domingo, 31 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5739: Efemérides (42): Dia 25 de Maio de 2009, finalmente inaugurada a estátua de Amílcar Cabral na Guiné-Bissau (António Rosinha)

Guiné-Bissau > Rotunda do Aeroporto > Estátua de Amílcar Cabral, inaugurada finalmente no dia 25 de Maio de 2009, após ter estado arrumada 23 anos.

Imagem Google Earth (com a devida vénia...)

1. Mensagem de António Rosinha*, nosso amigo e camarada (ex-Fur Mil em Angola, 1961; topógrafo na TECNIL, na Guiné-Bissau, entre 1979/93), com data de 20 de Janeiro de 2010:

Luís e Carlos,

Como até agora ainda não foi publicada a grande estátua de Amilcar que já vem no Google Earth, envio foto,  do Google,  do local onde foi instalada a estátua do Amilcar Cabral, após o assassinato de Nino Vieira. É a rotunda do aeroporto.

E envio uma foto do cruzamento de Chapa-Bissau, onde em 1993, no vigésimo aniversário do assassinato de Amilcar, se fez o cerimonial com o Nino a presidir,  com a promessa que em breve ia ser montada a estátua naquele lugar.

Para mim toda esta avenida e a rotunda do Aeroporto têm um sentido especial quer no aspecto profissional quer sentimental, pois que todos os centímetros dessa estrada fui eu a desenhá-los (no chão). E, durante mais de um ano ouvi ao longo daquela artéria tantas histórias de soldados e capitães, fulas e balantas, irãs e bajudas... mas também tive que ouvir com muito pouco àvontade e com muita frequência a história dos fuzilamentos. Mas um dia contarei a história da construção dessa Avenida pois teve tanta política, feitiçaria, complicações e casa derrubadas que também foi essa avenida a ajudar a "criar" o PAICV [, Partido Africano para a Independência deCabo Verde].

Mas, finalmente,  foi no fim dessa avenida, que ficou a estátua de Amílcar Cabral. Custou, mas foi.

Agora, quero-vos contar uma passagem sobre o 20.º aniversário em 1993, e que podem publicar, ou pôr de lado, se virem que pode afectar alguns espíritos mais pró-Amílcar.


Estava eu no Ministério das Obras Públicas numa cooperação, ao lado de vários engenheiros e técnicos, com  formações nos paises de Leste, enviados ainda por Amílcar Cabral, e que uns dias antes do dia do aniversário do assassinato, a  20 de Janeiro, esses meus "homólogos", era o nome, foram designados para, no cruzamento de Chapa Bissau, prepararem o local, (limpezas, enfeites, vedações e um pequeno palco), onde o Nino faria a cerimónia e anunciaria que seria ali que em breve surgiria a estátua.

Ora acontece que pelo menos meia dúzia de engenheiros, que eram, conseguiram-se desenfiar, com mil justificações, desde familiares falecidos, doenças, cerimónias étnicas (irãs), etc. e nenhum participou,  nem nos preparativos, nem na cerimónia.

Ora eu funcionava tipo colega deles com bastante confiança mútua. Não é que quem acabou por fazer todos os preparativos, acabei por ser eu? Claro que eu já via há muitos anos o que a "casa gastava", e como eu sempre "paguei para ver"...

- Favor, Rosinha, tens aqui pessoal...

Arranjaram-me uns serventes e desapareceram de cena, demonstrando ostensivamente que não queriam ser vistos nem achados no assunto.

Tirei algumas (poucas) dúvidas que me sobravam há vários anos. Aliás, as primeiras dúvidas foram-me transmitidas por imensos colegas cabo-verdianos em Angola.

Luis ou Carlos, o Google Earth tem uma foto panorâmica da estátua de Amílcar Cabral: se a conseguirem publicar era interessante, eu não sei como a tirar e mandar.

Um abraço,
António Rosinha


Rotunda do Aeroporto, local onde se encontra a estátua de Amílcar Cabral. Fonte: Google Earth (com a devida vénia...)

Vista geral da Rotunda e estátua de Amílcar Cabral. Fonte: Google Earth (com a devida vénia...)



Cruzamento Chapa-Bissau. Fonte: Google Earth (com a devida vénia...)

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3983: Nuvens negras sobre Bissau (16): O Nino e o Luís Cabral que eu conheci, em 1979-1993 (António Rosinha)

Vd. último poste da série de 20 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5680: Efemérides (41): No 37º aniversário da morte de Amílcar Cabral, recordando o sucesso diplomático que foi a visita da missão da ONU às regiões libertadas, no sul, 2-8 de Abril de 1972

Guiné 63/74 - P5738: Em busca de... (114): Neusa Danho procura amigos de seu pai, o 2.º Srgt Mil Cristóvão dos Santos - 3 (Paulo Santiago)


1. O nosso Camarada Paulo Santiago (ex-Alf Mil At Inf do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72), enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 22 de Janeiro de 2010:

PROCURAM-SE INFORMAÇÕES SOBRE

2.º Srgt Mil Cristóvão dos Santos

Camaradas,

Acho que vos devo dar conhecimento, se quiserem publicar, façam-no.

Como vós deveis saber, quando recebo msg' s semelhantes à da Neusa Danho, tudo faço e farei para satisfazer o desejo, neste caso, da filha de um camarada. E fico frustrado se tal não conseguir.

Mandei aquela msg para o blogue, mas não apareceu ninguém, até agora, que conhecesse o Fur.Mil. Cristóvão dos Santos. Procurei outras vias.

Ontem pesquisei quem na Tabanca Grande estivera colocado na CCAÇ 3, lá encontrei um camarada a quem enviei um e-mail, ainda sem resposta.

Hoje à tarde, depois de ver que não havia nada de novo, tive um clic... Porra! o Marques Lopes esteve na CCAÇ 3. Liguei-lhe, mas o nome Cristóvão não lhe dizia nada, mas, oh Paulo, vou falar a uns camaradas...

Passado meia-hora, é o Marques Lopes a ligar-me, já falei com um camarada, que ainda lá esteve comigo, o Cristóvão era do pelotão dele, eram muito amigos, toma o contacto dele e liga-lhe à noite.

Fiquei, como que aliviado.Há umas duas horas atrás liguei ao ex- Alf. Mil. Artur Fernandes, militar na CCAÇ 3, 68-70, tendo estado em Barro, Bigene, Binta, Guidage, que me confirmou ter tido um Fur. Mil. Cristóvão dos Santos, que deveria ser o mesmo que eu procurava, de quem guardava gratas recordações. Pedi-lhe para ver as fotos publicadas no blogue.

Entretanto liguei à Neusa, para Bissau.

Ficou surpreendida por ligar, e mais ficou quando lhe disse que encontrara um dos comandantes de pelotão do pai. O Artur perguntara, eu não soubera responder, mas perguntei à Neusa qual tinha sido a causa da morte do pai "uma intervenção cirúrgica às hemorróidas, parecia uma coisa simples, complicou-se e o meu pai morreu, em 1980, tinha três meses...não o conheci". Percebi a razão da procura dos camaradas.

Liga-me o Artur " Paulo, já vi as fotos, é mesmo o Cristóvão" Senti a comoção da voz.

Abraço a todos,
Paulo Santiago
Alf Mil At Inf do Pel Caç Nat 53

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Nota de M.R.:

(*) Vd. também sobre esta matéria os postes:

16 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5655: Em busca de... (108): Neusa Danho procura amigos de seu pai, o 2.º Srgt Mil Cristóvão dos Santos

23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5695: Em busca de... (112): Neusa Danho procura amigos de seu pai, o 2.º Srgt Mil Cristóvão dos Santos (Paulo Santiago)

(*) Vd. último poste da série em:

25 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5706: Em busca de... (113): Procuro reactar contactos com Amigos da CCAV 3364 (Capito Joaquim)

Guiné 63/74 - P5737: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (1): Um Gabu de poucas e fracas recordações


Guiné-Bissau > Região do Gabu > Gabu > 16 de Dezembro de 2009 > Um dos edifícios, de traça colonial, mais imponentes da cidade. Do laddo direito, fica a agência local do Banco da África Ocidental (BAO) que tem cinco agências no país (duas em Bissau, e as restantes em Gabu, Bafatá e Canchungo), pretendendo abrir outras  duas, em S. Domingos e em Buba.  O BAO, um banco guineense,  com 100% de trabalhadores guineenses, foi fundado em 1997, e pretende contribuir para a modernização da economia guineense: apenas 2% dos 1,3 milhões de guineenses utilizam serviços bancários...  O Banco tem participação de capitais portugueses.

Guiné-Bissau > Região de Gabu > Proximidades de Gabu > 16 de Dembro de 2009 > Um imagem eterna: Mulheres lavando no rio...



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Tabanca de Tabató na estrada Bafatá-Gabu  > 16 de Dezembro de 2009 > Meninos mandingas. Esta é a terra do músico Kimi Djabaté, radicado em Portugal desde 1994. Fotos do médico e músico João Graça (Melech Mechaya), que esteve na Guiné-Bissau em Dezembro de 2009 (Bissau, Guileje, Iemberém, Bubaque, Bambadinca, Bafatá, Contuboel, Tabató, Gabu, São Domingos).

Fotos: © João Graça (2009). Direitos reservados


1. Damos início, hoje, à pré-publicação de excertos do próximo livro do nosso amigo e camarada Mário Beja Santos, "Mulher Grande" (*):


Mail de 14 de Janeiro:

Queridos amigos, o livro “Mulher Grande” é uma narrativa ficcionada, um relato de uma vida de memórias (memórias de uma vida). É a Guiné que aproxima a narradora e o seu arquivador/escriba. Benedita Dantas Estevão possui uma memória prodigiosa, viveu as agonias e os êxtases de toda a gente.

A estrutura da narrativa baseia-se num processo literário explorado magistralmente por John Dos Passos, limitei-me a seguir-lhe as pisadas: há um episódio inicial em que o narrador descreve acontecimentos, o arquivador/escriba reflecte sobre eles (solilóquio) e o narrador dá uma explicação íntima para o que contou (recordações e trabalho de casa), é um círculo fechado de duas pessoas que falam a três vozes.

O que ofereço ao blogue é matéria que se prende com a essência do nosso blogue: a Guiné em vias de entrar na guerra. O resto, caso venha a entusiasmar os tertulianos, fica para a leitura de cabo a rabo. Sugiro a sua publicação em pequenos episódios de duas ou no máximo três páginas, em consonância com a própria construção dos diálogos. Aguardo a vossa apreciação. Um abraço de amizade, Mário



Mulher Grande > III > A Guiné em chamas ou o “Tubabo Tiló”por Mário Beja Santos

[III. 1] Um Gabu que deixou poucas recordações


Viajámos quase um dia inteiro de Bissau para o Gabu. As coisas passaram-se assim. De Bissau seguimos para Nhacra e daqui para Mansoa. Esta primeira etapa era a que se fazia melhor, embora tivéssemos partido debaixo de temporal, uma picada escalavrada. Quase duas horas depois, rumámos para Mansabá, tudo em caminho de terra batida. Quando passámos ao lado do Morés, mal sabia eu que dentro de alguns anos estaria aqui um dos santuários da guerrilha. De Mansabá seguimos até Bafatá, um estirão de duas horas e meia com as picadas inundadas. Em Bafatá lá fomos a um restaurante, fez-se uma pausa de uma hora. E depois, fez-se o percurso final, uma picada interminável de Bafatá a Nova Lamego, o Gabu. Creio que já disse que procurei documentar-me, o livro dos Fulas ajudou-me imenso, foi ali que fiquei a saber que aquela imensidão árida era quase um quarto do território da Guiné.

A melhor recordação que retive da viagem foi a ida ao mercado de Bafatá, pela primeira vez senti qualquer coisa de Muçulmano na atmosfera, vi os cavaleiros Fulas, garbosos, com os trajos a esvoaçar, com lindos turbantes, fora do mercado havia jogos de corpo a corpo, para mim não era grande novidade, já tinha visto os Felupes e os Manjacos, todos untados de óleo, faziam simulações um pouco como o que eu tinha lido acerca dos lutadores gregos. Para meu pesar, calcorreei toda esta região ao lado do Albano. O Boé é o único ponto do território com alguma elevação, ali há colinas mas falta vegetação, fui muitas vezes a Cabuca, fizemos passeios à República da Guiné indo do Gabu até Madina do Boé e daqui à fronteira. O Corubal e os seus afluentes eram de uma grande beleza, sentia-se uma natureza pouco mexida, houve quem me dissesse que mais belo que aquelas matas à volta do Corubal só no Cantanhez.

Quando chegámos ao Gabu era o fim da tarde, mas deu para ficar horrorizada com o que vi da casa. Por fora, era imponente, por dentro não tinha conserto possível, era um apodrecimento imparável. A água vinha de uma fonte, em bidões trazidos por carros de bois, os criados enchiam os bidões para o serviço da casa. Ocorreu-me este pormenor quando há dias me falou que a água de Missirá vinha de uma fonte a 2 quilómetros e que os seus soldados muitas vezes rolavam os bidões até ao quartel. Estávamos lá há 4 dias quando o secretário da administração adoeceu e os seus 3 filhos ficaram em nossa casa. No meio daquela desolação, aquelas crianças encheram-me de alegria.

Provavelmente pensa que eu estou a exagerar quando falo no desgosto que senti no Gabu. Olhe, a cadeia era nas caves da casa. Cada um dos quartos tinham um número na porta, a primeira impressão era que eu estava num colégio interno ou num reformatório. Disseram-me que o anterior administrador era um homem original que chamava o pessoal com apitos, cada um tinha o seu toque. Cada um de nós tem tendência para dizer que já viveu no fim do mundo. Estou à vontade para afirmar que naqueles anos 50 o Gabu era para lá do fim do mundo.

Naquela época das chuvas foi uma verdadeira aventura irmos visitar os postos de Piche, depois o Albano disse que íamos até Buruntuma, tive a noção que estava a atravessar um deserto, aqui e acolá havia umas pequenas tabancas, não havia brancos, nem mesmo libaneses, talvez um ou dois cabo-verdianos, o Albano só falou crioulo. O Gabu não tinha praticamente brancos nenhuns, talvez por ter pouco comércio, por ser quente como tudo, e a terra parecia calcinada. Encontrei logo duas pessoas simpáticas, o senhor Fontes, o chefe dos correios, e a mulher que era a professora.

Tinha havido um incêndio muito grave na administração, parece que fora um cigarro aceso deitado imprudentemente para um caixote, perderam-se muitos documentos. Naquela aridez, o edifício da administração estava num dos vértices de um quadrado o outro vértice era o correio e a escola, do outro lado a casa do médico e no vértice oposto a igreja. A igreja esteve praticamente fechada enquanto lá estive.

O Albano prezava a fidelidade do pessoal, por isso o Omaia, o Ocante e o Augusto vieram connosco. Há uma história passada no Gabu que nunca mais poderei esquecer. Eu gostava muito do filho mais novo do Borja, o nosso secretário, que nós conhecíamos por Chaplin. Quando nos viemos embora o miúdo queria vir à força connosco. Foi uma separação muito difícil. Aí por 1997, quando o Toninho estava a morrer, encontrei numa sala de estar do Hospital Particular de Saúde uma rapariga nova, muito triste. Estava a chorar, aproximei-me dela, não sei como a conversa passou para a África, num pulo chegámos à Guiné, não sei como lhe falei do Chaplin, a senhora levantou-se e deu um grande grito, era o seu marido que estava ali ao lado a morrer. Fui vê-lo, ele reconheceu-me, assisti à sua morte. O Toninho morreu uma semana depois. Deus dá-nos sinais que não queremos entender. Ou não podemos.

Se tudo era árido, se nem ao menos podíamos passear à noite 1 quilómetro a pé, se eu não podia dar-me com quem quer que fosse, resolvi adoptar uma gazela que eu criava a biberão, vivia lá em casa. Quando o Albano saía do quarto entrava a gazela, ficávamos ali as duas a conversar.

É quando estamos no Gabu que soubemos que o De Gaulle ia fazer um referendo na Guiné-Conacri para saber se a população queria ficar vinculada à França ou tornar-se independente. O Albano foi enviado pelas autoridades de Bissau à Guiné-Conacri para apreciar o processo do referendo, andámos 4 dias a visitar mais de 20 mesas de voto.

Também o Albano estava contrafeito com a vida que levávamos no Gabu. Recebemos com alívio, 6 meses depois de ali estarmos, a notícia de que o Albano ia em missão para Bambadinca, junto do rio Geba. Lá metemos tudo num camião, desta vez a viagem foi muito mais simples, a partir do Gabu nós chegámos a Bafatá, e daqui por uma estrada razoável descemos até Bambadinca.

No caminho, o Albano levou-me a uma terra muito curiosa chamada Fá, fiquei surpreendida com as instalações, o Albano explicou-me que tal como em Geba houvera um presídio e uma missão católica importante, em Fá havia serviços da administração, granjas experimentais e, já não me recordo muito bem, parece que também tinha havido um presídio, Fá teria sido uma povoação muito importante no passado. Antes de partirmos do Gabu aquele Chaplin que muitos anos depois eu vi morrer agarrou-se muito a mim e pediu-me para vir connosco.

Desculpe se esta exposição não está muito clara, dormi mal, para ser sincera esta noite pensei nas diferentes doenças que sofreu o Albano e nos apoios que ele teve enquanto viveu na Guiné. Um dia, António Carreira, um administrador quase aposentado que depois foi trabalhar na Casa Gouveia e que assistiu aos acontecimentos do massacre do Pidjiquiti, falou-me numa doença grave do Albano, tinha ele 20 anos. Foi nesse tempo que o Albano passou a acreditar nas plantas medicinais, tratou-se com de chá de buco quando sofreu de uma bilharziose. Todos os grandes estudiosos da Guiné lastimavam não haver estudos sobre as plantas medicinais. Eu já estava habituada com as doenças mais estranhas que imaginar se pode. A si não o espantava aquelas elefantíases com os corpos deformadíssimos? O Albano, por exemplo, sofreu de uma ténia que o engordou imenso.

A viagem para Bambadinca foi agradável. Nota triste foi que a gazela fugiu do camião, nunca mais a vi. Chegamos ao fim do dia, fomos ver o porto, com um cais muito velho. Estava na enchente, várias embarcações partiam para Bissau, ali o Geba está cheio de meandros, as margens são muito bonitas, parámos a ver um pôr-do-sol extraordinário. O Albano disse-me: “Ali é o Cuor, antes do Oio. Havemos de lá ir, estão ali algumas das florestas equatoriais mais fechadas que existem. E agora vamos subir, a casa da administração é no cimo daquela rampa, de onde se parte para o Xime”.

(Continua)

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Nota de L.G.:

Brasão de armas de Gabu (do tempo colonial),  retirado, com a devida  vénia,  da Wikipedia.en

(*) O Mário já nos tinha mandado o 1º Cap da Mulher Grande em 1 de Abril de 2009...  É a história de uma mulher, lisboeta, nascida em 1920, que vai parar a África por via do seu casamento  com um administrador colonial, Albano, no início dos anos 50...  Falaremos, com maior detalhe deste 1º Cap, num próximo poste...

Guiné 63/74 - P5736: Armamento (3): A célebre, irritante e temível costureirinha, a pistola-metralhadora PPSH, usada pelo PAIGC (Luís Dias)


Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > CCAÇ 3491 (1971/74) > "Chegada a Galomaro da CCAÇ 3491 [, pertencente ao BCAÇ 3872,]  no dia 9 de Março de 1973. No jipe podemos ver o Alf  Luís Dias, atrás o Fur Baptista,  do 1º Gr Comb,  e ao lado, a sorrir, um guerrilheiro do PAIGC que, no dia anterior, se tinha entregado a uma patrulha nossa na área do Dulombi. A arma é uma Shpagin PPSH 41, no calibre 7,62 mm Tokarev, mais conhecida por "costureirinha" e com a particularidade de ter um carregador curvo de 35 munições, em vez do habitual tambor de 71". (Foto do Luís Dias, reproduzida com a devida vénia, do seu blogue, Histórias da Guiné, 71-74:  A CCAÇ 3491, Dulombi.

Foto e legenda: © Luís Dias (2009). Direitos reservados




Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > CCAÇ 3491 (1971/74) > Elemento do PAIGC, com PPSH-41 (Costureirinha), em Dulombi, Março de 1973.

Foto e legenda: © Luís Dias (2009). Direitos reservados




Guiné > PAIGC > Novembro de 1970 > Um guerrilheiro empunhando uma PPSH (a irritante costureirinha, uma arma temível sobretudo em emboscadas)...



Fonte: © Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)


Segundo o nosso especialista de armamento, Luís Dias, "a pistola-metralhadora PPSH-41, concebida por Georgii Shpagin, conhecida pelas nossas forças como a Costureirinha, e pelo PAIGC como a Pachanga, foi uma das PM mais fabricadas no mundo (mais 6 milhões de exemplares), e largamente utilizada pelo exército soviético na IIª Guerra Mundial. No pós-guerra foi usada nos países satélites, na China, Vietname e nos movimentos de libertação africanos" (*).

Características da arma

Tipo: Pistola-metralhadora
País de origem: ex-URSS
Calibre: 7,62 mm, Tipo P
Ano inicial de fabrico: 1941
Alcance eficaz: 200 m
Alcance prático: 25 a 50 m
Peso: 5,45 Kg com tambor de 71 munições; 4,30 Kg com carregador de 35 munições
Comprimento: 843 mm
Munição: 7,62x25 mm Tokarev
Velocidade de saída do projectil: 488 m/s
Alimentação: Tambor de 71 munições ou carregador curvo de 35 munições
Segurança: Através de travamento da culatra na posição recuada ou quando fechada.
FUNCIONAMENTO: Arma de disparo selectivo de tiro (auto ou semi-auto), funcionando por inércia da culatra, através da posição aberta
Cadência de tiro: 900 tpm

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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5690: Armamento (2): Pistolas, Pistolas-Metralhadoras, Espingardas, Espingardas Automáticas e Metralhadoras Ligeiras (Luís Dias)

Guiné 63/74 - P5735: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (21): E agora?

1. Mensagem de Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), com data de 23 de Janeiro de 2010:

Caríssimos Editores
Parou a chuva e veio o frio. Tempo de inverno.
Estava a ler o Expresso, vício de sabado, só que estava enfadonho, aborrecido, reportagens e artigos de opinião confusos e chatos. Sempre o mesmo e não saem disto!

Voltei ao Blog e lembrei-me deste escrito de tempos de confusão. Teclei. E agora? Mando ou não? Ontem foi um em crise de momento. E Agora? Vai! Aí vai então a difícil adaptação... em "português suave"...

Abraços do Torcato


E AGORA?

O carro, um 2 Cv cinzento e velho, rolava, em esforço, estrada acima.

Eu, sem carta de condução, tentava vencer aqueles três ou quatro quilómetros até um cruzamento com estrada secundária.

Dois meses antes, nem tanto, ainda estava na Guiné. Agora, cá estava tentando a difícil adaptação à vida civil, à minha verdadeira vida, interrompida por breves anos plenos de fortes vivências. Anos de mudança, de formação de um outro eu. Seria isso possível? Teria havido essa metamorfose? Ainda hoje, tantos anos depois, não sei. Sabia, nesses tempos de regresso a necessidade de encontrar o outro eu. Estava longe, em parte esquecido e maltratado. Seria possível recuperá-lo? Certamente que sim, mesmo retocado iria aparecer.

Difícil. Sentia ser difícil.

Entretinha-me calmamente a passar o tempo; tirava a carta de condução, passeava ou vagueava por uns dias e voltava mais leve, mais próximo de “eu” de outrora. De quando em vez, talvez vezes demais, deixava-me embalar docemente nos vapores do álcool. Suavizava um pouco em ilusão e, quantas vezes não acabavam em confusão.

Pensava, pensava e não encontrava resposta convincente:

- Que vais fazer agora? Recomeçar os estudos, voltar para a vida militar, encontrar ou aceitar algum dos empregos que me iam prometendo?

O melhor era esperar, somente esperar e ordenar ideias. Estava confuso, com falta de poder de concentração, parte de mim ainda não regressara. Confuso!

Um exemplo, como se fossem necessários, foi um torneio de xadrez. Inscreveram-me e ainda fiz duas ou três partidas. Não conseguia e desisti. Olhavam-me com espanto e pensavam estar em presença de outra pessoa. Não, não estavam. Não conseguia concentrar-me.

Quase sem dar por isso aí estava o cruzamento da estrada secundária. Fui por ali fora, por aqueles quilómetros de rectas, por paisagens conhecidas e revisitadas sempre com alegria. Observava tudo, cantarolava e o vento frio batia-me no rosto depois de entrar pelos buracos daquela “caranguejola”. Podiam ter-me emprestado melhor objecto.

Assim dava-me tempo de ir saboreando a paisagem, as mudanças provocadas pelo regadio, os pinheiros mansos e os estúpidos eucaliptos, tudo numa charneca onde o gado já aparecia. Só que o frio entrava e arrefecia. O frasco de bolso com a “1920” ajudava dele tirando dois ou três goles.

Ronceiro o 2 CV lá ia estrada fora, novo cruzamento, umas curvas suaves e aí estava a povoação e o mar logo a seguir.

Parei no parque e deliciei-me a ver aquela imensidão de mar, tanto mar e que saudade tinha tido dele, estava no meu sangue.

Sempre que necessitava de repousar, pensar para decisão, relaxar simplesmente ali me sentia mais seguro e reconfortado ou protegido. Ainda hoje e dele vivo longe.

Ali estava ele estendido até ao infinito do momento e trazia-me a paz a pensar, ajuda na decisão mas não a resposta à angústia do momento:

- Agora que vais fazer?

Não obtinha resposta e o mar, calmo ou tormentoso, só ia e vinha estendendo-se preguiçosamente na areia ou batendo mais forte nalguma rocha negra e xistosa.

Apareceu um casal de namorados a ver a paisagem. Acenaram e fiz o mesmo. Pus o carro a trabalhar e voltei. Deixava a paisagem só para eles.

No regresso pensei em confusão e, porque não, em revolta no comportamento da maioria das pessoas sobre a guerra no Ultramar. Se tinham familiar lá preocupavam-se. Caso contrário alheavam-se, ou, pior ainda, diziam barbaridades. Estão lá para os militares ganharem dinheiro, não acabam com a guerra porque não querem e outros comentários.

Por vezes perguntavam onde eu tinha estado. Guiné; respondia.

Não se atreviam a dizer coitado. O comentário geralmente era: Azar, se ainda fosse Angola ou Moçambique. Geralmente não respondia, a cara, o sorriso amarelo ou o olhar tudo diziam. Vivíamos em ditadura, tínhamos falta de informação mas, esse desinteresse não justificava tudo. Hoje, dizem que vivemos em democracia e não devia ser diferente a atitude.

E Agora?

Esperava, ia outra vez a Lisboa? Voltava sempre ao mesmo. Só que Lisboa tinha tanto para ver, tanto para recuperar do tempo perdido. Enfim.

Esperava, ia tratando de assuntos pendentes e tentava encontrar o caminho a seguir. Adaptar-me com calma e recuperar o tempo roubado, procurando não ser boémio mas ir vivendo…calmamente.

E tu Camarada não foi difícil a tua adaptação à vida civil, à tua verdadeira vida?

Não? Então felicito-te.

Desculpa, percebi mal. Foi difícil, foi aos poucos. Então compreendes o que comigo aconteceu. Juventudes interrompidas ou roubadas.

Pergunto ainda: dormias bem, tentavas esquecer e conseguias ou, ou de quando em vez, sentias estar lá?

O tempo foi esbatendo, apagando cada vez mais. Até certamente pensaste, como eu – a guerra acabou para mim. Quando sentias situação de perigo, te diziam frase menos correcta e não só; - diz lá camarada, diz a ti, sentias como eu e voltavas lá. Pois!

Vai connosco, vai connosco vida fora e, para despertar basta o toque do clarim e estamos lá. Contudo algo ficou, algo só nosso, algo que só nós compreendemos e a nós diz respeito e perdurará até ao fim: a camaradagem, a amizade e solidariedade.

Nem tudo foi mau ou tempo perdido.

TM
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Notas de CV:

(*) Ver postes de:

23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5697: Controvérsias (62): Colonizar versus descolonizar (Torcato Mendonça)

16 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4963: Blogoterapia (126): Pensar em voz alta: Em noite e dia de "cerrar dente" (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 26 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5713: Blogoterapia (139): Vencer os Traumas de Guerra (Joaquim Mexia Alves) / Recordar é viver (António Rosinha)

Guiné 63/74 - P5734: Ser solidário (53): Que muitas Runas se levantem (José Martins)

1. Mensagem de José Martins (ex-Fur Mil, Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2010:

Caros camaradas e amigos
Junto mais um texto sobre os sem abrigo.
Posso estar a bater em ferro frio, mas alguma coisa há-de ficar.
Bom resto de fim de semana.

Abraço
José Martins


Que muitas RUNAS se levantem!

Lar dos Veteranos Militares


Porquê RUNA [coordenadas 39º03’55” N - 9º12’32” O], aquela pequena localidade com 6,71 kms² e pouco mais de mil habitantes, situada a 8 km de Torres Vedras, a cujo concelho pertence?

Vamos encontrar a resposta, ou melhor, encontrar o seu início no ano de 1827, quando Portugal saía (?) dum período bastante conturbado:

- As Invasões Francesas ou Guerra Peninsular, entre 1807 e 1811, com toda a destruição do estado de guerra ou destruição táctica, e
- A mobilização de portugueses, e a consequente saída do país, integrando a Legião Portuguesa.
Em Runa ficava localizada uma quinta, propriedade da infanta D. Maria Francisca Benedita de Bragança, nascida em 25 de Julho de 1746, quarta e última filha do Rei D. José I e de D. Mariana Vitória de Espanha, que foi baptizada na Sé Patriarcal de Lisboa pelo Cardeal D. Tomás de Almeida. A título de curiosidade, e de acordo com a tradição, a princesa recebeu o nome de Maria Francisca Benedita Ana Isabel Antónia Lourença Inácia Gertrudes Rita Joana Rosa.

Em 21 de Fevereiro de 1777, com trinta anos, contraiu casamento com o seu sobrinho D. José, Príncipe da Beira, e presumível herdeiro da coroa, passando D. Maria Benedita a ser nora de sua irmã D. Maria, que ascenderia a rainha em Março seguinte, com o nome de D. Maria I.

Entre os esponsais havia uma diferença de idade de quinze anos. Não tiveram filhos, vindo D. José a morrer, prematuramente, em 1788, após onze anos de casamento, tendo D. Maria Francisca ficado conhecida como a Princesa-viúva. Iniciou um longo período de luto.

Senhora inteligente, com dotes artísticos [existe um painel na Basílica da Estrela, pintado de parceria com a sua irmã D. Maria Ana] e de uma cultura rara, poderia ter gasto o seu próprio dinheiro com a construção de uma igreja ou de um convento, o que lhe traria prestigio entre os nobres e o reconhecimento dos clérigos, mas assim não procedeu.

A 27 de Junho de 1799, sob o projecto do arquitecto José da Costa e Silva, são iniciadas as obras do Lar dos Veteranos Militares, destinado a acolher militares pobres e inválidos, pelo que também é conhecido por Asilo de Inválidos Militares de Runa.

O edifício no estilo neoclássico da época, cuja construção custou mais de seiscentos contos de reis, tem uma frente de 99 metros, orientada no sentido Norte/Sul, com 61 metros de fundo e uma altura de 13 metros. Ao centro do edifício foi construída a igreja de uma nave e transepto rematado em semicírculo, sendo o conjunto dominado por uma cúpula. Foi inaugurado em 25 de Julho de 1827, quando D. Maria Francisca comemorava o seu octogésimo primeiro aniversário, tendo destinado neste conjunto uma ala para sua residência, ficando conhecidos como “Aposentos da Rainha”.

O Edifício do Asilo de Inválidos Militares de Runa.

No acto da inauguração ficaram as palavras da sua fundadora: “Estimo ter podido concluir o Hospital que mandei construir para descansardes dos vosso honrosos trabalhos. Em recompensa só vos peço a paz e o temor a Deus ".

D. Maria Francisca de Bragança morreu em Lisboa no dia 18 de Agosto de 1829, tendo sido sepultada no Panteão dos Braganças, no Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa, junto do seu marido, D. José, em singelas arcas tumulares.

Actualmente o edifício é propriedade do Ministério da Defesa Nacional, e é dirigido pelo Instituto de Acção Social das Forças Armadas.



Abrigos de Combatentes

Após esta resenha histórica sobre o Lar dos Veteranos Militares que, senão único é pelo menos pioneiro, vamos entrar no motivo principal deste escrito: ABRIGOS DE COMBATENTES.

Quando D. Maria Francisca de Bragança se lançou na construção do Lar de Runa, os meios de assistência, quer médica quer social, eram reduzidos. Assim se justifica a concentração de meios, técnicos e humanos, naquela unidade.

Na actualidade, apesar de terem sido encerrados vários centros de saúde em diversas localidades, o país dispõe de meios de assistência que permite criar estruturas de assistência descentralizados.

Agora, que passadas as eleições de Outubro de 2009, com as autarquias eleitas e já em funções, e cujos programas manifestavam a intenção de tentar resolver a situação dos sem-abrigo, podem e devem dar início a essa campanha.

Qualquer Município ou Freguesia deste país terá, certamente, um imóvel que facilmente poderá ser adaptado a Abrigo a tempo parcial, caso não seja possível a tempo inteiro Esse local passaria a ser ponto de encontro entre amigos e conterrâneos, mantendo assim, além dos laços familiares e de amizade, a ligação às suas raízes de origem ou de adopção. Devemo-nos lembrar que há autarcas que são, apesar de muitas vezes o não revelarem, antigos combatentes, o que os torna nossos camaradas de armas.

Temos que ter em conta que os “sem-abrigo” não são só aqueles que, pelas mais diversas razões, estão desprovidos de local de habitação. São também aqueles que, tendo família, a vêem sair de manhã e só regressar ao final do dia, passando essas largas horas, quase intermináveis, olhando a rua através das vidraças, isto quando as janelas dos seus aposentos, normalmente os mais modestos da casa, dão para a rua.

Alguns, muitos ou poucos, vão até ao largo ou ao jardim, onde foram instaladas umas mesas e bancos, que servem de local de encontro para “um jogo de cartas”. Mas, nesses jogos, apenas só jogam quatro, limitando-se os outros a ver, quando não se retiram por se sentirem marginalizados. Quando chove e não podem ir ao encontro do jogo, única distracção possível, aumentam o exército dos “solitários”, aumentam o número daqueles que nem olham o relógio, porque sabem que esse aparelho de medida do tempo, nestas alturas ainda se arrasta mais lento.

Muitas frases ficaram na história sobre os combatentes, assim como a forma como, sempre, foram tratados:

- “Os soldados portugueses combateram para não ficarem mortos na alma.” [Professor Doutor Adriano José Alves Moreira, nasceu em Grijó de Vale Benfeito (Macedo de Cavaleiros) em 6 de Setembro de 1922];

- “O carácter duma nação vê-se pela forma como trata os seus combatentes.” [Wiston Churchil, nasceu em Oxforshire (Inglaterra) em 30 de Novembro de 1874, † Londres 24 de Janeiro de 1965];

- “Se serviste a Pátria e ela te foi ingrata, tu fizeste o que devias ela o que sempre faz.” [Padre António Vieira, nasceu em Lisboa em 6 de Fevereiro de 1608, † Bahia (Brasil) 18 de Julho de 1698].

Estamos cientes de que qualquer antigo combatente não deixará de colaborar e comparticipar dentro das suas disponibilidades, em tempo e materialmente, na concretização destas pequenas “organizações”; a própria comunidade local, individual ou colectivamente, colaborará para minorar os últimos tempos daqueles que, na sua juventude já longínqua, puseram á disposição da Pátria a sua própria vida, num juramento, mesmo que silencioso, à nossa Bandeira, e não veremos repetir-se a denúncia feita por Alexandre Herculano [nasceu em Lisboa 28 de Maio de 1810, † Santarém 13 de Setembro de 1877] na revista Panorama de 15 de Setembro de 1838, acerca do Real Hospital dos Veteranos, que dizia “… dentro em pouco os inválidos que lá existem terão de ir mendigar o pão, que a pátria tem obrigação de lhes dar, havendo eles ganho o direito a recebê-lo com o seu sangue, e com os perigos e fadigas da guerra, que só sabem avaliar aqueles que os têm passado.”



Urge começar …!

As festas natalícias já terminaram e o novo ano já se iniciou. Quer isto dizer que as pessoas voltaram a sua “vida normal”.

As festas organizadas pelas diversas organizações, juntando à volta de uma banda musical ou em espectáculos mais organizados, já se esfumaram, até na memória dos que foram o objecto delas, porque o país voltou à sua “velocidade de cruzeiro”.

Os subtítulos, “Lar dos Veteranos Militares” e “Abrigos de Combatentes”, que antecedem este novo subtítulo, foram terminados no dia 22 de Dezembro. Três dias depois, exactamente a 25 – no próprio dia de Natal – dei inicio à recolha de material para este texto de finalização.

Maquinalmente o carro levou-me para o centro de Odivelas, para o local onde os nossos camaradas José e António, conhecidos como os “sem-abrigo de Odivelas”, tinham passado a noite de consoada, que é como quem diz, mais uma noite expostos às intempéries: à chuva e ao frio.

Mantinham-se na sua posição e local habituais, indiferentes ao vento e à chuva que caía e ao que se passava à sua volta, porque era “apenas” mais um dia, que por acaso era dia de Natal.

Os antigos combatentes sem-abrigo, no “seu território”

Uns metros mais à frente, e num espaço de poucos metros, “encontrei” alguns locais que, apesar de puderem ter uma utilização social, mesmo desconhecendo se são propriedade particular ou propriedade do estado.

Rumei à Rua Guilherme Gomes Fernandes, acedendo pela Rua do Souto, junto do ex-líbris da cidade – o Cruzeiro - fica um casarão com o número 70.

Edifício da Rua Guilherme Gomes Fernandes, n.º 70

Este edifício encontra-se bastante degradado. Os vidros das janelas estão partidos e os caixilhos já estão deteriorados. Mas existem sinais de que não esteja completamente abandonada; o portão principal, e provavelmente único, está fechado com uma corrente e cadeado, dispondo, ainda, de uma placa indicando ser proibido estacionar em frente da mesma.

Uns metros adiante, frente ao Largo Dom Dinis, onde se encontra o Mosteiro de São Dinis e São Bernardo e funciona o Instituto de Odivelas tutelado pelo Ministério da Defesa Nacional, curiosamente o mesmo ministério que tutela os Ex-Combatentes, no número 104 letra B, fica um edifício que, pela tabuleta que ostenta, se encontra para alugar “ou” venda (?)”, uma vez que a placa se encontra partida.

Edifício da Rua Guilherme Gomes Fernandes, n.º 104-B

Continuando e entrando na Rua Combatentes da Grande Guerra, que termina na Rua Combatentes de Ultramar (nova e curiosa coincidência), junto da antiga Quinta de Nossa Senhora do Monte do Carmo, em cuja casa capela e anexos se encontra a Biblioteca Municipal Dom Dinis, encontram-se uma construções, que lembra os blocos operários do inicio da “era industrial” , sendo que algumas habitações apresentam sinais de “tentativa” de conservação, mas outras estão degradadas.

Rua Combatentes da Grande Guerra, n.º 6 e seguintes

Na entrada para o pátio que dá acesso as traseiras, encontra-se uma placa metálica que diz “DO MONTE DO CARMO”. Falamos do número seis e seguintes.
Do outro lado da rua, com o número 5, encontra-se outro imóvel de estilo diferente do anterior.
Apresenta resquícios de “art nouveau” ou um estilo mais modernista, em função da arquitectura do espaço em que se encontra implantado.
Como os anteriormente mencionados, o seu estado de degradação é notório, motivado, provavelmente, pela desocupação a que foi votado.

Rua Combatentes da Grande Guerra, n.º 5

Independentemente de se tratar de imóveis de propriedade particular ou do Estado, e independentemente de existir ou não qualquer utilização para outros fins, previstos ou não no PDM (Plano Director Municipal), somos da opinião de que estes imóveis deveriam manter a sua traça original, adaptados, como é obvio, aos fins a que vierem a ser destinados.

Mantemos a ideia de que Odivelas deveria ter um “Abrigo de Combatentes” com as funções que as organizações participantes (oficiais e/ou particulares) entenderam por bem pôr em prática, para o bem estar daqueles que, na sua juventude colocaram ao serviço da pátria, e hoje, com um futuro cada vez mais minguado, ainda enfrentam a incerteza do dia de “amanhã”.

Com esse espírito de solidariedade para com os desvalidos, governantes, autarcas, combatentes, gente anónima, ou seja, todos e cada um de nós, deveremos atentar na frase do Padre António Vieira, com quer finalizo este texto:

Nós somos o que fazemos.
O que não se faz, não existe.
Portanto, só existimos nos dias em que fazemos!


José Marcelino Martins
Ex-combatente da Guiné
josesmmartins@sapo.pt
Odivelas, 20 de Janeiro de 2010
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5595: Fichas de Unidades (6): COP 4 - Comando Operacional nº 4 (José Martins)
e
22 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4992: Ser solidário (37): Carta Aberta em prol dos ex-combatentes sem abrigo do Concelho de Odivelas (José Martins)

Vd. último poste da série de 28 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5720: Ser solidário (52): Campanha da Tabanca de Matosinhos: Ajudemos a minorar as carências do povo da Guiné-Bissau (José Teixeira)

sábado, 30 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5733: História de vida (26): António Marques, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), um sobrevivente nato (Mário Miguéis / Luís Graça)

1. Comentário, ao poste P5698 (*), com data de 24 do corrente, e da autoria de Mário Miguéis da Silva (**):

Caro Marques,

Acabei de chegar a casa e, como já tem acontecido antes, não quis deitar-me sem ler as últimas do nosso querido blogue. Em boa hora o fiz, porque tive a agradabilíssima surpresa e o enorme prazer de te rever ao fim de 39 anos. É verdade, meu caro, da última vez que te vi, estavas deitado, de barriga para cima, no fundo de uma GMC. (***).

Tinhas chegado a Bambadinca, vindo dos lados dos Nhabijões. Essa tua última imagem que me ficou gravada na retina e na memória era a de uma estátua de cera - tal era a tua palidez -, inerte e gelada, como estátua que era. Como se um artista plástico de vanguarda, num golpe de génio, tivesse rematado aquela obra (para mim) macabra, dois grossos fios de sangue saíam-te dos ouvidos e percorriam-te o pescoço até se esbaterem no pó do camuflado.

Quando te olhei pela última vez, o sangue deixara de correr, ou porque todo o teu sangue tinha solidificadoou porque, simplesmente, já não havia sangue para correr. Para mim, estavas morto e bem morto ou, então, andavas lá perto, muito perto. Seria uma questão de horas, talvez minutos apenas.

E, afinal, e FELIZMENTE!, não te deixaste passar para o outro lado.

Confesso-te que estive convencido de que tinhas "batido as botas" até ao ano passado, altura em que, ao ler neste blogue uma crónica ou coisa do género do Luís Graça (o nosso Henriques, em Bambadinca), pude, para meu espanto, concluir que, embora gravemente ferido, tinhas sobrevivido e continuavas "vivinho da silva", residindo para os lados de Lisboa. Para além de surpreso, fiquei, naturalmente, muito satisfeito, com a tua decisão de te manteres entre nós, embora te tivessem dado uma carga mais que suficiente para te passar para a outra margem.

Vou terminar este meu comentário por onde deveria ter começado, isto é, por dizer-te quem sou, embora isso seja o mesmo que dizer-te nada, na medida em que eu, na altura, em Bambadinca, não passava de um pobre "pira" com um mesito de Guiné. Tratavam-me por "Silva", esse meu apelido tão raro, era, como tu, furriel miliciano, pertencia ao Serviço de Informações e estava a estagiar na sede do BART 2917, onde a tua CCAÇ 12 estava "hospedada".

Um grande abraço,

Mário Migueis

PS - Embora o Luís Graça já tenha oportunamente relatado o episódio das duas minas anti-carro em causa (a foto do burrinho, cujo condutor morreu, foi, inclusivamente, publicada numa das últimas obras do nosso camarada Beja Santos), espero poder, logo que tal se proporcione, aflorar de novo o assunto, até porque, na sequência dos acontecimentos, fui parar aos Nhabijões, onde passei umas mini-férias. De ti, espero que, no mínimo, nos contes tudo o que o soubeste ter-se passado contigo após a tua evacuação para o hospital militar.



Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas >

Três camaradas da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Junho 69/ Março 71)... Da esquerda para a direita, o ex-Fur Mil At Inf Joaquim Fernandes, ex-1º Cabo Aux Enf Fernando Sousa e o ex-Fur Mil At Inf António Marques... O Fernandes e o Marques foram vitimas de explosão de minas A/C, à saída do reordenamento de Nhabijões, a 13 de Janeiro de 1971, com vinte meses de comissão... O Marques, que esteve às portas da morte (se não fora a evacuação Y para o Hospital de Bissau), esteve dois anos em tratamento e reabilitação no Hospital Militar Principal, para onde foi transferido em 12 de Fevereiro de 1971... É um sobrevivente nato! (LG)

Foto: © Luís Graça (2009). Direitos reservados

2. Comentário de L.G.:

Meu caro Miguéis: Não leves a mal, mas o Marques (Fernando Marques, para a família) não se lembra de ti… Aliás, não se lembra de nada... O que não admira, dadas as circunstâncias em que ele se separou de nós, em 13 de Janeiro de 1971… Entre a vida e a morte, seguiu para o HM 241, em Bissau, onde esteve em estado de coma até ao final do mês… Mais exactamente, 17 dias… Estive ontem ao telefone a recapitular, com ele, estas coisas dolorosas. Ele chegou ao hospital politraumatizado, com lesões muito graves, incluindo o fémur partido… Começou a retomar a consciência no final do mês de Janeiro… Por coincidência, quem cuidava dele era um 1º cabo enfermeiro que tinha estado na tropa com o seu (dele, Marques) irmão mais velho. Foi este homem que fez a ponte com a família, que não sabia de nada. E andava naturalmente inquieta. O Marques escrevia praticamente todos os dias à dua namorada, e hoje esposa, Geni. Ela trabalhava num escritório de uma fábrica de cerâmica, existente na época perto do Hospital Egas Moniz. Alarmada com a falta de notícias, removeu montanhas – juntamente com o irmão mais velho do namorado – para saber dele… O Exército era pródigo em palavras: só costumava dar as notícias fatais. E fazia-o de forma lacónica e brutal.

Em, 12 de Fevereiro, o nosso Marques vem num avião da TAP, expressamente acompanhado com um tenente miliciano médico, de que ele infelizmenmte não se lembra o nome. Esta diligência era habitual, quando o doente estava em perigo de vida…

Recorda-se de ter chegado a Lisboa e ter á sua espera a Geni e a família, o irmão mais velho… Depois foi o longo calvário do tratamento e da reabilitação no Hospital Militar da Estrela e do Anexo de Campolide… Só seis meses depois da mina, é que ele tentou levantar-se da cama… A Geni, uma grande mulher, teve um papel excepcional na sua reabilitação. Poucos acreditaram que ele se safava… Resolvido o problema do foro neurológico, era preciso consertar o fémur… A perna esteva para ser amputada… Os pessoal do Hospital Militar fez milagres…

Ainda em 1971 ou princípios de 1972, o Marques casou-se com a Geni, de quem tem dois filhos, um casal, de 34 anos e 26 anos, respectivamente. E já é avô de 4 netos. Creio que foi também nesta altura que ele tirou a carta de condução, fazendo o exame que não chegou a fazer em Bissau (estava marcado para meados de Janeiro de 1971, mas a mina de Nhabijões estragou-lhe os planos …).

Entretanto, o HMP vai continuar a ser a sua casa durante mais um ano. Aqui fez amizade com um conhecidíssimo DFA, o Patuleia, o Fur Mil Patuleia que em Angola fora vítima da explosão de uma mina. Ficou cego. Ficaram amigos para o resto da vida. O Patuleia é natural do Bombarral, meu vizinho, portanto. Encontrei-o muitas vezes na Repartição de Finanças da Reboleira onde trabalhava. Já está hoje reformado. Já o vi em dois ou três convívios nossos (****) . Esteve, nomeadamente no IV Encontro Nacional da nossa Tabanca Grande, em Monte Real, em Junho de 2009.

O nosso António Fernando Rodrigues Marques, depois deste calvário todo, tornou.se empresário. Largiu o seu emprego de escriturário numa obscura secção dos serviços sociais das Forças Armadas. Com o irmão ou irmãos e com a Geni, foi abrindo lojas de pronto a vestir, a última das quais onde vive. O trabalho ajudou-o a superar as sequelas da guerra...

Ficámos, um dia destes, de almoçar juntos, para continuarmos esta conversa... É uma fantástica história de vida, a do Marques (******). Tenho uma grande admiração e carinho por ele. É um sobrevivente nato. De alguma maneira, ainda não ultrapassei, ao fim destes anos todos, o meu estranho sentimento de culpa por ter sido eu a seguir no 'lugar do morto', uma decisão de lotaria), nesse fatídico dia 13 de Janeiro de 1971, e ter sido justamente o Marques a grande vítima da mina A/C...
__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5698: Tabanca Grande (199): António Fernando R. Marques, ex-Fur Mil da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71)

(...) António Fernando Rodrigues Marques, ex-Furriel Miliciano da CCaç 12 (CCAÇ 2590), Contuboel / Bambadinca 1969 / 1971, [vítima de] rebentamento da mina em Nhabijões em 13 de Janeiro de 1971, onde íamos os dois e onde fiquei gravemente ferido e em perigo de vida. (...)

(**) Membro da nossa Tabanca Grande desde Abril de 2009 > Vd. poste de 16 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4194: Tabanca Grande (134): Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf (Guiné 1970/72)

(...) Posto: Furriel Miliciano
Especialidade: Reconhecimento e Informação
Unidade: C.C.S. - Q.G. (Bissau)
Colocação: Com-Chefe / Rep-Info (Amura-Bissau)
Função: Serviço de Informações Militares (SIM)

Unidades em que estive em diligência:
Bart 2917 / Bambadinca (Novembro 70 a Janeiro 71, incl.);
CCaç 2701 e CCaç 3890 / Saltinho (Março 71 a Outubro 72, incl.)

Outros sítios importantes onde, ao longo da comissão, estive amiúde, em curtas estadias de serviço ou, simplesmente, em trânsito para outros pontos do território: Galomaro, Bafatá, Nova Lamego, Xitole, Xime, Mansambo, Aldeia Formosa (...)

(***) Vd. poste de 28 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5717: Blogpoesia (64): À uma e meia da tarde... Em homenagem ao António Marques, que sobreviveu, dois anos depois, à explosão de um vulcão (Luís Graça)

(****) Vd. poste de 2 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4454: Convívios (140): Castro Daire, agora chão de Bambadinca, 1968/71 (3): Gente feliz, com lágrimas...

(*****) 12 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5099: História de vida (16): Patrício Ribeiro, 62 anos, ex-fuzileiro, empresário, apanhado do clima...

Guiné 63/74 - P5732: Os nossos médicos (15): Professor Doutor Pereira Coelho (ex-Alf Mil Méd do BCAÇ 3872 e Director do Hospital Civil Bafatá, 71/74


1. O nosso Camarada Luís Dias*, ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, Dulombi e Galomaro, 1971/74, enviou-nos a seguinte mensagem:

Camaradas,Conforme havia sido combinado com o Luís Graça, junto extractos de uma entrevista com o Professor-Doutor Pereira Coelho, que foi médico do Batalhão de Caçadores 3872 (Guiné 1971-74) e, mais tarde, Director do Hospital Civil de Bafatá.Material este publicado inicialmente no blogue da CCAÇ 3491 (wwwccac3491guine7174.blogspot.com).

A nossa publicação está já devidamente autorizada pelo nosso camarada Ex-Alf Milº Médico.

Amigos e Camaradas,

Há uns dias atrás, mais propriamente no dia do jogo de futebol entre Portugal e a Hungria, fui surpreendido com um telefonema do meu caríssimo amigo - o Professor-Doutor Pereira Coelho - que me disse que o seu contributo para o blogue estava num artigo que saíra naquele dia na revista do Jornal "i".

É claro que parti logo para a compra do jornal e depois de ler o artigo telefonei-lhe de volta e falámos um pouco sobre o artigo e que, a meu ver, era extremamente importante, permitindo-me que transcrevesse para o nosso blogue alguns dos seus pontos de vista sobre aquela guerra, expostos no citado artigo. Parece-me dispensar apresentações o nosso querido médico de Batalhão, o então Alferes Miliciano Médico, Pereira Coelho.

Permitam-me, no entanto, salientar que, para além das inegáveis qualidades profissionais, tantas vezes demonstradas no apoio aos nossos combatentes, na forma como se dedicava aos problemas que surgiam de âmbito médico nas companhias do batalhão e também nas tabancas que de nós dependiam e estavam inseridas na nossa quadrícula, mas também destacar o seu elevado humanismo e sentido de camaradagem, a forma como se disponibilizava para ajudar, muitas vezes ultrapassando o seu dever, correndo risco de vida. Estas qualidades levaram a que fosse estimado por todos os oficiais, sargentos e praças e tendo conquistado, rapidamente, a amizade e admiração das populações locais.

Como também todos sabem, o Professor - Doutor Pereira Coelho foi a alma pioneira de um projecto iniciado no nosso país - a Fertilização in-vítro. Em resultado do seu trabalho e em conjunto com a sua equipa do Hospital de Santa Maria, nasce, em 25 de Fevereiro de 1986, em Lisboa, a primeira criança, graças à técnica FIV. O rapaz, de nome Carlos Saleiro (é hoje avançado no Sporting) veio dar esperança a muitos casais com problemas de infertilidade.

Este acontecimento encheu-nos, claramente, de orgulho.O Alferes Médico Pereira Coelho adoeceu em Galomaro e foi evacuado por coluna até Bafatá e depois seguiu de avioneta para Bissau, isto porque as evacuações por hélio estavam proibidas, sendo apenas usadas para casos extremos. Este facto, que se espalhou rapidamente pelas tropas, veio provocar alguma instabilidade nas nossas forças, porque muitos perguntavam: "Se eles não vêm a Galomaro, sede do batalhão, buscar o médico, com receio de serem atingidos pelos strella, como é que vão ao mato buscar alguém, se ficar ferido?"

O nosso médico, como ele conta na entrevista, foi desvinculado mais tarde do Batalhão e passou a ser o Director do Hospital Civil de Bafatá, onde continuou a exercer com a competência e a responsabilidade que lhe são conhecidas. Foi substituído no Batalhão pelo Alferes Miliciano Médico, Rui Coelho, também ele um óptimo profissional e um excelente camarada (estabelecido na cidade do Porto).

Extractos da entrevista do Alferes Médico Pereira Coelho, salientados pelo editor, com a devida vénia ao entrevistado e ao jornal "i".O António Manuel (Pereira Coelho) que regressa no dia 25 de Outubro de 1973 (a) é uma pessoa muito mais forte e personalizada do que aquela que sai daqui em 22 de Dezembro de 1971 (b). Melhor. Mais preparado para enfrentar a vida. Munido de resistências fantásticas reunidas en terrenos pantanosos, por entre capins colossais, mercúrio severo e iminência de assaltos e emboscadas com desfecho imprevisto".

"Posso garantir que se a nossa atitude fosse de coragem e de espírito de luta pela sobrevivência, por muito maus bocados que tivéssemos passado, acabávamos por sair de lá mais determinados do que tínhamos ido"."Fazendo uma retrospectiva da minha vida, quase me atrevia a dizer que o mais marcante foi a minha experiência na guerra, particularmente naquele período e naquele local" (c).


"Estávamos completamente sozinhos. Tínhamos de decidir as coisas mais inesperadas, particularmente quando foram proibidas as evacuações, a não ser em casos extremos".

Depois de em certo dia lhe caírem em mãos duas raparigas em estado comatoso com quadro de meningite. "Caí na asneira de fazer respiração boca a boca a uma delas. Passados uns dias apareci com febre enorme, rigidez na nuca, falta de ar. Achei que tinha contraído a doença e pedi evacuação". Em termos de assistência civil às populações vê-se ainda a braços com uma epidemia de febre tifóide e sarampo, com exótica manifestação nos negros... Febre, manchas brancas, tosse e conjuntivite, em centenas de miúdos.

Um flagelo desenrascado com sucesso à colherada de uma solução lenta improvisada.Num ataque medonho à tabanca (d) incendeiam os telhados de colmo e o número de mortos explode à frente dos olhos. Nesse dia debate-se com 32 feridos graves queimados e uma das situações mais críticas, na sequência da morte de um dos enfermeiros (e) que estagiara com o grupo. "O pessoal que trabalhava comigo recusou-se a acudir alguns terroristas que tinham sobrevivido.

Tive de ser eu sozinho a tratar dos homens do PAIGC."Na chegada do correio a má nova faz estalar a polvorosa. Um dos elementos do batalhão apura por carta a traição da mulher. A loucura não faz a coisa por menos. Passeia-se (f) no aquartelamento com uma granada descavilhada pronta a desfeitear a harmonia.

"Andei uma noite inteira atrás dele a convencê-lo a dar um destino à granada. Não podia sair do pé dele. Se a deixasse cair por cansaço ou por livre vontade, nós os dois íamos logo. Já pela madrugada concordou atirá-la no campo de futebol. Jamais me vou esquecer dessa noite, entre as sete da tarde e as cinco da manhã".

Quando certo dia se inteiram da iminência de um ataque a Bafatá, é destacada uma companhia de pára-quedistas para bater aquela zona e tentar localizar e interceptar o grupo. Os páras cumprem a operação.

Quando regressam, o sargento que os comandara pede por tudo para ser recebido pelo médico. Nenhum mal lhe acometera a carne. Tem necessidade de desabafar depois de ter localizado o grupo de combate. "O grande dilema era o que fazer. Atacar e matá-los a todos ou podre vir a ser responsável pelas consequências de um ataque quando actuassem. Ignorou-os. Mas não conseguiu aguentar sozinho aquela responsabilidade." (g)

Pela conduta em missão, é-lhe concedido um louvor pelo comandante militar, Brigadeiro Bettencourt Rodrigues. Nunca prescinde da sua arma sempre que se desloca em coluna. "Entendiam que o médico não devia usar arma. Sim, mas era médico militar. Um mero alferes no meio dos outros soldados".

Regressa à Guiné em 1992. A saudade é apenas saciada em Bafatá. O seu aquartelamento em Galomaro dista por estrada 35 tortuosos quilómetros avessos a viaturas comuns. A realidade que os sentidos alcançam decepciona. "As condições eram fantásticas comparadas com o que fui encontrar vinte anos mais tarde".

O hospital militar em Bissau, um modelo na altura, assente num lençol de água, afundara-se até ao ponto de inutilização completa. No Hospital Civil Simão Mendes, albergue próprio de "quinto mundo", as condições indignas facultam pouca assistência aos locais. Cheiro nauseabundo, fezes, urina. Gente prostrada. Enfermarias irrespiráveis...".

Impressionado mas também comovido depois da passagem por Bafatá. Uma consulta de manhã. E qual não é o espanto quando os enfermeiros que com ele trabalharam o reconhecem. "Foi indescritível porque todos se agarraram a mim a pedir por tudo para os trazer para Portugal, porque a vida não se comparava com o outro tempo. Foi um drama ter de os afastar".

O calor da recepção aumenta depois do almoço. Defronte do hospital uma multidão de 4ooo pessoas espera-o com a recordação fresca na fala. "Ainda sabiam o meu nome. Revela até que ponto o pouco que lhes podíamos dar os marcou."

Caro Amigo,

Confesso, como aliás já te disse, que gostei da tua entrevista e do contributo aqui para o blogue, e também te digo que me levantaste as saudades, não da guerra, mas da sã camaradagem que vivemos naquelas terras, dos amigos que lá deixámos e do apuramento de virtudes e de carácter que transformou meninos em homens. (h)

Sabes que eras bastante apreciado pelo pessoal do batalhão e fizeste por merecer esse reconhecimento. Bem hajas.

Um grande abraço para ti e que o nosso Benfica continue em grande (este ano é que é!!!).

O Professor – Doutor Pereira Coelho actualmente.

O Professor – Doutor Pereira Coelho actualmente.

O Alf. Milº Médico, Dr. Pereira Coelho, na Guiné

NOTAS DO EDITOR:

(a) O nosso Batalhão chega a Lisboa a 4 de Abril de 1974.

(b) O Dr. P. Coelho vai para a Guiné no navio Niassa, juntamente com o BART 3873, em 22 de Dezembro de 1971, enquanto o nosso batalhão - BCAÇ3872, partira uns dias antes, em 18 de Dezembro. Contudo, o Alf. Médico vai para Galomaro directamente, chegando à nossa zona de intervenção um mês antes de nós, porque ficámos em IAO no Cumeré.

(c) A zona de actuação do BCAÇ 3872 situava-se no leste da Guiné, com a sede do Batalhão em Galomaro e as companhias sediadas em Cancolim (3489), Dulombi (3491) e Saltinho (3490).

(d) A tabanca era a de Campata, que foi violentamente atacada, mas onde o IN também sofreu bastantes baixas, face à reacção do pelotão de milícias ali instalado.

(e) Tratava-se de um auxiliar de enfermagem de origem local e que dormia na tabanca atacada.

(f) Quartel da sede do batalhão em Galomaro.

(g) De facto uma força de pára-quedistas localizou na área de intervenção da companhia de Cancolim uma força inimiga estimada em cerca de 100 elementos e solicitou ataque aéreo, recuando da zona. O grupo IN terá primeiramente debandado, mas reagrupou-se e terá sido responsável pelo ataque com foguetões a Bafatá. O Sargento que comandava a força terá sido alvo de processo disciplinar por ter evitado o contacto com as forças do PAIGC. O caso foi bastante comentado entre as nossas forças, pois não era habitual que tropas especiais "retirassem" numa situação daquelas!

(h) Era normal, no discurso de regresso à metrópole proferido pelo General António Spínola, ele referir-se ao facto das tropas chegarem ao território ainda meninos e partirem feitos homens. "Chegastes meninos! Partis homens!".

Um grande abraço a todos,
Luís Dias
Alf Mil At Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

Guin é 63/74 - P5731: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (11): Inauguração da mesquita, almadjadja, com a presença do filho do Cherno Rachide e da Júlia Neto (Pepito)





1. Fotos e mensaqem de 28 do corrente, do nosso amigo Pepito (*)

INAUGURAÇÃO DA “MESQUITA” DE GUILEDJE

Também no dia 20 de Janeiro de 2010 foi reconstruída a antiga Almadjadja existente no Quartel de Guiledje (A Almadjadja está para a Mesquita como a Capela está para a Igreja) (*).

Os Homens Grandes e lideres espirituais de Guiledje e de Quebo (Aldeia Formosa) fizeram questão de ter um encontro especial com a Srª Júlia Neto, para lhe manifestarem a sua alegria em a receber no chão que foi do marido e de todos os militares que passaram por estes dois quartéis.

Pepito
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Nota de L.G.:

(`*) Vd, poste anterior, 29 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5726: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (10): A inauguração da capela, em 20 de Janeiro, na presença do embaixador de Portugal (Pepito)