segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3546: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (14): Em Junho de 69 havia bajudas a alternar no Tosco, na Conde Redondo (Jorge Félix)

Lisboa > 2008 > Primeira página do sítio do Maxime, um cabaré de luxo dos anos 40, na Praça da Alegria, nº 58, que, na década de 60, também fazia parte do roteiro da noite dos camaradas da Guiné, de regresso a Lisboa ou em trânsito por Lisboa (como era o caso dos hóspedes do Hospital Militar Principal, à Estrela)... A par do Comodoro, do Bolero, do Ritz Club, e outros, e, claro, do Tosco, ali, ao Conde Redondo, do outro lado da Avenida da Liberdade...

Foto: Cabaret Maxime (2008). (Com a devida vénia...)

1. Mensagem, enviada a 4/11/08, pelo Jorge Félix ao Carlos Vinhal, e que este por sua vez me remeteu, a mim, chefe da redacção, com a seguinte (seca):
"Luís:
Pareces mais dotado para publicar as poucas vergonhas.
Aí vai a continuação do Tosco, do Jorge Félix.
Ab
Carlos.
Morcão... eu?"...

Carlos: Afinal o Tosco também é Guiné. Segue segunda parte, que volta a ficar ao teu critério. (...).


2. O Tosco - segunda leva

por Jorge Félix

O Mário Fitas atesta que o Tosco existiu (*).

Se não encontras referências no Dicionário de Lisboa sobre o Tosco, é porque, e bem, os senhores da verdade consideravam o Tosco como espaço Africano.

Fiquei muito lisonjeado com tudo o que me imputaste sobre a memória do Tosco.

A noite de Lisboa , em 69, tinha como sabemos , o Maxime, o Galo, o Bolero, ... mas quando tentei falar do Tosco, foi com o intuito de continuar a falar da Guiné.

O Tosco era território africano onde rolavam escudos. Se aparecerem "paradores" daquelas noites, podes ter a certeza que vais escutar histórias imperdiveis.

Não era malta que tenha guardado os aerogramas das madrinhas. Talvez não se recordem de nada.

Se os poderes olhar, se algum te aparecer, vais perceber o que digo.

Mas então qual era a relação do Tosco com a Guiné? Em Junho de 69 já havia bajudas a alternar no Tosco. Elas apareciam no Tosco porque os evacuados estavam lá, e não o contrário.

A malta ia para o Tosco porque havia um eléctrico que passava no Hospital da Estrela, e parava no Tosco. Era o único meio de transporte para aquela gentinha. O táxi não admitia passageiros como os clientes do Tosco. Se o eléctrico parasse no Comodoro, a história era outra.

Como muito bem recorda o Mário, "e lá desciam eles da Estrela". No Tosco paravam os combatentes mais sacrificados da guerra da Guiné.

A mancarra da Guiné era melhor que o amendoím de Angola

No Tosco ninguém discutia se a guerra estava perdida. Isso é que era bom !

Quem queria saber novidades da Guiné ia ao Tosco. E, Luis, naquele tempo, havia um ror de indivíduos que gostavam daquela gente.

Os gajos do Tosco gostavam de dizer, "ninguém ta tomar conta de nha bolanha", mas quando os "conchas contavam do Nelson Ned, " o que é que você vai fazer domingo á tarde", toda gente se calava e em uníssono, etilicamente temperados gritavam: VOU À BOLA!!!

Não se ia para o Tosco por causa das gajas. Descia-se para o Tosco pelo convívio e pelas histórias que a África nos reservava.

"A mancarra da Guiné é melhor que o amendoim de Angola", "Em Bissau com uma cerveja vêm dois meios camarões grelhados, camarão de Moçambique, rijnho, estes gajos não tem nada disso", "Como perdeste as mãos ? - caga nisso e dá-me outro golo de cerveja!"...

Esperemos por notas de quem andou pelo Tosco.

As noites quentes de Bissalanca..., as tardes quentes de Lisboa, com a Madame, a Princesa, a viúva de um piloto...

Para saltar do Tosco para Bissau tenho que falar na noite de Bissalanca. Confidências que não foram lavrados nos aerogramas, por pudor.

No Tosco, e não só, eram aliciadas brancas para irem para Bissau. A história é simples e resume-se ao seguinte: as Senhoras contratadas iam passar por serem as esposas de oficiais, sargentos e praças que estavam no mato, e que há muito tempo não viam o marido e passavam dificuldades financeiras.

O chorinho e lenga lenga batida sempre acabavam por adiantar umas massas em troca dos favores amorosos. Mas era diferente, não era prostituição. Era uma infidelidade guardada a sete chaves e selada com uns pesos valentes. Quem não queria enganar um cabrão que estava a bater com os costados no mato, e não enviava dinheiro à esposa ?

Aqueles que encheram o seu ego com o gesto glorioso de papar a Dona Fulana nas tardes quentes de Bissau , não se esqueça que pode ter caído numa bem ardilada história de amor construída no Tosco.

Entretanto apareceu o Luís Sousa que trabalhou no Comodoro. Por aí já andava a Madame, a Princesa e uma que não recordo o nome, "viúva de um piloto","um desastre do caraças", pormenor para aumentar o valor da queca e o mistério da senhora. A história era parecida com as Senhoras de Bissau mas com valores contrários. Talvez o Luís tenha conhecimento disto. (O patrão do Comodoro era do Farense, veio-me à ideia esta

Julho de 69: Um mês de boémia em Lisboa por conta da Junta Médica...

Um pequeno reparo, ao que dizes sobre os meus exames em Julho de 69. Ninguém vinha fazer exames de medicina aeronáutica a Lisboa, (um luxo; como bem escreves). Aconteceu comigo, ter que embarcar de uma hora para a outra, sem nenhuma explicação, num avião com guia de marcha para o Hospital Militar. (Outra história a recuperar).

Perante a junta médica que me questionou, o que é que eu "tinha", a minha resposta não deve ter agradado aos doutos senhores pois esperavam um rol de maleitas habituais em tais situações e levaram com "Não tenho nada!". Este dito permitiu-me estar em Lisboa um mês onde aprendi a apanhar o eléctrico para o Tosco. Nunca soube porque fui evacuado. Na altura tudo "estava bem" e tudo acabou em bem.

Luis, vamos ficar à espera que apareçam os tertulianos que foram personagens destas guerras que não fez vítimas nem recalcou ninguém.

Li agora do Jorge Cabral, a referência ao Ritz Club e ao Bolero. Quem escuta uma história de um veterano de 69, escuta todas as estórias dos outros contemporâneos . Rapaz das noitadas, tinha que ir a estes sítios todos, e a todos no mesmo dia, se se aguentava das pernas.

Compreendo muito bem porque o Jorge Cabral falhou como empresário da noite (**). Naquele tempo não era fácil.

Ao Ritz levei o Manuel dos Twistes, Furriel Manuel Ferreira, a cortar o cabelo, depois de termos passado numa livraria ali no Jardim da Parada, comprar um poster do CHE [Guevara], para levar para Teixeira Pinto, com embarque ás duas da manhã .

O Bolero tinha a tal sala em cima, onde se comiam uns pregos, e se escutava a tal orquestra; acordeonista cego, baterista coxo, e um empregado de Braga danado para a brincadeira. Quando a banda estava no seu merecido descanso , invariavelmente atirava com a bandeja para o chão a fim de imitar o som do prato da bateria, gesto este que punha imediatamente o Cego a tocar. Brincadeira repetida vezes sem conta, mas que todos achavam uma graça do carago.

No Bolero as gajas alternavam em baixo enquanto as "famílias comiam em cima".

O Tosco,como já tentei dizer, era diferente de tudo.

Esperemos por uma memória a valer e que nos fale das histórias do Tosco (***).

Um Abraço
Jorge Félix


3. Comentário de L.G.:

Carlos, "estas poucas vergonhas" também fazem parte do nosso cadastro... Temos que as assumir. Fazer batota era limpar, branquear o nosso cadastro, como o António Ferro, o ministro da propaganda de Salazar, fez ao fado, canção maldita das putas e dos chulos de Lisboa... E, depois, que poucas vergonhas eram essas, quando comparadas com as grandes golpadas de que fomos, directa ou indirectamente, vítimas ?

Jorge: Nota máxima para o teu segundo apontamento sobre o nosso roteiro da noite... Por que era de noite que carregávamos as baterias para enfrentar os pesadelos dos dias... Infelizmente não há, até ao momento, imagens do Tosco, do Bolero, do Ritz Club com os veteranos de 69 (e do Vat 69, que a marca do uísque marado que a gente emborcava)... Talvez se perceba: ali não havia glamour, nem lantejoulas, nem champanhe francês, nem meninas que tocavam piano e falavam francês... Por ali passava a fauna da Guiné, a nossa fauna, esfomeada de sexo, de calor humano, de ternura, de liberdade... Não é fácil falar destas poucas vergonhas, como diz o Carlos na brincadeira... Por isso, obrigado, Jorge, por dares o exemplo, por nos mostrares o caminho no regresso ao passado, por seres nosso guia e nosso cúmplice...
____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

30 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3380: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (10): Quando a guerra era com os copos... ou o elogio do Tosco, em Lisboa (Jorge Félix)

(**) Vd. postes de:

4 de Novembro de 2008 Guiné 63/74 - P3399: Estórias cabralianas (40): O meu sonho de empresário (falhado): a construção de uma tabanca-bordel (Jorge Cabral)

5 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3025: Os nossos regressos (7): Perdido, com um sentimento de orfandade, pelos Ritz Club, Fontória, Maxime, Nina... (Jorge Cabral)

(***) Não sobre o Tosco (que eu não conheci, frequentei apenas o Maxime, na primavera de 1971, e onde cheguei a ter uma garrafa de uísque marado...) mas sobre Bissau, cidade-bordel dos anos de 1969/70, escrevi algumas notas, já aqui publicadas:

14 de Novembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)
(...) Bissau: cidade-caserna, cidade-bordel

Bissau revisitada… Devo, antes de mais, confessar-te que, se acaso fugi da Guiné por uns dias, nem por isso deixo de sentir-me perseguido pelo seu fantasma. Sabes como é (ou, pelo menos, deves imaginar): uma incómoda sensação de estado de sítio (que nada tem a ver com a insularidade – aliás, pouca gente sabe que Bissau fica numa ilha), agravada, para quem aqui vegeta, pelos fantasmas dos foguetões que ainda há tempos flagelaram Bolama, a antiga capital colonial…

Bissau, cidade-caserna, cidade-bordel!... Para quê falar-te do tráfego (e do tráfico!) de carne branca sem qualquer carga erótica para lá do fetiche da cor da pele ?! De qualquer modo, o contrabando do sexo é negócio que vai de vento em popa - aqui funcionam as leis do mercado, a procura é muita e a oferta é variável ! – a par da quinquilharia oriental e sobretudo dos produtos nipónicos que ultimamente invadiram os free-shops cá do sítio, desde os Gouveia aos Taufik Saad, para quem o amendoim, o coconote e os panos de chita já foram chão que deu uvas… Enfim, o comércio da guerra e a guerra do comércio, uma parelha que sempre se deu bem em toda a parte!

Para quê falar-te dessas prostitutas que naufragam em todos os portos onde cheire a merda, a morte e a soldadesca, fugidas da miséria das ilhas de Cabo Verde e dessas outras ilhas de Lisboa e do Porto ?! Ou ainda dessas fêmeas, balzaquianas, que os tropas do ar condicionado mandaram vir da Metrópole e que passam, sequestradas, nos Wolkswagen e nos Mercedes pretos, conduzidos por soldados africanos – insólita imagem de jovens eunucos negros, subsaarianos, guardando as velhas odaliscas nos haréns dos sultões das Arábias!...

Não suporto, aliás, a visão desse branco asséptico, dessa cor neutra das metropolitanas cujo tom de pele tem qualquer coisa de viscoso como as paredes dos hospitais… Receio até que esteja a tornar-me racista ao contrário ou a caminhar para a misogenia, como aquele prisioneiro que, ao sair de Auschwitz, não conseguiu sequer beijar a mulher porque tinha horror a tudo o que era humano…

Decididamente não queria falar-te de mulheres (e, muito menos, das brancas que, aqui, no cu do mundo, povoam os nossos delírios palúdicos)… Mas como não, se elas são o único antídoto contra a angústia da morte ?!... As paredes das nossas casernas no mato estão forradas de posters de gajas nuas, loiras, de olhos azuis, formas esculturais e pele acetinada, que é “para um gajo não se esquecer da carne branca” (sic)…

Em contrapartida, a pomada antivenéria (e, claro, a penicilina, em doses de milhões) é o que mais se gasta nos nossos postos de caserna. O bordel é talvez a única instituição castrense verdadeiramente respeitável… Mas se os franceses mandavam para a Argélia putas de campanha juntamente com os seus legionários, nós, tugas, não temos esse problema: fornicamos sem preconceitos raciais, ou não fossemos “um país, muitos povos, uma só Nação”!...

Imagina, pois, Bissau como estância de repouso do guerreiro. Há aqui, de certo, um equívoco, um tremendo equívoco por parte do médico miliciano, que até é um gajo porreiro, capaz de dar umas baixas aos operacionais, não obstante as ameaças veladas do comandante de sector… Mas eu estou farto dos gajos porreiros, como ele, que joga bridge com os cabrões dos oficiais superiores, apostados em ganhar a guerra (leia-se: os próximos galões) à custa de ti, de mim e da nossa tropa-macaca… É que Saigão, meu caro, é o último lugar do mundo onde eu poderia esquecer o Vietname!...

De qualquer modo, para além duns furtivos raides ao Pilão, as únicas operações que aqui se realizam ainda são do tipo gastronómico. Enfim, a nossa velha filosofia epicurista segundo a qual o melhor que se leva desta vida é ainda o que se come e o que bebe. Eis-nos, portanto, tristemente reduzidos ao ciclo vegetativo , ou seja, aos camarões, às ostras e às verdianas (sim, por que essas pretas de 1ª, na nossa linguagem machista e racista, também são coisas que se comem!) (...).

domingo, 30 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3545: Memória dos lugares (14): Bambadinca, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, 1969/71 (Gabriel Gonçalves)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca (vd. mapa da região). Do lado esquerdo da imagem, para oeste, era a pista de aviação (1) e o cruzamento das estradas para Nhabijões (a oeste), o Xime (a sudoeste) e Mansambo e Xitole (a sudeste).

Reconstituição feita pelo Humberto Reis, completada por mim (LG) e, mais recentemente, pelo Gabriel Gonçalves (GG), que identificou novos sítios: cantina (27), posto de rádio (28), refeitório das praças (29) e centro cripto (assinalado com uma seta no topo do edifício 5).

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-Fur Mil, Op Esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

Foto nº 1 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector de Bambadinca > Aquartelamento de Bambadinca > 23 de Setembro de 1969 > CCS do BCAÇ 2852 (1968/70) e CCAÇ 12 (1969/71) Caserna das praças metropolitanos da CCaç 12 > Na foto "estou eu junto do jipe conduzido pelo camarada Alcino Carvalho Braga; o outro camarada [, também da CCaç 12,] não me lembro dele" (GG).

Foto nº 5 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector de Bambadinca > Aquartelamento de Bambadinca > 5 de Fevereiro de 1971 > CCS do BCAÇ 2852 (1968/70) e CCAÇ 12 (1969/71) . "A foto 14 [do Rui Ferreira] equivale à referência nº 15 do foto aérea de Bambadinca (estrutura à direita). Em relação à foto aérea falta uma estrutura entre esta e a da esquerda que não tem referência na foto aérea. A referência nº 16 não existe. 2006. A foto nº 5 mostra o conjunto de edifícios em causa (reparem no pormenor dos cinco orifícios no topo de um deles)" (GG).

Foto nº 6 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector de Bambadinca > Aquartelamento de Bambadinca > 22 de Março de 1971 > CCS do BART 2917 (1970/72) e CCAÇ 12 (1969/71) > Na foto, "estou eu acompanhado do cripto da companhia do Xime ( não me lembro do nome), junto dos memoriais da nossa companhia, a Ccaç 12 [CAÇ 2590], e do Pel Mort 2106" (GG): este Pel Mort teve equipas nos seguintes aquartelamentos: Xitole, Mansambo, Saltinho, Ponte dos Fulas, Nhabijões, Enxalé, Xime, Missirá, Taibatá e Fá.

Foto nº 7 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector de Bambadinca > Aquartelamento de Bambadinca > c. 1969/70 > CCS do BCAÇ 2852 (1968/70) e CCAÇ 12 (1969/71) > O 1º Cabo Cripto, da CCAÇ 12, Gabriel Gonçalves, junto à porta da cantina das praças.

Fotos: © Gabriel Gonçalves (2008). Direitos reservados

1. Mensagem do Gabriel Goncalves, ex-1.º Cabo Cripto da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71, enviada em 28 de Novembro de 2008:

Caros editores, torno a enviar o texto abaixo bem como as fotos, que em tempos vos enviei, mas que não foi publicado. Agradeço que, caso entendam não merecer publicação, me informem.

Um abraço

Gabriel Gonçalves


2. Comentário de L.G.:

Arcanjo Gabriel, houve facto um lapso nosso; ainda bem que refilaste; espero que nos perdoes... Obrigado pelas fotos e as legendas. Um abraço de saudade. Luís.


3. Comentário, de Gabriel Gonçalves, com data de 4 de Fevereiro de 2008, ao poste de 27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 – P2486: Memória dos lugares (5): Bambadinca, 2006 (Rui Fernandes / Virgínio Briote)

Camaradas editores da nossa Tabanca Grande, em relação ao post em referência e vendo as fotos recentes de Bambadinca tiradas pelo Rui Fernandes, surgiram algumas recordações que me fizeram vasculhar nas coisas antigas. Por isso envio algumas fotos da época e faço alguns comentários. Para todos um grande abraço.

Foto 10. Referência nº 28 (?) encontra-se em ruína e a referência nº 27 (?) não existe. 2006. [Legenda de Rui Ferreira; vd. também foto aérea de Bambadinca, 1970, acima, e donde estão assinaladas as referências 27 e 28]

A referência nº 28 era onde funcionava o posto de rádio e onde eu dormia bem como alguns camaradas das transmissões; a refª. nº 27 era a cantina das praças, junto em anexo a foto nº 7 onde se vê a fachada da mesma e eu lá estou à porta.

Foto 14 [do Rui Ferreira]. Equivale à referência nº 15 (estrutura à direita). Em relação à foto aérea falta uma estrutura entre esta e a da esquerda que não tem referência na foto aérea. A referência nº 16 não existe. 2006.

Junto a foto nº 5 (05.02.71) que mostra o conjunto de edifícios em causa (reparem no pormenor dos cinco orifícios no topo de um deles)

Foto 15 [o Rui Ferreira]. Sem referência na foto aérea mas são as duas estruturas que se vêem no canto inferior direito. Faltam as duas árvores. 2006.

Em relação ao edifício que se vê na foto nº 15, trata-se da caserna das praças metropolitanos da Ccaç 12; junto a foto nº 1 (23.09.69) onde se vê a entrada da caserna e onde eu estou junto do jipe conduzido pelo camarada Alcino Carvalho Braga, o outro camarada não me lembro dele.

Aproveito a oportunidade para enviar a foto nº 6 (22.03.71) onde estou acompanhado do cripto da companhia do Xime ( não me lembro do nome), junto dos memoriais da nossa companhia, a Ccaç 12 [1969/71], e do Pel Mort 2106 [ 1969/70].

Guiné 63/74 - P3544: O segredo de... (2): Santos Oliveira: Encontros imediatos de III grau com o IN

Guine > Região de Tombali > Cachil, Ilha do Como > Estandarte e Emblema do PAIGC oferecido por um gerrilheiro (presume-se...) por troca de uma miniatura da Bandeira Nacional. Foto e legenda: © Santos Oliveira (2008). Direitos reservados 

  1. Mensagem de 23 do corrente, enviada pelo Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf, Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66 

(*): Grande Chefe Luis Afim de alinhavar e orientar o comentário que fiz e que resultou na publicação do P3503: Controvérsias (11): O início da guerra (Tite, 23 de Janeiro de 1963) e a estreia da G3 alemã, em 1961 (Santos Oliveira), houve que reler as ligações referenciadas e ficou-me a sensação de ter sentido algo semelhante ao que o Mário Dias e o Domingos Ramos terão passado. Entendo que comigo foi tudo mais suave, inconsciente e inconsequente. Delírios de juventude que se autodestruia por se considerar imortal. Tive sorte. Não quero fazer comparações de factos; apenas sentimentos. 

 Na primeira leitura http://blogueforanada.blogspot.com/2006/02/guin-6374-cdxciii-domingos-ramos-e.html há cerca de um ano, entendi não ser relevante a minha experiência; agora, percebo que errei. Por isso, conto como e as circunstâncias em que tudo se passou. Cachil, Ilha do Cômo, Finais de Dez 64 Tinha acabado de receber notícias trágicas acerca da morte dos meus dois amigos de infância. Isolava-me e chorava e este sentimento de perda prolongou-se por alguns dias.O poiso escolhido era o topo da paliçada, onde fingia estar a fazer a vigilância habitual, embora perfeitamente exposto. Apetecia-me morrer. Foi terrível. P3143: Blogoterapia (62): A minha vida morreu; morreram os meus amigos (Santos Oliveira) 

 Pelos últimos dias de Dezembro, peguei na G3, umas quantas Granadas, coloquei a Boina Preta, o meu Cinto e Lenço Ranger (seda azul) e informei os meus militares de que iria dar uma espreitadela pela orla da Mata, pelo que entregava o Comando ao Cabo Gomes (1916/63) com a informação exacta de fazer fogo como estava previamente estabelecido. Não haviam mas, nem meios mas. Era uma Ordem. Um dos Soldados, o Júlio Batata (2032/63), perguntou se também podia ir. Anui, mas informei que íamos por nossa conta e risco; outros mais se prestaram a acompanhar-me mas recusei com o argumento de ser necessário guarnecer os Morteiros de gente, que eles não se disparavam sozinhos, etc. mas acabei por aceitar um outro que, no momento, não recordo quem (posso indagar depois).

 Informamos o Plantão da Companhia residente (creio ter sido a CCAÇ 728) do que íamos fazer e lá partimos, com as precauções necessárias. Chegados próximo da Orla da Mata, encontramos um carreiro de formigas com mais de um palmo de largo, a tentar refazer o seu percurso em grande afã, mas numa estranha confusão. Percebia-se, por baixo daquele caos, a marca duma pegada de pé descalço que havia despoletado tal evento. Foi , de imediato, assumido o regresso, pois as evidências eram demasiado esclarecedoras que estava alguém uns passos à nossa frente. Chegados, constatei que havia perdido o meu querido Lenço. No amanhã se veria o que fazer. Ao raiar do dia, os mesmos, retornámos, tomámos mais cautelas, procurámos os pontos onde nos havíamos agachado ou rastejado e encontrámos o meu Lenço com uma folha de Caderno onde se lia (em Português correcto):”TENHO-TE VISTO CHORAR”. Fiquei paralizado por instantes. Voltei o papel e escrevi por trás:”OFEREÇO-TE O MEU LENÇO”. 

 Custou-me imenso descansar aquela noite tal a ansiedade que de mim se apoderou. Tinha a infantil curiosidade de tentar adivinhar o que se passava, pois era incompreensível. Por outro lado já havia tomado consciência do risco desnecessário que havia corrido e fizera os meus Soldados correr. Era uma lotaria, um jogo…e o jogo vicia. A curiosidade matou o rato, diz o ditado. Eu estava por tudo. Queria saber se o lenço tinha sido levantado. Recusei, sem resultados, a companhia dos Soldados. Bem mais à vontade (um erro que podia ter sido fatal) dirigimo-nos ao local. Estava um daqueles pingalins, ou chicotes, muito elaborado, com uma mancha de sangue no punho e um novo papel que dizia:”EU QUERIA ERA UMA BANDEIRA TUA”. Atónito e já muito inquieto, voltei o papel e escrevi:”VOU VER O QUE POSSO FAZER”. 

 Regressámos muito mais apressados que o habitual. Era necessário ter os acontecimentos sob controlo porque doutro modo iria sobrar para mim coisa grossa. Os restantes elementos do Pel Mort 912, começaram a questionar o que íamos fazer todos os dias. Começou a ser difícil segurar o segredo. Que íamos ver se havia qualquer possibilidade de haver caça, dizíamos. Na mala tinha uma bandeira de Portugal, tipo galhardete, das que se usavam, na época, nos vidros dos automóveis. Fui buscá-la, lembro bem tê-la apertado no peito e lá retornámos, com a promessa que seria a última vez que sairíamos, se não se encontrassem indícios de caça. Lá chegados, encontrei um Galhardete e um Crachá do PAIGC e um papel que dizia: “GUARDA E LEVA ESTA PARA A TUA TERRA”. Petrifiquei. Acho que fiquei imóvel tempo demais porque os Soldados me perguntavam:”O QUE SE PASSA, MEU FURRIEL?”. Rapidamente, retirei a Nossa Bandeira, Coloquei-a na estaca, escrevi por trás do papel:”EM NOME DA PAZ”. Fiz a Continência e todos desatámos em corrida mais ou menos desordenada para o Quartel. Tudo se ficou por segredo solene até ao dia de hoje em que falei com o Soldado Júlio Batata que concordou fosse contada esta História. O Galhardete e o Crachá sempre ficaram e estão comigo. 

 Do meu Companheiro de Armas do Campo oposto, a quem nunca vi o rosto, nunca tive notícias. Se lhe chegar esta mensagem, ele reconhecerá a História que ajudou a construir, recebê-lo-ei de braços abertos. O Pulsar do coração e adrenalina não serão mais os mesmos, mas o sentimento, esse, é sempre igual. Santos Oliveira 

  2. Comentário de L.G. Obrigado, camarada, por quereres (e poderes...) partilhar este segredo da Guiné connosco, teus amigos e camaradas. Já com o Mário Dias (**) se passou o mesmo: há pudor e relutância em contar episódios como estes, de alguma maneira insólitos e, muitas vezes inverosímeis aos olhos dos outros... 

Seria uma pena que tu e Mário Dias levassem, para a cova, pequenos/grande segredos como estes... São histórias fabulosas que humanizam a guerra, que engrandecem os seres humanos qu as protagonizam, e que nos tocam, fundo... Espero que a partir de hoje, mais camaradas nossos decidam abrír a caixinha de Pandora... 
______________ 

 Notas de L.G.: 



Guiné 63/74 - P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações


Guiné > Bissau > 1959 > Alguns dos 1ºs Cabos Milicianos do 1º Curso de Sargentos Milicianos, realizado na província portuguesa da Guiné, em participaram juntos europeus e guineenses.

"De cócoras, a partir da esquerda: Domingos Ramos; um outro cujo nome não me lembro mas que também foi para a guerrilha; Laurentino Pedro Gomes.

"De pé: não me recordo o nome mas também foi para a guerrilha; Garcia, filho do administrador Garcia, muito conhecido e estimado em Bissau; mais um de cujo nome não me recordo; eu, [Mário Dias]; e mais outro guerrilheiro. Como se pode concluir, o recrutamento de 1959 do CIC [Centro de Instrução de Civilizados] , foi um autêntico alfobre [de quadros ] para o PAIGC.

Foto e legenda: ©
Mário Dias(2006). Direitos reservados


1. Volta a reproduzir-se, agora na II Série do nosso blogue, uma das mais fabulosas histórias da guerra da Guiné, o encontro algures nas matas do Xitole, em 1965, entre dois amigos inimigos, o português, comando, Mário Dias, e o chefe de guerrilha, o guineense Domingos Ramos (*).

Em 1959 , tinham feito a recruta juntos, com início em 8 de Maio de 1959, numa unidade que então se chamava Centro de Instrução de Civilizados (CIC), destinado a naturais da Guiné considerados civilizados. O comandante era o capitão Teixeira, pai do historiador Severiano Teixeira, actual Ministro da Defesa. (No anos seguinte, passaria a chamar-se Centro de Instrução Militar (CIM), tendo sido transferido para Bolama).

Em 10 de Agosto de 1959, prestam juramento de bandeira, uma semana depois dos sangrentos acontecimentoss do Pidjiguiti.

Em 14 de Agosto desse ano, os dois estão no 1º Curso de Sargentos Milicianos e estreitam a sua amizade. Em 29 de Novembro de 1959, são promovidos a 1ºs cabos. O Mário fica em Bissau a dar recruta, enquanto o Domingos segue para Bolama.

Guiné-Bissau > A efígie de Domingos Ramos numa nota de 100 pesos. Emissão de 1975.

Fonte (com a devida vénia): © Kristian CHIDUCH > Billetes del moundo / Wordbanknotes > Guinea-Bissau (2003)


Quem era o Domingos Ramos ? Era filho de um quadro local da administração colonial portuguesa, com o estatuto de assimilado, expressão cínica usada na época pelas autoridades portuguesas.

O Mário tem palavras de grande apreço e admiração pelo Domingos Ramos, reveladoras da sua grandeza como homem e como português. Escreveu ele: "Se um dia tiver a oportunidade de regressar à Guiné, é meu firme propósito ir visitar a sua campa e prestar-lhe merecida homenagem. Não é pelo facto de termos combatido em campos opostos que deixei de ser seu amigo e de o admirar".

Para o Mário, que ira depois seguir a carreira militar, como furriel do quadro, "o Domingos Ramos era um indivíduo bem constituído fisicamente e, sobretudo, moralmente. Aquilo que se pode chamar, um bondoso gigante. Desde o início da nossa vivência comum que por ele tive uma especial estima. Tornámo-nos bons amigos em todas as situações e na caserna, nas horas de descanso, trocávamos opiniões sobre os mais variados assuntos, com especial interesse da minha parte por tudo relacionado com os usos e costumes dos guineenses. Muito aprendi com ele. Recordo ainda com saudade e emoção as paródias, próprias da irreverência da nossa juventude. E da célebre água pú que ele me ensinou e a que aderi com entusiasmo".

O Mário tem sempre palavras de grande apreço e respeito pelo seu amigo:

"Na verdade, enquanto com ele convivi em Bissau, nem o mais leve indício de descontentamento, nem o mais pequeno sinal de revolta ou discordância com o status quo existente demonstrou. Se algo havia na sua mente, disfarçava muito bem, o que não creio, dada a sua rectidão de carácter. O mesmo já não se passava com outros como, por exemplo, o Rui Demba Jassi, que tinha atitudes incorrectas para com os europeus sem que houvesse razões para tal e não conseguia disfarçar animosidade contra nós".

Mário Dias sugere que ele ter-se-á alistado nas fileiras do PAIGC, em Novembro de 1960, depois de ter sido vítima de uma grave injustiça enquanto 1º cabo miliciano. Domingos Ramos morreu em combate em Madina do Boé, em 1966. Os seus restos mortais repousam hoje na Amura, no panteão nacional.

O Mário já nos contou aqui que um dia, próximo da sua passagem à situação de licença registada, que ocorreu em Outubro de 1960, seguindo-se a disponibilidade em Fevereiro de 1961, o Laurentino lhe mostrou "uma espécie de memorando que o Domingos Ramos havia escrito em Bolama respeitante a uma tremenda injustiça por parte de um superior hierárquico que o levou à prisão durante uns dias".

"Foi uma daquelas situações tão frequentes, infelizmente, na vida militar que levam a que muitos inocentes sejam punidos apenas porque a corda parte sempre pelo lado mais fraco e a máxima de que 'palavra de oficial faz fé' é uma realidade. Nesse memorando, era bem patente o desgosto que ele sentia por ter sido vítima de tal injustiça e, mais do que um desgosto, notava-se o destruir das convicções que até ali o tinham norteado".

Nos primeiros dias de Novembro [de 1960], juntamente com o Rui Jassi, Constantino Teixeira e outros antigos camaradas do Mário Dias, Domingos Ramos "partiu para Pequim, Praga, Moscovo e demais escolas de guerrilha tornando-se um dos primeiros e mais importantes chefes de guerrilha daquele movimento".


2. O encontro de dois amigos inimigos, no Xitole, em 1965
por Mário Dias


Estando com o meu grupo de comandos no Xitole, sensivelmente em meados de 1965, fomos fazer uma patrulha de reconhecimento pois o inimigo há muito mostrava sinais de intensificar a sua actividade na região. Porém, as informações eram escassas. Desconhecia-se com precisão por onde andavam os guerrilheiros e as possíveis localizações dos acampamentos. Por tal facto, foi-nos dada a missão de efectuar um reconhecimento ofensivo, tentando localizar o destruir o inimigo.

Por volta das 3 horas da madrugada saímos no maior silêncio, a pé, pela estrada que liga o Xitole a Mampatá, Aldeia Formosa, etc. Alcançada a bifurcação da picada para Amedalai, internámo-nos no mato, constituído quase só por palmeiras mas bastante denso, e aí aguardámos o romper do dia.

Reiniciada a marcha, com as habituais cautelas e as indispensáveis medidas de segurança, fomos progredindo pelo mato, acompanhando de perto o traçado da picada.

Andar um pouco, parar, escutar, analisar pistas e vestígios de presença humana, consumiu uma boa parte da manhã. Era quase meio dia quando ouvimos, vindos da nossa esquerda, alguns tiros. Não foram muitos. Por não terem sido dirigidos com precisão e sobretudo com intenção de nos atingir, concluímos que se tratava de tiros de reconhecimento (eles também os faziam). Devem ter pressentido algo mas não tinham a certeza da nossa posição nem, possivelmente, da nossa presença.

Desta forma, e como nos interessava obter informações sobre a actividade do inimigo, deixei o grupo instalado defensivamente e fui, com a minha equipa (5 homens) em direcção à zona de onde os tiros tinham partido fazer o reconhecimento. O que essa progressão teve de cautelas, expectativas e adrenalina é fácil de imaginar para quem viveu situações semelhantes.

De repente, ouvimos pessoas a conversar e o ruído característico de movimentação. Querendo observar melhor o que se estava a passar, ergui-me acima do arbusto que me ocultava. Foi então que aconteceu. Do outro lado, a cerca de vinte ou trinta metros, um vulto se ergueu também e olhou na minha direcção. Espanto dele! Espanto meu! Era o Domingos Ramos.

Ficámos ambos como petrificados. Não falámos, apenas nos limitámos a sorrir e houve como que uma espécie de telepatia. Mas, mesmo sem falar, as expressões de contentamento de ambos (espero que ele tivesse entendido que também eu estava contente com o inesperado mas feliz encontro) tornaram mágicos aqueles breves momentos que jamais esquecerei.

Mas era preciso regressar à terra. De imediato ouvi as suas ordens:
- Nó bai, nó bai -. E internou-se ainda mais, desaparecendo na densa mata. Voltei para trás, para junto do resto do grupo:
- Não há problema. Era um pequeno grupo mas já fugiram.

E continuámos a patrulha sem mais percalços. Claro que este episódio não constou do relatório. E foi assim.

Um abraço

Texto: © Mário Dias (2006). Direitos reservados

_______

Nota de L.G.

(*) Originalmente publicado na I Série do nosso blogue em 2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIII: Domingos Ramos e Mário Dias, a bandeira da amizade (Luís Graça / Mário Dias)

Vd. outro postes do Mário Dias sobre o Domingos Ramos, seu amigo e camarada do Curso de Sargentos Milicianos de 1959:

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCI: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)

Vd. ainda:

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIV: O segredo do Mário Dias, ex-sargento comando

12 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2343: PAIGC - Quem foi quem (5): Domingos Ramos (Mário Dias / Luís Graça)

20 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2461: Blogoterapia (38): Dois heróis, dois homens com valores, Domingos Ramos e Mário Dias (Torcato Mendonça)

24 de Julho de 2008 >Guiné 63/74 - P3090: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação do cubano Ulises Estrada


Sinopse: Neste excerto [vídeo], Ulises Estrada que chega à Guiné em meados de 1966 - não fazendo parte, por isso, do primeiro contingente cubano, que era composto por 3 médicos e 3 artilheiros, chegados a 29 de Abril de 1966 - relata o esforço dos voluntários cubanos na luta de libertação, ao lado dos guerrilheiros do PAIGC.

Faz referência a ataques em que ele próprio participou, desde o Olossato a Farim, desde Buba ao Morés, incluindo uma emboscada na estrada de Enxalé-Portugole, e um ataque ao destacamento de Missirá, no Cuor, a norte do Rio Geba (em Dezembro de 1966), a nossa conhecida Missirá onde estiveram, em épocas diferentes, os nossos camaradas Beja Santos (Pel Caç Nat 52, 1968/69) e Jorge Cabral (Pel Caç Nat 63, 1970/71).

Evoca também a figura e Domingos Ramos, chefe da Frente Leste e comissário político do PAIGC, que morre a seu lado a 10 de Novembro de 1966, num ataque de artilharia (1 canhão s/r) e infantaria ao quartel de Madina do Boé. O Ulises disse-me pessoalmente, em Bissau, que o Domingos Ramos foi morto por um estilhaço de morteiro, quando o tentava proteger. O seu corpo foi resgatado pelo cubano, "para que não caísse nas mãos dos portugueses" (sic), e levado a seguir para a base de Boké, na Guiné-Conacri, onde foi entregue a Aristides Pereira. Ulises diz do seu camarada guineense que era um grande homem, um grande combatente, e um grande líder político.

sábado, 29 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3542: Memórias literárias da Guerra Colonial (11): Cristóvão de Aguiar na Biblioteca-Museu República. (José Martins)



O Alberto Branquinho, também escritor,  na assistência. Foto do José Martins


1.
Mensagem do José Martins,   dia 27 de Novembro de 2008 

 Como habitualmente, ao início do dia de trabalho, abri a caixa de mensagens do meu mail pessoal e encontrei uma mensagem do Cristóvão de Aguiar:

Caro Camarada José Martins: 

 Fico-lhe agradecido pelas referências elogiosas que tem feito ao meu livro "Braço Tatuado". É sempre agradável saber que alguém lê com acuidade um livro que nos pertence e foi escrito com sangue e muito suor. 

 Quanto ao número 666, claro que não existe nenhuma Companhia com tal número. Foi inventado por mim. Por duas razões. A primeira, porque, tratando-se de um livro de ficção, não gostaria de identificar a Companhia de Caçadores onde fui Alferes. Segunda, o número 666 é o número da Besta do Apocalipse, livro bíblico, que reflecte o caos, a guerra, e outros males que irão acontecer à Humanidade. Daí o adjectivo apocalíptico que se emprega na nossa língua para significar o que ficou dito. Deste modo, aproveitei a deixa para caracterizar a situação infernal em que estávamos metidos, identificando os comandantes como Besta 1 e Besta 2, etc... 

 Engana-se quem pensar que 'Braço Tatuado' é um relato fiel de uma guerra. Essa matéria pertence aos historiadores. Ao ficcionista apenas compete tornar o seu texto plausível, isto é, fazer crer ao leitor que determinado acontecimento se não ocorreu na realidade poderia tê-lo sido.

 A ficção é uma mentira para se acentuar uma verdade. Por isso, os nomes, no meu livro, são inventados, determinadas ocorrências lá narradas são, por vezes, uma mistura de vários acontecimentos, as personagens têm traços de várias pessoas que conheci, e assim por diante. Não foi meu intuito fazer história nem relatar o que na realidade aconteceu, mas tão-só tornar plausível (que poderia ter acontecido) as ocorrências em que eu e tantos outros nos vimos embrulhados. De qualquer modo, não se cria a partir do nada, mas a partir de uma realidade que se viveu ou desviveu. Quantas vezes um escritor descreve a realidade tal qual ela é (o que também não é fácil, porque entram factores subjectivos) e depois de vertida em texto ninguém acredita...

 Ora, a missão do escritor é fazer que o leitor acredite piamente no que foi escrito, mas que para isso tenha a realidade de ser torcida para parecer verdadeira. Mentir em ficção não é pecado, mas, sim, uma virtude... Claro que a sua investigação é muito meritória, mas os factos apurados pertencem a outra esfera, não a literária propriamente dita. 

 Ao menos fiquei a saber datas, nomes de operações de que já não me lembrava. O que me ficou gravado foi outra coisa muito pior, e esta pertence a outro reino... 

 Os meus agradecimentos e um abraço do Cristóvão de Aguiar 

 À tarde, pelas 19 horas estava na BMRR – Espaço Grandella em amena cavaqueira com o Cristóvão de Aguiar e o Alberto Branquinho, recebidos pelo sempre simpático José Paulo Sousa. Quando se deu inicio à “conversa”, pois que na sala se encontravam, além do conferencista e o anfitrião, os bloguistas Alberto Branquinho e José Martins, uma senhora que, vim a saber, ser açoriana e ter ido com o propósito de conhecer pessoalmente o Aguiar, um amigo dele que, nos idos anos da guerra se encontrava num seminário a estudar, e o nosso camarada Nuno Roque da Silveira, autor do livro “Um outro lado da guerra” e primeiro conferencista destes encontros. 

Posteriormente chegou uma senhora, que lecciona no ISCTE. A sessão iniciou-se com a exposição do Cristóvão de Aguiar (texto abaixo). 

GUERRA COLONIAL

Sou um dos milhares de cidadãos portugueses que pertencem à chamada geração da Guerra Colonial. Estive tentado a escrever o verbo no pretérito, mas, como tantos outros camaradas meus, ainda sofro, e sofrerei, as sequelas psicológicas que, durante os quase dois anos da minha estada no inferno da então chamada província portuguesa da Guiné, para sempre me machucaram a mente e o íntimo. Assim, a geração da Guerra Colonial só terminará quando o último ex-combatente cerrar os olhos ao mundo… Depois, talvez essa geração destruída, fique registada, em nota de pé-de-página, num capítulo da História do século XX português…

Existem, porém, milhares de outros que tiveram menos fortuna e continuam a padecer violentamente: os chamados deficientes das Forças Armadas – mutilados, cegos, doentes do foro psiquiátrico e orgânico… Muitos deles viram as suas vidas familiares desmanchadas, tornando-se em seres viventes cuja vida pouco sentido tem. E há ainda os milhares que tombaram na mata ao serviço de uma pátria apodrecida por um regime que, durante mais de quarenta anos, constituiu uma nódoa e uma desonra histórica.

Como escreveu um conterrâneo meu, já falecido, companheiro de República em Coimbra e camarada na Guiné, José Noronha Bretão (1), num livrinho intitulado "Três Tristes Tempos e o Regresso do Melro Preto". Passo a citar:

Esperávamos em silêncio
mastigando a memória das coisas
e a Morte claramente apercebida
aguardava o seu quinhão

Pensávamos:

Cada coice de Mauser no ombro
é uma carícia da Pátria agradecida.

Puta de Pátria que agradece aos coices.

De ambos os lados da barricada, a guerra colonial foi intensamente cruel e ainda está a sê-lo para muitas centenas, ou milhares, que por lá andaram a esmigalhar os melhores anos da juventude. Isto de se falar em terrorismo apenas do lado dos guerrilheiros tem muito que se lhe diga. As nossas tropas também o praticavam em grande escala e com muito engenho e sadismo. Sobre tudo isso, porém, era expressamente proibido falar. Havia ouvidos atentos à escuta, e existia medo, ignorância, e a censura a compor o resto do ramalhete, torcendo a verdade para construir a mentira oficial.

Nem sequer havia guerra, afirmavam os donos e cabecilhas do regime. Andávamos tão-só em missão de vigilância nas províncias ultramari­ nas, flageladas pelos chamados “turras”, e que, como se devem lembrar, constituíam (as tais províncias) o prolongamento natural da pátria, que ia do Minho a Timor, refrão patrioteiro, que então se entoava e que alguns ainda gostariam de continuar a solfejar.

Havia, pois, uma mantilha de silêncio caída sobre o que ocorria nas três frentes de batalha. Pouco ou nada se sabia. As razões são múltiplas e não serão despiciendas as que já apontei: censura, medo, vigilância da PIDE, desinteresse do povo em geral, que só lhe importava como passavam os familiares que por lá combatiam – adeus, até ao meu regresso – e, quanto à esmagadora maioria dos soldados, não sabiam, nem queriam saber, das razões que os haviam levado a ir matar e esfolar negros para um Continente que, segundo lhes martelaram desde a catequese da escola primária, constituía um património tão português como as suas aldeias da Metrópole – “Angola é nossa”- tocavam as bandas regimentais, nas cerimónias militares, por vezes acompanhadas por um coro de vozes tremelicantes de patriotismo…

Havia quem estivesse a par das causas da situação bélica em África: Intelectuais esclarecidos e muitos dos oficiais milicianos, saídos das Universidades directamente para as fileiras, alguns por castigo por terem intervindo activamente nas crises académicas de 62 e 69; os que haviam desertado antes que fosse demasiado tarde e seguissem para as cadeias políticas do regime; outros ainda que, mesmo na clandestinidade ou em plena guerra colonial, procuravam passar informações de todas as maneiras e feitios, que viriam a constituir matéria importante para a rádio “Voz da Liberdade”, aos microfones da qual Manuel Alegre desempenhou um papel relevante de informação e formação.

O silêncio, porém, era a regra e prolongou-se em demasia. Ninguém, por mais ousado politicamente, se atrevia, em público, a falar de guerra colonial. A primeira vez que ouvi gritar “abaixo a guerra colonial” foi numa Assembleia Magna da Academia de Coimbra, cuja ordem do dia era a greve académica que se realizou depois com tal êxito, que havia de abalar o regime. Mas, o estudante que deu aquele grito de alma, sincero e lancinante, foi depois admoestado pelos próprios companheiros, por ter dado razões aos elementos da DGS, infiltrados entre a multidão estudantil e que nos acompanhavam na gritaria de vivas e morras, para que ninguém desconfiasse da sua presença, o que não era muito difícil...

Até onde chegava a censura interior! Os jovens de hoje não poderão compreender essa atitude de uma prudência tal, que poderia, facilmente, confundir-se com cobardia…

Foi na poesia, e ainda durante no regime salazarista, que a guerra colonial principiou a ser “cantada” e denunciada. Os dois primeiros poemas conhecidos sobre a guerra colonial foram publicados por Fernando Assis Pacheco, no seu livro "Cuidar dos Vivos".

A seguir, Manuel Alegre e a sua "Praça da Canção", um dos mais sérios casos editoriais que neste país jamais aconteceram. A PIDE, como lhe competia por ofício, “vocação e amor à pátria”, ainda tentou retirar a obra do mercado, mas já não chegou a tempo. Esgotara-se num ápice. Mas não tardou que corresse, copiado à mão, por esse país fora. Outro livro do mesmo autor, com a guerra em fundo: "o Canto e as Armas"…

Uma das maneiras de escapar à censura, que, por vezes, e felizmente, se mostrava estúpida, era escrever ou poetar sobre a guerra colonial como se fosse a do Vietname ou de Hiroshima, trocando-se as voltas aos vigilantes da ordem e dos bons costumes morais, cívicos e políticos...

A editora tomarense Nova Realidade publicou antes de 74 vários livros considerados à época perigosos: "Cantares", de José Afonso; "o Canto e as Armas", de Manuel Alegre; "Hiroshyshima" e Vietname", duas antologias, cujos poemas se referiam, nas entrelinhas, à guerra colonial portuguesa…

Tenho dado tratos de polé ao pensamento a ver se consigo deslindar as razões por que, logo após a Revolução do 25 de Abril, e já com as colónias tornadas países independentes, se continuou a silenciar a guerra colonial e os seus efeitos traumáticos que ela exerceu sobre milhares de jovens portugueses. Dir-se-ia que tudo ficou encarcerado no seio das famílias que tiveram seus filhos e parentes a combater e voltaram, que morreram ou ficaram mutilados. Talvez o medo, que ainda se não desvanecera por completo, seja uma das razões; quem sabe se o pudor de falar sobre uma ferida ainda não sarada; quiçá a explosão da festa revolucionária, após a qual se silenciaram as armas, ou ainda o facto de a Guerra Colonial ter sido travada contra o regime português e não contra o seu povo, dando deste modo uma achega para o êxito da Revolução de Abril… São causas possíveis, mas que estão longe de explicar tudo. Um dia há-de saber-se, ou se calhar não, pelo menos na sua real profundidade…

Cristóvão de Aguiar


O texto aqui apresentado foi lido, em versão mais ampla,na Biblioteca-Museu da República e da Resistência/Espaço Grandella, em 27 de Novembro de 2008, seguido de um aceso debate entre os presentes.

 


O Cristóvão de Aguiar na sua comunicação. Creio que com o texto de apresentação, aliado ao mail que teve a amabilidade de me enviar, creio que passamos a compreender melhor, toda a trama passada ao redor de um 'Braço Tatuado'. Não quero deixar de acrescentar que Cristóvão de Aguiar é um homem de verbo fácil, preciso e conciso. Deu mostras de um bom amigo e camarada, mas também notei que, ainda, sofre os problemas que adquiriu, como tantos de nós, na guerra, isto, porque a página tantas disse, mais ou menos isto: “Vamos acabar. Basta de falar em Guerra”. 

José Martins

28/Novembro/2008 

___________


Notas de vb:
1. Julgo estar a referir-se ao alf mil António José Orlando Bretão que, segundo consta na História do BCav 490, se apresentou em 19 de Dezembro de 1963 e foi destinado à CCav 488/BCav 490 , em substituição do alf mil António N. Coelho Brasil (ferido em combate em 08Out63).


Subalternos, como se dizia então, da CCav 488, em Jumbembem, talvez em finais de 1964, princípios de 65. Dos que me lembro e que não voltei a ver desde 1965, ainda recordo (da esqª para a dirª) o alf Carvalho (o "fotógrafo" da CCav 488 e já agora do BCav 490), o 2º embora o rosto me seja familiar perdi o nome, o alf Bretão (Terceirense, se a memória não me falha), o Dr Franco (um médico que deixou muito boas recordações não só junto dos miltares da CCav 488 mas também da população de Jumbembem), outro alf que recordo a cara vagamente e do nome nem pensar e o alf Armor Pires Mota, hoje escritor de obra reconhecida. 

Foto extraída do blogue do Carlos Silva, a quem devemos a obrigação de reconhecer o enorme esforço que tem feito para reconstituir a nossa Memória. Tenho fotos do Bretão e da CCav 488, mas ainda não as consegui localizar...

Guiné 63/74 - P3541: 28 Novembro de 1968: Vão-se os nervos e a vontade de mijar...(Torcato Mendonça, CArt 2339, Mansambo, 1968/69).

1. Mensagem do Torcato Mendonça:

Meus Estimáveis Editores

Há 40 anos atrás, este e muitos outros militares de empréstimo, mais dois profissionais(um com um ataque de hemorroidal; outro com um cisco numa perninha) andaram por terras distantes, pertença do nosso glorioso império, a fazerem e a fazerem-lhes tropelias.

Apareceu na memória. Melhor, perguntei que dia é hoje? É vinte e oito? É, hoje é vintôito...e recordei...daí passei o anexo, muitas horas depois ao papel. Gaita à tecla. Aí vai o meu vinte oito de Novembro, quarenta anos atrás.

Bom fim de semana.

Abraços do TM

Novembro, 28: quarenta anos atrás.

por Torcato Mendonça

A noite a fugir. Barulho habitual da preparação de mais uma “operação”, olhares vazios, gestos de autómatos, rostos fechados, a última trinca no pão ou bolacha a ser engolida a custo.

Pressente-se o levantar do dia, ajeitam-se uniformes, armas e munições. Formatura para rápida revista, as perguntas sempre iguais e a inevitável resposta – pronto.

Vão-se os nervos e a vontade de mijar, vai-se o sentir da vida. Já seguem em “bicha de pirilau”, guias e picadores à frente, o resto da maralha, nos sítios certos, atrás.

A madrugada a vir, as sombras a tomarem formas de homens e da mata. Olhares mais atentos, armas mais aconchegadas, marcham, entrando e saindo do trilho já bem conhecido.

Param de quando em vez, posicionam melhor o material, olham mapas, bússola e relógio, alguns ainda mijam. Olham, com olhos tamanho de cabaças a tudo quererem ver e olham-se, entre eles e, por sinais, dizem tudo.

O objectivo era perto do aquartelamento deles. Demasiado perto, demasiado incómodo para lá estar. Até afrontava. Agora iam lá partir, destruir, aniquilar tudo o que bulisse.

Raios. Puta de vida a destes homens, quase ainda meninos. Ou já velhos?

Seguem atentos, rostos fechados, silêncios a nada quebrarem. Sabiam a possível localização do objectivo, as sentinelas adiantadas e as cautelas com o trilho armadilhado ou não. Iam sempre em frente, repetindo os mesmos procedimentos. Mais uma paragem, breve consulta e mudança de Grupo a ir à frente. O acampamento inimigo devia estar perto. Progressão ainda mais cuidada, os ruídos da mata a manterem-se, sinal que iam bem. De repente, de forma inesperada tudo se precipita, parece que o apocalipse aí estava: rebentamentos, tiros, gritos. O inferno ali á mão.

Param. O inimigo reage e, conhecendo o trilho, faz bastante fogo e manda algumas morteiradas a tentar acertar. Chuva de folhas a tombarem da mata serrada. Continua forte o tiroteio. Em redor daquele local, quilómetros em redor não existem seres humanos. Ali há feras, somente feras em luta terminal. Tentam reagir os detrás mas era difícil. Esperam.
- Deite-se, deite-se meu Alferes grita o Sargento do outro Grupo.
- Espere porra. Vê se mandas morteiradas por ali. Tu, uma bazucada além, mas longe. Merda assim não dá. Pára.

De repente um estoiro, o rebentamento de uma morteirada In, sente a terra a bater-lhe, o sopro a levar o quico. Cabrões, filhos de puta…
- Estou ferido - grita o Sargento.
- Calma caraças. Isso não é nada porra.

Acalma e pára o tiroteio. Os do assalto regressam, o Seco do Xime à frente, o resto atrás com três ou quatro feridos.

Fomos vistos pela sentinela. Gritou tuga, tuga pela última vez. O resto foi com as bazukas, a MG e o habitual… partiu-se aquilo tudo…os tipos aguentaram porque tinham lá mulheres e putos…diz-me o Manuel.
- Enfermeiro, trate aqui do nosso Sargento.
- Isto tem que ficar no relatório - diz o Sargento.
- O quê?
- O ferimento, meu Alferes, o ferimento…
- Fo...que merda esta. Está bem. Mas não é comigo. Aguentem isto que vou lá atrás saber o que querem fazer.

Dois oficiais já tinham decidido.
- Objectivo destruído. Os tipos foram-se. Temos feridos. Regressamos com eles. Pedimos evacuação se piorarem.

Respondeu:
- Vou lá ver aquela merda. Quero…
- Não. Não há nada para destruir mais ou pilhar. Cobre a retirada e agora passas para o fim da malta.
- Tudo bem, levem os feridos….

Voltou para junto do Grupo. Regressaram calmamente, devagar, um ou outro problema aqui ou acolá. Talvez duas horas depois entraram no aquartelamento.
- Então o que se passou para este atraso, questionava o Capitão. Tinha ficado de cama devido a doença “dolorosa”. Ouvimos tiros.
- Viemos a cobrir a retirada sem pressas. Depois dizem lá pelo Alentejo: as cadelas apressadas têm os filhos cegos, sem ofensa para ninguém.
- O pessoal da outra Companhia já saiu. Você e o outro Alferes vão amanhã ao Batalhão, têm umas questões a resolver.

Foi. Primeiro apresentou-se o outro Alferes ao Major de Operações e ao Comandante de Batalhão. Enquanto esperava bebeu um ou dois uísques no bar.
- Logo de manhã nosso alferes? - Dizia o Capitão.
- O uísque? Não estou doente meu Capitão. Limpa a bicharada…

Entrou na sala, pouco depois, onde estava o Major e o Tenente-coronel, com um bigode de galã dos anos quarenta.
- Viu se ficou tudo destruído?
- Não meu Comandante.
- Porquê?
- Cumpro ordens.Depois de responder ao nosso Major vá ter comigo.

O Major escreveu algumas palavras num papel, levantou o olhar para ele e disse:
- Vemo-nos à hora do almoço.

Saiu e foi falar com o Comandante.
- Não gostei, Alferes.
Olhou aquele “guerreiro de parada” por quem tinha estima e respeito. Esperou.
- Não diz nada?
- Não meu Comandante.

Um mês depois o Comandante, no dia que fazia 51 anos, foi ver e constatar a destruição feita a 28 de Novembro.

E já passaram, ou fazem hoje, quarenta anos.

Ah o ferimento do Sargento ficou no relatório...precisava...coisas...
__________


Notas de vb:

1. Torcato Mendonça foi Alf Mil da CArt 2339, Mansambo, 1968/69.

2. Artigos do Autor em

28 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3538: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CArt 2339) (2): De Évora a Mansambo...instrução, viagem...Adeus ao meu País.

Guiné 63/74 - P3540: Tabanca Grande (101): Joaquim Pinheiro da Silva, CCAÇ 3566 "Os Metralhas" (Empada e Catió, 1972/74)



UM ABRAÇO QUE ATRAVESSOU O OCEANO ATLÂNTICO

1. Mensagem de Joaquim Pinheiro da Silva, da CCAÇ 3566, Os Metralhas, com data de 25 de Novembro de 2008

Assunto: Cumprindo o desejo do falecido marido

Amigo Luís Graça
Desculpe mandar este e-mail em duplicado... porém neste, anexo duas fotos.

Penso que vale a pena o registo... Uma amizade que nasceu na tropa.

Estive na Guiné entre 1972 e 1974 na CCaç 3566 "Os Metralhas". Como aconteceu com todos nós, sempre temos um companheiro especial... alguém com quem partilhamos nossos momentos de alegria, de tristeza... enfim, um companheiro de todos os dias.

Após terminar a tropa, regressei ao Brasil, país onde eu vivia anteriormente.

Após alguns anos no anonimato, graças ao trabalho constante de um ex-companheiro da nossa Companhia, o Xico Allen, que se empenhou em tentar localizar os antigos combatenttes d´Os Metalhas, fui localizado aqui na cidade de São Paulo. Após o que, mantive contacto com alguns dos meus antigos camaradas de farda, inclusivé com o meu mais fiel companheiro de mato e de paródias, o António Joaquim Rosa Gonçalves, apelidado de Alentejano, que Deus chamou prematuramente para perto de si.

O que quero dizer (e para que todos saibam), é que o Alentejano, devido ao alto grau de amizade que tinhamos, programou, ele e a esposa Maria Clarinda, virem ao Brasil para me reverem O Brasuca, apelido pelo qual eu era conhecido, mas infelizmente ele partiu.

Dito pela esposa dele, Maria Clarinda, três dias antes de falecer, ele teve algumas melhoras, e a Maria Clarinda disse-lhe que assim que tivesse alta, tratariam de tudo para cá virem.

Ele, pressentindo o fim, pediu à esposa que caso não sobrevivesse, ela lhe prometesse que tão logo pudesse, cumprisse o seu desejo, de abraçar o Brasuca.

Eis que ao escrever esta mensagem, tenho aqui atrás de mim, na cidade de Itanhaém /SP, a Maria Clarinda, 9 anos após o falecimento do Alentejano.

Foi emocionante a sua chegada ao aeroporto! Entre lágrimas, dela, minhas e de minha esposa, ela exclamava em voz alta:

- Agora posso morrer descansada, consegui realizar o desejo do meu marido.

Estou escrevendo isto, como forma de agradecimento à esposa do meu amigo/irmão, que não mediu esforços para concretizar o desejo de seu amado marido, e para que todos o saibam e valorizem esses laços de amizade que contraímos no tempo de tropa, que criam raizes para o resto da vida.

Sei que o Alentejano está noutro patamar, mas sua presença será perpétua entre nós.

Um bem haja a todos os antigos companheiros de farda, independente de patente ou arma.

Um obrigado especial ao Xico Allen, porque sem ele não teria tido estes momentos de tanta alegria.

Joaquim Pinheiro da Silva - O Brasuca
CCaç 3566 "Os Metralhas"
GUINÉ 72/74


Eu e a Maria Clarinda no alto de um prédio no centro de São Paulo

Na casa de meu filho... Maria Clarinda, eu, minha esposa, meu filho Fabiano e nora Raquel


2. Comentário de CV

Graças à iniciativa do Xico Allen de tentar reunir Os Metralhas da CCAÇ 3566, o Rosa Gonçalves, nos seus últimos anos de vida, e o Joaquim Pinheiro (O Brasuca), voltaram a contactar-se.

Quis o destino que não fosse possível trocarem um abraço de reencontro, mas mais uma vez é um familiar que cumpre um desejo não realizado em vida, desta feita uma viúva que se desloca ao Brasil, para em nome de seu marido, abraçar um camarada de guerra que tinha como irmão, laço este que perdurará até à morte do último.

Os nossos parabéns à D. Maria Clarinda pelo seu gesto.

Ao nosso camarada Joaquim Pinheiro, desejamos as maiores felicidades por terras do Brasil. Sempre que queiras, caro Joaquim, dá notícias.

Um abraço da Tertúlia.
CV
_________

Notas de CV:

Vd. postes de:

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVI: O Xico de Empada, grande amigo dos guinéus (Albano Costa)

15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIV: Que maravilha de trabalho (Joaquim Pinheiro, CCAÇ 3566, Empada/Catió, 1972/74)

7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1054: Agradecimento da viúva do Rosa Gonçalves (CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada/Catió, 1972/74)

19 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1087: Rosa Gonçalves, o alentejano (CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada, 1972) (Quim Pinheiro)

27 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1320: Humor de caserna (1): O soldado paga com sangue a fama do capitão (Maria Gonçalves, viúva de Rosa Gonçalves, CCAÇ 3566)

Vd. último poste da série de 28 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3539: Tabanca Grande (100): Carlos Filipe Coelho, Radiomontador da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro 1971/74

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3539: Tabanca Grande (100): Carlos Filipe Coelho, Radiomontador da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro 1971/74



Carlos Filipe Coelho, Radiomontador da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74

1. Mensagem de Carlos Filipe Coelho, com data de 28 de Novembro de 2008


Caros Srs e Amigos.
Em Dezembro de 2005, contactei o Blog. Ver por favor o Post com a data de 31 Dezembro 2005 (*).

Contactei mais uma ou outra vez, entretanto acontecimentos graves com a saúde de minha esposa me tiraram todo o tempo e agora tenho-o todo do mundo infelizmente.

Recentemente o meu ex-camarada Juvenal, Post 3067 (**), teve a gentileza de escrever sobre a minha pessoa, o que provocou o entusiasmo para participar (embora o meu espólio de recordação seja reduzido) de qualquer forma... estou cá.

Assim sendo gostaria que os amigos me considerassem tertuliano do nosso Blog Camaradas da Guiné.

Envio esta foto actualíssima (7 meses) e para outra militar, poderão talvez extrair do post 3067 com algum pequeno redimensionamento.

Obrigado pela atenção. E bom trabalho (de preferencia pouco complicado)

2. Recordando o Poste CDIV da primeira série

Chamo-me Carlos Filipe, fui radiomontador, formei Batalhão em 20 de Novembro de 1971 em Abrantes.
O Batalhão de Caçadores 3872 desembarcou em Bissau no dia 24 Dezembro de 1971.
A minha CCS ficou sediada em Galomaro, mas antes estive aproximadamente um mês no QG em Bissau.
Depois fiz o velho percurso do rio Geba, e depois estrada, do Xime… até Galomaro.
Claro que ainda tenho recordações de Dulombi, Cancolim, Bafatá, Bambadinca, Saltinho, Sete Fontes (fonte de água para abastecimento), Bolama (onde passei as minhas “férias”)...



3. Recordando o poste 3067:

O longo abraço
Tem cuidado, deixa essas conversas para a Metrópole. O africano veio fazer queixa de ti.

Por Juvenal Amado

(**) - Em dada altura que o Filipe, assistiu à saída de camaradas para os postos avançados e patrulha nocturna, desatou a fazer barulho e a protestar contra o facto.

O barulho chegou aos ouvidos do Comandante, que mandou averiguar o que se passava. Dessa vez o anjo protector chamou-se Dr. Pereira Coelho, que abraçando-o, disse-lhe ao ouvido que se fingisse bêbado e assim o salvou.

Por vezes o Filipe, era mal compreendido e se não vejamos o episódio das bajudas;

Ao fim da tarde, os soldados iam ter com as lavadeiras, que se acercavam do destacamento. Eram momentos em que os soldados, davam por vezes largas a alguma falta de respeito para com as lavadeiras. Alguns por graça e para as ouvir dizer de uma enfiada só, todos os palavrões que conheciam em português e no seu dialecto. Apalpavam-nas e diziam-lhe que não lhes pagavam, por elas lhes terem partido os botões todos, ao lavarem as camisas como hábito, batendo com as ditas em pedras pois sabão, era coisa que não entrava nos seus apetrechos.

Tínhamos chegado a Galomaro, quando o Filipe se insurgiu contra uma dessas cenas, que verdade se diga não eram muito dignificantes, pois algumas bajudas eram muito novas. Resultado foi ele se envolver em briga, com um dos participantes dessa tertúlia, indo parar ao chão com o estalo que recebeu.



Carlos Filipe com a sua lavadeira

Carlos Filipe, em Galomaro, no exercício das suas funções.


4. Comentário de CV

Caro Carlos Filipe
Obrigado por contactares de novo connosco.

Lamentamos profundamente a adversidade que te atingiu recentemente. A vida reserva-nos esta provação, que mais tarde ou mais cedo toca a todos. Em nome da Tabanca Grande, transmito-te a nossa solidariedade e aliamo-nos à tua dor.

Falando de nós e do Blogue, vamos combinar que aqui não há senhore nem você. Na Tabanca, como deves saber, tratamo-nos todos por tu como verdadeiros camaradas que somos.

Agora desafio-te a contar-nos mais algumas coisas da tua vida militar, especialmente, quando, como e onde foste ferido, acontecimento que te levou ao Hospital Militar.
Em nome da Tertúlia dou-te as boas-vindas, esperando que contribuamos para ocupar o teu tempo o mais possível.

Um abraço
Carlos Vinhal
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 31 Dezembro 2005
Guiné 63/74 - CDIV: Batalhão de Caçadores 3872 (Galomaro, 1971/74)

(**) Vd. poste de 17 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3067: Estórias do Juvenal Amado (12): O longo abraço (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 27 de Novembro > Guiné 63/74 - P3526: Tabanca Grande (99): Manuel Moreira, ex-1.º Cabo Mec Auto da CART 1746, Ponta do Inglês e Xime, 1967/69

Guiné 63/74 - P3538: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CArt 2339) (2): De Évora a Mansambo... instrução, viagem... Adeus ao meu País


Estórias de Mansambo






Torcato Mendonça
ex-Alf Mil
CArt 2339
Mansambo, 1968/69





2 - Instrução, embarque e viagem até á GUINÉ da CArt 2339

2 -1 - O 2º GrComb

Concentração em Évora

RAL 3, Setembro de 1967, local de concentração dos graduados da Companhia Independente 2339.
Dias depois chegariam os soldados, a maioria saída da recruta, para receberem a especialidade de atiradores. As outras especialidades seriam dadas noutras Unidades Militares e mesmo no RAL.
Nos primeiros dias as habituais reuniões de graduados, a constituição de grupos para ministrar a instrução e outros assuntos.
Os Cabos Milicianos escolhiam os aspirantes para a formação dos quatro pelotões de instrução. O meu era, devido á classificação, o 2º Grupo. Fui escolhido pelos futuros Furriéis – Rei, Rodrigues e Sousa. Todos tínhamos tirado, na mesma altura e local, Vendas Novas, a especialidade: Atirador de Artilharia.
O Comandante de instrução fora um Capitão, a puxar forte por nós pensando, talvez assim, preparar “melhor” os graduados para a defesa do Império. Certo é que ficamos a perceber mais de equipas de cinco, sentido de punho fechado e “coisas de comando” do que secções de nove elementos, pelotões e outras. Misturaram-se, durante a instrução dada á Companhia, os conhecimentos adquiridos e saiu algo de jeito.
Vieram os soldados, foram integrados nos vários grupos, creio que de forma aleatória, ou mais pelo conhecimento, que tinham entre eles, da recruta ou vida civil.
Eram quase todos homens do Norte. O meu grupo tinha só dois alentejanos. Todos os outros eram do Porto, Póvoa, Lousada, etc.
Com os graduados era metade, metade: O Alferes era algarvio, criado no Alentejo e um Furriel natural de Vila do Bispo, algarvio portanto. Os outros dois Furriéis eram da zona do Porto.

Já na Guiné houve mudanças. O Sousa (Fernando Luís, desportista e professor conhecido) foi ao segundo ou terceiro mês para a 3ª ou 5ª de Comandos. Ficou nos Comandos, mudando de Companhia, até ao fim da comissão. Não perdeu o contacto connosco e regressamos juntos. Foi substituído pelo Sérgio, natural de Angola. Estudou e trabalhava na zona do Porto. O Rei, ficou sempre, felizmente, no grupo a corrermos Guiné fora.
O Rodrigues, algarvio, foi ferido com alguma gravidade na Lança Afiada. Evacuado para Bissau, teve que ficar a tirar estilhaços até ao fim da comissão. Nunca foi substituído por razões óbvias. Regressou connosco. Parece viver no Algarve a tentar esquecer aquele tempo. Óptimo se o conseguir.
Infelizmente não regressaram três militares do 2º Grupo. Dois porque morreram e outro por ferimentos e doença, o Pimenta. O Bessa morreu em combate e o Casadinho por acidente, em Bissau, já no fim da comissão.
Um outro devia ter sido evacuado mas nunca o foi.
Ainda em Évora, o grupo adoptou o nome de "Panteras Negras". No fim da instrução diária, ao destroçar, havia sempre o grito: Panteras e batimento forte com o pé esquerdo. Hoje, penso nisso e interrogo-me: Porquê?
Mas estes relatos, estas estórias para reproduzirem, o mais fielmente possível o que se passou têm, tanto quanto possível, ser vistas com os “olhos” de outrora. Era um grupo, a procurar união, a mais ou a melhor preparação para “ a guerra colonial”, um espírito próprio e coeso. Não procurava ser melhor, pior ou diferente dos outros. Tinha, isso sim a auto estima, a vontade de contribuir para uma Companhia unida, onde todos fossem solidários com todos e os Viriatos fossem um conjunto forte e coeso. Parece-me que isso foi conseguido. Creio mesmo que se mantém até hoje.

Ordem de embarque

Terminada a instrução, depois de curtas férias aparece a ordem de embarque. Numa gélida manhã de Janeiro, que certamente ninguém esquece devido aos gritos, choros e ao dramatismo de uma despedida, para muitos a ser vivida como final, embarcámos no Ana Mafalda, rumo á Guiné.
Ao quinto dia aportámos, por horas, em Cabo Verde. No dia seguinte, aí estava a Guiné.
Fizémos o treino operacional no Xime. A 1ª operação ao Galo Corubal.
Caímos em emboscadas e montámos outras; flagelaram e tentaram assaltar o nosso aquartelamento muitas vezes, assaltámos e destruímos alguns do IN; detectámos e rebentámos minas, deixámos outras para os adversários; apreendemos material ao IN, construímos tabancas em autodefesa, sentimos a vida a esfumar-se e a voltar, vimos morrerem camaradas nossos – brancos e negros ou, se preferirem, metropolitanos e guineenses – deixámos um dos nossos ser apanhado. Matámos e apanhámos adversários nossos. Foi uma campanha dura, violenta, desgastante e demasiado longa.
Nunca o Grupo ou a Companhia sentiu o peso da derrota.
No fim éramos homens bem diferentes, amadurecidos ou precocemente envelhecidos. Em tão pouco tempo amámos e odiámos, fomos humilhados e ofendidos, trataram-nos e tratamos outros, justa e injustamente, vimos, sentimos e vivemos situações dispensáveis, para gentes civilizadas.
Regressámos. Despedimo-nos, aos poucos, num fim de tarde e princípio de noite de Dezembro, novamente, de onde, cerca de dois anos antes havíamos saído: Évora.
Partimos por esse País fora, á procura da Vida interrompida. Só que antes já tinha partido o melhor da nossa juventude, o tempo perdido, as transformações em nós operadas, a visão da violência sofrida. Aos poucos recuperamos, talvez ou certamente nem todos o tenham conseguido. Mas certamente tentámos esquecer e viver outras vidas.
Voltámos a encontrar-nos, creio que em 1991, num restaurante da cidade de Aveiro no habitual almoço convívio. Emocionámo-nos. Todos os anos se repetiram os almoços em convívio-terapia. Só voltei, há dois anos a Évora. Julgava ser uma despedida. Ainda por cá estou e talvez volte um dia. Gosto demasiado da malta.
Mas sinto muito a despedida, a falta de brancos e negros que já partiram…e algo de “raiva surda” por certo passado… aos poucos passa…aos poucos encontrarei certamente a paz ou o saber esquecer e perdoar… talvez não…talvez sim…talvez alguém leve os meus fantasmas…

2 – 2 - Breve síntese, desde a formação e instrução em Évora, á Comissão na Guiné e finalmente o regresso. Parece estar tudo dito. Mas não está. Só focar mais dois ou três pontos: a instrução, a preparação e o embarque, a viagem.

Assim:

- A instrução foi em Évora e arredores, tendo o RAL3 por base. Procurou ser a mais consentânea com a guerra que nos esperava, com os conhecimentos adquiridos e com os homens que formavam cada pelotão. A Guiné, o destino não desejado, estava sempre presente. Era muito pouco tempo para ministrar uma instrução adequada.
Carência de meios postos á disposição, alguma falta de conhecimentos dos graduados (excepto dois ou três Sargentos do Q.P., com anteriores comissões) e os militares, os instruendos da especialidade que, uma breve recruta, não tinha sido suficiente para lhes dar a devida preparação para a especialidade.
Tínhamos a vantagem, muitas vezes isso é esquecido, da qualidade do homem português. A origem, da maioria daqueles homens era camponesa, trabalhadora da construção civil ou dos têxteis, a darem duro desde tenra idade. A rusticidade deles, o hábito á dureza da vida era uma enorme vantagem. Alguns eram homens que nunca tinham sido crianças. Outros já eram casados e pais de filhos. Muitos não eram bons ginastas, devido á dureza dos músculos travar a flexibilidade ou a dificuldade na coordenação motora. Relembro três casos: um que não era capaz de saltar o muro de terceira. Não me atrevo, dizia ele. Foi excelente combatente. Outro, casado e camponês, foi o “ bazokeiro” do Grupo. Ao segundo mês de comissão recebeu a noticia que era pai de uma menina. Nunca a conheceu. Faleceu pouco antes do embarque e num acidente em Bissau. Era a brutalidade daquela guerra. O terceiro caso é sobre a dignidade de um homem. Já na Guiné recebeu a noticia que ia ser pai, só que não tinha casado com a mulher a quem prometera, certamente depois do regresso, casar. Assim que pode, não eram permitidas férias ao segundo ou terceiro mês, veio para casar. Era esta, felizmente, a massa humana do segundo Grupo. Estes três casos podemos estendê-los a todo o grupo ou à Companhia.
Com a determinação de todos decorreu bem a especialidade, para alguns um pouco dura mas foi útil em combate. Não sei se ensinei mais ou se aprendi mais. As duas certamente e, volvidos estes anos recordo-os todos como amigos e camaradas.
Terminou a especialidade depois de uma semana de campo.
Antes de um merecido período de férias, veio a notícia do destino: Guiné.

Preparação para o embarque

- A preparação e o embarque tinham que ser feitas com certo cuidado. A notícia da ida para a Guiné, não foi recebida com entusiasmo pela maioria. Até os Militares do Q.P., estranharam nova ida para lá, pois a última fora lá passada.
As praças receberam o fardamento, meteram-no em dois sacos cilíndricos, também fornecidos, puseram-nos ás costas e foram de férias. Passaram o Natal e o Ano Novo em casa e apresentaram-se nos primeiros dias de Janeiro. Os graduados receberam um subsídio, creio que foi isso, e foram ao Casão Militar comprar o fardamento apropriado. Se bem me lembro, o 1º Sargento Clemente ou outro, Silva ou Moura Gomes, fizeram uma listagem e fui com ela ao Casão. Comprei a mala mais feia que encontrei – cinzenta e de plástico duro – e meti lá todo o material constante da lista. Mais tarde em minha casa foi, tanta e esquisita roupagem, posta á medida. Curiosamente até certos pormenores os Profissionais nos indicaram.

Embarque

Passaram rápidas as férias e, no dia indicado, parti para Évora. Não tinha a certeza do dia de embarque. Para a Guiné partiram antes de nós um Oficial e um Sargento. Nós iríamos depois. Não me recordo o dia da apresentação ao certo. Sei que tivemos duas baixas; um alferes que espatifou um pé e o furriel mecânico que, talvez devido ao calor e excesso de humidade guineenses, preferiu a Europa ou a América. Gostos…Os restantes apresentaram-se todos.
Esperámos pelo embarque, adiado pelo menos uma vez. Um dia soubemos: embarque a 14 de Janeiro. Telefonei para casa e pedi a meu pai para ninguém ir a Lisboa. Despedidas não.
No dia 12 recebi a ordem de ir, no dia seguinte para Lisboa tratar do embarque. O resto da Companhia iria depois.
Vestido á civil, roupa militar num saco, a restante entregue para me levarem para Lisboa, na madrugada de um sábado dia treze, aí estou eu a embarcar no comboio em Évora para, poucas horas depois estar em Lisboa. Ida á residencial habitual, telefonar ao Furriel Whanon, que já estava em Lisboa, combinar encontro, vestir a farda e aí vamos nós ver o barco. Lembro-me, a cara de espanto do dono e pessoal conhecido da residencial. Eram meus conhecidos pois, essa e menos outra ali na Braamcamp, eram os meus poisos habituais. Não sabiam que eu era militar. Figurava nos arquivos como estudante. Que é isto? Dizia o Senhor Manuel. Vou para a Guiné amanhã de madrugada. Fiquemos por aqui. Fui e vim, o meu poiso continuou, por muitos anos, a ser lá. Boa gente. Já desapareceu a residencial e o Parque…
Lá fui, com o Furriel Whanon ver o barco. Ou por estar maré vazia, ou porque o barco era pequeno, quando olhei para o "Ana Mafalda" pensei ser uma traineira. Papéis tratados e o resto do dia e noite por minha conta. Passou-se. Às cinco ou seis da madrugada estava eu na Estação Sul Sueste á espera do resto da Companhia. Chegaram, entraram rapidamente nos camiões militares e rumámos ao Cais da Rocha. De noite todos os gatos são pardos ou não dão nas vistas…
Embarque: o reboliço da carga do material, a formatura para um estúpido desfile, os cumprimentos de um membro do Governo (?), não recordo bem, e uma pausa antes do embarque, para as despedidas dos familiares.
Assisti então a uma situação incrível pelo seu dramatismo. Não descrevo pois não seria capaz. As famílias em atroz sofrimento, os militares igualmente, o choro, o grito, que, de tantos que eram, pareciam um só e deixaram-me arrasado. Foi dada ordem de embarque e muitos tiveram que ser “empurrados” até ao barco. Perto do meio-dia afastava-se o barco lentamente e os acenos, de ambos os lados, os gritos e choros mantiveram-se. Indescritível. Penso que só quem embarcou assim consegue recordar todo aquele dramatismo.


Viagem

Deixei as malas no camarote e vim até à amurada. Ali estive, não sei quanto tempo a pensar, a ver o meu País a afastar-se. Ainda o Cabo São Vicente se via ao longe, senti o Rodrigues, Furriel do meu Grupo, ao pé de mim. Disse-me: será que voltamos a ver o nosso Algarve? (lembras-te camarada? Não me deves ler… tentas esquecer…tens esse direito). Respondi-lhe: eu vejo e você também. Com “ganas”e a raiva do não querer estar ali. Porquê? Porque não devia estar ali! Não era guerra minha e devia acabar o curso. Além disso tinha 22 anos e queria viver…mas já estava transformado…
Continuou a viagem, com enjoos de alguns e os dias a escorrerem devagar. Na terça dia 16, ao longe as luzes das Canárias e na madrugada de sexta dia 19, aí estavam o porto de Pedra Lume, Ilha do Sal, Cabo Verde. Carga e descarga de material e nova largada rumo a Bissau.

cont.

__________

Notas de vb:

1. Continuação e reescrita das Estórias de Mansambo.

2. Artigo anterior em

Guiné 63/74 - P3537: Histórias engraçadas (António Matos) (5): Formigas baga-baga...e um capitão em apuros. (António Matos)


Os Baga-Baga que também serviam de abrigos


Não tendo ainda dado uma vistoria exaustiva ao blogue (faço incursões pontuais quando o assunto me toca mais de perto ou se a curiosidade do tema a isso me leva) já notei referências ao Baga-Baga.
Na convicção de que este tipo de informação interessa como peça da imensa reportagem que aqui estamos a fazer, junto um texto, também ele "apimentado" com uma peripécia da altura, para mais agradável "digestão".

O Alferes Matos em cima de um pequeno monte de baga-baga.

Uma constante no cenário da Guiné é a existência de formações tipo arenoso mas duma consistência à prova de bala, formado pelas formigas.
À semelhança das abelhas, também aquela espécie de formiga (baga-baga) trabalha "em manada" e comandadas pela formiga mestra.
São verdadeiros exércitos deste animal estupidamente feroz (a avaliar pelas dentadas onde deixavam parte da carcaça espetada na vítima - falo do que sei!) que constroem estes formigueiros enquanto o diabo esfrega um olho pelo que, aquando da construção das estradas, a engenharia começava pela destruição desses ninhos.
Porém, não raras eram as vezes em que a estrada acabava de ser construída e já despontavam essas pragas destruidoras!
Mas não há bela sem senão e essas mesmas edificações serviram amiudadas vezes de abrigo pela sua resistência à fogachada quando nos encontrávamos debaixo de fogo.

O Alferes Matos na canal bazooca.

Um capitão em apuros

Por curiosidade vos conto que uma noite, numa progressão em direcção a Ponta Matar, com um luar altamente comprometedor, tivemos que parar durante escassos segundos para consultar a carta e eis senão quando, o capitão entra em desvairado desatino começando a despir-se sob o olhar atónito de toda a gajada.

O seu guarda-costas, o corneteiro, de seu nome Reis, foi imediatamente incumbido de o ajudar sem no entanto saber muito bem o que se estava a passar.
Finalmente percebeu-se que o capitão tinha parado exactamente em cima do trilho das amigas formigas que seguiam em bichinha pirilau à sua vida.
Escusado será dizer que o acontecido poder-nos-ia ter sido fatal tal o chavascal que estava a ser feito mesmo nas barbas do IN.

Resolvida a questão, com o capitão repleto de ferrões espetados desde os pés às virilhas, quisemos pensar que o IN foi compincha e bastou-lhe o gozo da situação para não nos atacar.
Uma vez fora da zona complicada, houve lugar ao humor ainda que os inchaços e as comichões do capitão tivessem sido de alguma gravidade e a requerer cuidados médicos.

António Matos

ex-Alf Mil da CCaç 2790

Bula 1970/72

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Notas de vb:

19 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3482: Histórias engraçadas (António Matos) (4): Quando os serviços de oficial de dia passaram a ser feitos pelos oficiais da CCS...

Guiné 63/74 - P3536: Bibliografia de uma guerra (39): Nó Cego, de C. Vale Ferraz. (Cor Matos Gomes)

Nó Cego

de Carlos Vale Ferraz (Carlos Matos Gomes)

Convite para 4ª Feira, 10 de Dezembro de 2008, às 20H30, no Auditório da FNAC-Chiado, Lisboa.

Mensagem de Carlos Matos Gomes

Meu caro Luís Graça e camaradas

Com os habituais cumprimentos e reconhecimento pelo vosso trabalho que, no meu caso, se traduzem em prazer pelas lembranças e proveito pelo que aprendo, aqui me têm a enviar um convite para a sessão de lançamento do meu romance Nó Cego, que foi editado há mais de 25 anos e que entretanto amadureceu.
Embora situado em Moçambique, a guerra era a mesma e ajuda a perceber como os homens podem influenciar e determinar o modo de fazer a guerra. Neste caso com as interpretações de Kaúlza de Arriaga e de Spínola.

Mas estas são as minhas interpretações, porque o que verdadeiramente queria transmitir aos editores e a todos os membros da Tabanca é o prazer de vos convidar e de vos ter neste momento em que se falará dos tempos que a nossa geração viveu em África.

Recebam os melhores cumprimentos e um abraço de camaradagem do
Carlos Matos Gomes
__________

Notas de vb:

1. Carlos Matos Gomes

(i) Nasceu a 24 de Julho de 1946 em Vila Nova da Barquinha.
(ii) Fez os estudos secundários no Colégio Nun’Alvares de Tomar e o curso de Cavalaria da Academia Militar.
(iii) Fez três comissões, em Moçambique, Angola e Guiné, nas tropas comando.
(iv) Foi ferido e condecorado, participou em grandes e pequenas operações de guerra um pouco por toda a parte.
(v) É actualmente coronel na situação de reserva.
(vi) Paralelamente à carreira militar tem desenvolvido desde 1983, data da edição do romance «Nó Cego», uma continuada actividade literária. Como romancista, com o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz, publicou, além do referido "Nó Cego", os romances «ASP - De Passo Trocado», «Soldadó», «Os Lobos Não Usam Coleira», adaptado ao cinema pelo realizador António-Pedro de Vasconcelos com o título «Os Imortais», «O Livro das Maravilhas», «Flamingos Dourados» e ainda este ano «Fala-me de África».
Tem sido editado pelas editoras Bertrand, Nova Nórdica, Circulo de Leitores, Editorial Notícias e Casa das Letras.
A sua obra consta das antologias de literatura portuguesa organizadas por João de Melo e foi tema da tese de doutoramento do Professor Rui Teixeira na Universidade de Colónia.
(vii) No cinema foi autor do argumento do filme «Portugal SA» do realizador Ruy Guerra, colaborou com Maria de Medeiros no filme «Capitães de Abril» e com Joaquim Leitão nos filmes «Inferno» e «20.13 – Purgatório».
(viii) Escreveu para a RTP a série «Regresso a Sizalinda», baseada no romance «Fala-me de África», a exibir proximamente e que é a primeira co-produção entre as televisões públicas de Portugal e de Angola na área de ficção.
(ix) Participou ainda na área dos áudio visual na ficção «Conta-me Uma História» de João Botelho.
(x) No âmbito da história contemporânea é co-autor, com Aniceto Afonso, das obras «Guerra Colonial» e «Portugal e a I Grande Guerra» editadas em fascículos pelo Diário de Notícias.
(xi) É co-autor, com Fernando Farinha, da obra «Repórter de Guerra», da Editorial Notícias.
(xii) É autor da obra «Nó Górdio – Moçambique 1970», da Colecção Batalhas de Portugal editada pela Tribuna da História.
(xiii) É autor de textos para a História de Portugal dirigida por João Medina para o Ediclube e da História Militar Portuguesa, dirigida por Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira para o Circulo de Leitores.
(xiv) Foi consultor da série de três documentários para televisão «Isto Aconteceu» produzidos por Pedro Efe e da série a “Guerra” de Joaquim Furtado.
(xv) Participou nas séries documentais da SIC e da RTP sobre o Século XX.

resumo elaborado por Luís Graça e publicado em

30 de Setembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3251: Em Busca de ... (41): Notícia sobre o ataque a Sedengal, em 21/12/1970 (Cor Carlos Matos Gomes)

2. Artigos relacionados em

5 de Outubro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3272: A novíssima literatura da Guerra Colonial (Leopoldo Amado)

3. Artigos "Bibliografia de uma Guerra" em