubitavelmente das melhores planeadas que se têm efectuado contra este aquartelamento e, tanto quanto saibamos, foi a primeira vez que foi tentada uma acção contra Buba utilizando duas forças actuando em coordenação.

Analisando o procedimento IN é de notar a inteligente disposição dos Canhões S/R e Morteiros na foz e margem direita do Rio Mancamã, distanciados cerca de 1800 metros e actuando em coordenação com observação avançada conforme o esquema junto dá ideia.




De notar também o cuidado com que foi realizada a progressão das forças de assalto que, evitando trilhos e picadas, progrediam a corta mato até muito próximo do aquartelamento.

De salientar o número elevado de homens empenhados nesta acção última. Com efeito o trilho de aproximação e retirada detectado revela ter sido utilizado por grande número de elementos, todos calçados de igual – possivelmente botas de cabedal de rasto de borracha com desenho semelhante à das NT mas mais miúdo.

Da observação cuidadosa desse trilho resulta não nos parecer exagerada a afirmação de que a força que tentou o assalto ao aquartelamento era composta por cerca de 200 elementos.


3. Esquema dos itinerários de aproximação retirada do IN





(1b) Táctica prevista pelo IN para o ataque a BEDANDA


(Extraído dos documentos capturados ao Capitão do Exército Cubano Pedro Rodriguez Peralta)





(1c) Modos de actuação contra JABADÁ



1. Do estudo e interpretação de vários relatórios das flagelações a JABADÁ [, a nordeste de Tite,]e das declarações de capturados nelas intervenientes, concluiu-se:

As actuações contra o aquartelamento de JABADÁ podem considerar-se divididas em várias fases, correspondentes aos segunintes períodos:

(i) Até meados de Dezembro de 1968: As flagelações eram feitas com todos os elementos;

(ii) De meados de Dezembro de 1968 até final de Janeiro de 1969:

Este período correspondeu à permanência de Nino na região, tendo as flagelações passado a ser feitas do seguinte modo:

- As Armas Pesadas (Can S/R e Mort 82) eram colocadas a cerca de 3 Kms do aquartelamento, do lado Sul, e o tiro era regulado por um cubano;

- Os elementos de infantaria (bigrupos), armados com LGFog, MP, ML e Arm Lig, instalavam-se perto da povoação, do lado direito da estrada (conforme consta na figura junta);

- A acção era iniciada pelas armas pesadas que deixavem de fazer fogo pouco depois de as NT iniciarem a reacção.

- Quando as NT diminuíam a intensiddade de fogo (ou cessavam a reacção), os elementos instalados próximos da povoação abriam por sua vez fogo, aproveitando assim o gasto de munições por parte das NT.

Estes elementos IN eram protegidos ou não pelo fogo de Mort 82, mas nunca pelo de Can S/R. Faziam geralmente pontaria baixa.

(iii) A partir de Fevereiro de 1969:

- A partir deste período as NT passaram a montar emboscadas, com certa frequência, na região de FLAQUE AMEDÉ e o IN deixou de utilizar o dispositivo habitual e começou a actuar simultaneamente sobre o nossso aquartelamento e sobre a região de FLAQUE AMEDÉ. Estas acções passaram a ser desencadeadas, novamente, de longe.

- Na acção do dia 9 de Agosto de 1969, o IN utilizou bases de fogos diferentes das habituais e cruzou os fogos, actuando de diversas zonas simultaneamente.


2. Segundo as declarações do capturado Domingos Bolo (que era chefe de um bigrupo que actuou diversas vezes contra o aquartelamento de JABADÁ), antes das acções, um grupo IN faz o reconhecimento a fim de verificar se as NT têm montadas emboscadas, pois que se tal acontece não realizam a acção.

Referiu ainda que as acções eram desencadeadas sempre de Oeste da estrada, porquanto de Este o terreno não lhes garantia tirar bons rendimentos nas acções nem uma fácil retirada.

Das declarações deste capturado (que actuou sobre as ordens de Nino nas flagelações a JABADÁ) foi feito o seguinte esquema do dispositivo IN:






(1c) Planeamento para a condução de uma acção contra o aquartelamento de EMPADA


Transcrem-se duas cartas escritas por Júlio César de Carvalho (Julinho) ao omandante do bigrupo Quintino Gomes e que foram capturadas durante uma operação das NT:


TOMBALI, 22 de Dezembro de 1970

Caro camarada Quintino:

Saudações para todos os camaradas e votos de boa saúde.

Comunico-te o seguinte: Pensamos realizar missão em EMPADA com forças de Artilharia e Infantaria: para isso tens a seguinte missão:

1.º Juntamente com o camarada Mamaly, comandante de bigrupo, acompanhado de dois chefes de grupo, devem reconhecer o objectivo para a actuação da Infantaria. Devem realizar a missão o mais depressa possível, para cumprirmos a missão antes do fim do ano;

2.º Indicar um local seguro onde podemos reunir munições de Mort 82 e B-10 [Canhão S/R B-10 ou BEDIS ?] (2) dois ou três dias antes da operação;

3.º Comunicar a quantidade de munições M62 [ Morteiro 62 ] e OB-10 que podemos contar naquele sector, em bom estado.

4.º O camarada Mamaly deve regressar imediatamente após o cumprimento do reconhecimento.

5.º Como sempre, manter o máximo de segredo, mesmo junto de outros camaradas, desta missão.

É só isso.

Saudações combativas para todos.

Um abraço do camarada amigo

Ass)



TOMBALI, 27 de Dezembro de 1970


Caro camarada Quintino:


Saúde e votos de bom trabalho.

Recebi a tua carta, satisfeito pelo conteúdo. Hoje, dia 27, segirão os camaradas da Bataria com as respectivas peças e munições; com eles vai o Bigrupo de Mamaly.

Deverão contactar-se imediatamente e juntamente com os camaradas Casimiro Cordeiro, Rachide e Mamaly deverão resolver o seguinte:

1.º Contactar om os camaradas Dinis (CP) e Tomaz (Comércio) para conseguir todo o arroz necessário. A fim deles estarem avisados vou escrever-lhes nesse sentido.

2.º Transportar os 55 obuses de OB-10 juntá-los com as munições destinadas para a operação.

3.º Contactar com o camada Diniz para, se possível, enviar amanhã a canoa grande que foi lançada à água nesses dias.

4.º Ver um local onde podemos deixar o médico com o seu equipamento de modo a servir tanto a infantaria como a artilharia.

5.º Preparar todos os teus homens que, juntamente com a nossa Infantaria, tomarão parte no ataque.

É só isso.

Saudações para todos e votos de que consigam cumprir tudo.

Vosso camarada amigo

Ass)


As duas cartas que se transcrevem dizem respeito a uma ordem de missão relativa a uma acção sobre o nosso aquartelamento de EMPADA, a qual foi realizada em 30 de Dezembro de 1970.

Da análise das referidas cartas ressalta o seguinte:

- O cuidado posto no planeamento da acção;

- O reconhecimento prévio das posições das forças de Infantaria bem como do local onde seriam colocadas as munições para as armas pesadas dias antes do ataque;

- As recomendações dadas quanto à manutenção do segredo da operação;

- A preocupação em assegurar a alimentação das forças que se iriam deslocar para o local da concentração;

- A escolha do local onde ficaria o médico numa posição em que “servisse tanto para a Infantaria como a Artilharia”;

- Da acção, conduzida com violência, resultaram elevados danos materiais.

________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

22 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2124: PAIGC - Instrução, táctica e logística (1): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (I Parte) (A. Marques Lopes)

24 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2126: PAIGC - Instrução, táctica e logística (2): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (II Parte) (A. Marques Lopes)

1 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2146: PAIGC - Instrução, táctica e logística (3): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (III Parte) (A. Marques Lopes)

8 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2164: PAIGC - Instrução, táctica e logística (4): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (IV Parte): Emboscadas (A. Marques Lopes)

(2) Capitão Pedro Rodriguez Peralta: cubano, capturado pelos pára-quedistas do BCP 12/ CCP 122, em 18 de Novembro de 1969, no sul da Guiné (Operação Jove). Gravemente ferido, foi depois transferido para Lisboa, e condenado pelo Tribunal Militar de Lisboa em dois anos e dois meses de prisão, sob a acusação de pertencer ao PAIGC. Só foi libertado depois do 25 de Abril de 1974.

(3) Vd. post de 27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1890: PAIGC: Gíria revolucionária... ou como os guerrilheiros designavam o seu armamento (A. Marques Lopes)

domingo, 28 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2227: Questões politicamente (in)correctas (34): RTP: Guerra Colonial, do Ultramar, de Libertação ou de África ? (Paulo Raposo)

1. Mensagem do Paulo Raposo (1), com data de 19 de Outubro:

Olá, Luís.

Há muito que tenho estado afastado destas lides. Depois de ver o programa [da RTP1, Prós e Contras,] (2), estou a enviar os meus comentários ao que lá foi dito.

Guerra Colonial, do Ultramar ou de Libertação: Foram as opções que nos deram, mas o nome tem de ser consensual e nacional. Uma coisas são os regimes, outra é a Pátria.

Realmente a nossa Guerra em África teve o seu começo na II Guerra Mundial. Se esta foi um grande terramoto, a nossa foi a sua réplica.

Assim, comecemos. A Alemanha teve sempre na mira duas coisas, as suas grandes aspirações:

1 - A Gross Deutschland, ou seja, crescer a Alemanha para leste: para isso lançaram colonatos pela Rússia dentro e ao longo do rio Volga.

2 - Ter um porto de mar de águas quentes que estivesse fora do alcance dos ingleses. O único porto, antes dos Pirinéus, com essas características, é o porto de Bordéus.

Hitler foi tão popular, porque prometeu ao povo alemão estes dois objectivos e conseguiu.

Agora vejamos a vaga de fundo que isto causou. Para o exército alemão entrar na Rússia, o Estado Maior forjou umas cartas trocados com o Estado Maior do exército vermelho, dando a impressão que este facilitaria a entrada dos alemães por território russo com última intenção de derrubar o comunismo.

Arranjaram maneira de que estas cartas chegassem às mãos de Estaline por mero descuido. Estaline acreditou e em consequência decapitou os seus oficias superiores, ou seja, decapitou o seu exército.

A entrada dos alemães pela Rússia foi pão com manteiga até... O General Von Paulus chegou a S. Petersburgo e cercou a cidade a sul, e a norte foi cercada pelos finlandeses. Esperavam que a cidade se rendesse pela fome.

Acontece que os russos conseguiram, apenas por um fio, continuar a alimentar a cidade que resistiu comandada por Kruschef às ordens de Estaline. Neste premeio os alemães convidaram Costa Gomes e Spínola a visitar esta frente e possivelmente entraram em contacto com Van Paulus.

E aqui, em S. Petersburgo, levantou-se uma vaga de fundo que arrastou os alemães até ao Rio Elba. Parou aqui porque estavam as tropas inglesas e americanas, senão só teriam parado em Bordéus.

Foi no levantar nesta vaga de fundo que apareceu pela primeira vez a palavra Descolonização. Pois à medida que os russos avançavam iam descolonizando ou limpando os colonatos alemães a leste.

Diz-se também que, quando Von Paulus se rendeu, ele e o seu Estado Maior começaram a trabalhar para os russos ocupando o lugar dos oficias superiores russos executados.

Portanto a palavra colonato ou descolonização está carregada de ódio entre russos e alemães.

Não nos diz respeito, aqueles são potências continentais e nós estivemos sempre ligados às potências marítimas. É outro campeonato.

Portanto, recuso Guerra Colonial. Pode ser Guerra do Ultramar, está mais correcta mas não é consensual. Guerra da Libertação, muito menos. O nosso inimigo da altura chamava-lhe luta da libertação, não guerra.

Pois guerra implica duas forças beligerantes.De um lado estávamos nós e do outro?
Também não lhe chamaram Guerra Civil, porquê?Portanto acho para ser mais consensual será Guerra de África , ou do Ultramar, se quisermos incluir a invasão de Goa.
Vou tentar escrever sobre cada um dos assuntos que foram tratados no debate.


É a minha opinião que é tão válida como outra qualquer.

Luís, já que tens tido a paciência de nos aturar e a perseverança de manter esta chama, venho pedir um favor: Não podes lançar em CD os documentário e filmes que se produziram durante o nosso tempo de luta?

Um abraço amigo do

Paulo

Paulo Lage Raposo
Alf Mil Inf
BCAÇ 2852 / CCAÇ 2405
Guiné 68/70
Tel 266898240
Herdade da Ameira
7050 Montemor O Novo

2. Comentário de L.G.:

Paulo:

É bom saber de ti e de voltar a partilhar o teu gosto pela análise geoestratégica. Aqui fica a tua posição sobre a questão (que não é meramente semântica) do nome a dar à nossa guerra: Colonial ? Civil ? Do Ultramar ? De Libertação ? De África ? Como eu tenho aqui defendido, na nossa caserna virtual, a terminologia fica ao gosto do freguês, ou seja, de cada um... Eu não tenho qualquer direito de te impor o meu ponto de vista, e vice-versa.... Não é preciso repetir, até à exaustão, que somos uma tertúlia plural e tolerante... O que nos une não é a ideologia, mas a camaradagem...

Tenho no entanto a obrigação (editorial) de chamar a atenção por o facto (histórico) de que houve, por parte do Estado Novo, uma clara mudança de terminologia em 1951, face à percepção dos novos ventos da história: (i) recorde-se que o Acto Colonial (sic) é o primeiro documento constitucional do Estado Novo, promulgado a 8 de Julho de 1930, pelo Decreto n.º 18 570, numa altura em que Oliveira Salazar assume as funções de Ministro Interino das Colónias; (ii) o termo colónias sempre foi usado tanto pela Monarquia como pela I República; (iii) a II Guerra Mundial e as primeiras independências de antigas colónias britânicas (por exemplo, a Indía, em 1947) vão obrigar o Estado Novo a revogar o Acto Colonial, na revisão da Constituição de 1933 feita em 1951 (3).

Quanto ao teu pedido, não sei se estarei em condições de satisfazê-lo... O material audiovisual sobre a nossa guerra está disperso, o mais importante estando nas mãos da RTP e do exército... Eu acho que a nossa geração, que combateu na Guiné, em Angola e em Moçambique, tem direito a visionar esses documentários e filmes... Vamos estar atentos à série A Guerra, que começou a ser apresentada pela RTP... Quanto a nós, vamos estar atentos aos documentários que nos chegarem às mãos ou ao nosso conhecimento... Ainda há umas semanas atrás, o Carlos Marques dos Santos me mandou alguns pequenos filmes do ex-Alf Mil Cardoso, da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)...Houve malta nossa que fez, na Guiné, pequenos filmes em 8 mm... Esse material pode ser hoje recuperado... Aqui fica, pois, o teu e o meu apelo.

Daqui vai , de Lisboa até à tua querida Ameira, aquele quebra-ossos... Para o Almansor de Montemor, com a amizade e a camaradagem do Luís.
_____________

Notas de L.G.:

(1) Paulo Raposo: ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Vd. post de 10 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1060: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (19): regresso a Lisboa e à vida civil (fim)

(2) Vd. post de 17 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2184: A Guerra do Ultramar no programa Prós e Contras (RTP1, 15 de Outubro de 2007): o debate dos generais (Inácio Silva)

(3) Acto colonial 1930. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2007. [Consult. 2007-10-28].Disponível em http://www.infopedia.pt/$acto-colonial-1930.

Guiné 63/74 - P2226: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (13): Um filme sério, honesto, positivo, inacabado (Hélder Sousa)

Lisboa > Belém > Forte de Bom Sucesso > Monumento aos Combatentes do Ultramar > 28 de Outubro de 2007 > Apesar dos longos e duros 11 anos de guerra, não há hoje ódio entre portugueses e guineenses, é o sentimento com se que fica quando se ouve falar os ex-combatentes, de um lado e de outro, no filme As Duas Faces da Guerra.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem do Helder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72) (1)

Assunto As duas faces da guerra - Filme/Documentário

Caros Amigos


Li com muita atenção os vários comentários que foram feitos ao trabalho da Diana e do Flora (2) e não posso deixar de manifestar o meu acordo com o que na generalidade foi sendo divulgado, sendo certo que algumas das opiniões emitidas revelam ainda uma grande carga emocional, o que, valha a verdade, só vem em abono do que o Filme/Documentário contém em si mesmo e que é o de ser capaz de despertar as emoções e suscitar a reflexão/discussão.

Sem qualquer reticência ou reserva mental considero que achei uma grande honestidade na forma e no conteúdo do trabalho, principalmente depois de anotar e aceitar o que a Diana disse sobre o facto de se tratar de uma obra necessariamente incompleta pela enormidade das coisas que havia a referir, a exibir, a mostrar.

É certo que muitos de nós gostaríamos de ver mais, de ver traduzidas em imagens a beleza da paisagem estranha que tanto nos cativou, as dificuldades de atravessar as bolanhas, o tarrafo, a floresta-galeria, a angústia das esperas nas emboscadas, a incerteza das flagelações, enfim, também todo o trabalho de assistência às populações (independentemente se isso era parte da "psícola" ou também muito de nós próprios), mas isso seria certamente um outro filme.

É claro também (e já foi escrito no nosso Blogue) que alguns dos episódios passados durante os longos 11 anos de guerra dariam bons temas para bons filmes, épicos, dramáticos, heróicos, etc., (os americanos fizeram vários filmes sobre o Vietnam, quem não se lembra de "O Caçador", "Platoon", "Apocallipse Now" e outros) mas isso poderão ser propostas para outros trabalhos que não este que observámos. Uma coisa de cada vez! Quem sabe se não se lança agora a semente duma iniciativa desse género?

Por outro lado é bom não esquecer também que está em marcha o "Projecto Guiledje" o qual vai muito mais no sentido do futuro, ou seja, recordar a guerra, como e onde as "coisas" se passaram mas agora para consolidar a paz obtida e construir o futuro.

Conhecendo a postura anti-guerra manifestada pela co-realizadora e sabendo do divulgado impacto emocional que lhe causou o visionamento do monumento com os nomes dos jovens mortos em Geba, dois dos quais no dia do seu 20º aniversário, parece-me que houve, da parte dela e portanto da forma como se reflecte no trabalho apresentado, uma caminhada no sentido de respeitar aqueles que lá estiveram, que sofreram, que lutaram, que morreram ou ficaram feridos (no corpo e na alma), independentemente da posição que tinham sobre a justeza ou não da guerra, da sua presença ali, e que, para muitos, foi o verdadeiro local de consciencialização da necessidade de mudança que veio a acontecer.

Não acho, como alguns amigos manifestaram o receio, de que "mais uma vez fomos apresentados como os maus da fita", pelo contrário, não me lembro de ter visto algo que referisse a acção dos nossos jovens militares como "criminosa".

Vi sim, e muitas vezes, a referência ao "não ódio" entre as partes, mesmo no tempo em que os acontecimentos se desenrolavam, e também agora no tempo presente. Vi inclusivamente a teorização de que "guerra é guerra", agora já tudo passou!

Portanto, é um trabalho sério, honesto, positivo, inacabado (no sentido que pode ter mais matéria para discussão) que se recomenda vivamente para fomentar essa discussão, levar ao conhecimento de amigos, familiares e público em geral o que foram esses tempos que muitos de nós vivemos e a que raramente nos referíamos, até para, inclusivamente, levar as autoridades a colocar dignidade e respeito na memória de toda uma geração de portugueses que fizeram História e que agora escrevem a história dessa época.

Cumprimentos a todos os amigos e camaradas da Guiné e, já agora, aproveito para prometer ao Luís Graça que, se não me distrair, não volto a chamar lhe
"comandante"... para ele não ficar embaraçado!

Hélder Sousa

___________

Notas dos editores:

(1) Vd. posts de:

20 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2197: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (4): Encontro tertuliano no hall da Culturgest na estreia do filme (Luís Graça)

26 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1702: A guerra também se ganhava (ou perdia) nas ondas hertzianas (Helder Sousa, Centro de Escuta e de Radiolocalização, Bissau)

11 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1652: Tertúlia: Três novos candidatos: José Pereira, Hélder Sousa e Jorge Teixeira

(2) Vd. último post desta série > 27 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2223: A nossa Tabanca Grande e as Duas Faces da Guerra (5): A minha luta diária com a Maria Turra, no HM241 (Carlos Américo Cardoso)

Guiné 63/74 - P2225: Antologia (65): Tribulações de um balanta, um conto de Fernando Rodrigues Barragão (1951) (A. Marques Lopes)




BARRAGÃO, Fernando Rodrigues
Tribulações de um balanta / Fernando Rodrigues Barragão
In: Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.- vol. 6, nº 22 (Abr. 1951), p. 399- 404


1. Mensagem do A. Marques Lopes, de 25 de Outubro:

Caros camaradas:

Neste período em que a guerra colonial e as guerras de libertação das
ex-colónias portuguesas têm estado em algumas parangonas ("Prós e Contras" e "A Guerra"), em altura em que muitos, e jovens, já viram "As Duas Faces da
Guerra", tão especial para nós que estivemos na Guiné, dou-vos a conhecer
este texto, que muito me espantou.

Na Guiné, sabemos, havia a Casa Gouveia (CUF), que explorava os seus
naturais na mancarra e no coconote, os comerciantes libaneses (Taufik Saads
e outros...) que os exploravam pelo comércio. Mas este texto fez-me lembrar
o Landorf, nazi fugido da Alemanha, que tinha um comércio em Geba e actuava como o "caixeiro" deste texto.

E o meu grande espanto vem do facto de isto ter sido publicado no "Boletim
Cultural da Guiné Portuguesa", Volume VI, nº 22, de Abril de 1951, relatando
as agruras de um balanta esfaimado e a forma como um comerciante branco se aproveitou disso para o explorar. Frisa a submissão dos mais velhos, por
força da tradição secular, e os desejos de liberdade deste balanta jovem
face à exploração a que era submetido.

O autor é Fernando Rodrigues . Do descobrimento aos dias de hoje. Encontrei o texto no blogue Senegâmbia (Boletim Cultural da Guiné-Bissau e regiões vizinhas - Senegal, Casamansa, Gâmbia, Guiné-Conakri e Cabo Verde) que recomendo.

Abraços
A. Marques Lopes


2. Tribulações de um balanta, por Fernando Rodrigues Barragão


Com o olhar morto, sem simpatia nem rancor, olhou a companheira estendida a um canto.
Acabara de sová-la. De sová-la ferozmente, numa ira súbita que não explicaria. Nem o álcool pode ser acusado. Há muito que não bebe. Onde o dinheiro?

Mas sovara-a. Por nada. Talvez porque a fome o aperta num círculo de fogo. Talvez porque a desordem que lhe vai no espírito se sinta acalmada depois de uma violência qualquer.

Ele sabe que o arroz, todo o arroz da sua colheita farta, se esgotou de repente. Sabe porque o não vê e sente no estômago a sua falta. Mas não compreende.

Por mais voltas que dê, pensando e pensando, não compreende. Servindo-se de pequeninas pedras, fez as suas contas. Mas, a meio já a confusão era tanta que as repetiu. E foi repetindo, vezes e vezes, até desistir.

Só então, entrando em casa, abruptamente sovou o primeiro ser que encontrou.
Os gritos da mulher, rasgando a quietude da «morança» e ecoando longe, mais o enfureceram. E a impunidade - que os vizinhos são sempre surdos - deu-lhe asas e forças.

E agora, olhando aquele corpo estendido, parou. Parou e ficou atónito sem saber o que fazer das mãos calosas que o escaldam. Rosnou qualquer monossílabo a meia voz e saiu.

Cá fora, o sol, a pino sobre a tabanca, empresta-lhe bafos de forno. E põe centelhas em todas as coisas. Pinta de cores gritantes as raras ervas, o colmo fumegante, o chão poeirento e vermelho. Longe, nas «bolanhas» desertas, flutuam vapores ténues e ágeis.

Bovinos famintos e sedentos mugem desoladamente. Um porco, vestido de crostas, refocila o chão ressequido. Crianças nuas amodorram nas raras sombras. Voejam, no ar parado, moscardos zumbidores. Nada mais.

Sob o sol impiedoso, a tabanca tem o ar fanado e triste das coisas mortas. Das coisas irremediavelmente mortas. Uma dor morrinhenta, constante e má, aperta-lhe o estômago e provoca tonturas.

Por momentos, uma indecisão suave e embaladora, leva-o a vacilar. Depois, um repente atira-o para a vereda, dura de muitos passos, que leva à loja. O caixeiro, gordo e vermelho, fuma tranquilamente. Tem uma camisa leve, de estreitas riscas azuis, enxovalhada e suja, e barba de muitos dias.

Quando Clodjê entrou, atirou-lhe um olhar indiferente e interrogou-o com um gesto de cabeça, violento como uma agressão. Clodjê, as mãos apoiadas no balcão, um esgar de dor a contorcer-lhe o rosto ossudo, não respondeu de pronto. Passou o olhar pelas prateleiras desconjuntadas, pelos panos garridos, por toda a loja.

Depois, de jacto, como se procurasse ver-se livre das próprias palavras, atirou:
- Arroz. Empresta. A fome é muita.

O outro teve um sorriso calmo. Chupou, deliciado, uma fumaça funda e semicerrou os olhos numa concentração grave.
- Já não empresto mais. Acabou. Acabou tudo.

Clodjê demorou a perceber. Apenas as últimas palavras lhe ficaram a martelar os tímpanos, repetidas, até ecoarem, surdas e átonas, no cérebro nebuloso.
- Fome é dor cansada. Tem paciência ...

E a sua voz chorosa, suplicante, tinha o som morno de melodia estranha. E aflitiva.
De novo a dor, funda e funda, roía-o. As pernas, que a fome tornara frágeis, tremiam. Todo ele tremia no receio da recusa, na perspectiva angustiosa de ter de internar-se no mato para devorar o que quer que fosse.

Foi só quando deitou a ponta pela janela que o caixeiro ditou as condições. Sem pressas. Sem interesse. Eram uns chatos. Arroz, arroz. Que diabo faziam às brutas colheitas? Vendiam ? Pagavam os empréstimos ? Bom. Mas porque não lavravam mais ? Sim, porque não lavravam? Não tinham? Lérias! Ralaços! Bêbados!

Resmungava, sonolento e acalorado, arrastando os chinelos de manufactura indígena. E, cínico, saboreava o seu poderio sobre aquele pequeno feudo que esmagava. Repetiu as condições. Pagamento a dobrar, uma galinha de gratificação por cada «bushel» [1] de arroz, promessa de compra de aguardente.

Clodjê hesitou. Voltava a ter de lavrar só para pagamentos ... Recuou até à rua, procurou pedrinhas, embrenhou-se em cálculos. Para comer e semear ... duas, quatro ... talvez vinte «bushels». As vinte pedrinhas comprimiam-se sob a sua mão trémula. Contou mais vinte e juntou-as. Era já um montículo considerável que o tornava atónito e derramava calafrios nas costas em arco.

Devia ainda - recordou de súbito - a manta que comprara nas chuvas para não esticar de frio. Mais duas pedras engrossaram a soma. Teria de vender algum, para arranjar dinheiro. Quanto?

Balançou, na mão em concha, quatro ou cinco pedras. Olhava, besta de pasmo, para o caixeiro sorridente e para a sua mão hesitante. Depois, atirou-as para junto das outras. Passou as mãos no monte e olhou em volta. Tinha o ar torvo e pânico de animal encurralado. O caixeiro ria e o pretito, praticante de balcão, gargalhava com pequeno gritos sincopados e histéricos.

Clodjê fitou-o. Era um garoto enfezado e petulante, rescendente a perfume. O riso alvar e ruidoso, doeu-lhe. E uma raiva funda, dolorosa como a fome, mais dolorosa que a fome, cresceu e toldou-lhe o olhar. Os seus músculos, longos como cordas, desenharam-se sob a pele suada. Um formigueiro estranho, como coceira de sarna, esquentou-lhe o sangue em ondas grossas que subiram até à garganta.

Depois, inexplicavelmente, deixou escapar um riso gutural, forçado, que mais parecia um soluço. Resolveu-se a contar as pedras. Eram muitas. O desânimo tomou conta do seu corpo, machucou-lhe os ombros e atirou a cabeça de encontro ao peito opresso.
Não. Não dava jeito. Mal acabasse a colheita ficaria, de novo, a braços com a fome. Para as chuvas ainda faltava um tempo comprido. Luas e luas viriam antes que chegasse o tempo da sementeira. E todos os dias tiraria arroz para comer. Sabe que é assim. Quem passa fome com arroz em casa?

Quando a «bolanha» tivesse água, já pouco haveria para semear. E só para pagamentos eram aquelas pedras todas. Não. Não dava jeito!

O caixeiro viera até à porta e acendera outro cigarro. E ficou-se a sacudir a caixa de fósforos, compassadamente, com um solo de massas em rumba idiota. Clodjê dispersou as pedras com um pontapé distraído e deu alguns passos. Mantinha ainda o queixo colado ao peito. Os braços tombados balouçavam rente ao corpo, ao abandono.
No largo, o sol irisava o chão de pequenas centelhas faiscantes. E a tal ponto, que dir-se-ia que o solo havia sido tauxiado de seixos. O ar, morno. e irrespirável, vinha em lufadas. Um cajueiro, em frente, parecia vergar sobre o braseiro.

O rio, ao fundo, corria calmo, barrento e sujo, sob o mangal enorme e compacto. Duas garças olhavam as águas estupidamente. Sob o peso da perspectiva atroz, Clodjê caminha quebrado, os nervos tensos, o espírito alvorotado e confuso. Nos olhos parados, uma luz baça de melancolia. E fome!

Mas não. Não pode receber o empréstimo. Ficará, daqui a pouco quase sem semente. Terá uma colheita pobre, de míseras espigas que a loja absorverá. E aquela história das galinhas, dadas assim sem mais nem quê, turva-lhe, mais e mais, o raciocínio lento e emaranhado.

Sob o cajueiro imóvel, estaca de chofre, agarrado por uma ideia súbita que o sacode. E se, de noite, entrar no armazém? Deve ser fácil. Os portões enormes, seguros por um cadeado pequeno e ridículo, serão fraco obstáculo. Mas logo, volumoso e quente, cresce um receio. E a tal ponto o sufoca - esse receio pueril.- que sacode, angustiado, a cabeçorra enorme. O lojeiro queixar-se-á no Posto. E os trabalhos virão. Ainda há pouco pediu o empréstimo. Será o primeiro a ser procurado, ele sabe. E teme.

O lojeiro aumentará - tem a certeza - a quantidade do roubo. Quando o Encanha roubou, uma vez, dois cabazes de arroz, aquele «branco» cachorro foi ao Posto dizer que lhe faltavam dois sacos. E Encanha, que confessou, pagou mesmo dois sacos. O Chefe não acreditou na história dos dois «balaios»[2]. Ladrão não merece confiança. Ninguém mais ouve suas razões.

E se... Ah! Assim, sim. Porque só agora se lembra desta saída? Os olhos brilham. Os seus músculos relaxam-se. Uma avalanche de calma derrama-se sobre ele. Deixa de notar a luz hílare da tarde, as crianças que amodorram, o calor asfixiante que esmaga os homens e as coisas.

Agora, só tem olhos e sensibilidade para a ideia que lhe surgiu e se impõe. Um riso sereno rasga-lhe o rosto cansado. Irá ao Posto queixar-se do lojeiro. Contará aquela conversa das galinhas e da «cana» [3] . Não se deixará roubar. O Posto fará justiça. Quem sabe se até aquela história do pagamento a dobrar não é malandrice?

Pronto, irá ao Posto. Pelo caminho do mato, andando teso, chegará ao cair do sol. Exultava. De soslaio, olhou a loja. Pachorrento, o caixeiro coçava o peito cabeludo e bocejava alto, roído de preguiça. O aprendiz. de olhos vermelhos, efeminado e parvo, afagava a carapinha perfumada e piolhosa.

Sente que os odeia. Com ódio frio e lúcido que tem anos e anos e que geraçôes acumularam. Tem agora o passo rápido e elástico, o andar felino das horas boas.
Sob a calabaceira [5] enorme, dormitam quatro «grandes» [4]. Urna necessidade imperiosa de dar largas à íntima satisfação, leva-o até eles.

Sincopadamente, narra a ideia feliz e o intento inadiável. Riem-lhe os olhos, de novo brilhantes, e a boca sequiosa. Todo ele se distende e crispa em gargalhadas sonoras que anavalham a paz morna da tarde.

Mas os velhos não acompanham a sua alegria ruidosa. Ficam a olhá-lo, incrédulos e pasmados, levemente curvados em atitude hostil. O velho Ranga Inteque, indolentemente - que o calor pesa nos homens e esmaga-os - sacode a cabeça, branca e branca como se, sobre ela, houvesse poisado toda a sumaúma que o vento arrancou dias atrás, E baixo, quase em murmúrio - que o silêncio fechou o mundo e deu à tabanca o ar triste das coisas mortas - sentencia:
- Que tem o Posto com a tua vida? Branco de loja é «branco» mau, tu sabes ? Não, tu não irás.

Nada mais. Recuou para o silêncio, fechou os olhos e, serenamente, aspirou o tabaco que picara. Clodjê olhou-o atónito. O velho parecia ignorá-lo. Bem encostado ao tronco da árvore, fechara-se num mutismo de morto. Olhou os outros. Guardavam também um silêncio opressivo e tácito. Como se dormissem, tinham as pálpebras caídas, o corpo imóvel, a respiração compassada. Lentamente, recompôs-se da surpresa. Teve um leve erguer de ombros, e seguiu.

Os velhos não o compreendiam. Não podiam sentir a sua sede de libertação, a sua ânsia de .justiça. Pesavam, neles, séculos de fatalismo e de muda resignação. Não se habituariam, jamais, a contar com as autoridades.

Entrou em casa, atirou para os ombros a manta garrida, agarrou no terçado [6] e saiu de novo. A tarde em meio, animou-o. Chegaria antes da noite. Atravessou a tabanca, contornou a vedação e rumou direito às «bolanhas». Depois delas, quando passasse a prancha sobre o rio, a vereda abrir-se-ia no matagal.

O restolho queimava-lhe os pés. Dir-se-ia que, momentos antes, uma queimada gigantesca varrera a planície dourada. De longe em longe, minúsculos tufos de vegetação raquítica e amarelada faziam negaças aos bovinos infelizes. Do rio negro de lama subia um gemer monótono de remos.

De súbito, uma ameaça de vómito levou-o a contrair-se. Ondas de fogo, volumosas e coleantes, sobem-lhe do estômago revolto e enovelam-se na garganta. Em momentos, o sofrimento cavou sulcos profundos e estampou, nos olhos sem brilho, o estigma da derrota.

Acocorado, aperta a mãos ambas a cabeça que parece estalar a cada pancada que o peito recebe. Por momentos, tem a impressão que o velho Ranga, sereno e indiferente, está mesmo ali, falando naquela voz ciciada e fria que todos acatam. Sente agora que é mau escutar os «grandes».

O Posto é longe, muito longe, lá do outro lado do mato. Não chegará. Nem hoje. Nem nunca. O velho disse. E ali a dois passos, quase junto de sua casa, os armazéns abarrotam. Todos foram à loja e aceitaram. Nos outros anos foi ele também? Porque não aceitar agora?

Vida de negro é vida cansada. E lojeiro branco mau ... Os armazéns estão perto. Mas talvez o caixeiro já não o atenda. Esquecido de tudo, num esforço violento que arranca lágrimas, retrocede. E caminha agora aos sacões, como um cavalo mal ferrado em rumo à manjedoura. Uma névoa translúcida parece aureolar as copas e as casas, como se o mundo se houvesse fechado numa rodoma de vidro levemente embaciado. E uma pontada aguda e cáustica raspa-lhe o estômago.

Quando, trôpego e sem fôlego, entrou no estabelecimento, o caixeiro sorriu e teve uma piscadela cúmplice para o negrito perfumado e imbecil que o acolitava.

Fernando Rodrigues Barragão

_________________________

Notas de A.M.L. / L.G.:

[1] O “bushel” é uma medida de capacidade usada para os cereais, equivalente a, mais ou menos, 35 litros; ou, como medida de volume, equivalente a cerca de 27 quilos. (AML)

[2] O “balaio” é um cesto de palhinha ou verga. (AML)

[3] Aguardente de cana (LG)

[4] Homens grandes (LG)

[5] Baobá, embondeiro (LG)

[6] Uma espécie de espada curta e larga; catana (LG)

sábado, 27 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2224: Tabanca Grande (38): Delfim Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux de Enfermagem (CCAV 3366/BCAV 3846, Suzana e Varela, 1971/73)

Guiné> Região do Cacheu> Susana> Vista aérea do Aquartelamento

Foto: © Major J.Mateus (BCAV 3846) (2007). Direitos reservados


1. Em mensagem de 18 de Outubro de 2007, o nosso camarada escrevia:

Boa noite:
Chamo-me Delfim Rodrigues e fui 1.º Cabo Auxiliar de Enfermagem na CCAV 3366 do BCAV 3846 que esteve em Suzana e Varela em 1971/73.

Amanhã vou estar na estreia do filme "As duas faces da guerra" (1) na Culturgest pois consegui que me comprassem um bilhete.

Apesar de não ter ainda pedido a minha entrada na Tertúlia, gostaria de vos conhecer pois estarei sozinho deslocando-me de Coimbra onde moro.

Gostaria de entrar para a tertulia, mas ainda não tenho as fotos digitalizadas, se me aceitarem, enviá-las-ei mais tarde.

Como não sou grande coisa a escrever não tenho preparado qualquer texto para vos enviar.

Delfim Rodrigues
1.º Cabo Aux de Enfermagem
CCAV 3366/BCAV 3846

2. Em 20 de Outubro o Editor Luís Graça escrevia no Post 2197: [...]
(xvii) Também tive a oportunidadade de conhecer novos camaradas, dos quais não fixei lamentavelmente o nome, no meio daquela multidão toda (espero que me contactem, e se apresentem ao resto da tertúlia). Um deles foi o Delfim Rodrigues, que veio propositadamente de Coimbra, e estava acompanhado de um amigo de Lisboa. [...] Dei um abraço ao Delfim e as boas vindas à nossa tertúlia.[...]


3. Em 25 de Outubro de 2007 CV respondia

Caro Delfim Rodrigues:

Estou a dar-te as boas vindas em nome do Editor Luís Graça, co-Editor Virgínio Briote e restante tertúlia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

É bem-vindo à nossa Tabanca Grande quem combateu na Guiné e quem se interessa pela actual Guiné-Bissau. Tu és indiscutivelmente uma dessas pessoas.

Já faz parte da nossa tertúlia o teu camarada, da CCAV 3366, ex-Fur Mil Luís Fonseca (2), que tem contribuído para o nosso Blogue com os seus apontamentos sobre os usos e costumes do povo Felupe.

De ti esperamos estórias e fotos para aumentar o nosso espólio histórico sobre as campanhas da Guiné entre 1963 e 1974.

Quando tiveres as fotos da praxe para a fotogaleria, manda-as para o endereço luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com, em formato JPEG.

Recebe um abraço de todos os camaradas.
Carlos Vinhal
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Notas de CV:

(1) Vd. Post de 21 de Outubro de 2007> Guiné 63/74 - P2198: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (5): Agradecimento de Diana Andringa

(2) Vd. Post de 14 de Agosto de 2007> Guiné 63/74 - P2047: Tabanca Grande (32): Apresenta-se José Luís Soares da Fonseca, ex-Fur Mil Trms (CCAV 3366/BCAV 3846, Suzana e Varela, 1971/73)

Guiné 63/74 - P2223: A nossa Tabanca Grande e as Duas Faces da Guerra (12): A minha luta diária com a Maria Turra, no HM241 (Carlos Américo Cardoso)

1. Mensagem de Carlos Américo Cardoso (1), um dos nossos camaradas que assistiu à estreia do filme As Duas Faces da Guerra (2):


Muito obrigado, Diana Andringa!

Ao ver o seu filme-documentário, sobre As Duas Faces da Guerra, voltei ao meu passado, e revivi situações que nunca em tantos anos pensei mais...

Como eu tinha uma imagem completamente diferente da Maria Turra!!!... Ouvia-a muitas vezes mas nunca lhe tinha visto o rosto, tinha uma luta diária com ela, confrontava as notícias da rádio do PAIGC (3) sobre os nossos feridos, nos livros de registo do raio x, [no Hospital Militar de Bissau,] para confirmar se era verdade ou se era propaganda do PAIGC... E depois claro, rebobinei o meu filme, comparei situações, vi imagens que já estavam esquecidas, umas estavam certas outras nem tanto... Enfim só adormeci de madrugada.

Mais uma vez obrigado
Cardoso R X
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Nota dos editores:

(1) Vd. posts de:

1 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1481: Hospital Militar de Bissau (1): Apresenta-se o ex-1º Cabo Radiologista Cardoso

7 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1738: Hospital Militar de Bissau (2): O terminal da guerra, da morte e do horror (Carlos Américo Cardoso, 1º cabo radiologista)

20 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1977: Em busca de... (4): Camaradas do Hospital Militar nº 241, Bissau (1972/74) (Carlos Américo Cardoso, o Cardoso RX)

(2) Vd. post de 20 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2197: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (4): Encontro tertuliano no hall da Culturgest na estreia do filme (Luís Graça)

(3) As emissões da Rádio Libertação, localizada em Conacri, começaram em meados de 1967. Maria Turra era a locutora de serviço (ou uma delas)... Sabemos hoje que era a mulher, angolana, do Dr. Páduo, médico português, militante do PAIGC, que trabalhava no hospital de Ziguinchor: vd. post de 27 de Outubro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2221: PAIGC: O Nosso Livro da 2ª Classe (1): Bandêra di Strela Negro (Luís Graça / Paulo Santiago)

Guiné 63/74 - P2222: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (4): Aspectos positivos e negativos (Pedro Lauret)

As nossas desculpas ao Comandante Pedro Lauret pelo atraso na publicação do comentário sobre a série A Guerra (1).

O Capitão de Mar e Guerra na Reforma Pedro Lauret.

Nos anos decisivos da Guerra (1971/73), o então Tenente serviu no NRP Orion. Percorreu os rios da Guiné em missões de patrulhamento e apoio a tropas em operações, desempenhando um papel marcante em Gadamael.


Co-editor: vb
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Caros Camaradas e Companheiros de Tertúlia,

Quero deixar um pequeno comentário ao documentário de Joaquim Furtado, A Guerra.

Em minha opinião entendo haver aspectos muito positivos e negativos neste documentário.

Em primeiro lugar não se pode esconder que é um trabalho que se encontra em preparação há mais de dez anos com um orçamento invejável, aguardado com enorme expectativa.

Os aspectos positivos prendem-se com enorme qualidade de realização, recuperação de imagens e ritmo. São de salientar as entrevistas aos guerrilheiros da UPA, documentos de enorme violência, porventura mais cruéis que as próprias imagens dos massacres.

Devo criticar apenas na realização o facto de não terem sido utilizados mais grafismos, nomeadamente no que se refere a números. Por exemplo, entendo que era interessante sublinhar, graficamente, que em 1961 havia um dispositivo militar de pouco mais de seis mil homens, cerca de cinco mil de incorporação local, e mostrar a sua distribuição pelo território.

O aspecto negativo prende-se, não com este episódio, que tem para mim nota muito elevada (perdoe-me a citação de MRS) mas por este conteúdo ter constituído o primeiro documentário. Exibir, como primeiro episódio da série, os massacres de Março de 1961, vem justificar que o segundo episódio, que ainda não vi (estou a escrever este comentário às 15:00 de 23 de Outubro), possa mostrar Salazar a dizer “Para Angola rapidamente e em força”, e justificadamente mostrar toda a acção militar decorrente dos acontecimentos de Março de 1961.

Penso que o processo da Guerra Colonial e da descolonização não se inicia em 1961, mas tem na sua génese todo a nova realidade saída da II Guerra Mundial – ONU, carta das ONU, movimento de descolonização das potências europeias, Bandung, crise do Suez … Esta nova realidade internacional é bem compreendida pelo Estado Novo´que depressa elimina o Acto Colonial e o integra na constituição - revisão constitucional de 1951 - e por um passo de magia transforma as antigas colónias em província ultramarinas.

Os contactos havidos pela União Indiana relativamente ao estado Português da Índia a partir de 1947, contactos havidos pelo MPLA e PAIGC, no sentido de se obterem soluções pacíficas para territórios sob administração portuguesa, são também elementos essenciais para entender o que foi a Guerra Colonial.

Em minha opinião, a série de documentários de Joaquim Furtado, deveriam iniciar-se com a contextualização histórica e politica que envolve a Guerra. Iniciar a série com actos de enorme violência, descontextualizados, faz-me lembrar os Telejornais que, em dia de notícias de importância a nível nacional ou internacional, abrem com a agressão a um idoso no interior do país, ou com um qualquer acto de violência isolado, técnica comprovadamente eficaz para fixar audiências.

Pedro Lauret

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Nota de vb:

Pedro Lauret vai estar amanhã, Domingo, no programa do Pedro Rolo Duarte, Antena1, entre as 11 e as 12, para falar do blog da Associação 25 de Abril.

Em mensagem que nos enviou hoje, acrescenta:

"Quando gravei o programa tive oportunidade de falar também no nosso blog. Espero ter acertado com as palavras e que de alguma forma possam contribuir para a divulgação da nossa caserna.
Em off, fiz-lhe ver que há blogs que sem preocupação de comentar a actualidade têm uma enorme importância, como é o nosso caso. Tomei a liberdade de dar o contacto do Luís."


(1) Vd.post anterior desta série RTP: A Guerra, série documental (...) > 25 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2212: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (3): Portugueses da diáspora também querem ver (João G. Bonifácio)

(2)Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

Guiné 63/74 - P2221: PAIGC: O Nosso Livro da 2ª Classe (1): Bandêra di Strela Negro (Luís Graça / Paulo Santiago)


Capa e contracapa de O Nosso Livro da 2ª classe, usado nas escolas do PAIGC.

 

Reprodução da Lição nº 5 - Bandêra di Strela Negro, pp. 20-21.

Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

1. Já aqui apresentámos a capa e a contracapa de O Nosso Primeiro Livro, o manual escolar usado nas escolas do PAIGC, editado em 1966, pelo Departamento Secretariado, Informação, Cultura e Formação de Quadros do Comité Central do PAIGC (1)... Algumas imagens digitalizadas do livro chegaram-nos pela mão do nosso camarada A. Marques Lopes, ex- Alf Mil At Inf (hoje Cor DFA, reformado, CART 1690, Geba) / CCAÇ 3, Barro). Um exemplar do livro foi facultado pelo António Pimentel, ex- Alf Mil Rec Info, CCS BCAÇ 2851, Mansabá em Galomaro (1968/70). O Marques Lopes vive em Matosinhos e o Pimentel vive no Porto.

Na altura escrevi aqui o seguinte: "Amílcar Cabral, inimigo não do Povo Português mas do regime político de Oliveira Salazar/Marcelo Caetano, fez mais pela língua portuguesa do que muitos portugueses que por lá passaram, com responsabilidades políticas e militares, ao longo de 500 anos de relações dos portugueses com os guineenses. Amílcar Cabral sabia que o português (para além do crioulo) era um das bases indispensáveis para a criação de uma identidade nacional...

"Pessoalmente fiquei chocado, quando ao chegar a Contuboel em Junho de 1969 para fazer o IAO com os meus futuros soldados africanos da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 - fulas, velhos aliados dos portugueses... -, constatei que eles não falavam (nem muito menos escreviam) português"...

Hoje é a vez de agradecer ao Paulo Santiago (que vive em Águeda e foi Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho , 1970/72). enviado, pelo correio. outro manual escolar do PAIGC, O Nosso Livro - 2ª Classe. Mandou-me, além disso, uma pequena nota que eu achei uma delícia:

"Luís: Penso que algumas das caixas que estão escritas, à mão, no livro, foram-no pela minha fulha [, Maria Luís,] quando frequentava a 2ª classe. Abraço. Paulo".

Em resumo: este exemplar, que o Paulo ainda não me disse como lhe chegou às mãos, ajudou crianças da Guiné, e pelo menos uma de Portugal, a aprender a ler e a escrever o português...

O livro foi "elaboradao e editado pelos Serviços de Instrução do PAIGC - Regiões Libertadas da Guiné" (sic). Tem o seguinte copyright: 1970 PAIGC - Partido Afrucano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Sede: Bissau (sic)... A primeira edição teve uma tiragem de 25 mil exemplares (!).

Foi, além disso, impresso em Upsala, Suécia, em 1970, por Tofters/Wretmans Boktryckeri AB.

Reproduzimos hoje a lição nº 5, sobre a Bandeira do PAIGC. A letra do hino é em creoulo, mas a lição é em português (mas como todas as demais). Repare-se nas instruções para os alunos:

1º - Vamos aprender esta poesia para a recitarmos
2º - Vamos desenhar e colorir a nossa bandeira


No filme da Diana Andringa e Flora Gomes, As Duas Faces da Guerra, recentemente estreado em Lisboa, são entrevistados dois militantes do PAIGC que estiveram muito ligados à elaboração destes manuais:

(i) Um português (ou caboverdiano ?), que o Jorge Cabral me apresentou no hall da Culturgest, no dia 19 de Outubro de 2007, e de quem infelizmente eu não consegui fixar o nome; vivia na Suécia, possivelmente como exilado político; era ele que fazia a revisão de texto dos manuais;

(ii) A esposa do Dr. Pádua, o alferes miliciano médico que desertou em Angola e aderiu ao PAIGC, sendo até 1966 (ano da chegada dos primeiros médicos e instrutores cubanos a Conacri) o único médico do PAIGC a trabalhar em hospital de rectaguarda, em Ziguinchor, no Senegal... A esposa do Dr. Pádua era angolana, e escreveu textos para estes manuais. Além disso, era locutora da Rádio Libertação, do PAIGC, em Conacri. Era ela a Maria Turra, a que já se referiram alguns dos nossos camaradas, confundindo-a no entanto com a segunda mulher do Amílcar Cabral (2).
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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

29 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1899: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (A. Marques Lopes / António Pimentel) (1): O português...na luta de libertação

1 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1907: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (2): A libertação da Ilha do Como (A. Marques Lopes / António Pimentel)

4 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1920: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (A. Marques Lopes / António Pimentel) (3): O mítico Morés

9 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1938: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (A. Marques Lopes / António Pimentel) (4): Catunco

(2) Vd. post de 27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1216: A batalha (esquecida) de Canquelifá, em Março de 1974 (A. Santos)

(...) Nota de L.G.:

(...) Maria Turra era a locutora de serviço da Rádio do PAIGC, localizada em Conacri: vd. artigo do jornalista Joaquim Vieira, na edição do Expresso de 21 de Abril de 1984 > Como os rapazes viveram a paz e a guerra:

(...) "Os tempos da fraternidade estavam afinal mais próximos do que alguém podia imaginar no batalhão. Onze dias depois da Páscoa, na manhã de 25 de Abril, começaram a chegar a Sedengal notícias de um golpe de Estado em Lisboa. As primeiras informações foram recebidas através das emissões em português de Rádio Conakry. Alguns soldados não sabiam o que era um golpe de Estado, e procuraram informar-se. Algumas horas depois, a locutora - que os portugueses tratavam por Maria Turra - anunciou a prisão de Américo Tomás e Marcelo Caetano. A gaja está mas é maluca, houve quem comentasse" (...).

Por Maria Turra também era conhecida, entre as NT, a viúva de Amílcar Cabral: Vd. também post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de
1974)(Magalhães Ribeiro)(...)

O Eduardo [Magalhães Ribeiro] diz que ficou famoso pela sua foto a arriar a bandeira verde-rubra , em Mansoa, na presença da Maria Turra (sic), como era conhecida entre os tugas - com o sentido de humor, que é típico da caserna, mas com respeito e até carinho - a viúva do Amílcar Cabral, que assistiu com outros destacados dirigentes do PAIGC a este momento histórico" (...).

Guiné 63/74 - P2220: Louvores e condecorações (4): Louvores atribuídos ao BCAÇ 2845 e às suas Companhias Operacionais (Albino Silva)



Albino Silva (1), ex-Soldado Maqueiro, CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70

BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, Jolmete, Olossato, Bissorã, 1968/70)


Louvores atribuídos ao BCAÇ 2845 e às suas Companhias Operacionais

1. Por Despacho de 22 de Julho de 1968 do Exmo. Comandante do BCAV 1897 é louvada a CCAÇ 2367:

Porque apesar de estar ainda no início de sua Comissão de Serviço e de se encontrar no Olossato apenas à cerca de 3 meses, já se revelou, quer no aspecto operacional quer nos contactos com a população, uma subunidade de Escol, da qual muito há a esperar.

De elevado espírito de corpo que, logo aos primeiros contactos, se sente presente em todos os componentes. Bem preparada na paz para melhor servir a guerra, a CCAÇ 2367 já se revelou uma Subunidade de inegável valor combativo e os seus elementos, sob o comando dum Capitão experiente e decidido, mostraram um profundo desejo de cumprir, em todas as circuntâncias, já comprovado em alguns golpes de mão bem planeados e executados com perícia e determinação.


2. Referência elogiosa à CCAÇ 2366

Feita através da Nota n.º 2788-P.º 331.01 de 5 de Setembro de 1968 pelo Comando do Agrupamento 2951 e dirigida às seguintes Unidades: BCAÇ 1912, BCAV 1915, BCAÇ 1932, BCAÇ 1933, BCAÇ 2845 e BCAÇ 2851 e, enviada para conhecimento ao QG/CTIG.

Assunto: Referências Elogiosas ao comportamento de uma Companhia

a) - A CCAÇ 2366 terminou o seu treino operacional em Junho do ano corrente, sendo portanto uma Unidade com pouca experiência de combate.

Aquartelada em Jolmete, numa área díficil, pessimamente instalada, tem esta Companhia desenvolvido uma acção de tal modo dinâmica e com tão bons resultados que, sem desfavor, merece a honra de divulgação perante todas as Unidades do Agrupamento Oeste.

A busca do IN tem sido incessante, as saídas inopiadas em exploração de notícia regente são de uso frequente, o prolongamento das Operações impostas sempre que surgia uma oportunidade propícia é atitude corrente nesta Companhia.

Dignificante o modo como tem sido comandada, relevante o destemor dos seus Oficiais, grande brio dos Sargentos e altamente meritório o comportamento das suas Praças.

Por duas vezes sua Ex.ª o Comandante Militar prestou justiça e deu o seu incitamento ao pessoal da Companhia, e por uma vez este Comando teve ocasião de felicitar a CCAÇ 2366 pelos mesmos motivos.

b) - As acções em que a CCAÇ 2366 teve sucesso foram (salvo omissão provável, por deficiência de consulta) :

20 de Junho de 1968
Operação Aquiles

Em que com excepcional espírito de decisão, na exploração de informações colhidas durante a Operação, e revelando uma maturidade em experiência de combate que não possuia, fez ao IN 1 morto, vários feridos, apreendeu 1 pistola e mais material.

06 de Julho de 1968

Em Operação de sua iniciativa, após o regresso duma emboscada, destrói 2 tabancas, faz 2 mortos e 4 feridos e, captura munições e apreende 1 espingarda.

20 de Julho de 1968
Operação Alertar

Após captura de elementos desarmados inimigos, do seu interrogatório nasce um prolongamento da Operação, com os seguintes resultados: 1 morto, 3 feridos e captura de vários documentos.

Em observação feita pelo Comandante do Batalhão se declara que o IN está vivendo "num clima de insegurança, motivado pelo espírito de iniciativa e de agressividade mostrado por esta Companhia".

21 de Julho de 1968

Em exploração de notícias fornecidas por 3 elementos na Operação da véspera, foi executado um golpe de mão em Piosse. Acção violenta, enérgica e rápida, na qual foram feitos ao IN 3 mortos confirmados e vários feridos também confirmados.
A Operação foi muito bem planeada e muito bem conduzida e executada, tendo sido capturados documentos vários.

05 de Agosto de 1968

Montada por iniciativa da Companhia a Operação Armamar, fez ao IN 1 morto e 2 feridos, na sequência de uma acção agressiva, movimentada e variada , colhendo vários prisioneiros e obtendo mais informações.

09 de Agosto de 1968

Operação Acepipe, na qual é destruído um acampamento com 24 moranças, são feitos ao IN 6 mortos e vários feridos confirmados, capturada 1 pistola metralhadora e munições. Esta Operação, pelas suas características ousadas na exploração imediata de notícias, mereceu elogios de sua Ex.ª o Brigadeiro Comandante Militar e também deste Comando.

17 de Agosto de 1968

Por iniciativa da Companhia, fez-se um patrulhamento com 3 GCOMB a 8 Km do Quartel. Durante o mesmo, em exploração imediata de notícias, procedeu a um golpe de mão sobre 20 elementos armados IN, fazendo-lhes 4 mortos e 5 feridos, capturando 5 espingardas, 1 bandeira do PAIGC e recuperado 7 elementos.

26 de Agosto de 1968

Em patrulhamento por sua iniciativa, por ter encontrado vestígios de passagem do IN, em exploração imediata detectou um acampamento com 20 elementos armados, aos quais fez 4 mortos confirmados, 5 feridos e 1 preso.

Capturou 2 espingardas automáticas, munições, 9 disparadores de mina, 7 detonadores e um variadíssimo material de propaganda, fardamento e utensílios. Foi destruído o acampamento.

02 de Setembro de 1968

Nova e última acção da CCAÇ 2366, em golpe de mão (acção inopinada) sobre um acampamento IN, causando 3 mortos confirmados e 4 mortos prováveis, capturando 1 espingarda automática, 5 PPSH, 1 PM chinesa, 1 GND, bastantes munições, medicamentos, objectos de enfermagem e fardamento. Foi destruído o acampamento.

c) - Solicito a V. Ex.ª se digne divulgar por todas as Companhias o teor desta Nota.


3. Por Despacho de 8 de Novembro de 1968 do Exmo. Comandante do BCAÇ 2851, é citada a CCAÇ 2368.

Teve este Batalhão sob o seu Comando Operacional, para a Operação "Vamos Ver", a CCAÇ 2368.
A forma altamente consciente da responsabilidade da missão, com que actuou e, que se manteve intacta apesar de ter sido a Subunidade que deparou com o mais forte contacto com o IN, sofrendo baixas, tornam a CCAÇ 2368, credora do apreço que com muita satisfação, este Comando manifesta.
(O.S. N.º 86 do BCAÇ 2851 de 8 de Novembro de 1968)


4. Por Despacho de 2 de Maio de 1969 de Sua Ex.ª o COM CHEFE Interino das FAG é louvada a CCAÇ 2366.

Pela forma notável como sempre actuou ao longo de 11 meses de permanência no Sector que lhe foi atribuido. Inicialmente inexperiente, após um Treino Operacional realizado na Sede do Batalhão em que não teve oportunidade de contacto com o IN, esta Companhia tomou a responsabilidade do Sector de Jolmete em 5 de Junho de 1968.
Com o propósito firme de conhecer a sua área e acabar nela, de vez com o mito de invencibilidade do IN, dando-lhe caça implacável, foi gradualmente a Companhia estendendo a sua acção, irradiando por todos os lados, numa explosão de energia e de vontade.
Se é certo que foi feliz de início conseguindo com a captura de elementos IN a obtenção dos primeiros êxitos, não é menos certo que só à sua audácia se devem os subsequentes. "A Felicidade Ajuda os Audazes".
Ao longo de toda a sua permanência no Sector os sucessos foram-se acumulando: captura de elementos IN e recuperação de população, exploração imediata e inteligente dos mesmos, emboscadas, assaltos e destruição de inúmeros acampamentos e combatentes IN, captura de muito material e munições, etc.
Enquadrada de graduados ousados e desprezando o perigo, é de salientar a valentia , energia debaixo de fogo, entusiasmo contagiante e sem desfalecimentos, astúcia na mata, mentalização profunda de espírito de missão de todo o pessoal combatente, que lhe permitiu resistir ao inevitável desgaste físico consequente de tão grande movimentação.
De realçar também a muito meritória obra de acção psicológica junto das populações dispersas pelo mato e sob controle IN e a este subtraídas num exemplo de dissociação do binário população IN, e as quais uma vez acolhidas à proteção das NT em Jolmete, destas já não se quiseram afastar, sentindo-se amparadas e seguras, e ainda a actividade que, paralelamente à operacional, foi realizada no plano de melhoria progressiva de instalações, conseguindo ao fim do referido período de 11 meses uma remodelação total quase das mesmas o que permitiu ao pessoal um mínimo de conforto e segurança, quase inexistente de início.
Merece assim especial realce e merecido Louvor a actuação da CCAÇ 2366, da qual o seu Batalhão justamente se orgulha e também com justiça altamente conceituada entre todas as Subunidades do TO da Guiné.
A CCAÇ 2366 honra, assim o seu Batalhão, o Exército e a Nação Portuguesa.
(O.S. N.º 17/69 de 28 de Maio de 1969 do C.C. das FAG)


5. Por Despacho de 9 de Maio de 1969 de Sua Ex.ª o Comandante Militar do CTIG é louvado o 3.º GCOMB da CCAÇ 2368, destacado em Bachile

Pelo alto espírito de camaradagem com que efectuaram a evacuação dum Soldado Milícia gravemente ferido por acidente naquele Destacamento, ao ser verificada a impossibilidade de se efectuar a evacuação por meios aéreos, por ter caído a noite e a impossibilidade de transmissões com a Sede.

Conscientes do risco que iam correr, uma vez que não tinha sido feita a picagem do itinerário e dada a gravidade do ferido, com total desprezo pelo perigo, meteram-se a caminho dignificando a sua Farda,a sua Bandeira e a Unidade a que pertencem, resultando deste acto uma materialização da Acção Psicológica na população e de uma igualdade de Soldado Metropolitano e Milícia (O.S. 24 de 5 de Junho de 1969 do CTIG)


6. Por Despacho de 3 de Junho de 1969 de Sua Ex.ª o COMCHEFE das FAG é louvada a CCAÇ 2366

Pela forma de muitos aspectos invulgar como desempenhou a missão que lhe foi atribuída na "Op Aquiles I" a partir de 6 de Fevereiro de 1969, data em que passou a actuar sob Comando Operacional do CAOP.

Actividade operacional constante, espírito marcadamente ofensivo e sobre tudo determinação e audácia, foram carecterísticas salientes da sua actuação onde se destaca ainda, pelo que apresentou de espírito de missão, a permanente procura de contacto de que resultaram constantes inseguranças para o IN e êxitos para as NT, traduzidos pela quantidade de material capturado e pelo elevado número de baixas infligidas.

Todos os seus valorosos elementos não se eximiram nunca do perigo e ao sacrifício demonstrado com frequência ousadia e decisão e sempre comportamento honroso frente ao IN.

A confiança que o CAOP sempre depositou na actuação da CCAÇ 2366 foi uma justa homenagem ao valor desta força, que reitera com o presente Louvor, ao deixar de tê-la sob o seu Comando. (O. S. N.º 25 de 12 de Junho de 1969 do CTIG)

Albino Silva
Soldado Maqueiro
CCS/BCAÇ 2845
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Nota do co-editor CV:

(1) Vd. Post de 26 de Outubro de 2007> Guiné 63/74 - P2217: Breve história do BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, Jolmete, Olossato, Bissorã, 1968/70 (Albino Silva)