Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça, com o objetivo de ajudar os antigos combatentes a reconstituir o puzzle da memória da guerra da Guiné (1961/74). Iniciado em 23 Abr 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência desta guerra. Como camaradas que fomos, tratamo-nos por tu, e gostamos de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 14 de fevereiro de 2010
Guiné 63/74 - P5816: Memórias de outros tempos (4): As minhas passagens pelo Quartel General de Bissau (Jorge Teixeira/Portojo)
Memórias
Em tempos, o Branquinho escreveu sobre o acolhimento que era dado, na Messe de Oficiais do Q.G., aos Alferes do Mato que por qualquer motivo iam a Bissau, pelos Alferes que estavam de serviço ao ar condicionado. Na altura era para deixar um comentário, mas achei que dava para poste e por duas razões.
Se for o caso, aqui vai.
Por duas vezes, fui acolhido em estadia mais prolongada, no Q.G. Logicamente que a minha messe era a dos Sargentos. Sinceramente, não notei o mesmo tipo de acolhimento que aconteceu ao Branquinho lá na dos oficiais. Claro que havia piadas, mas mais do género de passar um tempo em conversa e nunca de exclusão ou superioridade. Conheci malta do ar condiccionado, entre eles rapazes do hóquei, por exemplo o Salema e o Ramalhete mais novo (o mais velho foi meu colega de curso em Vendas Novas) que me acompanharam muitas vezes por Bissau by night.
Consegui regressar à Metrópole com 3 (três) Guias de Marcha.
Fim do comissão, aguardava em Bissau o representante do pelotão que nos vinha render - diga-se de passagem, um óptimo rapaz, pois acreditou em tudo que lhe entreguei para assinar e de cruz o fez, e não o aldrabei - e também fazer aqueles espólios todos.
Estive adido para efeitos de apresentação e serviços (que nunca fiz nenhum) aos Adidos. Para efeitos de alimentação e dormida estive no Q.G. Pois bem, duas das Guias de Marcha foram-me conseguidas por furriéis milicianos, por rendição individual. Uma dos Adidos e a outra do Q.G. É certo que apresentei as folhinhas, num lado e noutro, com as 12 ou 14 assinaturas que eram precisas para nos libertar. Não me perguntem mais pormenores, porque não lembro. A terceira Guia de Marcha, foi-me conseguida pelo Alferes Luís Xarez, meu Comandante de pelotão, incluída na geral do pelotão.
Acrescento ainda que a do Q.G. foi-me entregue em mão na caserna, estava eu a vestir-me para jantar, poucas horas antes de entrar no Niassa, por um Furriel Mil.creio que era da 4ª REP, a do pessoal.
Em tempos escrevi que um dos temas para lembrarmos aqui, poderia ser a música ou as canções que nos marcaram durante a comissão.
Então, o meu aderir ao Fado começou verdadeiramente numas conversas e explicações com a viola de um Furriel na messe de Sargentos. Que estava em comissão no ar condicionado de Bissau. E quem me levou ao Barco foi um outro furriel, outro fadista, o Freire, que pediu um jipe emprestado para me carregar as malas.
Este escrito não é para comparar classes militares. E muito menos entre milicianos. Mas talvez a dos furriéis fossem mais terra a terra, mais unidos.
Um abraço para a Tabanca
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Nota de CV:
8 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5790: Memórias de outros tempos (3): Porque rapei o meu bigode (Jorge Teixeira/Portojo)
Guiné 63/74 - P5815: O 6.º aniversário do nosso Blogue (2): Homenagem ao Fundador Luís Graça e a toda a tertúlia (Joaquim Mexia Alves)
Guiné 63/74 – P5814: Estórias de Guileje (7): O percurso da CCAV 8350 (Manuel Reis, ex-Alf Mil At Inf da CCAV 8350)
1. O nosso Camarada Manuel Reis (*), ex-Alf Mil At Inf da CCAV 8350, (Guileje, 1972/74), enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 9 de Fevereiro de 2010:
Guiné 63/74 - P5813: Parabéns a você (79): Clara Schwarz da Silva, 95 anos, uma grande senhora, viúva de Artur Augusto da Silva, mãe do nosso amigo Pepito, leitora do nosso blogue, novo membro da Tabanca Grande (Luís Graça)
Lisboa > c. 1947 > Subindo o Chiado, Artur Augusto da Silva e Clara Schwarz... (Em 1949, o casal partiria para a Guiné, onde o Artur foi, até 1966, advogado, notário e até substituto do Delegado do Procurador da República; licenciado em direito, esteve de 1939 a 1941 em Angola, como secretário do Governador Geral; de regresso a Portugal exerceu advocacia em Lisboa, Alcobaça e Porto de Mós)... Esta é uma das fotos do álbum de família, já aqui reproduzida, no nosso blogue, um gesto que tanto a sensibilizou a Clara...
1. Texto do editor L.G.:
Acabei de falar, há umas horas atrás, com o meu e nosso amigo Pepito que veio, de propósito de Bissau para estar na festa dos 95 anos da sua querida mãe. Já sabia, com antecedência, da surpresa que ele queria fazer a essa Grande Senhora, que eu, a Alice, o João e a Joana tratamos simplesmente como Clara. É um privilégio ser seu amigo e frequentar a sua casa. É uma honra também ser amigo do seu filho, Carlos Schwarz, mais conhecido pr Pepito. (O Carlos tem mais dois irmãos, Henrique e João Schwarz).
A Clara Schwarz (Silva por casamento com o advogado e escritor Artur Augusto da Silva, 1912-1983) faz hoje 95 anos. Mas não uns 95 anos quaisquer. É uma vida plenamente vivida. É uma mulher independente e cosmopolita. São 95 anos de uma pessoa ainda muito autónomma, que usa com desenvoltura o telefone, o Skype, o mail, a Internet, o blogue… Até há pouco ainda conduzia. Tem uma memória prodigiosa, é culta, é poliglota, e tem um enorme orgulho de seu pai, engenheiro de minas, de origem polaca, judeu, conceituado estudioso do judaísmo em Portugal, arqueólogo, historiador, autor da descoberta e da revelação pública, em 1925, da comunidade cripto-judaica de Belmonte, e que era fluente nove línguas (de seu nome, Samuel Schwarz, 180-1953).
Qual a relação que ela tem connosco, para além da circunstância de ser mãe de um homem a quem a Guiné e os guineenses devem muito ? Se outras não fossem válidas, bastaria invocar aqui o seu papel como co-fundadora do Liceu Honório Barreto, hoje Liceu Nacional Kwame N' Krumah. Mais: foi professora de português (se não me engano), e por ela passaram os melhores filhos da Guiné, a começar pelos principais dirigentes do PAIGC... (É capaz de os citar de cor, e avaliar um a um!)...
Pois a Clara faz hoje anos, no Dia dos Namorados. Fala com muita ternura do seu marido, Artur, como um homem que "conhecia e amava a África" como poucos... O ano passado ofereceu-me um brochura dele, Pequena Viagem Através de África que um dia destes vou aqui reproduzir, com a devida licença da família: é uma conferência que ele pronunciou na Associação Comercial da Guiné, em 1963, no 46º aniversário da sua fundação. É uma admirável lição de sapiência e de sabedoria, que merece ser conhecida por um público mais vasto, incluindo os nossos amigos e camaradas da Guiné...
Três anos depois, em 1966, a PIDE prendia-o no aeroporto de Lisboa. O seu único crime era o de ser defensor de presos políticos... Libertado graças à intervenção pessoal de Marcelo Caetano, seu professor de direito, após cinco meses de Caxias, sem culpa formada, era impedido de voltar à sua querida Guiné, agora a ferro e fogo... Clara recorda o cinismo do governador, Schultz, que era visita da casa dos Silva, e que inclusive acompanhou o Artur, até ao aeroporto, nessa triste viagem sem regresso... Só depois da independência é que Artur voltaria, a convite de Luís Cabral, para desempenhar o lugar de juiz do Supremo Tribunal de Justiça... E lá morreria, em Bissau, em 1983.
É ambém com a mesma frontalidade e coragem que a Clara vem protestar, em 2005, junto do Presidente da Câmara de Belminte pela imperdoável omissão do nome do so seu pai, Samuel, no recém-inaugurado Museu Judaico de Belmonte. Embora tarde, a injustiça foi reparada em 2007.
(...) "S. Schwarz está na origem da descoberta dos cristãos novos de Belmonte. Graças à sua enorme sabedoria ele revelou os ritos e costumes destes cristãos novos, em numerosos livros dos quais o principal, publicado em 1925, 'Os cristãos novos em Portugal no Século XX' , livros esses que são uma referência incontestável tanto para historiadores portugueses como estrangeiros.
"Depois de ter adquirido a Sinagoga de Tomar, ele restaurou-a e doou-a ao Estado Português que também adquiriu a sua enorme biblioteca luso-hebraica.
"Este esquecimento é uma injustiça sem limites ao homem que foi S. Schwarz, de certa maneira uma segunda morte e também uma negação à verdade histórica.
"O Museu Judaico de Belmonte não pode existir perante esta dupla ofensa e deve oferecer à obra de S. Schwarz o lugar eminente que lhe é devido" (...) (Excertos da carta que Clara mandou ao autarca de Belmonte).
Neste dia tão especial para a família e os amigos da Clara Schwarz só queremos fazer-lhe esta homenagem singela, feita a partir da Quinta de Candoz, freguesua de Parede de Viadores, Marco de Canaveses, perto do Rio Douro, a serra de Montemuro ao fundo, um frio de rachar e uma Internet exasperadamente lenta como na Guiné... Obrigado, Clara, pelo tempo que nos dedica, obrigado pela atenção com que nos ouve, obrigado pela sua lição de vida, obrigado pelo seu amor imenso pela Guiné e pelos guineenses. E deixe-me terminar com as palavras que o Artur tanto gostava de citar, e que ele atribuía a esse sábio africano, seu amigo, o Cherno Bokar:
"Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros: ama-se a si póprio. E aquele que ama os que não pensem como ele, ama a Deus, que é pai de todos"... A Clara (e a sua família) é um exemplo dessa enorme capacidade de ouvir, reconhecer, respeitar e admirar os outros, mesmo quando os outros não são exactamente como nós, não pensam como nós... Desejo-lhe, eu e tida a Tabanca Grande, um dia magnífico, ainda para mais em Dia dos Namorados... E que o Amor nunca lhe falte, o Amor dos bisnetos, netos, filhos, demais família e amigos.
PS - A nossa singela prenda de aniversário, é pô-la aqui, debaixo do poilão da nossa Tabanca Grande, a falar com todos os amigos e camaradas da Guiné, a partilhar connosco as histórias de uma vida... A Clara´, que atravessou o Séc. XX e continua a sorrir-nos e a surpreender-nos no Séc. XXI, passa ser a Mulher Grande da nossa Tabanca Grande, o novo membro, o 397º, da nossa tertúlia, (O seu nome figura, desde hoje, na nossa lista alfabética, na letra C)... E daqui a cinco anos, em 2015, vamos apagar-lhe a vela do centenário!... Combinado ?
sábado, 13 de fevereiro de 2010
Guiné 63/74 – P5812: Histórias do Eduardo Campos (9): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério (Parte 9): Nhacra 4
CCAÇ 4540 – 72/74
"SOMOS UM CASO SÉRIO"
PARTE 9
NHACRA 4
Pela segunda vez iria passar o Natal na Guiné e nesta quadra em particular, estar longe da família significava ficar mais triste do que habitual.
No entanto como éramos jovens, tínhamos a força necessário para ultrapassar todos os obstáculos e, por muito sentimentais que fossemos, ainda tínhamos a arte e engenho para requisitar o pai natal a estar presente nessa noite.
O Natal de 1973
O calendário parecia ter parado no tempo. Se eu estivesse mais ocupado, talvez fosse diferente o meu estado de espírito, assim sendo, mentalizei-me que não podia ter tudo de bom. Afinal eu até estava de “férias” em Nhacra.
Comecei a pensar, vir passar as minhas férias, mas a abundância de “pesos” não era muita e, como tal, não seria com o auxílio destes que eu conseguiria chegar á Metrópole.
Foi então que resolvi solicitar, através de um requerimento, uma “boleia” nos aviões militares, o que me foi concedido.
Em Março de 73, durante 21 dias lá saí Nhacra e apanhei um North Atlas, até á Ilha do Sal, e só dois dias depois é que consegui continuar a viagem para Lisboa, dessa vez num DC 6.
Mas o barato sai caro e, apenas uma semana depois de ter chegado, recebia eu um telegrama dos Adidos de Lisboa, a comunicar-me que eu teria de regressar à Guiné nessa altura, caso contrário não teria direito a nova “boleia”.
A pressa de voltar a Nhacra, não era nenhuma, e, pensando no tempo que ainda tinha por gozar, tive que comprar o bilhete na TAP, tendo-me desenrascado a arranjar os escudos necessários.
Durante a minha permanência por estas bandas, surgiu em 11 de Março, a “intentona” das Caldas da Rainha, e, creio eu, regressei a Bissau no dia 25 desse mesmo mês, altura em que colocaram as bombas no Quartel General.
Quando cheguei a Nhacra, estava o pessoal das transmissões finalmente a trabalhar a sério, construindo um posto de rádio subterrâneo, em betão maciço, já que havia informações que o PAIGC, tinha aviões “MIGS” na Republica da Guiné Conakri, prontos para bombardear na Guiné.
Eu trocava as noites de serviço com os meus camaradas, com muita frequência, porque adorava trabalhar de noite e, assim, aproveitava para ouvir a BBC e outras rádios, o que começou a despertar-me alguma consciência para a vida política.
Por causa de trabalhar de noite, e como é óbvio dormir de dia, num dia dei origem a que a Companhia estivesse na parada, numa formatura geral, aguardando que eu lá chegasse.
Porquê esperarem por mim, pois se eu tinha o meu direito ao descanso matinal? Esta é uma história ainda mal contada, pelo nosso Camarada bloguista, Vasco Ferreira (ex-Alf Mil At Inf da minha companhia), que nesse dia estava de Oficial de Dia, tendo-me obrigado a sair da cama para a tal formatura, mais cedo do que devia. É claro que não me levantei logo, dando muita resistência para abrir os olhos e sair da cama. Ainda hoje continuo a pensar que o nosso amigo ”Vasquinho” me “roeu a corda” nesse dia.
Entretanto fomos surpreendidos com o 25 de Abril, de que me recordo que algumas mensagens recebidas nesse dia, chegaram ao COP 8 com um conteúdo que não fazia sentido nenhum. Será que a referida falta de sentido, estaria relacionada com instruções e código estabelecidos pela malta envolvida no Movimento Revolucionário?
Nunca o saberei!
DOCUMENTOS DE COLECÇÃO COM HISTÓRIA
Um abraço Amigo,
Eduardo Campos
1º Cabo Telegrafista da CCAÇ 4540
Fotos: © Eduardo Campos (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
10 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5796: Histórias do Eduardo Campos (8): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério (Parte 8): Nhacra 3
Guiné 63/74 - P5811: Notas de leitura (65): Armor Pires Mota (7): A Cubana Que Dançava Flamenco - A consagração de um grande escritor (Beja Santos)
Queridos amigos,
Este é o mais recente livro do Armor Pires Mota, considero que se trata de uma obra de consagração e merecia que todos nós a lêssemos. Não paro de me interrogar como é que é possível ter mantido num olvido discreto alguém que escreve em tão bom português e tão bem sobre aquela África da nossa juventude.
Um abraço do
Mário
Armor Pires Mota (7)
A Cubana que dançava flamenco: a consagração de um grande escritor
Beja Santos
“Cabo Donato, pastor de raparigas”, “Estranha Noiva de Guerra” e “A Cubana que dançava flamenco” são obras muito afins na arquitectura literária e nos esquadrinhar das memórias. Direi que entrelaçadas, diferentes prismas do mesmo olhar. O que era convencional nos anos 60, desaguou na sinceridade que é possível a quem já nada tem a perder com a dor revelada. Agora, a linguagem vai-se desprendendo, Armor Pires Mota deixa de procurar soluções lisonjeiras, o que é bruto deixa de ser polido, o que é áspero deixa de ser amaciado, os heróis transgridem, vivem alucinados, superam os tempos da realidade, têm uma capacidade quase sobre-humana de conciliar e reconciliar os pólos opostos. A tropa, os seus figurantes, estão no local de combate e quando se encontram com a gente da guerrilha descobrem as aproximações e a disponibilidade do amor. A gente só se reencontra quando se tornou demencial apontarmos as armas uns aos outros.
Estamos perante um autor que se fixou nos territórios onde combateu, esses locais são tratados com uma relativa fidelidade geográfica, ele vai rodando os espaços e os tempos, Bissorã, Mansoa, Mansabá, Bissau, Morés, são nomes constantes, o que muda é a natureza do combate humano, a superação da solidão, a forma natural como a pessoa pratica o heroísmo sem ficar dependente dos seus efeitos ou dar explicações conjunturais. Cabo Donato é um trabalho preparatório, a germinação de uma obra-prima da literatura da Guerra Colonial, “Estranha Noiva de Guerra”, “A Cubana que dançava flamenco” é a consolidação de um género literário de um autor que amadureceu e autonomizou uma abordagem da guerra, misturando tempos, lançando dúvidas no leitor quanto ao delírio dos personagens, socorrendo-se de um género que privilegia o português castiço, quase à Aquilino, os ritmos avassaladores do realismo fantástico, o estilo da reportagem, o discurso confessional e, é importante insistir, uma permanente mensagem de amor cristão, onde o perdão e o reencontro depois de uma viagem cheia de afrontas tudo sublimam. Armor Pires Mota aprecia a catarse, como se escrevesse para arredar fantasmas, misturando a primeira e a terceira pessoa do singular.
Desta vez, o herói chama-se Silas Macário, vive não muito longe de Coimbra, estudou na Faculdade de Direito de Coimbra, é hoje um homem depressivo, muito virado para o que aconteceu em Santambato, no Morés mítico, tão temido pelas nossas tropas. A sua vida está-se a revelar um desastre até que recebe a carta do seu filho, tudo fruto de uma relação apressada com a bela Usita.
É uma linda carta escrita em crioulo, letra tremida, e que assim começa: “N´ka sibi si é carta na bai octchau, abo ki nha mame fala abo que nha papê, lá lundjo na Lisboa nindê ku bu s´ta nel. Si duno, ku sêdo bô, i branco de certeza, pabia ami nim n’ka branco, nim n’ka preto. N’ fica na metade de pintura (Não sei se esta carta vai encontrar ou não quem a minha mãe diz que é meu pai, longe na Lisboa ou onde é. Branco, é de certeza, porque eu não sou branco nem preto. Fiquei a meio da pintura). Assina António Macário, ele quer conhecer o pai e manda-lhe um abraço do tamanho de um poilão.
E as recordações de Silas põem-se a viajar. Oloto pedira-lhe ajuda, em Mansabá, para ir buscar o filho, envolvido na guerrilha. Irresponsavelmente, Silas acede, embrenham-se no mato, são detidos por uma unidade do PAIGC, o alferes Silas Macário torna-se prisioneiro de guerra. Em termos literários, temos a leitura e a releitura de tudo quanto se passou, é como que Silas estivesse a ganhar uma nova maneira de ver as coisas. A adaptação é cruel, a comida insuportável, o comandante Mamadu Indjai ofende, bate e tortura. O tempo ganha uma nova dimensão: “Os dias e os meses arrastavam-se assim com uma lentidão de pedra rolando em terreno difícil e rugoso, entre risos de troça, trabalhos menores ou perigosos emboscando a tropa, enquanto o alferes marcava o tempo, os dias, as semanas e os meses, com rasgos de canivete na casca da calabaceira por debaixo da qual se aninhava uma figueira-brava. Suportava já tragar, por vezes, raízes silvestres, mel, até mandioca. Como os guerrilheiros. O arroz de chabéu entrou na rotina. Também o irandé. Já não fazia caso e, tal como os negros, limpavam os dentes com pauzinhos”.
Vai sofrendo de ataques de matacanhas, passou a ensinar a ler as crianças e até os guerrilheiros. Depois apareceu Usita, que disse estar casada com Mamadu Injdai. Apareceram os cubanos, Ramon Stella, Angel Fuentes e Paco Sanchez. Assim se vive em Santambato, no coração do Morés. Desperta a paixão entre o Usita e Silas, Usita era desprezada porque não dava filhos. Usita, perigosamente, entrega-se a Silas, quer um filho do branco. Nas noites de solidão, Silas recorda Susana, a mulher do capitão com quem tem encontros esporádicos. De Santambato, Silas é deslocado mesmo para o Morés, aqui conhece Conchita, enfermeira e irmã de Ramon Stella. Como se de uma via-sacra se tratasse, Silas é forçado a trabalhar como carregador das forças do PAIGC, assiste a rixas. Conchita, a revolucionária, sente-se atraída por Silas, passam-se a encontrar regularmente. Silas vive a guerra ao contrário, está no meio das forças do PAIGC quando há emboscadas, vê-os matar e vê-os morrer, tudo sem um queixume. Armor Pires Mota vai desenhando conversas frugais, autênticas perguntas/respostas, tudo pontuado de frases breves que tanto falam de África como da sensualidade estabelecida, assim: “Uma nuvem gorda rolava no céu, agitada pelo vento. O vento desfazia os cabelos meio crespos, meio lisos da cubana que, levantando-se de um pulo contente, se foi amoldar nas pernas de Silas Macário que a puxou toda para si, sentindo-lhe o borbulhar do sangue e o bico erecto dos seios”.
Há um ataque a Mansabá, o autor volta a oferecer-nos uma grande imagem do pesadelo da guerra: “O morteiro berrava estrondos. As espingardas esganiçavam-se em cantigas de aço, insuportáveis aos ouvidos, ritmadas, mais volumosas do lado da tropa, quando uma rajada fez com que dois negros deixassem tombar as armas. Vigiavam-no também. Rogou-lhes por cima do corpo esbarrondado não sabe uantas pragas... O sangue jorrou no mato. Na caserna, de luzes apagadas ou frouxas, a tropa aguentara bem o primeiro ímpeto...” O regresso ao Morés é uma verdadeira debandada, com feridos e mortos. Conchita parece viver o amor da sua vida. Silas é forçado a acompanhar as colunas, assiste ao drama daquelas povoações que vivem no jogo duplo. É assim que ele volta a Santambato e que Usita lhe comunica que está grávida.
Armor Pires Mota não é um autor facilmente classificável. Tem uma notória predilecção pelo vernacular, o telúrico, há um chamamento da terra e de toda a cultura rural que lhe inunda as imagens. Sente-se a influência do jornalismo, do espírito da reportagem, mas o seu estilo povoa-se de arremetidas que nos recordam os hispano-americanos, ele explora habilmente a truculência dos desacertos e desalinhados da retórica militar.
Silas é muito diferente de José Joaquim Bravo Elias; este, como Ulisses, prossegue indómito até ao fim da sua missão; Silas é o produto das contingências, como veremos adiante, haverá o dia em que descobrirá que foi dado como desaparecido em combate e o corpo de um cubano está sepultado com o seu nome no cemitério da sua aldeia. Bravo Elias é o carácter de um povo, um valor, uma épica, Silas é o ser humano que espera décadas para redimir e opor-se ao seu destino. “A Cubana que dançava flamenco”, Armor Pires Mota, Imagens & Letras, 2008).
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 9 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5793: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (4): S. Domingos, 21 de Julho de 1961: Benedita, eles já aqui estão!
Vd. último poste sobre Armor Pires Mota de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5753: Notas de leitura (61): Armor Pires Mota (6): Estranha Noiva de Guerra, uma obra prima à espera de reconhecimento (Beja Santos)
Vd. último poste da série Notas de leitura de 7 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5777: Notas de leitura (64): Já participamos nos romances dos outros - A Lucidez do Amor, de Tânia Ganho (Beja Santos)
Guiné 63/74 - P5810: (Ex)citações (57): Os maus exemplos de um 1.º Sargento (Manuel Marinho)
OS MAUS EXEMPLOS
Binta, mais um dia de saída para o mato que era rotina quase diária, procede-se à distribuição das rações de combate, entre nós fazem-se as respectivas trocas de latas, uns gostam da dobrada, outros de conservas, outros ainda preferem apenas os sumos, enfim vocês sabem como era.
Em frente a nós, nesses amanheceres, junta-se um conjunto sempre elevado de miúdos que nos observam nos nossos preparativos, de latas vazias de calda de pêssego na mão, esperam a já habitual distribuição pela nossa malta das possíveis sobras que os nossos organismos já não consomem, por efeito de saturação dos mesmos.
O que começou por ser coisa sem a mínima importância, dar algumas latas de ração, tornou-se numa obrigação por culpa do nosso 1.º.
Distribuem-se latas das rações de combate pelos miúdos, perante a sua alegria incontida, fazemos apelos aos camaradas para que dêem o que não vão comer, estas cenas começaram a ser habituais e causaram azia a um 1.º Sargento que um dia resolveu intervir para acabar com estas pequenas generosidades.
Dirigiu-se a nós e disse mais ou menos isto:
- Esta merda tem de acabar! - Vocês estão a alimentar os filhos dos turras, com o comer do Exército! Estão a dar maus exemplos, depois não se queixem!
Neste caso era uma excepção à regra, mas quantos havia a pensar assim? Adiante….
Perante os nossos protestos e algumas bocas dirigidas ao mesmo, dizendo-lhe que as únicas vítimas inocentes naquela guerra eram as crianças e em surdina, dizíamos:
– Vai mas é para o mato!
As coisas ficaram por ali, mas serviu para comentarmos entre nós a forma de abastecer ainda melhor a miudagem.
Então quando comíamos (mal) no barracão a que se chamava refeitório, as sobras eram entregues aos miúdos que esperavam a distância conveniente, longe de olhares indiscretos para evitar chatices, e lá iam eles todos contentes para as suas tabancas, com as latas fornecidas.
Mesmo alguns dos nossos camaradas (poucos) faziam cara feia, quando ao terminar as nossas refeições, se recolhiam os restos para depois lhes encher as latas, era preciso fazer pedagogia e apelar aos seus melhores sentimentos, o que em verdade se diga não era difícil.
Mesmo que assim fosse, o Exército não dava alimentação decente para o qual tinha todas as obrigações de o fazer, e o que dávamos aos miúdos, não compensava os prejuízos de cabritos que surripiávamos aos pais, para suprir a nossa alimentação.
Convém dizer que se tentava quase sempre a compra junto da população de animais para a nossa alimentação, galinhas, porcos e cabritos, o que não era tarefa fácil, em virtude das suas crenças religiosas.
Tudo o que era negro, era turra ou parente aproximado, e depois nós que andávamos no mato com as milícias, que faziam a mesma guerra ao nosso lado, ouvíamos muitas recriminações e críticas a estas manifestações raciais de mau gosto.
A estas atitudes não era alheio o facto de termos vivido Guidaje, já que deixou revoltas mal resolvidas entre nós, e pelo facto de por essa altura haver sempre Companhias em permanência por causa das colunas que eram feitas, e o desgaste a que éramos submetidos, em permanentes escoltas e patrulhamentos, e a fazer as guardas de sentinela aos postos durante a noite, com intensa actividade operacional, era natural a nossa hostilidade, a comportamentos menos correctos por parte de quem tinha obrigação de dar exemplos.
Felizmente esta foi uma voz isolada, num contexto de guerra em que muitas atitudes similares agravaram o que já era complicado, e foi um acto que não se repetiu porque a razão estava do nosso lado.
Um grande abraço para todos vós.
Manuel Marinho
Foto 1 > Binta > Novembro de 1973 > Elementos do 1.º GCOMB a petiscarem no barracão que servia de caserna. Marinho é o 4.º a contar da esquerda.
Foto 2 > A mesma malta mas tirada do lado contrário.
Foto 3 > Nema > Março de 1973 > De cócoras, eu e o Chico Santos, jogador de futebol do Varzim, e de pé o Tavares, um herói de Guidaje.
Fotos: © Manuel Marinho (2010). Direitos reservados.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 14 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5644: Blogoterapia (138): Detecção de minas por picagem (Manuel Marinho)
Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5754: (Ex) citações (52): Falando de descolonização com Filomena Sampaio (José Brás)
Guiné 63/74 - P5809: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (7): O Ventoínha e o seu rádio fulminado
O VENTOINHA
De baixa estatura e porque andava sempre em correria, este condutor da CART 643 tinha a alcunha do VENTOINHA. Em virtude de haver na altura excesso de Condutores na Companhia, o citado moço foi colocado como impedido do alojamento de Sargentos, alojamento esse que segundo informações passou a ser Bar dos Sargentos das Companhias vindouras, 816 ou 1419?
O seu sonho era ter um rádio/telefonia, para nos momentos de descanso ouvir música e as notícias. Esse sonho era difícil de concretizar, o pré não era mais do que umas centenas de escudos, ainda por cima uma parte ficava na Metrópole.
Juntou a pouco e pouco alguns escudos e comprou em segunda mão a um civil o dito aparelho. Andou de mão em mão a mostrá-lo, e chegado a noite, porque havia fraca recepção, decidiu ligar à antena do rádio militar. A assistência era grande até parecia uma cena do filme O PÁTEO DAS CANTIGAS, os camaradas estavam ansiosos por ouvir aquela fonte.
Mal ligou, caiu uma forte trovoada antecipada por um raio, mas logo por azar foi direito à antena e logo o aparelho começou a deitar fumo.
Claro com a crueldade normal dos jovens ouviu-se dizer:
- Oh Ventoinha a caixa talvez ainda sirva para uma gaiola de periquitos.
Rogério Cardoso
CART 643
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 7 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5781: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (6): Rondas e sentido de solidariedade na 643