quinta-feira, 12 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2935: Comemorações do dia 10 de Junho de 2008 (2): Viana do Castelo e Lisboa (Sousa de Castro / Fernando Chapouto / Fernando Franco)

Viana do Castelo, Capital do Alto Minho> Centro Histórico

1. A linda cidade de Viana do Castelo, onde Rio Lima se encontra com o mar, foi escolhida para as celebrações oficiais do dia 10 de Junho de 2008.

O nosso camarada Sousa de Castro esteve lá e mandou algumas fotos, donde destaquei as duas que se publicam.

Caros tertulianos,

Como sabem o Dia de Portugal comemorou-se este ano em Viana do Castelo.

Assisti ao desfile e uma das coisas que mais me impressionou foi ver muitas senhoras nas Forças Armadas. "Amigos temos de ter cuidado para não nos deixarmos ultrapassar, decididamente as senhoras estão tomando conta do comando", obviamente que estou a brincar. Bem!... apresento algumas fotos que obtive através da minha câmara. Se acharem que tem interesse para o blogue podem publicar.

AB,
Sousa de Castro


Sousa de Castro fotografou este obús 8,8. Quem não se lembra de ver por terras da Guiné estas peças de artilharia. Também as havia de calibre 11,4 e 14.

Nesta foto, Sousa de Castro brinca aos pilotos, na cabina de um Allouette. Quem não se lembra deles, também?

Fotos: ©
Sousa de Castro (2008). Direitos rerservados.


2. Em Lisboa, como é habitual no dia 10 de Junho, houve a romagem ao Memorial dos Mortos na Guerra Colonial. Neste dia, também se encontram por ali alguns dos camaradas da nossa tertúlia.

Lisboa> Memorial aos Tombados na Guerra Colonial
Foto: © Hugo Moura Ferreira (2007). Direitos rerservados.


Fernando Chapouto mandou-nos esta foto onde vêem Vacas de Carvalho, Jorge Cabral, Mário Dias, Fernando Chapouto, António Santos, Fernando Franco e Tino Neves, de cócoras. Também por lá, mas desenfiado da fotografia, estava o Luís Camões.
Foto: ©
Fernando Chapouto (2007). Direitos rerservados.


Do nosso camarada Fernando Franco veio esta foto com a Corveta António Enes fundeada no Tejo, talvez integrada nas comemorações.
Foto: ©
Fernando Franco (2007). Direitos rerservados.
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Nota de CV:

Vd. poste de 11 de Jinho de 2008> Guiné 63/74 - P2928: Comemorações do dia 10 de Junho de 2008 (1): Leça da Palmeira, Matosinhos (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P2934: Estórias de Guileje (13): Com os páras, no corredor da morte: armadilhe-se o moribundo (Hugo Guerra)




























Guiné > PAIGC > Departamento Secretariado, Informação, Cultura e Formação de Quadros do Comité Central do PAIGC > 1966 > Capa e página 23 (?) do manual escolar O Nosso Primeiro Livro.

Créditos fotográficos: ©
A. Marques Lopes / António Pimentel (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem, com data de 13 de Fevereiro de 2008, do nosso camarada Hugo Guerra, ex-Alf Mil, hoje Coronel DFA, comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 50 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70):


Caro Luís e demais camaradas da Tabanca [Grande]:

O assunto é, parece-me, algo melindroso. Verás, por favor, da oportunidade. Não tem nada a ver com uma estória narrada num livro pelo ex-Sarg Pára Carmo Vicente cujo titulo é "Morto o homem, armadilhe-se o cadáver" (*).

Só conheci o Carmo Vicente aqui em Lisboa na ADFA. Acho que partiu as duas pernas ao saltar dum heli e é DFA.

Mas é possível que se tivesse tornado rotineiro fazer isso. Não faço juízos de valor mas o que eu vi foi o que relato.

Quando passares no Corredor [de Guileje], agora que vais à Guiné , saúda esse jovem por mim e pede-lhe para me deixar dormir em paz (**)...

Hugo Guerra


2. Estórias de Guileje (12) >
A minha 2ª ida ao Corredor
de Guileje (***)

por Hugo Guerra


Se da primeira vez ia meio lúcido , meio bêbado , desta vez fui completamente lúcido….. para mal dos meus pecados.

Não recordo o dia mas para o que vou relatar pouco importa. É uma estória com um triste final…

A Companhia era de Páras, porque como bem disse o Idálio Reis o pessoal da [CCAÇ] 2317 [Gandembel, Abril de 1968/Janeiro de 1969] já tinha passado tanto que só as forças especiais reuniam condições físicas e anímicas para ir ao corredor. Os Páras eram rendidos de 15 em 15 dias e, como na altura, o pior local da guerra era Gandembel, tudo o que os tirasse dali era ganho.
Lá fomos até ao corredor montar uma emboscada com a esperança que resultasse. Às primeiras horas da manhã após os pelotões estarem instalados, não se ouvia mais que o silêncio da mata quando o mesmo foi quebrado por conversas em crioulo que denunciaram de imediato a coluna que vinha a chegar.

Em minutos ouve-se um terrível fogachal das NT seguidas de um silêncio ainda mais assustador para mim, que me via pela primeira vez naquelas alhadas.

Fui a correr à frente ver o que se passara e deparei-me com uma cena que ainda hoje faz parte dos meus pesadelos. No local estavam dois ou três mortos e um moribundo cheio de balas no peito. De repente a embriaguez da morte tomou conta de mim e vejo-me a vasculhar os bolsos de um daqueles rapazes e apanho um troféu…… um caderno escolar.

Como tínhamos que retirar de imediato pois estávamos certos que aqueles homens eram só os batedores, vi alguns Páras apanharem os RPG 7 ainda embrulhados em plástico, as armas ligeiras e pistolas e munições, etc.

Poderia dizer que até aqui se tratou dum acto de guerra, normal nas situações que se viviam naquele despudorado horror que todos vivemos.

Mas o que tinha ainda mais para ver e que foi horrível, foi ver um Pára armadilhar o cadáver. Não um corpo qualquer dos que já estavam mortos. Foi do moribundo de quem eu levava o caderno, ainda na mão.

Passados poucos minutos e na retirada para o aquartelamento a poucos quilómetros fomos surpreendidos por uma emboscada do grupo IN que vinha mais atrás dos batedores. Recordo-me de só termos um ferido com uma bala que lhe entrou por baixo dos dedos dum pé e foi sair do outro lado.

À chegada a Gandembel lembro-me de sermos saudados com palmas, mas eu ainda vinha agoniado e mais ainda fiquei quando, ao desfolhar o caderno à procura de indicações estratégicas do IN, dou com uma folha com um desenho de uma casa, como as que nós aprendêramos a fazer na nossa instrução primária e que tinha escrito por baixo “A MINHA CASA”...

Mais um sonho dum jovem, desfeito com uma rajada de tiros.

Nunca mais fui ao Corredor da Liberdade.

Um abraço,

HUGO GUERRA
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Notas de L. G.:

(*) Vd. postes de:

4 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname

5 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

12 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2933: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (3): Manuel Peredo, ex-Fur Mil Pára, hoje emigrante

(**) Vd. postes de:

14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2640: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (5): Um momento de grande emoção em Gandembel

16 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2650: Uma semana involvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (6): No coração do mítico corredor de Guiledje

17 de Março de 2008 > Guine 63/74 - P2655: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (7): No corredor de Guiledje, com o Dauda Cassamá (I)

17 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2656: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (8): No corredor de Guiledje, com Dauda Cassamá (II)


(***) Vd. postes anteriores desta série:

14 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2437: Estórias de Guileje (1): Num teco-teco, com o marado do Tenente Aparício, voando sobre um ninho de cucos (João Tunes)

23 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2473 - Estórias de Guileje (2): O Francesinho, morto pela Pátria (Zé Neto † )

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gandembel (ex-Fur Mil Art Paiva)

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)

29 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2489: Estórias de Guileje (4): Com os páras, na minha primeira ida ao Corredor da Morte (Hugo Guerra)

30 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2492: Estórias de Guileje (5): Os nossos irmãos artilheiros Araújo Gonçalves † e Dias Baptista † (Costa Matos / Belchior Vieira)

31 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2493: Estórias de Guileje (6): Eurico de Deus Corvacho, meu capitão (Zé Neto † , CART 1613, 1966/68)

11 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2523: Estórias de Guileje (7): Um capitão, cacimbado, e um médico, periquito, aos tiros um ao outro... (Rui Ferreira)

18 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2552: Estórias de Guileje (8): Como feri, capturei e evacuei o comandante Malan Camará no Cantanhez (Manuel Rebocho, CCP 123 / BCP 12)

23 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2574: Estórias de Guileje (9): O massacre de Sangonhá, pela Força Aérea, em 6 de Janeiro de 1969 (José Rocha)

7 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2729: Estórias de Guileje (10): os trânsfugas de Guileje, humilhados e ofendidos (Victor Tavares, CCP 121/BCP 12, 1972/74)

31 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2905: Estórias de Guileje (11): A besta do Celestino (Zé Neto † , CART 1613, 1966/68)

Guiné 63/74 - P2933: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (3): Manuel Peredo, ex-Fur Mil Pára, hoje emigrante

1. Mensagem, de 8 de Junho, do nosso camarada Manuel Peredo, um português da diáspora, emigrante em França, e que foi Fur Mil Pára-quedista, na CCP 122/BCP 12 (Guiné, Brá, 1972/74), o mesmo é dizer: camarada do Carmo Vicente (CCP 122), do Victor Tavares (CCP 121) e do Manue Rebocho (CCP 123).

Fixação e revisão do texto: Carlos Vinhal.


Caros responsáveis do blogue:

Depois de muito pensar, lá me decidi a exprimir algumas opiniões sobre a guerra da Guiné, mais precisamente sobre os acontecimentos de Gadamael.

Primeiro, a minha apresentação ao comandante do blogue. Chamo-me Manuel do Nascimento Peredo; estive na Guiné de Outubro de 1971 a Novembro de 1973 como furriel miliciano pára-quedista. Conheci muito bem em Tancos e na Guiné o Manuel Rebocho, pertencendo eu à 122 e ele à 123.

Ultimamente tem-se falado no livro algo polémico que o primeiro sargento pára Carmo Vicente escreveu (1). Pertencíamos os dois ao quarto pelotão da 122, portanto estivemos os dois no campo de férias em Gadamael. As suas declarações talvez chocassem algumas pessoas, mas a mim nem por isso e atrevo-me a dizer que são verdadeiras, embora um pouco exageradas.

Eu também digo que o nosso comandante era temido por todos. Até os médicos cumpriam as suas instruções dando como aptos soldados com ferimentos ainda por cicatrizar. O que o Vicente diz do alferes pára C.P., origem indiana, é pura verdade. Sei o que digo porque chegou a comandar o meu pelotão. Quanto ao alferes D… não me lembro de ele se recusar a sair para o mato, a não ser que isso tivesse acontecido quando fui evacuado para Bissau, mas sei que não era um exemplo de coragem.

O facto do capitão T.M. bater nos quatro soldados, não me admiro nada, porque não foi caso único. Podia contar o que o coronel Rafael Durão [, que é uma figura pública conhecida, pelo que não vale a pena ocultar a sua identidade,] fez a um cabo da minha secção na minha presença. O bater nos soldados era moeda corrente nos páras, principalmente durante a instrução em Tancos.

Falando agora nos bombardeamentos de Gadamael, acho que o Vicente exagera um bocado. O pior talvez tivesse acontecido antes de nós irmos para lá, atendendo ao estado em que ficaram as instalações. Quando havia mais movimento no quartel, quase sempre éramos presenteados com um dilúvio de metralha, o que deixa entender que alguém estaria a dar informações ao IN.

Já agora vou descrever um pouco por alto aquilo que ainda está gravado na minha memória. Quando nos disseram em Bissau que íamos para Gadamael, informaram-nos que a situação era muito grave e que não valia a pena irmos carregados ,só o necessário para três ou quatro dias. Quando nos aproximávamos de Gadamael, recordo-me muito bem de ver muita tropa à beira do rio, com uma expressão de terror na cara.

Alguns dizem que desembarcámos em botes, mas eu quase afirmava que foi de LDM e era capaz de jurar que só a minha companhia, a 122, é que desembarcou nesse dia e não me lembro de estarem lá duas companhias de páras ao mesmo tempo. Penso que a 123 nos foi render para a 122 poder descansar uns dias em Cacine.

Mal chegámos a Gadamael, dois pelotões foram logo para a mata, onde passaram a noite. Em Gadamael apenas se encontravam lá uns quinze ou vinte homens, o resto tinha fugido. Recordo-me que veio logo uma Berliet conduzida por um açoriano muito destemido para evacuar os mortos e feridos. Soube pelo blogue que o José Casimiro Carvalho também fazia parte dos que não fugiram. O meu pelotão, o quarto, fazia parte do bigrupo que passou a primeira noite no mato e, quando estávamos a regressar ao quartel, este foi fortemente bombardeado ,originando a morte de alguns soldados do exército que tentaram fazer fogo com o obus 140, salvo erro. Estivemos à espera que os rebentamentos acabassem para poder entrar no quartel.

Um dia ou dois mais tarde morreram mais três soldados e um alferes miliciano, vítimas duma emboscada, muito próximo do quartel. Alguém devia ter um grande peso na consciência por ter mandado para o mato um grupo de apenas duas dezenas de militares, se tanto. Este ataque já foi contado pelo José Casimiro e pelo Vicente.
Aqui o Vicente deve estar enganado. Quem foi primeiro recuperar os corpos foi outro pelotão, o nosso pelotão foi enviado em reforço porque tínhamos acabado de chegar do mato. Encontrámo-nos a meio caminho e demos uma ajuda a transportar os corpos que estavam muito mal tratados : tinham o corpo queimado e ferimentos causados pelas balas. O alferes tinha um grande buraco na cara derivado a uma rajada e um soldado nem calças trazia vendo-se bem o efeito das chamas.

Quando chegámos ao quartel, os colegas dos militares mortos estavam no cais à espera e houve um pormenor que me deixou surpreendido e até chocado. Nenhum deles teve a coragem de nos ajudar a carregar os mortos para a Berliet. Os corpos eram postos no chão e o pessoal ia para as valas. Eu próprio os carreguei com a ajuda de colegas. Quando estávamos com este trabalho, o IN lançou novo ataque e eu só tive tempo de saltar do paredão do cais para me proteger. Foi a minha salvação pois uma granada caiu no local que tinha deixado. Escapei a uma morte certa por décimos de segundo.
Outro pormenor que me surpreendeu : quando íamos resgatar os corpos, um dos soldados que tinha fugido da emboscada dirigiu-se a mim, suplicando-me por tudo quanto me era sagrado, que tentasse recuperar uma medalha ou um fio que a mãe lhe tinha dado. Essa medalha ou fio devia estar no casaco que ele largou durante a fuga. Os ataques iam-se sucedendo e talvez mais espaçados e a tropa que tinha fugido ia regressando ao quartel talvez por se sentirem mais seguros com a nossa presença.

No dia dez de Junho (ninguém no mundo me convencerá que não foi neste dia ) sofremos então uma emboscada que deixou a 122 muito debilitada. Pela manhã fomos montar uma emboscada um pouco distante do quartel. Nada se passou de anormal a não ser uma tentativa do IN em abater um Fiat que voava bem lá no alto : distinguia-se perfeitamente o fumo do míssil que tinha rebentado.

A meio da tarde, iniciámos o regresso ao quartel. Estava previsto o meu pelotão e mais um pernoitarem na mata, já muito próximo do quartel e estávamos já nesses preparativos, quando se deu a emboscada. Os dois pelotões que lá deviam pernoitar encontravam-se já na mata e os outros dois seguiam pelo caminho que dava acesso ao quartel. Os dois bigrupos encontravam-se em posição paralela o que podia ter custado muito caro. Claro que foi um erro de quem dirigiu a manobra. Os dois pelotões que iam para o quartel é que deviam ir na frente. Eu por acaso apercebi-me do erro e disse aos meus homens para não dar fogo. Aquilo nunca mais acabava. Quando os caças Fiat vieram em nosso auxílio ainda o combate não tinha acabado. Não havia árvores de grande porte para nos protegermos. O meu colega do lado esquerdo tentava proteger-se atrás dum arbusto que foi ceifado por uma granada logo por cima da cabeça. O que estava do meu lado direito foi levantado pelo sopro duma granada possivelmemte dum RPG7. Acreditem que foi verdade pois vi com os meus próprios olhos. Há minutos na vida que duram uma eternidade. Resultado da brincadeira :17 feridos, todos causados por estilhaços fazendo eu parte desse grupo com um ferimento na cabeça.

Por absurdo que pareça eu fiquei bem disposto e até brinquei com os meus colegas. Quando estes me viram a sangrar da cabeça disseram-me : o meu furriel já pode estar descansado, já acabou a comissão. Mal eles imaginavam que passados oito ou dez dias estava de novo junto deles. Claro que o ferimento não era grave e, derivado ao medo que os médicos tinham do comandante, eu próprio pedi para voltar à minha companhia. Quando voltei, já a 122 estava a descansar em Cacine e mal cheguei lá fui presenteado com um ataque de paludismo. Veio logo o capitão Terras Marques dizer-me que tinha que recuperar depressa pois precisava de mim para irmos fazer uma operação à fronteira da República da Guiné.

Voltando um pouco atrás. Fomos então evacuados para Cacine em dois botes que iam superlotados e de Cacine seguimos de helicótero para Bissau. Quando eu estava no hospital a aguardar transporte para Bissalanca, chegou o homem do monóculo para ver como estavam os feridos. O médico que o acompanhava apontou para mim e disse-lhe que eu era um dos feridos. Dirigiu-se a mim e perguntou-me como se tinha passado. Quando lhe disse que foi no regresso, logo me perguntou se vínhamos pelo mesmo caminho. Pensei logo que estava ali uma armadilha e lá lhe enfiei o barrete.

Caros amigos,acho que vou ficar por aqui. Desde que descobri o vosso blogue, já perdi muitas hors de sono, para não dizer noites. Até hoje nunca tive a oportunidade de encontrar alguém que tivesse vivido as mesmas aventuras para poder desabafar. Desde que passei à disponibilidade, emigrei para a França onde ainda trabalho e ainda bem que a Internet existe para conhecer as opiniões de outros que também passaram pela Guiné.

Um abraço para todos

2. Caro Manuel Peredo, esperamos que esta tua mensagem seja a primeira de muitas, através das quais colaborarás no nosso Blogue, que todos queremos seja o depositário das nossas experiências na guerra da Guiné.

Poderás aderir formalmente ao nosso Blogue, enviando as fotos da praxe, uma dos teus tempos de tropa e outra actual, em fomato tipo passe de preferência.

Todas as tuas estórias serão bem-vindas, que poderão ser acompanhadas de fotos para as ilustrar.

Na nossa tertúlia temos pouca malta dos Páras, como constatas, pelo que a tua adesão é importante.

Recebe, em nome dos editores e da restante tertulia, um fraternal abraço com votos de bem-estar por essas terras de França.
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Nota de CV:

(1) Vd. poste de 5 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

Guiné 63/74 - P2932: A guerra estava militarmente perdida? (15): Uma polémica que, por mim, se aproxima do fim (Beja Santos)

A Guerra Estava Militarmente Perdida?

Fixação e revisão de texto: vb


1. Esclarecimentos de Mário Beja Santos em mensagem de 3 de Junho.

Caros Luís Graça e Graça Abreu, muito prezados tertulianos,

Creio que esta polémica se aproxima do fim. Pela minha parte, trago hoje como postulados:

1. O frenesim político para encontrar um cessar-fogo;
2. O plano de abandono de quartéis junto às fronteiras por incapacidade de responder à supremacia do armamento do PAIGC;
3. Testemunhos de protagonistas da época.

Para último apontamento, a enviar na próxima semana, vou alinhavar a bibliografia que reputo como fundamental para apreciar o período crítico de 1973 a 1974 e a leitura que faço da derrocada da Guiné no contexto do 25 de Abril.

Primeiro, Rui Patrício esclareceu em 1995 as negociações em curso ("A Guerra de África", por José Freire Antunes, volume II, Círculo de Leitores, 1995):

"Fui defensor das negociações secretas com o PAIGC, já em 1974... Eu nunca fui partidário de que a derrota militar seria o melhor. Quando se está com o canhão e espingarda diante de nós, chama-se a isso estado de necessidade... Qualquer explicação era possível porque qualquer coisa era melhor que a derrota militar. A estratégia que levou às conversações de Londres foi só conduzida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Era uma negociação para discutir o futuro político da Guiné".

Cabe perguntar, no âmbito desta polémica, porque razão desesperadamente fomos para a mesa de conversações quando, a acreditar nos argumentos do Graça Abreu, não estávamos a caminho da derrota.

Segundo, quer o comandante-chefe da Guiné, quer o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas referem, na obra acima citada, que havia um programa de abandono de quartéis, atendendo à situação crítica que se vivia graças à modernização do equipamento do PAIGC.

Diz Bettencourt Rodrigues (Volume I, página 112):

"Estava também a ser ponderado um certo retraimento do dispositivo, afastando da fronteira as guarnições militares, como já se havia feito em Madina do Boé. Deste modo, para as flagelações, o PAIGC teria de instalar os seus meios em território da província... O PAIGC recebia material de guerra moderno e eficiente em quantidades vultosas destacando-se nesse material os foguetes terra-ar, que determinavam alterações na conduta das operações, os RPG2 e 7, com significativo efeito psicológico sobre o nosso pessoal e os materiais de artilharia e morteiros".

Quanto ao General Costa Gomes, as suas observações aproximam-se das do comandante-chefe (Volume I, página 121):

"O Ministro dos Negócios Estrangeiros afirmou que eu tinha dito numa reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional que a Guerra na Guiné se podia ganhar. Mas o que eu de facto disse foi que a guerra na Guiné podia durar um pouco mais se modificássemos o dispositivo e o concentrássemos... Eu preconizava esta alteração do dispositivo que nos permitiria reunir e ter à disposição do comando forças que pudessem ser empregues em caso de ataque...".

Alguns comentários a estas declarações:

o que estes dois militares não dizem é que o abandono de aquartelamentos significava o desaparecimento de povoações, e terá sido esta uma das razões fundamentais pela qual o general Spínola se demitiu.

Nesta já tão ventilada reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional, Marcello Caetano, segundo escreveu no seu primeiro livro no Brasil terá perguntado se a Guiné era defensável e se não o fosse haveria que retirar, deixando um oficial na comissão liquidatária.

Costa Gomes teria retorquido que a Guiné era defensável desde que se fizessem alterações ao dispositivo, insinuando que a guerra estaria perdida se acaso fosse verdade que o PAIGC dispusesse de MIGs e os utilizasse.

Ora nesta altura já havia informações que o PAIGC possuía aviação, razão pela qual andávamos febrilmente à procura de adquirir um sistema defensivo compatível para Bissalanca e procurávamos comprar a que preço fosse mísseis terra-ar, depois da formidável negativa de Washington.

Terceiro, Silva Cunha, então Ministro da Defesa, no seu depoimento nesta obra (volume I, página 341) refere compras de armamento e pasma a ingenuidade das suas afirmações:

"A África do Sul tinha comprado duas baterias de mísseis terra-ar Crotale em França - eu consegui que eles desistissem de uma, e comprámo-la nós, directamente aos franceses. Pagámos a bateria aos franceses, os trinta por cento que estavam no contrato, e chegámos a mandar o pessoal para ser treinado. A bateria dos Crotale era para proteger o aeroporto de Bissau. Havia na Guiné aviões MIGs, mas podiam ser usados lá. Conseguimos artilharia em Israel, porque uma das coisas de que se queixava na Guiné era que a artilharia deles tinha alcance superior ao da nossa. Conseguimos os Red Eye na Alemanha. Não sei quem os vendia, só sei que eles nos forneciam 500 Red Eye americanos".

O ministro Silva Cunha refere igualmente que o Governo português esteve à beira de comprar aviões Mirage. Escapou-lhe a boca para a verdade, afinal sempre havia aviões MIG de uma república independente chamada Guiné-Bissau. Gostava de saber se nas contas de armamento do Graça Abreu aparece artilharia israelita, a bateria dos Crotale e os aviões Mirage. Provavelmente não, já tínhamos entrado na espiral demencial da tomada de medidas sem quaisquer consequências.

Quarto, porque numa polémica é mister facultarmos a quem está de fora o pensamento dos outros que, desta ou daquela maneira, intervieram nos acontecimentos em análise, oiçamos alguns testemunhos.

O General Diogo Neto (Volume I, página 321) refere-se aos mísseis Strella, dizendo que a reacção da Força Aérea foi péssima quando eles apareceram, e escreve:

"O míssil actuava a partir dos 250 pés até aos 8000. Como o bombardeamento de Fiat era feito a partir dos 8000 pés, ficava sempre na mira dos mísseis. Evidentemente que foram afectadas as unidades do exército que estavam isoladas e que dependiam do apoio logístico dos aviões pequenos e até dos próprios helicópteros... A parte final da Guiné correu mal. O PAIGC teve um incremento muito grande ao nível das acções. Tudo isto veio afectar o moral e a capacidade da Força Aérea".

Carlos Fabião, um dos oficiais mais conhecedores da Guiné, também depõe (Volume I, página 374):

"Quando apareceram os Strella, a guerra da Guiné acabou. Deixámos de ter possibilidades de acção. Não é fácil dizer que a situação estava perdida, embora haja gente que faça análises pouco sérias, na minha opinião. Se me disserem que a Guerra colonial estava perdida na Guiné, eu digo que estava. Se me disserem que a guerra colonial não estava perdida na Guiné, eu digo que não estava. E não estava a que preço? O regime mandava para lá aviões, helicópteros, mas homens não sei aonde é que os iria buscar".

Oiçamos Jaime Neves (Volume I, página 400):

"A minha convicção pessoal era de que a Guiné estava perdida... A Guiné estava arrumada. O que era a Guiné? Era uma machamba da CUF, estávamos lá a guardar os amendoins da CUF".

Oiçamos Almeida Bruno (Volume II, página 722):

"Nós só abandonámos Madina do Boé e Beli, não abandonámos os quartéis portugueses. Houve, no Sul uma debandada de um quartel, que depois foi reassumido com a colocação lá do capitão Manuel Monge. Foi em Gadamael. Guilege, por exemplo, nunca foi abandonado e o PAIGC nunca entrou em Guilege. Se saíssem aviões da Guiné-Conacri para nos bombardear, lá teríamos que fazer a segunda Operação Mar Verde. E se viessem MIGs da Guiné-Conacri, o Governo teria de comprar Mirage que pudessem ir à Guiné bombardear. E estavam a ser negociados".

Não que estes depoimentos sejam concludentes, mas o mínimo que se pode dizer deles é que insinuam que se estava num fim de época.
A derrota militar na Guiné é contemporânea de múltiplos factores que a interseccionam: o isolamento diplomático, o abandono dos principais aliados, o aparecimento da crise petrolífera, a criação do Movimento dos Capitães, uma estratégia defensiva para tentar resistir ao armamento sofisticado do PAIGC, o reconhecimento da República da Guiné-Bissau com consequências gravíssimas a prazo na natureza do tratamento do beligerante (metade da comunidade internacional deixara de aceitar existirem terroristas a combater as tropas portuguesas).

Fernando Rosas refere na obra "Marcello Caetano - A Transição Falhada", Circulo de Leitores, 2003, que o regime entrara na esquizofrenia, prometendo continuar a lutar e, pela surda, negociava e cessar-fogo e a independência da Guiné e de Moçambique, para salvar as outras colónias.

Prometo para a semana concluir estes apontamentos, agradecendo antecipadamente as observações e comentários que me permitam rectificar as análises incorrectas.

As saudações tertulianas do

Mário Beja Santos
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Notas de vb:

Vd. artigos relacionados em:

12 Junho > Guiné 63/74 - P2929: A guerra estava militarmente perdida? (14): Estávamos fartos da guerra e a moral nã era muito elevada. A. Graça de Abreu.

3 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2913: A guerra estava militarmente perdida? (13): Henrique Cerqueira.

31 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2907: A guerra estava militarmente perdida? (12): Vítor Junqueira.

29 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2899: A guerra estava militarmente perdida? (11): Correspondência entre Mexia Alves e Beja Santos.

28 de Maio > Guiné 63/74 - P2893: A guerra estava militarmente perdida? (10): Que arma era aquela? Órgãos de Estaline? (Paulo Santiago)

27 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2890: A guerra estava militarmente perdida? (9): Esclarecimentos sobre estradas e pistas asfaltadas (Antero Santos, 1972/74)

25 de Maio > Guiné 63/74 - P2883: A guerra estava militarmente perdida ? (8): Polémica: Colapso militar ou colapso político? (Beja Santos)

[Por lapso, houve um salto na numeração, não existindo os postes nº 7 e 6 desta série ]

22 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2872: A guerra estava militarmente perdida ? (5): Uma boa polémica: Beja Santos e Graça de Abreu

15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2845: A guerra estava militarmente perdida ? (4): Faço jus ao esforço extraordinário dos combatentes portugueses (Joaquim Mexia Alves)

13 de Maio de 2008 > Guiné 73/74 - P2838: A guerra estava militarmente perdida ? (3): Sabia-se em Lisboa o que representaria a entrada em cena dos MiG (Beja Santos)

30 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2803: A guerra estava militarmente perdida ? (2): Não, não estava, nós é que estávamos fartos da guerra (António Graça de Abreu)

17 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2767: A guerra estava militarmente perdida ? (1): Sobre este tema o António Graça de Abreu pode falar de cátedra (Vitor Junqueira)

Guiné 63/74 - P2931: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (2): Da solidão de pides, padres, administradores, mascotes...


Guiné-Bissau > Bissau > Abril de 2006 > Um pobre babuíno, acorrentado, mais conhecido como macaco-cão (sanjiu, segundo o Alberto Branquinho - e não sancu -, termo crioulo para macaco, provavelmente do francês singe) (1).

Em muitos dos nossos aquartelamentos e destacamentos, havia um Zeca Babuíno, mascote das NT, como este que aqui se evoca, numa estória em que se fala das nossas misérias e grandezas em tempo de guerra, da solidão dos pides e das suas esposas oficiais, dos missionários italianos e dos capelães franciscanos e das suas bajudas de mama firme, dos administradores caboverdianos e seus cipaios, sem esquecer as NT e as suas mascotes... (LG).

Foto: © Hugo Costa / Albano Costa (2006). Direitos reservados

1. Texto enviado, em 9 de Junho, pelo Alberto Branquinho, que foi alferes miliciano na CART 1689 (1967/69), tendo passado por Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá:


Luis Graça:

Obrigado pela atenção dispensada. Aí vai o nº 2 do... UMBIGO (1).

Quanto à MINHA fotografia [para a fotogaleria do nosso blogue], ainda não escolhi. Já pensei enviar uma do MEU casamento, mas o MEU casamento não teve o charme de um casamento à distância, na MINHA ausência representado pelo MEU procurador, desempenhando as MINHAS funções in situ.

Um abraço

Alberto Branquinho

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NÃO VENHO FALAR DE MIM... NEM DO MEU UMBIGO (2) > NOTAS SOBRE UM LUGAR E ALGUMAS FIGURAS


No lugar da guerra havia lugares e lugares. Com muito em comum, mas, também, diversos.

Este lugar de que venho falar era maior que o habitual. Tinha uma povoação (atenção, não era “população”) com casas de pedra (ou de tijolo) quase encostada ao arame farpado. Antes da guerra era um entreposto para recolha e saída dos produtos da terra.

Todos os lugares tinham as suas figuras e figurantes, fixados ou de passagem, com mais ou menos capacidade de intervenção, que iam desempenhando o seu papel no palco da vida (e da morte).

Havia um PIDE, mais propriamente, um agente da Polícia Internacional e de Defesa do Estado.

O PIDE estava instalado numa casa junto ao arame farpado do quartel e tinha uma mulher. Ter uma mulher era vulgar. Muitos tinham, também, mulher. Se não oficialmente, pelo menos oficiosamente. No caso do PIDE era a mulher oficial e estava ali naquela casa. Isso era proibido aos militares. Naquele lugar um tanto ou quanto perigoso.

Além disso, o PIDE tinha muitos informadores. Pagava-lhes para trazerem novas sobre as movimentações e intenções da insurreição política. Para ele tratava-se de insurreição política. Para os militares, se havia insurreição, era armada.

Além disso, o PIDE tinha antenas altas. Não era dessas. Eram mesmo antenas de comunicações. Telecomunicações, como agora se diz. Tinha, também, antenas horizontais, que ligavam as tais antenas altas à torre da igreja (das Missões). E, assim, falava com Bissau, ou com Lisboa, passando uma tangente sobre Bissau.

Quando, durante um ataque ao quartel, rebentou uma granada de canhão contra o muro da casa que ocupava, concluiu que a guerra também era com ele. A mulher quase abortou. Saiu em helicóptero e, creio, nunca mais voltou. O PIDE, sòzinho, passou a andar mais fora de portas, procurando o convívio com os militares. ( Os polícias também sofrem de solidão !).

Havia, também, um Oficial de Informações do Batalhão, que andava irritado por duas razões:

(i) porque o PIDE tinha mais informadores e, portanto, mais informações;

ii) porque o PIDE tinha mais antenas que ele e mais altas.

Quando o PIDE lhe aparecia com salameleques e fingindo trazer-lhe informações importantes (que eram os restos das que tinha já transmitido pelas antenas), o Oficial de Informações tratava-o “por cima da burra” (apesar de nesse tempo não haver burros na Guiné) e não o convidava para um whiskey no bar. Aí o PIDE procurava atracação nos oficiais menores (milicianos), mas estes assobiavam para o lado.
- Então e o chefe de posto ? – pergunta do fundo do subconsciente uma voz em off, interpelando o escriba.
- Ah, pois. O chefe de posto....Qual chefe de posto ?

Era Administrador Colonial, depois caiu o “Colonial” e passou a ser só Administrador. (Se era também Executivo não sei, mas não seria). Ocupava uma casa grande, solene, com gradeamento metálico de um verde debotado, estilo colonial, ao cimo de um grande largo com muitas árvores e que, nos tempos em que estaria tratado e limpo, teria sido agradável. Era caboverdiano, como era habitual. Tomava um porte solene e respeitável. Tinha ao seu serviço cipaios, vestidos de camisa e calção caqui, armados de Mausers, tendo no topo um chapéu colonial, igual ao que é usado nos safaris, porque safari sem aquele chapéu não é safari.

De vez em quando visitava o Comandante do Batalhão, que o recebia e que, enfadado, o acompanhava à porta.

Depois, havia um padre (italiano?), que falava assim para o esquisito. Mas só aparecia depois das “monções” [mnpo da chuva] e por pouco tempo. Dizia-se que estranhou as antenas do PIDE na torre da igreja, mas acabou por se contemporizar, como acontece sempre nas relações entre a Igreja e o Estado. Constava que também recolhia informações, mas em sentido contrário, pois dizia-se que andava em “contramão”.

O outro padre era franciscano, capelão voluntário. Liberto do hábito sentia-se livre como um passarinho. Só duas coisas o incomodavam: a boina e os soldados com as mãos nas mamas das “bajudas”, apertando assim como se apertavam as buzinas de borracha das bicicletas do antigamente. Em vez do barulho roufenho das buzinas, ouvia-se:
- Mama firme, mama firmada !

Triste foi vê-lo constatar que havia realidades bem mais cruas e que passaram a incomodá-lo muito mais. Fez-lhe bem e... fez-lhe mal. Mudou, mudou muito e no final... mudou-se para outra associação.

Havia mais, havia mais, muito mais. Havia, por exemplo, um alferes que sabia fazer contas e que tinha adoptado um macaco-cão, cuja principal divertimento era passear pela mesa de jantar já em mise-en-place, mijando sobre a fileira de pratos (sem derrubar os copos). Não entendiam que aquele acto tão simples significava grande apreciação pela organização do tampo da mesa e que, desse modo, demarcava o seu próprio território. Quando o alferes estava ocupado a fazer contas, o Zeca Babuíno era zurzido de pancada. Fugia choroso e a gritar de desespero para os ramos do mangueiro próximo. Se o alferes estava presente (embora “ausente”, como era seu costume), o Zeca chorava abraçado ao seu pescoço e depois entrava-lhe para dentro da camisa, chorando e aninhando-se-lhe no peito.

A concluir: É óbvio que, com tanta gente a querer mandar ou (como mais recentemente se diz) pretendendo ter “poderes executivos”, parecerá que seria difícil determinar quem era “aquel qui na manda” naquele espaço territorial. Não, não era.

Tomando como exemplo a acção do Zeca Babuíno, que tentava demarcar o seu território mijando ao longo das fronteiras que desejava e que, vendo bem, até eram aceitáveis (quanto à sua dimensão...), não conseguia conservar o território demarcado. Quem manda é quem tem armas e tropas. O Zeca, para além de não ter garras nem chifres, só tinha como aliado um alferes armado de canetas e lápis. Portanto...

Alberto Branquinho

Ex-Alf. Mil Op Esp
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Nota de LG:

(1) Vd. poste de 30 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2903: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (1): Palavras e expressões do crioulo

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2930: Tabanca Grande: Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Ponta Brandão > 1970 > Dois velhos balantas, possivelmente sobreviventes da repressão que se abateu sobre Samba Silate e sobre o Poindom, logo no início da guerra, em 1963, dois episódios da guerra colonial aqui evocados por um camarada nosso, ex-soldado condutor auto, Alberto Nascimento, cujo pelotão, o 1º, da CCAÇ 84 (1961/63), esteve destacado em Bambadinca.

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2008). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem de Alberto Nascimento, com data de 9 do corrente:

Caro Dr. Luís Graça:

Sou um ex-militar, soldado condutor auto, que cumpriu dois anos de serviço na então província da Guiné, entre 6 de abril de 1961 e 9 de abril de 1963, integrado na Companhia de Caçadores 84.

Como não podia deixar de ser, estes dois anos de convivência com as populações das várias etnias com quem tive contacto, mantiveram em mim o desejo de acompanhar, o mais perto possível, a vida daquele país e daquelas gentes tão maltratados antes e depois da independência.

Sou um dos visitantes assíduos do seu blogue Guiné 63/74, na tentativa de identificar alguns lugares por onde passei ou estive destacado, já que a CCAÇ 84, três meses depois de aterrar no aeroporto de Bissalanca, foi literalmente fragmentada e enviada para os mais diversos pontos do território, tendo o meu pelotão tido como último destacamento, entre Novembro de 1962 e 7 ou 8 de Abril de 1963, Bambadinca, sob o Comando de Bafatá.

O primeiro destacamento, ainda em Julho de 1961, foi Farim, após os primeiros e ainda pouco violentos ataques a Bigene e Guidaje. Seguiu-se o destacamento de Nova Lamego, conforme é dito no seu blogue (P 1292 - Contributos) onde o pelotão foi dividido por Buruntuma, Piche e Canquelifá. Só estou a mencionar o 1º pelotão da Companhia, porque à grande maioria dos camaradas dos outros pelotões só voltei a ver nos dias que antecederam o embarque para a Metrópole.

Como a memória se perde no tempo por indocumentação, ou porque a essa memória se teve medo de atribuir qualquer importância (existiam e ainda existem muitos complexos sobre a guerra colonial), resolvi dar o meu contributo para esclarecer uma dúvida colocada no seu blogue, sobre quem teria participado nos massacres de Samba Silate e Poindom, no início de 63 (*).

Sem conseguir precisar o mês, um dia soubemos que a PIDE estava em Bambadinca para deter o padre António Grillo, italiano da Ordem Franciscana, acusado - não sabíamos se por denúncia se por investigação - de colaborar, proteger, e fornecer alimentos a elementos do PAIGC, a partir de Samba Silate.

Este episódio motivou a intervenção militar do Comando de Bafatá com uma força equipada com as já na altura obsoletas auto-metralhadoras e lança-chamas. Essa força foi reforçada em Bambadinca com grande parte dos efectivos aí destacados e seguiu para Samba Silate.

Contar com pormenor o que se passou no decorrer da operação é impossível, já que fui colocado num posto de onde só podia abarcar uma pequena parte da povoação, que ocupava uma área enorme, mas o constante matraquear das auto-metralhadoras e G3 deixavam antever um morticínio.

Quando a meio da tarde o Comando deu por terminada a operação é que fui, pelo caminho, vendo a destruição provocada pelos lança-chamas, auto-metralhadoras e G3. Samba Silate estava, na sua maior parte, destruída. Num largo da povoação estavam concentrados um grande número de prisioneiros, um dos quais, talvez movido pelo desespero e terror, intentou a fuga, tendo sido abatido. Os outros foram divididos entre Bafatá e Bambadinca, de onde poucos ou nenhuns saíram.

Poindom foi o outro alvo de uma operação militar de Bafatá e Bambadinca, com o apoio da força aérea. O avanço militar terrestre fez-se pela bolanha enquanto os aviões despejavam bombas e rockets sobre a povoação e a mata que a antecedia, para anular eventuais grupos de elementos do PAIGC que poderiam impedir o avanço terrestre. Um dos aviões sobrevoava o rio [Corubal], metralhando tudo o que tentasse a travessia.

Quando consideraram que a mata estava "limpa", avançámos para a povoação que estava quase totalmente arrasada, sendo visíveis muitos corpos sob os escombros das palhotas. No interior de uma delas que ficou de pé, encontrámos um grupo de homens aterrorizados: já não me lembro se os fizemos prisioneiros ou deixámos ficar a chorar os mortos. Desta operação guardo bastantes recordações, quase todas na mente, apenas uma física, uma colher de madeira que encontrei no chão.

Sem pretender glorificar estas acções, que tiveram pouca ou nenhuma resistência, sinto que, com mais ou menos importância, elas fazem parte da história da CCAÇ 84 e do início de uma época de guerra que a maior parte do povo da Guiné e, no caso, de Bambadinca e Poindom e os muitos militares que nos sucederam nessas povoações, certamente não desejaram e que tantas vítimas causou em ambos os lados.

Se entender que este esclarecimento tem alguma importância para a história militar na zona de Bambadinca, dou por bem empregado o tempo, não por mim, mas pelo nome da CCAÇ 84 cuja existência no território está quase completamente apagada, não obstante estes e outros episódios, nomeadamente o do nosso destacamento na zona de Catió, que foi emboscado, com o resultado de vários feridos que foram evacuados para Lisboa e um morto, um militar que não pertencia à CCAÇ 84 (mas que, por opção sua, se encontrava no sítio e hora errados).

Os meus cumprimentos
Alberto Manuel do Nascimento

2. Comentário de L.G.:

Obrigado, Alberto, pela mensagem que me mandaste, e que eu tenho a obrigação de publicar. Os acontecimentos passados, no já longínquo ano de 1963, no início da guerra, na zona leste, no sector de Bambadinca, mais concretamente em Samba Silate e Poindon (subsector de Xime, no meu tempo), fazem parte da nossa história militar e da história da nossa presença na Guiné (hoje, República da Guiné-Bissau). Fazem parte da tua vida, da tua história e da história dos teus camaradas da CCAÇ 84.

Até agora não tínhamos testemunhos directos desses acontecimentos, em Samba Silate e no Poindom, que possivelmenet remonta ao 1º trimestre de 1963, nem sequer tínhamos notícias, a não ser algumas referências, um pouco difusas, imprecisas, de conversas com antigos soldados meus, guineenses, da CCAÇ 12 com quem privei, em Contuboel de depois Bambadinca, entre Junho de 1969 e Março de 1971, e em particular do Abibo Jau (fuzilado em 1974 pelo PAIGC).

O teu testemunho é importante, sendo tu contemporâneo e testemunhas dos acontecimentos. Parece ser, além disso, um testemunho sério e honesto de alguém que viu directamente os resultados da destruição da tabanca de Samba Silate pelas NT e participou na operação contra o Poindom. O teu depoimento parece-me consistente. Por exemplo, relatas a história da prisão e expulsão do missionário italiano, o Padre Grillo, história essa que eu próprio ouvi, ainda há pouco tempo, quando estive na Guiné-Bissau (29 de Fevereiro a 7 de Março de 2008). Ainda hoje essa história está na memória das gentes de Bambadinca, e seguramente entre a comunidade cristã. O Padre Grillo não terá o único sacerdote católico a ter problemas com as autoridades portuguesas, por razões políticas (Veja-se, por exemplo, o caso - embora ficcionado - do padre Francelino, de Catió, que entra na estória da Pami Na Dono, a guerrilheira, escrita pelo nosso camarada Mário Vicente ou Mário Fitas).

Como sabes (partindo do princípio que conheces as regras do nosso convívio), procuramos não fazer juízos de valor sobre o comportamento dos nossos camaradas, individualmente. Evitamos também em falar de massacres (**), por falta de informação documental, detalhada, proveniente de fontes independentes (ou, no mínimo, fidedignas). Deixamos esse trabalho aos historiadores.

De qualquer modo, temos a ideia de que, no início da guerra, as coisas passaram-se assim, um pouco por todo o lado. Praticou-se a política de terra queimada, usou-se o terror e a repressão. Atenção: de ambos os lados... Nem as NT nem o PAIGC eram meninos de coro... O próprio Amílcar Cabral admitia que a colaboração das populações locais poderia ter que ser obtida pela força, em certas circunstâncias. Nenhuma guerra, de resto, é limpa, asséptica, cirúrgica . Infelizmente, há sempre efeitos colaterais. Não sõa só combatentes, de um lado e de outro, que morrem ou ficam inválidos. Há as populações civis que são sempre as grandes vítimas da guerra, directas e indirectas. Da guerra, de todas as guerras.

Isto não serve de desculpa para excessos eventualmente cometidos tanto pelas NT como pelo PAIGC. Mas espero, ao menos, que isto te ajude, a ti e a nós todos, a exorcizar alguns dos nossos malditos fantasmas e quiçá pesadelos que ainda nos perseguem, ao fim destes anos todos.

Seis anos depois e de ti, eu próprio passei, várias vezes, por Samba Silate e pelo Poindom. Em operações, patrulhamentos, etc. Em Samba Silate ainda havia, em 1969, alguns restos calcinadados de moranças da tabanca. No Poindom, pelo contrário, eramos recebido a tiro de costureirinha, de morteiro e de RPG...

Pelo que tu nos contas, no Poindom parece ter-se tratado de uma operação militar, com aviação, napalm, etc. No caso de Samba Silate, terá havido colaboração da PIDE e da autoridade administrativa de Bambadinca com as NT (incluindo a cavalaria de Bafatá, pelo que deduzo das tuas mensagens...). As operações terão sido, por sua vez, coordenadas pelo comando de Bafatá. É isso ?

Infelizmente, também não têm aparecido, no nosso blogue, nem grandes nem pequenas notícias da tua companhia, a CCAÇ 84. Obrigado também por isso. E pela tua manifestação de simpatia e solidariedade pelos nossos dois povos, os guineeneses e os portugueses, que foram afinal as grandes vítimas desta longa, estúpida e inútil guerra.

Meu caro Alberto: ficas desde já convidado a integrar, de pleno direito, a nossa Tabanca Grande. Manda-me, se não te importares, pelo menos uma foto actual, tua, digitalizada (em formato jpg), e se possível algumas fotos do teu tempo em Bambadinca, também digitalizadas. Faz um esforço por te lembares e reconstituires mais memórias desse tempo. Julgo seres o mais velho camarada de Bambadinca. É raro aparecer malta do teu tempo (1961/63).

Um grande abraço de todos nós, teus camaradas, e em especial dos que passaram pelo triângulo Bambadinca - Xime - Xitole, e que estão bem representados na nossa tertúlia.

L.G.
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Notas de L.G.:

(*) Vd. referências a Samba Silate, Poindom e Nhabijões:

11 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIII: Aos nossos queridos nharros (Zé Teixeira)

Nota de Luís Graça:

(...) "Em pleno chão fula, foram os balantas, os beafadas e os mandingas que aderiram mais facilmente (ou foram condenados a aderir) à guerrilha. Os fulas, pelo contrário, reforçaram a sua velha aliança secular com os tugas. Fulas e balantas cultivavam um ódio de estimação. Eu, pessoalmente, nunca consegui falar, olhos nos olhos, a um balanta de Nhabijões...

"Os demónios étnicos e velhas contas por liquidar vieram, infelizmente, ao de cima, a seguir à nossa saída da Guiné. Bambadinca, tal como no início da guerra, em 1963, foi depois da independência palco de crimes contra a humanidade, nomeadamanente de execuções sumárias de dirigentes fulas, de ex-comandos e outros ex-militares que estiveram integrados nas NT. Ou seja, desta vez, de sinal contrário. A extensão destes crimes está por investigar.

"Provavelmente nunca chegaremos a conhecer toda a verdade dos crimes praticados nas décadas de 1960 e 1970 na Guiné, por nós e pelo PAIGC, em nosso nome e em nome do PAIGC. Os fuzilamentos do Cumeré, de Bambadinca e de outros sítios, praticados por ou em nome dos guerrilheiros no poder, não podem todavia fazer esquecer, ignorar ou branquear a repressão exercida pelas autoridades coloniais no início da guerra: Samba Silate e Poidon, por exemplo, não honram a memória dos tugas. Foram lugares de massacres no início da guerra.

"Eu não estava lá, mas os meus meus nharros, os mais velhos, os homens grandes, contavam-me estórias desse tempo, do terror branco de Bambadinca. Terror branco ou crioulo, já que a administração colonial da Guiné era basicamente preenchida por funcionários oriundos de Cabo Verde, ou de origem caboverdiana... Na Missão do Sono de Bambadincazinha, a G-3 a tiracolo, enquanto fazíamos horas para o sol esplendoroso de África aparecer e fazer espantar os nossos medos e os nossos fantasmas nocturnos. E com aquela espécie de inocência de criança com que os fulas falavam destas coisas trágicas e macabras da guerra e da morte aos senhores da Guiné, que eram os tugas...

"Tive as relações mais afáveis, afectuosas e cordiais que me foi possível manter com os fulas, com os meus queridos nharros, mas eu sabia que as relações entre iguais, logo as relações de amizade, eram impossíveis entre nós: eu, fardado, representava uma potência estrangeira, colonial; eles, fardados, soldados de 2ª classe, pertenciam a um tempo e a mundo que já não existia... Os fulas estavam condenados pela história: infelizmente, eles não tinham alternativa... Corrompidos pelo poder colonial, conduzidos pelos seus altos dignatários a um beco sem saída, os fulas acabaram por esclher o lado errado da barricada. Nem mesmo neutrais eles poderiam ter sido...

"Enfim, especulo: que sei eu, ao fim e ao cabo, das complexas relações das principais etnias da Guiné, entre si, e com o poder colonial, durante os anos de guerra ?!... No entanto, subscrevo, de coração aberto, o belíssimo texto que o Zé Teixeira me enviou e que passo a inserir no blogue... O Zé foi talvez dos poucos que, graças ao seu papel de enfermeiro (e também por mérito pessoal e pelas suas qualidades humanas), consegui saltar a barreira da espécie: ele, tuga, foi aceite e amado pela população fula, e ainda hoje tem verdadeiros amigos fulas" (...).

28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)

(...) "Os balantas foram, segundo o testemunho insuspeito dos meus soldados (fulas), as maiores vítimas da repressão colonial nesta década. Seis anos depois (é difícil confiar na memória dos africanos que não usam calendário, mas isto ter-se-á passado em 1963, depois do início oficial da guerra), Samba Silate (cuja população terá sido parcialmente massacrada pela tropa ou pela polícia administrativa de Bambadinca, não posso precisar) e Poindom (regada a napalm pela força aérea) ainda despertam aqui [, em Nhabijões,] trágicas recordações: evocam o tempo em que todo o balanta era suspeito aos olhos das autoridades militares e administrativas, presumivelmente coadjuvadas pela PIDE (Tenho dificuldade em explicar aos meus soldados, que não falavam português quando os conheci em Contuboel, o que é isso, o que é essa sinistra polícia…).

"Há uns anos atrás, nos anos do terror, ser encontrado fora da sua tabanca ou do seu perímetro, de catana na mão ou faca de mato à cintura - que é ronco ou adorno para um balanta que se preze - , eis um belo pretexto para um balanta ser preso, levado para o posto administrativo de Bambadinca, sumarianente interrogado e às vezes, hélàs!, mais sumariamente ainda liquidado.

"A justificação era simples, segundo os meus nharros: "um balanta a menos, era um turra era menos" (sic)… Admito que haja aqui alguma dose de fanfarronice e de exagero, por parte dos fulas, históricos inimigos e vizinhos dos balantas… Mas não há fumo sem fogo: estas histórias parecem-me ter consistência…

"Donde esta hostilidade passiva que julgo poder ler nos olhos e nas atitudes da população de Nhabijões que alimenta a guerrilha, em homens e mantimentos, provavelmente mais por razões de parentesco do que por simpatia para com o PAIGC: ao avistarem-me, fardado, na sua tabanca – a mim, tuga, representante da tropa ocupante - os mais velhos baixam a cabeça ou viram-me as costas como se sentissem acabrunhados com a minha presença… Quem se sente mal, sou eu, que venho invadir-lhes a sua privacidade e perturbar os seus irãs…

"Devia ser esta, aliás, a atitude com que caminhavam para a morte: sem medo mas também sem revolta, com uma estranha dignidade ancestral, a pá e a pica em cada uma das mãos. Sim, por que o método era tão requintado como o dos nazis, a crer na descrição que me fazem alguns dos meus informadores, os mais velhos, como o Abibo, por exemplo – o Abibo, o bom gigante do Abibo, que sofre de epilepsia e tem elefantíase no escroto…

"Ou até senão mais: a própria vítima abria a estreita vala onde devia caber o seu próprio corpo, três palmos abaixo da superfície, e onde ficava deitado… à espera que o carrasco da polícia administrativa (sempre os africanos para as tarefas sujas…) se dignasse dar-lhe o passaporte para a eternidade: um tiro de pistola, uma lata de gasolina, um fósforo…

"Ter-se-á passado assim ? Um frémito de horror passa-me pela espinha acima. Recuso-me a aceitar que isto se tenha passado debaixo da bandeira verde-rubra da minha pátria, com a cumplicidade ou até o envolvimento (activo ou passivo) das tropas portuguesas ou dos representantes das autoridades portuguesas… Faço, ao menos, votos para que estes crimes sejam apenas imputados à odiosa PIDE… Enfim, nunca o saberei… Ou melhor, poderei perguntar-lhes onde era o sítio... O Adibo e outros falam-me do antigo cemitério de Bambadinca, um sinistro local de outrora onde hoje as alfaces crescem, viçosas" (...) (**).

(**) Irónica e desgraçadamente, o Abibo Jau, antigo soldado da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), o nosso bom gigante mas também o nosso torcionário - no meu tempo, Soldado Arvorado nº 82 107 469, pertencente à 1ª secção, 1º Grupo de Combate, sob o Comando do Alf Mil Op Especiais Francisco Magalhães Moreira - será sido executado sumariamente, sem julgamento, pelo PAIGC, juntamente com o Cap Graduado Jamanca, comandante da CCAÇ 21, em finais de 1974 ou princípios de 19775, perto de Samba Silate, em Madina Colhido:

12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

(...) "Eu (com os meus quase 11 anos) e muitos outros, em 1974, vimos os militares do PAIGC em dois camiões de fabrico russo, um deles completamente tapado de toldo. Passaram por Xime, de manhã, para Madina Cudjido (Colhido, como vocês dizem). Passados uns 30 minutos ouvimos muitos tiros. Só que por volta da hora do almoço ouvimos [dizer] que foram lá fuzilados 8 pessoas. E das pessoas que nós ouvimos que tinham sido fuzilados - não sei se corresponde a verdade ou não - um deles era o tal Abibo Jau (2) que esteve na CCAÇ 12 em Xime. A outra pessoa seria o Tenente Jamanca, da CCAÇ 21 que estava em Bambadinca.

"Mas tudo isso não me espanta porque os meus irmãos e primos que cumpriram o serviço militar no exército português, em Farim e depois em Bissau e Bambanbadinca, também foram presos, mas felizmente não lhes aconteceu o pior" (...).

(3) Vd. poste de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXV: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias)

(...) "Antes de concluir, parece-me que o termo massacre, aplicado aos acontecimentos do Pidjiguiti, é um pouco exagerado, não por o número ser muito inferior aos 50 habitualmente referidos, mas porque o conceito que a palavra implica, se refere à chacina indiscriminada, a uma carnificina injustificada do género descrito nos livros de história como passar tudo a fio de espada.

"Com respeito aos massacres de populações balantas e beafadas na região de Bambadinca nos primeiros anos de 60, referidos no blogue-fora-nada, embora não os possa negar ou confirmar, tendo eu saído da Guiné em Fevereiro de 1966, nunca deles ouvi falar o que é estranho pois, como se diz na Guiné, noba ka ta paga cambança - aforismo com um sentido semelhante ao as notícias espalham-se depressa. Numa terra como a Guiné onde tudo se sabia e comentava, é estranho que nunca tivesse ouvido falar em tal acontecimento. Deve ter sido muito bem ocultado (...)".

18 de Novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1292: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte I)

Companhia de Caçadores n.º 84

Ficou colocada em Bissau após a sua chegada à província em 6 de Abril de 1961, oriunda do Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora.Em 15 de Fevereiro de 1962 foram atribuídos pelotões ao BCAÇ 238 destacados para Nova Lamego para reforço da guarnição.A unidade regressou à metrópole em 9 de Abril de 1963.

Guiné 63/74 - P2929: A guerra estava militarmente perdida? (14): Estávamos fartos da guerra e a moral não era muito elevada (A. Graça de Abreu)

A Guerra Estava Militarmente Perdida?

Mensagem de António Graça de Abreu, de 29 de Maio:

Uma boa polémica – Beja Santos e António Graça de Abreu

Confesso que é com algum desprazer que me sento uma vez mais diante do computador para alinhar o texto que se segue. Mas tem de ser.
Não gosto de polémicas, não gosto de ter razão, porque a minha razão pode ser sempre diferente da razão do meu irmão. E Mário Beja Santos é meu irmão nas coisas da guerra da Guiné. Somos irmãos até porque escrevemos ambos um livro com o mesmo título, o meu Diário da Guiné editado em 2007 e o Diário da Guiné do Mário, editado em 2008.

Mas a Guiné ainda me dói, vai doer até ao fim dos meus dias. Se alguma coisa aprendi (pós Guiné) lá pelos orientes mágicos onde despedacei, construí também a minha vida, é que, dia a dia, temos de agradecer aos deuses a magia de continuarmos vivos, de continuarmos a caminhar serenamente sobre a terra. A tranquilidade, a paz, o não remorso, agora aos sessenta e um anos, fazem parte de mim. A Guiné, a China estarão sempre cá dentro, por bem. Por isso, lavei as mãos antes de escrever.

Participámos todos numa guerra injusta. O entendimento que temos do conflito é naturalmente plural, cada homem é um mundo. Isto não significa que não haja análises distorcidas, falsidades, juízos que não correspondem, de modo nenhum, às realidades que todos vivemos.
Custa-me ler que, em 2008, ainda haja pessoas convencidas de que em 1973/74 a guerra da Guiné estava militarmente perdida, de que havia um colapso militar, de que os homens do PAIGC que então lutavam heroicamente pela liberdade e independência da sua terra, possuíam armamento superior e haviam já derrotado militarmente as tropas portuguesas. Porque as tropas portuguesas éramos todos nós que estávamos lá, no terreno, mais 400.000 guineenses que viviam ao nosso lado. Não estávamos derrotados.

Vamos ler as palavras do General Carlos Azeredo, como nós combatente na Guiné, em José Freire Antunes (ed.), As Guerras de África, vol. I, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, pag. 385:

“A guerra na Guiné era mais complicada mas não estava perdida, e a maior parte da população estava connosco. Em cinco quintos da população nós tínhamos três a nosso lado, um indeciso e um ao lado do PAIGC.”

Isto é verdade ou é mentira? É verdade, gostemos ou não de Carlos Azeredo. Numa guerra de guerrilha é fundamental o estar junto das populações, tê-las sob nosso controlo, sermos aceites por elas. Qualquer manual de guerrilha explica isto. Assim se ganham, assim se perdem as guerras. Porque perderam os americanos a guerra no Vietname, porque é que não a podem ganhar, agora no Iraque?

Em 1973/74 as tropas portuguesas na Guiné não eram esses militares do ar condicionado em Bissau que nunca passaram de Nhacra ou do Cumeré, esses coronéis ou brigadeiros que tudo sabiam sobre a guerra arrastando o traseiro pelas poltronas do Terreiro do Paço, não eram alguns ex-militares portugueses que haviam combatido na Guiné e que em 1973/74, a partir de Lisboa, acreditavam (ainda hoje acreditam!) no inacreditável, não eram uns tantos ministros ou diplomatas que debitavam ignorância e montanhas de incongruências sobre o conflito militar.

Vamos a factos.

Ao longo desta polémica tenho procurado, acima de tudo, os factos e não os argumentos.

A 12 de Fevereiro de 1974, escrevia eu no meu Diário, em Cufar, sul da Guiné:

Esta tarde fomos ao porto buscar um soldado de Cafine que pisou uma mina e ficou sem perna do joelho para baixo. Veio uma DO buscá-lo, o calvário do costume, hospital de Bissau, hospital Militar de Lisboa, inválido para toda a vida.
Muito resiste este meu povo! Hoje ao almoço, esparguete com rodelas de chouriço, ao jantar, arroz com pedacinhos de atum. Subalimentado, fora do mundo que lhe diz respeito, mal pago, com a invalidez ou a morte à frente dos olhos e continua a fazer a guerra.
[1]

A 17 de Janeiro de 1974 escrevia eu no meu Diário, num aerograma que, no livro, tem a cópia do original:

Tivemos ontem ministerial visita, Baltazar Rebelo de Sousa, do Ultramar. Impressionantes medidas de segurança que o Sr. Ministro não lobrigou. Tropa emboscada em Catió, pára-quedistas que vieram de propósito de Bissau emboscados em Caboxanque, Fiats lá por cima a grande altitude, prontos a actuar, os heli-canhões protegendo os itinerários de passagem. Resumindo, lindo de ver! E o ministro, quando chegar a Lisboa é capaz de botar discurso e afirmar que se deslocou livremente por toda a Guiné, foi onde quis, contactou com as populações, etc., etc.
(2)

Em nota de rodapé, na mesma página, inserida em 2006, cito Marcello Caetano:

"A Guiné portuguesa pôde ser visitada há dias de lés a lés, mais uma vez, pelo Ministro do Ultramar, com numerosa comitiva, no meio do carinho e do aplauso das populações."
Discurso de Marcello Caetano na Conferência Anual da Acção Nacional Popular proferido em 16 de Fevereiro de 1974, em Depoimento, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1974, pag. 211.

Era este o governo de Portugal. Baltazar Rebelo de Sousa, ministro do Ultramar (pai do nosso conhecido Marcelo Rebelo de Sousa que, de resto, deve o seu nome de baptismo a Marcello Caetano, seu padrinho) voou de helicóptero de Bissau para Cufar, Cadique, Caboxanque e Cacine. Claro que tínhamos tropas emboscadas nos itinerários de passagem do Ministro, que viajou acompanhado do governador General Bettencourt Rodrigues, e noutros helicópteros, de uns tantos jornalistas. Lembro-me do José Mensurado e de uma equipa da RTP.

Gostemos ou não, com umas tantas mentiras pelo meio, a verdade é que o ministro do Ultramar, em Fevereiro de 1974 andou por Cufar, pelo Cantanhez, por Cacine. A "superioridade militar" dos guerrilheiros do PAIGC não se fez sentir.

Agora o meu irmão Mário Beja Santos, para justificar a tese da derrota militar das tropas portuguesas na Guiné, cita as memórias (memórias escritas quase trinta anos depois, o que por vezes tolda o entendimento!) do embaixador José Manuel Villas-Boas onde o diplomata diz:

"Eu iria a Londres como seu (de Rui Patrício ministro dos Negócios Estrangeiros) emissário pessoal e devia tornar claro aos guineenses que representava o próprio Ministro dos Negócios Estrangeiros. Resumindo: eu seria portador de uma oferta de independência à Guiné-Bissau, a troco de um cessar-fogo."

Os meus caros tertulianos e o Beja Santos não sei se repararam na utilização do tempo condicional na prosa do embaixador Villas-Boas: "Eu iria a Londres…" Foi ou não foi com estas propostas? Existem ou não actas destas reuniões? De resto, – e estamos a falar de negociações antes do 25 de Abril, – como é possível um Presidente do Conselho, ou primeiro-ministro, como Marcello Caetano discursar em Fevereiro de 1974 na Conferência Anual da Acção Nacional enaltecendo a visita do seu ministro do Ultramar à Guiné e um mês antes, em Janeiro de 1974, enviar um embaixador a Londres e delegar-lhe a capacidade de negociar com o PAIGC "a oferta da independência à Guiné-Bissau, a troco de um cessar fogo".
Será que Marcelo Caetano havia enlouquecido? Será que desconhecia as diligências de Rui Patrício, seu ministro dos Negócios Estrangeiros? Quem acredita em tamanha desgovernação em questões absolutamente fundamentais? Creio que só o meu irmão Mário Beja Santos.
De resto, eu conheço o embaixador José Manuel Villas-Boas, agora na reforma na sua bonita casa, um turismo de habitação em Caminha. Depois de uma passagem atribulada pela África do Sul, foi enviado "de castigo" como embaixador para Pequim que, nos anos oitenta do século passado, o nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros considerava um mau posto. Fiquemos por aqui.

Penso que existe uma evidente confusão que o Beja Santos confirma no seu texto no blog ao ligar o "antes" e o "depois" desses meses de Abril e Maio de 1974. A oferta de independência a troco do cessar-fogo surge nos primeiros dias a seguir a 25 de Abril de 1974. Quando há uma revolução em Portugal que tem como um dos principais objectivos acabar com as guerras em África é claro que as tropas portugueses na Guiné querem a paz, querem regressar a casa, o mais depressa possível, e dizer adeus à pátria de Amílcar Cabral e Nino Vieira.

Estávamos fartos da guerra e a moral não era muito elevada. Isto não significa, de modo algum, que a guerra estivesse militarmente perdida.

As negociações posteriores em Londres com o PAIGC, em Maio de 1974, creio, já com o Mário Soares, o Almeida Santos e o Almeida Bruno, e o José Araújo e o Pedro Pires pelo PAIGC esclarecem o contexto em que, para bem e para mal, evoluiu o situação política na Guiné. A propósito destas primeiras negociações pode-se consultar o depoimento do general Almeida Bruno em Rui Rodrigues (coord.), Os Últimos Guerreiros do Império, Amadora, 1995. Pp.87 e 88.

Agora algumas respostas directas ao meu irmão Mário Beja Santos.
Ponto Um:

Não denegri, de modo algum, a ausência de quadros superiores do PAIGC no interior da Guiné ao longo da guerra. Limitei-me a constatar o facto de, por necessidade, quase todos eles viverem na Guiné-Conakry.
E atenção, Mário Beja Santos, quanto escreves no nosso blog que na fase final do conflito, as nossas tropas não respondiam aos ataques do PAIGC, o que segundo as tuas palavras "era uma nova inferioridade", digo-te, meu caro, que a tua afirmação é falsa e porque é falsa põe em causa, por completo, todos nós, 60.000 homens que combateram na Guiné em 1973 e até 25 de Abril de 1974. Fiquemos também por aqui, escrevo com punhos de renda, pela elevação necessário que acho dever ter o nosso blog.

Ponto Dois:

Não pertenço a nenhuma clique nem claque, nem Opus Dei, nem Maçonaria, nem Sociedade Protectora dos Animais. Não sou de esquerda, nem de direita, gosto muito pouco de política. Sou apenas sócio do Sporting e membro do PEN Club Português. Vivo, por gosto, semi-exilado nesta casinha de aldeia, em S. Miguel de Alcainça, nos arredores de Mafra, rodeado de livros, muita China, música e sossego. Tenho todo o gosto em te convidar, Mário, para vires um dia até minha casa.

Ponto três:

Agora vou ter de desenvolver o tema por mais umas páginas:
Insistes, meu caro Beja Santos, no blog, a 25.05.2008 na superioridade do armamento do PAIGC e, como sempre, na guerra militarmente perdida.

És muito teimoso, meu irmão. Não sou eu que te vou responder às questões, peço emprestadas as palavras do general João de Almeida Bruno, que tal como afirmas a propósito do Carlos Fabião "conhecia a Guiné como ninguém". Cito o depoimento oral de Almeida Bruno publicado por José Freire Antunes (ed.), As Guerras de África, vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, pp. 721 e 722:

"Acho que o exército português estava bem equipado para o tipo de guerra no teatro de operações da Guiné. A Força Aérea estava bem, a Marinha e as forças terrestres também. O meu batalhão de comandos africanos estava muito bem equipado. Todo o material que tínhamos era o melhor material soviético que existia e que foi capturado ao inimigo. (…) A Kalashnikov, a Degtyarev e os RPGs 3 e 7 eram excelentes armas. As milícias também estavam equipadas com armamento capturado. (…) Não havia parte nenhuma do território onde nós não fôssemos. Nem o célebre Morés. Isso é pura fantasia. Claro que eles tinham lá bi-grupos, claro que nós íamos lá, claro que eles tinham baixas e nós também. Mas eles não dominavam. Em guerra subversiva a dominação é a dominação das populações. E as populações eram dominadas por nós, totalmente enquadradas pelas milícias. Agora dizem-me: 'Mas eles à noite iam às tabancas e pediam para eles lhes darem umas cervejas, e eles davam'. É muito natural que isso acontecesse, não digo que não. Mas o Cacheu, era nosso, Bigene também, todos os pontos fundamentais eram nossos.

(…) a Guiné não estava perdida militarmente. A Guiné estava perdida porque a solução não era militar mas política e nós já tínhamos perdido a solução política. (…) Daí até dizer que em Julho de 1973 estávamos à beira de uma derrocada, parece-me falso. Eu digo que é mentira porque eu fui a Kumbamory, no Senegal. Fui, rebentei com Kumbamory e Guidage passou a estar aberta.
(…) Se saíssem aviões da Guiné-Conakry lá teríamos de fazer uma segunda operação Mar Verde. E se viessem Mig da Guiné-Conakry o governo teria de comprar Mirage que pudessem ir à Guiné bombardear. E estavam a ser negociados.
(…) Eu perdi o meu gosto pela Guiné a partir do momento em que vi que a nossa solução política estava perdida, porque os políticos de Lisboa não tinham entendido a nossa mensagem. Quando percebi que tinha perdida essa batalha, só vi uma hipótese: derrubar o regime. Aderi e ajudei a derrubar o regime por razões de seriedade comigo próprio e para com todos quantos sob o meu comando combateram e morrerem em África."

Então, meu caro Mário Beja Santos?

Pois, eu sei que Carlos Fabião disse "Com a chegada dos Strella, a guerra acabou." No nosso blog tu citas esta frase totalmente fora de um contexto. Vamos então até à citação completa do general Carlos Fabião que regressou a Portugal em 1971 (corrijam-me se estou enganado!) e nos últimos três anos de guerra perdeu o contacto com o quotidiano da Guiné. Eis o seu depoimento oral a 30 de Janeiro de 1995, publicado por José Freire Antunes (ed.), As Guerras de África, vol. I, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, pp. 374.

"Quando apareceram os Strella, a guerra da Guiné acabou. Deixámos de ter possibilidade de acção. Não é fácil dizer que a situação estava perdida, embora haja gente que faça análises pouco sérias, na minha opinião. Se me disserem que a guerra colonial estava perdida na Guiné, eu digo que estava. Se me disserem que a guerra colonial não estava perdida na Guiné, eu digo que não estava."

Em que ficamos, general Carlos Fabião? Não posso deixar de admirar o seu rigor de análise. O general sabia muito bem que a guerra não tinha acabado e que não deixámos de ter possibilidade de acção. Muita coisa se alterou, é verdade, mas continuaram a realizar-se operações de grande envergadura até Abril de 1974. E com muito apoio aéreo, mesmo com os Strella que nunca mais mandaram nenhum avião abaixo. Já incluí no blog a referência no meu Diário a uma delas, a operação Estrela Telúrica no Cantanhez, no Natal de 1973/ Ano Novo de 1974.

Seria curioso e importante aparecerem aqui no blog pilotos ou pessoal da força aérea explicando como voavam entre Junho de 1973 e Abril de 1974, depois dos Strella, explicando como bombardeavam, como iam com os helicópteros ao mato colocar tropa ou fazer evacuações. Eu sei alguma coisa, em Cufar estive dentro disso tudo.

Carlos Fabião foi um grande combatente na Guiné, mas nestas palavras a análise justa não faz parte do seu discurso. Assim, com este Carlos Fabião não nos entendemos. Se estivesse vivo, talvez concordasse com as teses do Mário Beja Santos, e talvez assinasse por baixo o texto do general Almeida Bruno.
No entanto, eu acredito no general Carlos Fabião quando ele fala na compra de armamento.

O Beja Santos no blog, a 25.05.2008 diz textualmente.

" Os diplomatas portugueses, como veremos adiante, desde a segunda metade de 1973 tudo fizeram para adquirir o armamento compatível. Foi recusado sem sofismas, a diplomacia ocidental afastara-se definitivamente do colonialismo português."
Haverá um fundinho de verdade nesta afirmação mas admira-me sempre a segurança e certeza do Mário Beja Santos ao defender as suas teses. Era aos diplomatas, aos embaixadores portugueses no estrangeiro que Marcello Caetano pedia para comprarem armas? Não é estranho? Não existiriam outros circuitos muito mais eficientes?

Para concluir, e porque a prosa já vai longa, vou transcrever as palavras do General Carlos Fabião exactamente a propósito da compra de armamento, no mesmo depoimento, ob. cit., idem, pag. 371:

"Os russos prestavam auxílio ao PAIGC, mas também faziam o mesmo a nós, se quiséssemos. Vendiam armas a quem lhes pagasse. A Bélgica não vendia nada, a Holanda não vendia nada. O circuito era feito à boca dos aviões. As armas russas eram vendidas através da Norte Importadora, do Zoio, e destinavam-se formalmente à polícia do Uruguai, mas eram descarregadas em Lisboa. Comprei também armas à França. Pode ser que um dia fale, porque andei metido nisso."

Gostava de com este meu texto dar por encerrada a polémica.

Eu sei que o Beja Santos vem aí com o Nixon, os Red Eye, o Rui Patrício, o governo de Marcello Caetano, os quarenta pilotos do PAIGC para pilotar os Migs, as "doutas opiniões (de Costa Gomes!) acerca da redução dos quartéis em pontos nevrálgicos da Guiné".
Como tudo isto são hipóteses e argumentos nunca concretizados no terreno, não vale a pena mais polémica. Posso eventualmente errar num ou outro ponto, mas procuro os factos, a realidade do nosso dia a dia. Por isso escrevi um Diário da Guiné.

Uma saudação fraterna a todos os tertulianos e ao Mário Beja Santos.

António Graça de Abreu
S. Miguel de Alcainça, 29 de Maio de 2008
Ano do Rato
__________

Notas de A. Graça de Abreu:

(1) António Graça de Abreu, Diário da Guiné, Terra, Sangue e Água Pura, Lisboa, Guerra e Paz Editores, 2007, pag. 193;

(2) Idem, ibidem, pag. 184
__________

Notas:

1. Repomos a mensagem do A. Graça de Abreu na sequência cronológica que, por lapso do co-editor, não foi respeitada;

2 Adapatação do texto e sublinhados da responsabilidade de vb.

3. Artigos relacionados em:

31 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2907: A guerra estava militarmente perdida? (12): Vítor Junqueira.
28 de Maio > Guiné 63/74 - P2893: A guerra estava militarmente perdida? (10): Que arma era aquela? Órgãos de Estaline? (Paulo Santiago)
27 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2890: A guerra estava militarmente perdida? (9): Esclarecimentos sobre estradas e pistas asfaltadas (Antero Santos, 1972/74)
25 de Maio > Guiné 63/74 - P2883: A guerra estava militarmente perdida ? (8): Polémica: Colapso militar ou colapso político? (Beja Santos)
22 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2872: A guerra estava militarmente perdida ? (5): Uma boa polémica: Beja Santos e Graça de Abreu
15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2845: A guerra estava militarmente perdida ? (4): Faço jus ao esforço extraordinário dos combatentes portugueses (Joaquim Mexia Alves)
13 de Maio de 2008 > Guiné 73/74 - P2838: A guerra estava militarmente perdida ? (3): Sabia-se em Lisboa o que representaria a entrada em cena dos MiG (Beja Santos)
30 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2803: A guerra estava militarmente perdida ? (2): Não, não estava, nós é que estávamos fartos da guerra (António Graça de Abreu)
17 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2767: A guerra estava militarmente perdida ? (1): Sobre este tema o António Graça de Abreu pode falar de cátedra (Vitor Junqueira)

Guiné 63/74 - P2928: Comemorações do dia 10 de Junho de 2008 (1): Leça da Palmeira, Matosinhos (Carlos Vinhal)

Foto 1> José Oliveira segura a coroa de flores, acompanhado do Dr. Pedro Tabuada

Foto 2> Memorial aos Combatentes existente no Cemitério nº.1 de Leça da Palmeira

Foto 3> Dr. Pedro Tabuada no uso da palavra

Foto 4> Ribeiro Agostinho falando em nome dos ex-combatentes

Foto 5> Alguns dos ex-combatentes e demais pessoas que assistiam ao acto

Fotos de Carlos Vinhal e Ribeiro Agostinho


1. Pelo segundo ano consecutivo, foi feita no dia 10 de Junho, uma romagem ao Cemitério n.º 1 de Leça da Palmeira, onde junto ao Memorial aos Combatentes se prestou uma singela, mas sentida homenagem aos combatentes da Guerra Colonial desta freguesia, tombados nos três teatros de operações.

O acto, que contou com a presença de alguns ex-combatentes e familiares, foi presidido pelo senhor Dr. Pedro Tabuada, Presidente da Junta de Freguesia, que se fez acompanhar do Secretário, senhor José Ferreira, Tesoureiro, senhor Eduardo Pereira e Vogal, senhor Basílio Ramos.

Foi depositada uma coroa de flores pelo Senhor Presidente da Junta e pelo nosso camarada José Oliveira que, naquele momento simbólico, representou todos os ex-combatentes.

O Dr. Pedro Tabuada tomou a palavra para um discurso de improviso, que ele próprio considerou como politicamente incorrecto, pois reconheceu que até hoje o poder autárquico nunca se lembrou da nossa existência.
Tendo idade para ser filho da maioria dos ex-combatentes presentes, constituiu para nós uma esperança, o ter-se posto à disposição, para na medida em que lhe for possível, pugnar para que, pelo menos em Leça da Palmeira, venha a existir algo que perpetue o nosso esforço e a memória dos que não voltaram vivos de África.
Nas suas palavras, ao contrário do que é vulgar hoje, nunca perguntámos o que Portugal poderia ter feito por nós. Concordando ou não com a guerra que nos foi imposta, defendemos o ideal de então, combatendo por Portugal.

Em nome dos ex-combatentes, falou seguidamente Ribeiro Agostinho para agradecer a prestimosa colaboração da Junta na organização desta cerimónia e todo o esforço que vier a ser feito em favor das aspirações dos antigos combatentes.

Falaram ainda alguns camaradas cuja nota comum foi o quase esquecimento a que os ex-combatentes foram votados no Concelho de Matosinhos.
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Nota de CV:

(1) - Vd poste de 13 de Junho de 2007> Guiné 63/74 - P1846: 10 de Junho: Cerimónia no Cemitério nº 1 de Leça da Palmeira (Carlos Vinhal)