segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4769: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (12): O Mercado de Bafatá

1. Mensagem de Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 28 de Julho de 2009:

Caro Carlos Vinhal

Para a série A Guerra Vista de Bafatá, aí vai uma estória que mais parece uma reportagem fotográfica. Como tem muitas fotos segue em dois e-mail. Retornarei só em Setembro. Acho que todos vós, editores, pelo trabalho que vos damos, precisareis mais das férias do que eu, ou nós, simples escribas.

Um abraço a todos.
Fernando Gouve


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

12 – O Mercado de Bafatá


O Mercado em 1969

O Mercado em 2001.
Foto: © David J. Guimarães (2009). Direitos reservados.


O Mercado em 2009.
Foto: © Carlos Silva (2009). Direitos reservados.


Na época da minha comissão na Guiné (JUN68-JUN70) Bafatá era o centro de uma vasta zona sem guerra e povoada por muitos fulas, mandingas e outras etnias. Existia nomeadamente uma comunidade de saracolés na tabanca da Ponte Nova, lá em Bafatá, dedicando-se estes a tingir de azul, panos que depois eram vendidos no mercado.

A beleza exterior do edifício, em estilo neo-árabe, o exotismo dos vendedores (principalmente mulheres) e ainda os produtos que lá se transaccionavam, levavam a que muitos camaradas visitassem o mercado quando tinham que passar pela segunda cidade da Guiné. Ali apercebiam-se que efectivamente se estava no centro de uma zona de paz.

A chegada e saída das compradoras era constante. Fácil era verificar que todas as mulheres, na ida ao mercado, envergavam as suas melhores vestes. Era um regalo para a vista essa passagem (não de modelos pois variavam pouco) pelo colorido dos panos que desciam até aos pés e das restantes vestes, já que na cidade as mulheres não andavam com os seios nus. Também ninguém andava descalço, mas isso era por força de uma lei do Administrador. Muitas vezes observei, nas minhas deambulações pela periferia da cidade, os nativos que vinham das tabancas próximas. Vinham com as sandálias ao ombro e calçavam-nas ao entrar na povoação. Isso pode ser que venha a dar outra estória.

Indo para o mercado.

A caminho do mercado.

A localização do Mercado sempre a achei perfeita. Bem enquadrado, ao lado do sempre belo Geba e do seu afluente Colufe. Nas margens deste havia sempre pescadores a consertar as suas redes. A seguir à Piscina, quase encostada ao mercado e na margem do Geba, era a zona das lavadeiras, outro regalo para a vista. Nesse local havia sempre barcos civis, com arremedos de veleiros, que ainda faziam o trajecto Bissau Bafatá transportando os mais variados produtos.

Como todos sabem, em todos os aquartelamentos escasseavam os chamados frescos. Em Bafatá seria suposto a tropa abastecer-se no mercado, mas isso não acontecia. Não sei muito bem porquê, mas os nativos nunca produziam produtos hortícolas, produtos que a tropa sempre compraria. Que me lembre a única coisa que lá havia com fartura eram pepinos.

A tropa seria potencialmente compradora de muito camarão que havia em todos os rios e bolanhas, no entanto o pouco que lá comi foi comprado aos soldados que o apanhavam quando estavam de guarda às pontes.

Havia um outro produto no mercado, o quiabo, que poderia ajudar a confeccionar muitos pratos mas, nessa altura, era considerado muito exótico para os gostos do metropolitano.

Vamos entrar no Mercado:

A zona dos panos, tingidos na tabanca da Ponte Nova.

Piripíri. Normalmente cada montículo custava um peso (escudo).

Venda de peixe apanhado nos rios próximos. O melhor e maior chamava-se ventana.

Não sabendo o que aqui se vendia, consultei alguns guineenses no seu ponto de encontro no Porto, o Café Restaurante Korá; admitiram poder tratar-se de pedacinhos de folhas de mandioca ou de batata doce ou da sua mistura, destinando-se à confecção de molhos para acompanhar o arroz ou o fundo.

Óleo de palma, obtido a partir do cocnote. Um bom chabéu teria que ser confeccionado com óleo acabado de extrair.

Bolinhos de Mancarra (amendoim).

Outro género de bolos à base de leite.

O vendedor de cola, terrível excitante. Lembro-me que cada noz custava um peso.

Um gila (contrabandista) mostrando a sua mercadoria. No caso uma pele de cobra.

Comprando uma meia cabaça, o recipiente mais vulgarizado.

Vinda do Mercado, a caminho da tabanca da Rocha.

Saída do Mercado com uma cabaça cheia de mancarra.

Fotos e legendas: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados.



A próxima estória, lá para Setembro, pois que um guerreiro tem o direito sagrado a férias, andará à volta da orgânica interna do Comando de Agrupamento, estrutura de retaguarda da Zona Leste e por onde passaram manga de Majores. Havia cada um mais esquisito…

Até Setembro camaradas.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4739: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (11): Interrogatórios

domingo, 2 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4768: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (4): A propósito de alcunhas: O Salvação e o “Sorna”, da CCAÇ 675, Binta - 1964/66

1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), e enviou-nos uma mensagem, com data de 02AGO2009, com o título:

O Salvação e o «Sorna»


A propósito de alcunhas...

“...A primeira função das alcunhas é a identificação. Mas uma identificação específica, isto é, rápida e eficaz (1).
Quem cumpriu serviço militar sabe que numa Companhia (160 indivíduos) há muita gente que fica conhecida pelos nomes das terras da naturalidade.

Na minha Companhia ainda hoje recordo o Caldas, o Campo de Ourique, o Almeirim, o Braga, o Guimarães, o Sarzedas, o Moura, etc.

Pela sua maneira de ser também ficaram para a estória da Companhia o “Estarrabaça” (um militar que quando cheirava a esturro estava logo pronto para “estarrabaçar” tudo – leia-se rebentar com tudo, passar por cima de toda a folha -) e o “Rato”(esperto que nem um).

Por razões óbvias havia ainda o “Aguardente” e o “Fairo”, que ditongava os “aa”. Havia ainda o”Espinha cara-rota”, o “Piriscas”, o “Nhaca”, o “Massa Bruta” e dois militares que “carregam” até hoje como alcunha os números que tinham da Companhia: - o “30”, do morteiro e o “49”, radiotelegrafista, infelizmente já falecido.

E chega agora a vez do “Salvação” e do “Sorna”, que estão referidos no subtítulo da nossa crónica.

O Salvação

No já longínquo dia 4 de Julho de 1964 dois grupos de combate da CCaç 675 saem para o mato, no Norte da Guiné, e tem um tremendo “baptismo de fogo”, que incluiu um ataque bem sucedido a uma tabanca inimiga e duas emboscadas no itinerário de regresso ao quartel de que resultam vários feridos graves e um ligeiro.

A evacuação para o Hospital de Bissau foi feita por dois helicópteros e, no segundo, no meio de alguma confusão seguiu também o “Salvação”, ferido numa perna e nas costas por estilhaços de granada, feridas no entanto superficiais e que não teriam justificado a sua evacuação.
Quando “a poeira assentou” tivemos informações via rádio dos feridos que inspiravam mais cuidado e nos dias seguintes a vida no aquartelamento teve alguma acalmia, esperando-se que o “Salvação” regressasse `”às lides” nos dias mais próximos.

Esta palavra (as lides) tinha alguma razão de ser pois o rapaz era de Salvaterra de Magos (uma terra de touros e toureiros). Cabe aqui e agora dizer que o “Salvação” tinha físico de artista de cinema e cuidava bastante do seu aspecto.

Tinha apanhado um grande "cagaço" na segunda emboscada do “célebre” dia 4 (ele e muitos outros, com o autor destas linhas incluído) e aproveitou a sua estadia em Bissau para, além de tratar dos ”arranhões” dos estilhaços, cuidar dos dentes, de quistos sebáceos, de calos cutâneos, da neurose de compensação, da goteira do cotovelo, da prevenção para picadas de mosquitos e mosca tsé-tsé, de perturbações causadas pelo calor, de alopécia, de sonambulismo, da falta de apetite depois de comer, etc., etc.

Quando apareceu na Companhia uns dois meses depois já quase que ninguém o conhecia.
Daí para frente o Condutor-Auto nº. 2572/63 Francisco Augusto da Costa Salvação só passou a ser conhecido por “São e Salvo” ou “Salvação”.

Pegou melhor o “Salvação”, até porque condizia com o apelido. E de apelido a al(cu)nha foi só um passo...

Até porque, «quem tem (cu) tem medo», e o “Salvação” regressou são e salvo e... ainda por cá anda!

O Sorna

Chega agora a vez do Sorna”, um jovem nascido e criado na Costa da Caparica, com a especialidade de atirador (Soldado nº.2227/63, Henrique Manuel Pereira Cambalacho) e com uma doença congénita de “preguicite aguda”.
Dormir era com ele e rapidamente começou a ser conhecido na Companhia como o "Sorna".

Com alguma esperteza e matreirice à mistura conseguiu passar ao fim de pouco tempo a “ajudante” da Cantina e ficou4 dispensado de patrulhas no mato, que eram as partes mais desagradáveis da “especialidade” de atirador.

O guarda-redes “Sorna”, assinalado por um círculo, com os habituais titulares da equipa de futebol da CCaç.675, apadrinhada pelo Cap. Tomé Pinto. Binta, 1965. Fotografia do autor.

Como é bom de ver na Companhia havia malta que jogava futebol e nesse grupo de predestinados para o “desporto-rei”também fazia parte o “Sorna” que, para não se cansar muito, jogava a guarda redes que, como é sabido, é o lugar mais parado numa equipa de futebol.
Não era bom nem mau, antes pelo contrário, mas um dia fez uma defesa tão aparatosa que acabou...no Hospital de Bissau!
Mas até lá chegar... é que foi o cabo dos trabalhos.
Ainda hoje não se sabe se o “Sorna” defendeu a bola sem querer, se levou com a bola na cara ou se bateu com a cabeça na trave e... mordeu a língua! Das duas... três. O que é certo é que não foi golo e o que é ainda mais certo é que mordeu a própria língua violentamente.
Saiu em braços – não em ombros -e quando meia hora mais tarde o “Sorna”, deitado na sua cama, começou a pedir ajuda por sinais, porque já não conseguia falar... os vizinhos da camarata não lhe ligaram nenhuma.
O rapaz começou a ficar roxo e quando finalmente o médico e o enfermeiro da Companhia foram alertados para o seu estado a língua já estava tão inchada que o “Sorna” corria riscos de asfixia.
E para obviar a males maiores o médico fez-lhe uma traqueotomia, com os meios disponíveis na Enfermaria do aquartelamento e, quando o infortunado «guarda-redes» estabilizou, foi evacuado de helicóptero para o Hospital de Bissau.
Passou um mau bocado mas... voltou ao Quartel menos “Sorna”. Mas a alcunha ficou e... mais ninguém lha tirou!
Aqui está um caso em que a primeira função das alcunhas (a identificação) não ajudou nada.
És “Sorna” e quando estás doente a sério... ninguém acredita!
Está claro que esta situação complicada nunca teria acontecido com o “Estarrabaça” ou com o “Rato”.
E com o “Salvação”... nem pensar!

Abraço,
JERO
Fur Mil da CCAÇ 675

Legenda:

(1) - Tudo isto e muito mais consta das interessantes e bem documentadas 62 páginas da Introdução do Tratado das Alcunhas Alentejanas (com 35.ooo alcunhas) mas a razão da sua citação tem a ver com recordações da minha vida militar e de um inusitado caso de um indivíduo que a sua”alcunha” quase matou!

Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
__________
Nota de M.R.:

Vd. último poste da série
em:
Guiné 63/74 - P4763: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (3): O fado do 49! O Serafim, da CCAÇ 675, Binta 1964/66

Guiné 63/74 - P4767: Blogoterapia (121): Os Fulas, o PAIGC e... os tugas (Cherno Baldé / Luís Graça)

1. Mensagem do Cherno Baldé, com data de 31 de Julho de 2009:


Amigo Luís e toda a equipa de editores da Tabanca Grande,

Como poderão notar no conteúdo das últimas estórias, embora tenha mantido a linha cronológica, estou a encurtar e a correr mais rápido do que previa, porque notei pelas reacções que o período pós-independência suscita maior curiosidade/interesse aos visitantes do blogue.

Acontece que falar desse período não é só doloroso como problemático [vd. ponto 2], pois é uma faca de dois gumes em relação ao qual, quer queiramos quer não, na minha opinião, a MAIOR responsabilidade cabe a Portugal e aos portugueses mesmo se não o quiserem assumir. Já estão a ver onde quero chegar?

Os acontecimentos que se seguiram ao 25 de Abril, não podem desculpar o abandono dos aliados nas mãos dos antigos inimigos. Houve acordos que foram assinados e que não acautelaram nem os interesses nem as vidas daqueles que foram utilizados como carne para canhão, e mais, constatamos mais tarde que os nossos pais, tios e irmãos, à semelhança dos nossos avós no passado (Sec XIX / XX) que defenderam a bandeira portuguesa sem condições e sem contrapartidas, na condição de aliados e milícias de autodefesa, não pertenciam ao corpo do exército português e como tal nem merecem constar na lista daqueles que morreram na guerra.

Quando foi publicada aquela lista dos que tombaram no Jornal Expresso, em 1994, estava eu em Lisboa na altura e tinha constatado, não sem uma grande mágoa e decepção, que os nossos familiares, como o Capitão de milícias Guela Baldé e o Alferes Abdulai Balde, para so citar estes, heroicamente mortos em combate na secção de Cambaju, nem constavam da lista.

Na medida do possível, tentarei dar minha contribuição, sempre no mesmo estilo mais ou menos neutral e equidistante, sem pretender ser o dono da verdade absoluta. Não penso que tenha havido uma conspiração, na minha opinião, foi tudo muito claro desde o princípio. O objectivo principal era neutralizar as possibilidades de qualquer revolta ou tentativa de organizar uma resistência entre os fulas, ingénuos aliados das forças da ocupação. E nisso foram eficientes.

Os portugueses, muito mesquinhos (a expressão não é minha mas do historiador René Pélissier), sempre a poupar e a poupar-se, enfrentavam as situações de guerra na lógica da razoabilidade, da racionalidade e de algum humanismo, tentanto conquistar as pessoas para a sua causa (eu assisti a uma cena com um prisioneiro cubano, negro e uns 2 metros de altura, que se dizia ter-se entregue, a comer na messe/mesa dos oficiais em Fajonquito).

Para atingir esse mesmo objectivo político de dominação e de sujeição, o PAIGC utilizou as armas que melhor sabia utilizar: As prisões na calada da noite, os fuzilamentos públicos e o terror colectivo. Dito isso, põe-se a questão de saber: Seria diferente se os vencedores fossem os fulas e os seus aliados ?...

De notar, todavia, que essas represálias não atingiram as crianças e os mais jovens entre os fulas que foram mobilizados e encorporados no ensino público gratuito. Essas boas intenções, que duraram muito pouco tempo como todas as boas intenções do mundo, foi o maior, se não o único feito digno de menção do PAIGC e do período pós-independência.

Graças a essa euforia política colectiva e mobilização de jovens, hoje o pais possui mais de um milhar de jovens quadros de diferentes grupos étnicos, mesmo se a sua utilização e enquadramento não foram equacionados devidamente e os resultados não são tão visíveis no desempenho económico e político do país. Por isso, na minha opinião, não se pode afirmar que houve uma conspiração contra os fulas.

O balanco é + negativo ou + positivo? O PAIGC devia e podia fazer melhor?... Sem dúvida que sim. E os portugueses dentro de tudo isso?... A históoria se encarregará de responder, um dia. Eu não quero incriminar ninguém mas darei o meu testemunho, sem partidos.

As palmas que já bati no passado para os soldados portugueses nas suas paradas de ronco e para o PAIGC durante os seus infindáveis discursos e meetings já chegam, agora quero pensar com a minha cabeça. Tenho mais ou menos 50 anos e nessa idade devo ter medo de quem?...

Juntamente envio mais uma parte das minhas habituais crónicas.

Um forte abraço deste irmãozinho de Fajonquito, Cherno A. Baldé

2. Mensagem anterior, de 27/7/09, do editor L.G.:

Muito, muito obrigado... Já publiquei tudo... Com mais uns textos, poderíamos publicar um livro... E até, por que não, trazer-te a Lisboa...para o lançamento... Posso fazer-te uma sugestão ? Que nos fales dos tempos, difíceis, que foram, para os fulas, o 25 de Abril de 1974, a transferência de poder, as primeiras perseguições, os primeiros julgamentos revolucionários, as execuções públicas, em 1974/75...

Eu sei que isto é muito delicado e doloroso, é preciso ainda muito tacto político... Mas um dia os teus filhos e netos vão querer saber... Achas que os guineenses ainda são todos "vítimas e cúmplices" desta "conspiração de silêncio" ?

Pensa também na tua posição profissional e social... Não queremos de modo algum que isso te venha prejudicar, a ti ou à tua família... Mas depois da morte do 'Nino', ainda há tabus na sociedade guineense, relativamente à luta de libertação e à independência ? ...

Mas também podes falar da partida dos tugas, de Fajonquito (termo que nunca usas... porquê ?). Ou da tua ida para Bissau, estudar.. Ou da tua "escolinha" em Fajonquito dos teus livros e cadernos, dos teus professores: o lias, o que sabias de Lisboa, de Portugal, dos portugueses europeus... etc.

Recebe um abraço deste irmão, amigo e admirador, Luís Graça


3. Comentário do editor L.G. ao poste P4747 (*):

Como se percebe pelas crónicas do Cherno Baldé, a sociedade fula é(era) muitíssomo mais complexa e estratificada do que os militares portugueses tendiam a imaginar...

O Cherno abre-nos a janela para dois mundos, o dos nossos quartéis, o da máquina de guerra, visto pelos olhos de uma criança, o Chico; e o próprio grupo étnico-linguístico, a comunidade a que ele pertencia, pelo nascimento, a educação, a religião, a história...

Ele é fula e acima de tudo, é um, fula-forro, não é um fula-preto... Quem de nós, na época, se preocupava com estas subtilezas sócio-antropológicas e sobretudo procurava não se comportar como um "ocupante" e sobretudo um "eurocêntrico" ?

Vejo nas memórias do Cherno Baldé também um sinal de amizade, de tentativa, intelectualmente honesta e franca, de nos dizer, quarenta anos depois, que os fulas eram fulas, africanos, leais e dedicados aos portugueses q.b...

Mas... que nunca poderiam ser inteiramente "assimilidados" e integrados na cultura portuguesa, cristão, ocidental...

Temos uma dívida de gratidão para com os fulas, 'nossos aliados' (leia-se: das autoridades portuguesas da época, políticas e militares, que eram as de um governo cuja legitimidade democrática eu pessoalmente contestava...).

Temos inclusive uma dívida de sangue para com os nossos antigos camaradas fulas (Os militares da 'minha' CCAÇ 12 eram fulas; não sou capaz de os tratar como mercenários...).

Aliás, não me interessam os fulas, como um todo, mas as pessoas, os guineenses, que têm um rosto, uma identidade, uma história, independentemente do seu 'bilhete de identidade' (biológica, étnica, geográfica, social, etc.).

De qualquer modo, o Cherno Baldé ajuda-nos a ler, de uma maneira integrada, mais subtil e mais rica, a realidade do nosso quotidiano na guerra da Guiné, incluindo as relações com a população local e nomeadamente com a população feminina... Adorei essa das lavadeiras, as "lava-tudo"...

Ajuda-nos também a não cair na tentação dos estereótipos e das generalizações abusivas...

Por isso eu pergunto: Quem aceita, aqui no nosso blogue, o desafio de falar, com a mesma maneira 'desinibida e despudorada', da sua lavadeira ou 'lava-tudo' ?

___________

Nota de L.G.

(*) Vd. último poste da série > 27 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75

Guiné 63/74 - P4766: Notas de leitura (13): "Os Anos da Guerra Colonial" e as suas incorrecções (António Dâmaso)

1. Mensagem de António Dâmaso (1), Sargento-Mor da FAP na situação de Reforma Extraordinária, com data de 29 de Julho de 2009:

Camarada Luís Graça e Co-Editores uma saudação especial para todos.

A minha intervenção de hoje destina-se a [...] denunciar uma incorrecção. [...] (2)

Quanto à denuncia de incorrecção a mesma tem a ver com as fotos publicadas no fascículo "As Grandes Operações da Guerra Colonial 1961-1974" (3).

Neste fascículo XVI com o título "Comandos libertam Guidage Guiné, 1973", as fotos da capa, páginas 6 e 14, embora os autores digam que pertencem a pára-quedistas da CCP 121, eu afirmo que estes militares não são páras, basta ver o seu armamento e equipamento.
Sei do do que falo, porque estive lá, bem gostava de não ter estado.

Já o camarada Mário Fitas (4) também alertou para uma foto que era atribuída a páras e que afinal era de outros militares.

Reprodução da foto da Capa

Reprodução da foto da página 6

Reprodução da foto da página 14

Com a devida vénia ao jornal
Correio da Manhã


Por aqui me fico
Um abraço
Dâmaso
__________

Notas de CV:

(1) Vd. poste de 1 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4764: Tabanca Grande (166): António Dâmaso, Sargento-Mor da FAP (Guiné, 1966/68, 1969/70 e 1972/74)

(2) A parte suprimida da mensagem diz respeito ao assunto tratado no poste acima referenciado.

(3) Coleccção de livros sobre a Guerra Colonial com o título "Os Anos da Guerra Colonial" de autoria de Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso, publicada pelo jornal Correio da Manhã

(4) Vd. poste de 13 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4515: Controvérsias (17): A César o que é de César! (Mário Fitas)

Vd. último poste da série de 27 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4748: Notas de leitura (12): História da Guiné e ilhas de Cabo Verde - PAIGC, 1974 (Beja Santos)

sábado, 1 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4765: Convívios (156): Pessoal da CCAÇ 557, Cahcil, Bissau e Bafatá 1963/65 - (José Colaço)




1. Mensagem de José Colaço, ex-Sold de Trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65, com data de 30 de Julho de 2009:

Classificação: Óscar.

Ordem de operações: nº44.

Mensagem: Um… dois… três… quatro… cinco, cinco… quatro… três... dois… um, aqui posto de comando operacional diga-me se me ouve escuto. OK transmita: «Ex-militares da C.Caç.557 aguerridos e disposto a "derrotarem" o inimigo, zona da operação, Restaurante o Moinho Velho em Almeirim [Santarém]».

1.Situação.

(a) Forças inimigas: Aperitivos ou entradas, almoço que para não ser excepção se deseja abundante, merenda ou lanche com bolo comemorativo,"adversário” regado com bebidas a gosto.

(c) As forças amigas: Pessoal do Restaurante (cozinheiros e empregados) empenhados na colocação das forças inimigas a jeito de modo a que mais facilmente possam ser vencidas.

(c) Reforços: Amigos e familiares dispostos a auxiliarem as nossas forças a bem cumprirem a "delicada" missão que têm confiada.

2. Missão.

Atacar em 7/11/2009 as forças "inimigas", "destrui-las" deglutindo-as empenhada e intrepidamente.

(a) Manobra.

(b) Concentrar as nossas forças e seus reforços às 10 horas e 30 minutos na igreja de Almeirim onde será rezada missa por alma em homenagem aos camaradas falecidos.

(c) Deslocação posterior para o teatro de operações [Restaurante o Moinho Velho] em Almeirim, onde terá lugar a ofensiva TENDENTE, [ palavra que pela fonética faz relembrar a inconfundível e memorável operação TRIDENTE] à "destruição do inimigo".

(d) Os elementos das nossas forças que optem pela aproximação directa ao teatro de operações deverão fazê-lo até às 13.00 Hora H da "ofensiva" contra as "forças inimigas".

(e) Para informações e transmissões tel.: 219551844, telem.: 918267204.


Esta é uma foto dos ex-combatentes da C.Caç. 557, cujo almoço de 2008, decorreu em Ponte de Sor no Restaurante Quinta do Gato Preto.

Pequena identificação da foto, sem menosprezar os restantes, o primeiro que está sentado do lado direito, é o coronel Ares. O Camarada da frente de cócoras com camisola com duas riscas transversais sou eu.

Cumprimentos,
José Colaço
Sold Trms CCAÇ 557
___________
Nota de M.R.:
(*) Vd. último poste da série em:

26 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4741: Convívios (150): Almoço/Convívio: BCAÇ 237/599, PEL MORT 912 e PEL AM DAIMLER 807 - Como/Cufar/Tite 1964/66 - (Santos Oliveira)

(**) Vd. postes do mesmo autor relacionados com a CCAÇ 557 em:

20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2970: Ilha do Como, Cachil, Cassacá, 1964: O pós-Operação Tridente (José Colaço)

29 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3099: Os Nossos Regressos (13): Fundeámos ao largo, com as luzes de Cascais...(José Colaço, Cachil, Bissau, Bafatá, 1963/65))

9 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3287: Controvérsias (2): Repor a realidade vivida, CCAÇ 557, Cachil, Como, Janeiro-Novembro de 1964 (José Colaço)

19 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3334 O meu baptismo de fogo (14): Cachil, Ilha do Como, meia-noite, 25 ou 26 de Janeiro de 1964 (José Colaço)

11 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3598: O segredo de... (4): José Colaço: Carcereiro por uma noite

16 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4196: Blogpoesia (39): CCAÇ 557, Missão cumprida na Guiné (José Colaço/Francisco dos Santos)

Guiné 63/74 - P4764: Tabanca Grande (166): António Dâmaso, Sargento-Mor da FAP (Guiné, 1966/68, 1969/70 e 1972/74)

1. Mensagem de António Dâmaso (*), Sargento-Mor na situação de Reforma Extraordinária, com data de 29 de Julho:

Camarada Luís Graça e Co-Editores uma saudação especial para todos.

A minha intervenção de hoje destina-se a acrescentar alguns elementos à minha ficha pessoal [...].



Dados pessoais:

António Maria Dâmaso, Sargento-Mor na situação de Reforma Extraordinária.

Tenho os cursos de Enfermagem e Técnico de Radiologia, tendo exercido estas actividades no Hospital da Força Aérea até final de 1981.

Também exerci Radiologia no Hospital da Cruz Vermelha em 1979.

Posteriormente, exerci Radiologia no Centro de Saúde de Odemira de Março de 1982 a Março de 2007. Desde esta estou aposentado da Função Pública.


Comissões de Serviço:

Angola, de NOV64 a JAN65, no posto de Cabo, ainda fiz uma Operação em Vista Alegre na mata de Cambamba;

Guiné, de NOV66 a ABR68, no posto de Furriel na Ferrugem;

Guiné, de MAR69 a JUN70, no posto de 2.º Sargento, na Ferrugem e como operacional;

Moçambique, Nacala, de JUN70 a JUL71 no posto de 2.º Sargento, tendo tomado parte na Operação "Nó Górdio";

Guiné, de NOV72 a AGO74

António Dâmaso com a farda amarela

Guiné 1966/68 > Furriel António Dâmaso

Moçambique, 1970 > Em plena Operação Nó Górdio

Guiné > Cadique > Natal de 1972

Fotos e legendas: © António Dâmaso (2009). Direitos reservados.
Fotos editadas por CV

__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4742: Tabanca Grande (165): António Dâmaso, CCP 123/BCP 12, 1969/71

Guiné 63/74 - P4763: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (3): O fado do 49! O Serafim, da CCAÇ 675, Binta 1964/66


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), é jornalista profissional, conhecido no seu meio por “JERO”, e enviou-nos uma mensagem, com data de 30JUL2009, e o título:


O Fado do 49!

Camaradas,

Se as conversas são como as cerejas … as estórias da tropa são com as cerejeiras! Não sei se já alguém escreveu isto alguma vez mas julgamos que nos fazemos entender…

Lembrei-me do 49 quando há dias arrumava uns papéis velhos em casa.

Hesitei se devia ocultar o nome verdadeiro do protagonista desta estória real. Achei que não o devia fazer. O “49” era um homem a sério e nada do que vou contar é ofensivo da sua memória.

Num papel velho que encontrei um “apontamento” dizia respeito às punições da CCaç 675 no ano de 1964,na Guiné:
“Serafim Silva Santos, 1º Cabo Condutor Auto Rádio Telegrafista nº. 2949/64, punido com 5 (cinco) dias de detenção porque no dia 28DEZ64, quando conduzia uma viatura não ter tomado as devidas precauções e cuidados, provocando com o seu desleixo o queimar-se a junta da cabeça do motor, por falta de água no radiador. Não é mais severamente punido atendendo ao seu bom comportamento anterior. Infringiu os deveres 5º. e 9º. do Artº. 4º. do R.D.M.”.

Acabámos a comissão na Guiné em Maio de 1966 e, depois de fazer o espólio no Quartel em Évora, fomos para a vida civil. Os anos passaram e nas reuniões anuais dos ex-combatentes o Serafim nunca mais deu sinais da vida.

Em 1997 – 31 anos depois de termos regressado da Guiné - realizou-se mais um encontro dos antigos combatentes da Companhia de Caçadores 675. Desta vez o encontro foi na zona de Pombal para comodidade dos “velhotes” residentes no Norte do País.

Repetiram-se os abraços e velhas piadas dos anos anteriores e de repente aparece uma “cara nova”.


- Oh Moreira, quem é este senhor. Era da Companhia?

- Oh Oliveira, estás a ficar velho! Este gajo é o Serafim, o Radiotelegrafista!

- G’anda Serafim não te via há mais de 30 anos. Desculpa lá mas nem te conhecia. Então o que é tens feito? Tens que cantar o “fado dos cagatórios”.

Ainda me lembra de um bocado da letra: “Sentadinho a ganhar massa nos cagatórios da praça”!

Seguiu-se a confusão habitual na arrumação da “malta” para o almoço da praxe e o Serafim ficou numa mesa perto da minha.

Fiquei de frente para ele e não era capaz de o deixar de fixar.

Trinta anos é de facto muito tempo e ali estava ele: magro, envelhecido, de cabelo branco e bigode “à Prince”, desdentado e com o rosto sulcado de rugas.

Do rapaz que eu tinha conhecido na Guiné já quase nada restava. Talvez só os olhos – intranquilos - e o ar de “reguila”, que era a sua imagem de marca na Companhia nos longínquos anos de 1964-66.

O 49, como era tratado ao tempo, chegou à Companhia uns meses depois de estarmos instalados no Norte da Guiné. Era um rapaz metido consigo mas tinha uma “pinta” que não enganava. A vida já tinha passado por ele com dureza e deixara marcas que eram visíveis no “reguila” que se adivinhava em todos os seus gestos.

Jogava bem a bola, cantava o fado e fazia o que lhe competia sem margem para reparos. A excepção foi aquele azar na cabeça do motor…

Mas ele era “grande” era quando cantava o fado!

Quando a malta se juntava à noite e o 49 arrancava o seu fado, com sotaque do Porto, era sempre um êxito: “Sentadinho a ganhar massa nos cagatórios da praça”.

Que raio de letra! Passados aqueles anos todos nunca mais me esqueci do fado, do 49 e da sua maneira pungente de cantar aquela letra. Parecia que aquilo lhe vinha das entranhas. Da alma. Parecia quase pessoal e nos arquivos da minha memória aquele fado tinha ficado mesmo gravado.

E trinta anos depois ali estava ele: magro, envelhecido, de cabelo branco e bigode “à Prince”, desdentado e com o rosto sulcado de rugas.

O Moreira, um dos meus amigos dilectos da Companhia, estava por perto e perguntei-lhe:

- Eh pá, onde foste descobrir este tipo?

- O gajo mora em Gaia e trabalha numa fábrica de molduras. Ganha mal, coitado, e ainda trabalha aos fins-de-semana como pedreiro para ganhar mais algum. E nesta “fase do campeonato” mete-se um bocado nos copos…para esquecer as agruras da vida!

Mais malta cumprimentava o Serafim e incitava-o a cantar o fado dos cagatórios”! Afinal não era só eu que recordava o “tal fado “ da Guiné de 1964!

Na minha mesa estava o ex-Alferes Mendonça com quem eu ia trocando impressões de quem parecia bem e mal na vida, tendo em atenção o aspecto exterior.

Chegou a vez de falar no 49, o Serafim, que depois do regresso em 1966 tinha vindo pela primeira vez a um almoço da Companhia.

- Oh Mendonça, aquele rapaz tem mesmo cara de passar uma vida difícil!

- Oh Oliveira, você não sabe a vida daquele tipo?!

- Eh pá, não sei nada. Nunca mais o vi em trinta anos.

E o ex-Alferes Mendonça, que era Comandante de Companhia nas ausências do Capitão Tomé Pinto, contou-me que, por ter acesso à “papelada” de todos os elementos da Companhia, sabia alguma coisa da vida do Serafim. O 49 tinha passado a sua infância em casas de correcção e estava detido na prisão-escola de Leiria quando foi chamado para a inspecção.

- Oh Oliveira, ele praticamente veio da prisão para a Companhia. Está claro que, por recomendação do Capitão, este facto foi ocultado e, embora fosse alvo de discreta vigilância, nunca causou problemas. E sabe o que é que o pai dele fazia? Era guarda das “sentinas” de um dos mais velhos cafés da “Baixa” do Porto!

Parei de comer a minha sobremesa e recuando no tempo descobri finalmente “as raízes” do fado do 49: Sentadinho a ganhar massa nos cagatórios…Nessa tarde de confraternização estive várias vezes junto do 49 mas já não lhe voltei a pedir para cantar o seu fado…

No ano seguinte voltou a aparecer na festa da Companhia. Desta vez foi no Porto Alto, junto a Vila Franca de Xira.


Estava ainda mais magro e mais envelhecido Mas de bigode “à Prince”, e com o seu “ar reguila” de sempre. Já não se dava ao trabalho de esconder a sua dependência ”pelos copos”. Já poucas coisas o agarravam à vida.


Foi a última festa da Companhia a que o 49 veio. Morreu poucos meses depois.

Ao longo de uma existência complicada como teve o Serafim, os “5 dias de detenção “ por ter deixado queimar a junta da cabeça do motor em 1964” devem-lhe cá ter dado “um abalo ao pífaro” (1)!

A “malta” da minha Companhia da Guiné não mais esquecerá o Serafim e o seu fado: “Sentadinho a ganhar massa…”!

É verdade que é “um património em circuito fechado” mas tem “apenas”o valor da vida autêntica, que nos marca enquanto por cá andamos.

Felizmente que na vida a sério há “patrimónios” bem mais importantes dos que os dos “realities shows” da televisão dos nossos dias!


Digo eu!

Abraço,
JERO
Fur Mil da CCAÇ 675


Legenda:


(1) - Esta expressão era muito usada no calão militar e o seu significado é bem explícito…


Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
____________
Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4762: Estórias do Mário Pinto (4): Fotógrafos de guerra



1. Mais uma mensagem, desta vez com matéria mais séria, enviada pelo nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá", Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71:

Camaradas,

Tenho vindo a habituar o pessoal da Tertúlia a contar-vos estórias mais ou menos pitorescas da CART 2519, mas hoje resolvi desenvolver um tema mais sério, que intitulei; " Fotógrafos de Guerra", em homenagem a todos os nossos camaradas que pertenceram a esta especialidade.


“FOTÓGRAFOS DE GUERRA"

Raros foram os camaradas que não tiraram uma foto, quer no teatro de uma missão, quer nos seus momentos de descanso, quer numa confraternização, etc., para lembrar mais tarde.

Outros mais afoitos para conseguirem fotos mais “radicais”, transportavam a sua máquina de fotos, independente da sua marca e qualidade, juntamente com a sua G3, pela mata adentro, picadas, colunas, ataques, emboscadas e operações (algumas delas até bem arriscadas).

Sem qualquer outro interesse, senão ficar com uma recordação sua, para a posterioridade.

Naquele tempo não desconfiavam, nem pensavam, no precioso e enriquecedor contributo documental, que viriam a prestar à restante comunidade portuguesa e à História da Guerra Ultramarina, no nosso caso a Guiné.

Todos sabemos que o nosso exército possuía um departamento cinematográfico, que também realizava reportagens, e que não é segredo para ninguém que, o mesmo, se encontrava ao serviço da propaganda e dos “tratamentos” psico-políticos e militares da época.

Além destes ainda existiam os repórteres e fotógrafos da comunicação social vigente, mas seguiam pelo mesmo caminho dos do exército, ou seja, raramente saíam do perímetro entre Bissau e Bissalanca e, no máximo, só arriscavam até Nhacra.

Sem dúvida nenhuma, que o maior meio informativo na época era a televisão, com um único canal a RTP1 (a que mais tarde se juntou a RTP2), ambos órgãos do Estado, que se limitavam, praticamente, a reportar as célebres Mensagens de Natal e, mesmo essas, também só muito esporadicamente iam além do perímetro que referi.

No Sul da Guiné e nos sítios onde “doía” o “barulho”, nunca dei por eles, ou ouvi falar na sua presença.

Comparando o nosso conflito (se houver alguma comparação possível com o do Vietname), neste capítulo de reportagem, denota-se uma abismal falta de material fotográfico e, consequentemente, da respectiva divulgação.

Quero dizer com isto, e pelo que me tem sido dado ver ao longo destes últimos 35 anos, que se não fossem mais uma vez, a intuição e a espontaneidade da “malta” do mato, o património fotográfico dos acontecimentos era quase nulo.

Tal facto, creio eu permitiria, que muitas entidades e instituições mal intencionadas e, ou, maldizentes, ousassem utilizar a fertilidade das suas deturpadas e malévolas imaginações, para iludir a verdade dos factos mais vezes ainda, do que aquelas que, em certos momentos, detectamos em alguns meios de comunicação.

Hoje, estes documentos, são o suporte básico e fiel de muitas notícias que para aí circulam, em documentários, artigos diversos, livros, revistas, etc.

Fotos, como por exemplo, as que foram editadas no poste do nosso camarada Alferes Miliciano Carlos Farinha, da CART 6250 e do seu encontro inédito com o PAIGC, figuram na catarse da frente da Guiné como “peças” únicas, entre outras de igual valor e teor histórico de camaradas nossos, e que, indiscutivelmente, constituem um inestimável e indispensável contributo histórico, para a posteridade.

Comungo inteiramente do dito do povo: “Vale mais uma boa fotografia que mil palavras”.

Não fossemos nós considerados dos melhores militares do mundo, especialistas no combate à adversidade, na coragem demonstrada, na espontaneidade da inter-ajuda, na rebuscada imaginação, na solvência da miséria, na difusão da alegria, na comunhão da tristeza e na exteriorização da comoção.

Até na fotografia nos desenrascamos. Meus amigos de facto fomos… ENORMES.

Bem haja quem conseguiu perpetuar tais momentos, bons e menos bons, para todo o sempre.

Um abraço,
Mário Pinto

Foto: © Eduardo Ribeiro (2009). Direitos reservados.
__________

Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em: