domingo, 14 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5816: Memórias de outros tempos (4): As minhas passagens pelo Quartel General de Bissau (Jorge Teixeira/Portojo)

1. Em Mensagem do dia 8 de Fevereiro de 2010, o nosso camarada Jorge Teixeira (Portojo)* (ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), enviou-nos esta sua Memória:


Memórias

Em tempos, o Branquinho escreveu sobre o acolhimento que era dado, na Messe de Oficiais do Q.G., aos Alferes do Mato que por qualquer motivo iam a Bissau, pelos Alferes que estavam de serviço ao ar condicionado. Na altura era para deixar um comentário, mas achei que dava para poste e por duas razões.

Se for o caso, aqui vai.

Por duas vezes, fui acolhido em estadia mais prolongada, no Q.G. Logicamente que a minha messe era a dos Sargentos. Sinceramente, não notei o mesmo tipo de acolhimento que aconteceu ao Branquinho lá na dos oficiais. Claro que havia piadas, mas mais do género de passar um tempo em conversa e nunca de exclusão ou superioridade. Conheci malta do ar condiccionado, entre eles rapazes do hóquei, por exemplo o Salema e o Ramalhete mais novo (o mais velho foi meu colega de curso em Vendas Novas) que me acompanharam muitas vezes por Bissau by night.

Consegui regressar à Metrópole com 3 (três) Guias de Marcha.

Fim do comissão, aguardava em Bissau o representante do pelotão que nos vinha render - diga-se de passagem, um óptimo rapaz, pois acreditou em tudo que lhe entreguei para assinar e de cruz o fez, e não o aldrabei - e também fazer aqueles espólios todos.

Estive adido para efeitos de apresentação e serviços (que nunca fiz nenhum) aos Adidos. Para efeitos de alimentação e dormida estive no Q.G. Pois bem, duas das Guias de Marcha foram-me conseguidas por furriéis milicianos, por rendição individual. Uma dos Adidos e a outra do Q.G. É certo que apresentei as folhinhas, num lado e noutro, com as 12 ou 14 assinaturas que eram precisas para nos libertar. Não me perguntem mais pormenores, porque não lembro. A terceira Guia de Marcha, foi-me conseguida pelo Alferes Luís Xarez, meu Comandante de pelotão, incluída na geral do pelotão.

Acrescento ainda que a do Q.G. foi-me entregue em mão na caserna, estava eu a vestir-me para jantar, poucas horas antes de entrar no Niassa, por um Furriel Mil.creio que era da 4ª REP, a do pessoal.

Em tempos escrevi que um dos temas para lembrarmos aqui, poderia ser a música ou as canções que nos marcaram durante a comissão.
Então, o meu aderir ao Fado começou verdadeiramente numas conversas e explicações com a viola de um Furriel na messe de Sargentos. Que estava em comissão no ar condicionado de Bissau. E quem me levou ao Barco foi um outro furriel, outro fadista, o Freire, que pediu um jipe emprestado para me carregar as malas.

Este escrito não é para comparar classes militares. E muito menos entre milicianos. Mas talvez a dos furriéis fossem mais terra a terra, mais unidos.

Um abraço para a Tabanca
__________

Nota de CV:

8 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5790: Memórias de outros tempos (3): Porque rapei o meu bigode (Jorge Teixeira/Portojo)

Guiné 63/74 - P5815: O 6.º aniversário do nosso Blogue (2): Homenagem ao Fundador Luís Graça e a toda a tertúlia (Joaquim Mexia Alves)


1. O nosso Camarada Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492 (Xitole/Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52 (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 13 de Fevereiro de 2010:

Sábado à tarde!

Feliz, (pois então, sou vivo), estou em casa a gozar um pouco de quietude e paz de espírito.

Sente-se a família!

A mulher está a descansar um pouco, (coitada trabalha que nem uma moura para manter esta casa nos padrões que exige de si própria), os filhos mais novos, (que os mais velhos já têm casa própria e um até já me deu dois netos), utilizam o “brinquedo” dos tempos modernos, o computador, e vão dando largas á imaginação, imaginado-se “rambos” em jogos de guerra, lutadores numa arena imaginada pelos EUA, ou muito simplesmente falando e namoriscando à distância de uns “bites”, (dir-se-á assim?), absortos nos seus problemas que nem descortinam, mas vão ser grandes dentro de uns anos pelo jeito que a coisa vai.

E eu estou aqui também, neste computador que nos vai ocupando o tempo livre e às vezes até aquele que não é “livre”, mas que por força de uma “força” que não resistimos, nos leva a estar com “ele”.

Claro que havia eu de fazer, senão abrir o sítio da Guiné?

Deparo-me com a notícia, informação, de que a Tabanca Grande completará 6 anos no próximo dia 23 de Abril!

Fala-nos o Carlos Vinhal e o Jorge Félix da efeméride e aproveitam para muito justamente elogiarem o Luís Graça.

E eu junto-me a eles e faço o mesmo, ou seja, agradeço ao Luís Graça e agradeço o Luís Graça, por nos ter dado este espaço onde falamos com o coração nas mãos, a arma em riste, (mas como se estivesse em bandoleira), onde nos vamos libertando do “império dos tempos” e da “lei da morte”, e vamos tentando encontrar a vida, nas “mortes” que já vivemos.

É que, meus camarigos, calculo o que muitos de vós sofreram, porque eu, graças a Deus, sofri tão pouco!

E se o que eu sofri foi tão pouco, e mesmo assim doeu tanto, calculo meus camarigos o que ainda vos dói agora, porque ainda sinto dor!

E esta Tabanca Grande, que o Luís Graça construiu, com os adobes das memórias, com os “cibos” das dores sofridas, com os “bidons” de sangues derramados e sofridos, com os tectos de lembranças finalmente libertas, com os alicerces do dever cumprido e comprido, com as portas abertas a cada pensamento e vivência por mais diferentes que sejam, é a prova mais provada que hoje é dia de festa, de beber um copo ou dois, (coisa que eu já fiz), para dizer ao Luís, que lhe agradecemos o espaço, mas mais do que isso o convívio que nos liberta e ajuda, a conhecermos o que já fomos, aquilo que ainda somos, para que possamos ser, (mau grado alguns de agora o não quererem), os homens que então disseram: Talvez nem saiba bem porquê, mas estou aqui, com dúvidas ou com certezas, mas dando-me inteiramente por aqueles que comigo estão! Para que apesar de tudo, os nosso filhos e netos, saibam bem quem nós fomos e aquilo que ainda somos, e que não nos envergonhamos daquilo que então fizemos!

Para afirmarmos também, que se nós não nos envergonhamos, deixamos essa vergonha, ao Estado que deixa sem dignidade, aqueles que por ele lutaram.

Mas, meus caros camarigos, o meu coração é grande e nele cabem todos vós, por isso para além do Luís Graça, permitam-me que nele arranje um espaço, muito particular e dedicado, àqueles que todos os dias, me suportam, vos suportam, com escritos e mais escritos, que todos e cada um, querem ver dados á estampa no momento em que os escrevemos, porque é esse momento que importa!

Por isso, no copo que já bebi, e naquele que vou beber, junto ao Luís Graça a quem brindo, o Carlos Vinhal, o Virgínio Briote e o Eduardo Magalhães Ribeiro, porque todos são “culpados” da paz que agora vivo com a guerra da Guiné.

E junto-vos a todos vós, camarigos do meu peito, que juntos fizemos história, que agora vamos escrevendo, em cada dia, em cada hora.

Monte Real > Ortiga> Convívio da Tabanca Grande de 2009

Um abraço muito forte e camarigo para todos,
Joaquim Mexia Alves
Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492

Fotos: © Casimiro Carvalho (2010). Direitos reservados.
___________
Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 – P5814: Estórias de Guileje (7): O percurso da CCAV 8350 (Manuel Reis, ex-Alf Mil At Inf da CCAV 8350)


1. O nosso Camarada Manuel Reis (*), ex-Alf Mil At Inf da CCAV 8350, (Guileje, 1972/74), enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 9 de Fevereiro de 2010:

Camaradas,

Este texto é a descrição, em linhas gerais, do percurso da C.CAV 8350, Piratas de Guileje. É omissa a parte referente a Guileje e Gadamael, por todos já deveras conhecida.

Narrativa de alguns acontecimentos que marcaram o percurso da C. CAV. 8350.

Aos meus furriéis e soldados que nunca esquecerei

Nos meados do mês de Julho, cuja data não consigo precisar, a Companhia foi enviada para Cacine para aguardar embarque numa L. D. G. com destino a Bissau. Para trás, ficara Guileje e Gadamael. Connosco vão, para sempre, as marcas desses dias atribulados.

A estadia de dois ou três dias em Cacine foi maravilhosa. Com a compreensão e amabilidade da maioria dos camaradas da Companhia aí sediada, pode-se descomprimir um pouco.

Para o Juvenal Candeias e Catarino (a quem desejo uma rápido restabelecimento) e extensivo a toda a Companhia fica o meu sincero agradecimento por tudo o que nos propiciaram, num momento tão difícil.

Ao cair da tarde, sentado junto de uma das frondosas árvores e com o olhar perdido nas águas tranquilas e cálidas do rio Cacine, o meu pensamento voava para Coimbra, terra que me perfilhou e me fez homem.

Eram momentos únicos, em que tentava libertar a mente de um pesadelo, que ainda hoje subsiste.

Aqui as noites eram passadas num salutar convívio, em que a partilha de opiniões nos convidava a entrar pela noite dentro. Os temas abordados eram, inevitavelmente, o aproximar do fim da guerra. Tivemos a oportunidade de conhecer alguns pormenores da invasão à Guiné-Connakry e algumas das causas do seu fracasso. Foram dos momentos mais agradáveis que vivi no teatro de operações da Guiné.

Ao entrar para a L.D.G. deparo com o Comandante, meu conterrâneo, meu amigo, meu companheiro nos tempos estudantis de Coimbra. Luís Pato é o seu nome, esse mesmo, do bom vinho bairradino… Nada mau para começar, pensei…

Colocados no Cumeré fomos submetidos a instrução de reabilitação, orientada pelos Oficiais da Companhia de Comandos. Aqui valeu-nos o bom senso do Alferes, Comandante da Companhia, em substituição do Capitão, evacuado para a Metrópole. Após nos ouvir sobre o estado físico e anímico do que restava de uma Companhia, alterou o plano de instrução de modo a que este se adaptasse à situação física e psíquica dos militares da C.CAV 8350.

Todos os dias éramos bombardeados sobre possíveis hipóteses de colocação, que as Chefias Militares destinavam para a Companhia, que ia desde a colocação no local mais próximo de Guileje, considerando uma possível preocupação, até ao desmembramento total da mesma. Esta hipótese não vingou, dizia-se ser perigosa, pelo efeito contagiante que poderia exercer sobre os camaradas de outras companhias. Isto era o que se dizia, desconheço o seu fundo de verdade.

Após o mês de instrução são revelados os resultados dos exames médicos complementados com análises laboratoriais ao sangue, fezes e urina e são conclusivos: 87,5% dos camaradas são declarados inoperacionais. O registo é mental e pode não ser rigoroso. No entanto, tenho-o como tal.

As Chefias são obrigadas a alterar, temporariamente, os planos que projectavam para a C.CAV. 8350.

À Companhia é atribuído o sector de Quinhamel, zona onde a guerra não se fazia sentir. Como este sector ainda se encontrava ocupado por uma Companhia em rotação, fomos colocados num barracão rodeado por charchos. Julgo chamar-se Bisquita, o local da localização do barracão, onde não era possível dormir durante a noite, devido à imensidão dos mosquitos que penetravam, com relativa facilidade, através dos mosquiteiros. Andava-se de noite e dormia-se de dia.

Bem, assim ainda nos coçávamos, caso contrário não fazíamos mesmo nada!…

Em Bisquita ocorreu uma situação que não devo omitir pelo respeito e consideração que sempre me mereceram os meus soldados e furriéis. Este acontecimento mostra, ainda, até onde ia o espírito de união do grupo que, ao contrário do que constava em toda a Guiné, era sólido. Tinha sido forjado no sofrimento imposto pela guerra e moldado pelo desprezo a que fomos lançados. Soubemos resistir.

O acontecimento roça a banalidade, mas a atitude destes homens ultrapassa esses limites, é dignificante.

Todos sentíamos necessidade de nos ausentar daquele cenário de guerra, as chagas estavam vivas, mas os míseros pesos que os soldados auferiam, eram insuficientes para se deslocarem até à Metrópole e se libertarem um pouco do stress acumulado.

Seis ou sete soldados, do meu grupo, conseguiram que os familiares lhes angariassem a quantia necessária para a viagem e o dinheiro foi enviado, via postal, para o S.P.M. 2728 (o código postal). As sucessivas alterações de colocação da Companhia terão contribuído para que o dinheiro não aparecesse.

Era necessário confirmar a viagem e não havia dinheiro para o fazer. Sentia-me impotente por um lado e revoltado por outro. A situação parecia inultrapassável e ainda, por cima, eu também vinha de licença, nesse mesmo voo, o que me impedia de libertar as minhas economias.

Após falar com os meus furriéis, no dia de pagamento, descrevi ao grupo a situação, que alguns camaradas estavam a viver, já conhecido da maioria, e sugeri-lhes que emprestassem uma determinada quantia, que eu ficaria responsável pelo empréstimo de cada um.

A adesão foi total. Todos se mostraram disponíveis, com excepção de um soldado, que passadas umas horas veio ao meu encontro manifestar o seu desejo de também colaborar. As férias daqueles camaradas, na Metrópole, só eram possíveis com a colaboração de todos.

A maior ajuda, em termos monetários veio dos furriéis, que sem eles, a ideia não poderia avançar. A sua colaboração foi determinante.

A história termina com a chegada dos vales postais no próprio dia da viagem o que permitiu regularizar a situação antes da partida para férias.


Passados os três meses de permanência em Quinhamel fomos colocados em Cumbijã, onde se encontrava o nosso amigo e Capitão, Vasco da Gama, com a sua Companhia. Fomos acolhidos cordialmente e a ele e à sua gente estamos gratos, para sempre.

Nunca cheguei a saber qual a missão que nos estava destinada em Cumbijã e Colibuia. Recordo-me das operações, tipo bombeiro, a apagar fogos aqui e ali. Reordenamento de Colibuia, protecção à construção da estrada Aldeia Formosa-Buba nas imediações de Nhala, elaboração de 53 processos relativos a mortos e feridos em Guileje e Gadamael, para além dos patrulhamentos de rotina.

Deixo uma palavra de gratidão ao Capitão Reis, Comandante da C.Cav. 8350, em nome dos camaradas feridos em combate e dos familiares dos mortos. Sem a sua determinação e perspicácia, dificilmente conseguiam a pensão que, por direito, lhes assistia.

Aqui, em Cumbijã, terras do Vasco da Gama, nos vai encontrar o 25 de Abril.

A guerra, que vitimara tantos camaradas, transforma-se em PAZ.

As vivências eram outras. O inimigo deixara de o ser. Havia que preparar a entrega do aquartelamento de Cumbijã.

Foi um período complicado, pelo envolvimento a que me obrigava, para que nada sucedesse de anormal e que pudesse manchar todo o processo.

Foram os encontros no mato, desarmados, com os grupos de guerrilha do PAIGC, foram as reuniões de carácter político com os Comissários do PAIGC., foi o desarmamento dos nossos Milícias, sendo esta a situação muito dolorosa.

O aquartelamento de Cumbijã foi entregue no dia 19 de Agosto de 1974, ao PAIGC, com toda a dignidade, na presença do Comandante de Companhia, Capitão Santos Vieira.

Falei no trajecto da C.CAV. 8350 e relatei alguns episódios. Outros episódios, vividos neste trajecto, esperarão a sua vez.

Um grande abraço para todos os camaradas.
Manuel Reis
Alf Mil At Inf da CCAV 8350

Fotos: © Casimiro Carvalho (2010). Direitos reservados.
___________
Notas de M.R.:

Guiné 63/74 - P5813: Parabéns a você (79): Clara Schwarz da Silva, 95 anos, uma grande senhora, viúva de Artur Augusto da Silva, mãe do nosso amigo Pepito, leitora do nosso blogue, novo membro da Tabanca Grande (Luís Graça)


Lisboa > c. 1947 > Subindo o Chiado, Artur Augusto da Silva e Clara Schwarz... (Em 1949, o casal partiria para a Guiné, onde o Artur foi, até 1966, advogado, notário e até substituto do Delegado do Procurador da República; licenciado em direito, esteve de 1939 a 1941 em Angola, como secretário do Governador Geral; de regresso a Portugal exerceu advocacia em Lisboa, Alcobaça e Porto de Mós)... Esta é uma das fotos do álbum de família, já aqui reproduzida, no nosso blogue, um gesto que tanto a sensibilizou a Clara...

1. Texto do editor L.G.:

Acabei de falar, há umas horas atrás, com o meu e nosso amigo Pepito que veio, de propósito de Bissau para estar na festa dos 95 anos da sua querida mãe. Já sabia, com antecedência, da surpresa que ele queria fazer a essa Grande Senhora, que eu, a Alice, o João e a Joana tratamos simplesmente como Clara. É um privilégio ser seu amigo e frequentar a sua casa. É uma honra também ser amigo do seu filho, Carlos Schwarz, mais conhecido pr Pepito. (O Carlos tem mais dois irmãos, Henrique e João Schwarz).

A Clara Schwarz (Silva por casamento com o advogado e escritor Artur Augusto da Silva, 1912-1983) faz hoje 95 anos. Mas não uns 95 anos quaisquer. É uma vida plenamente vivida. É uma mulher independente e cosmopolita. São 95 anos de uma pessoa ainda muito autónomma, que usa com desenvoltura o telefone, o Skype, o mail, a Internet, o blogue… Até há pouco ainda conduzia. Tem uma memória prodigiosa, é culta, é poliglota, e tem um enorme orgulho de seu pai, engenheiro de minas, de origem polaca, judeu, conceituado estudioso do judaísmo em Portugal, arqueólogo, historiador, autor da descoberta e da revelação pública, em 1925, da comunidade cripto-judaica de Belmonte, e que era fluente nove línguas (de seu nome, Samuel Schwarz, 180-1953).

Qual a relação que ela tem connosco, para além da circunstância de ser mãe de um homem a quem a Guiné e os guineenses devem muito ? Se outras não fossem válidas, bastaria invocar aqui o seu papel como co-fundadora do Liceu Honório Barreto, hoje Liceu Nacional Kwame N' Krumah. Mais: foi professora de português (se não me engano), e por ela passaram os melhores filhos da Guiné, a começar pelos principais dirigentes do PAIGC... (É capaz de os citar de cor, e avaliar um a um!)...

Pois a Clara faz hoje anos, no Dia dos Namorados. Fala com muita ternura do seu marido, Artur, como um homem que "conhecia e amava a África" como poucos... O ano passado ofereceu-me um brochura dele, Pequena Viagem Através de África que um dia destes vou aqui reproduzir, com a devida licença da família: é uma conferência que ele pronunciou na Associação Comercial da Guiné, em 1963, no 46º aniversário da sua fundação. É uma admirável lição de sapiência e de sabedoria, que merece ser conhecida por um público mais vasto, incluindo os nossos amigos e camaradas da Guiné...

Três anos depois, em 1966, a PIDE prendia-o no aeroporto de Lisboa. O seu único crime era o de ser defensor de presos políticos... Libertado graças à intervenção pessoal de Marcelo Caetano, seu professor de direito, após cinco meses de Caxias, sem culpa formada, era impedido de voltar à sua querida Guiné, agora a ferro e fogo... Clara recorda o cinismo do governador, Schultz, que era visita da casa dos Silva, e que inclusive acompanhou o Artur, até ao aeroporto, nessa triste viagem sem regresso... Só depois da independência é que Artur voltaria, a convite de Luís Cabral, para desempenhar o lugar de juiz do Supremo Tribunal de Justiça... E lá morreria, em Bissau, em 1983.

É ambém com a mesma frontalidade e coragem que a Clara vem protestar, em 2005, junto do Presidente da Câmara de Belminte pela imperdoável omissão do nome do so seu pai, Samuel, no recém-inaugurado Museu Judaico de Belmonte. Embora tarde, a injustiça foi reparada em 2007.

(...) "S. Schwarz está na origem da descoberta dos cristãos novos de Belmonte. Graças à sua enorme sabedoria ele revelou os ritos e costumes destes cristãos novos, em numerosos livros dos quais o principal, publicado em 1925, 'Os cristãos novos em Portugal no Século XX' , livros esses que são uma referência incontestável tanto para historiadores portugueses como estrangeiros.



"Depois de ter adquirido a Sinagoga de Tomar, ele restaurou-a e doou-a ao Estado Português que também adquiriu a sua enorme biblioteca luso-hebraica.


"Este esquecimento é uma injustiça sem limites ao homem que foi S. Schwarz, de certa maneira uma segunda morte e também uma negação à verdade histórica.


"O Museu Judaico de Belmonte não pode existir perante esta dupla ofensa e deve oferecer à obra de S. Schwarz o lugar eminente que lhe é devido" (...) (Excertos da carta que Clara mandou ao autarca de Belmonte).


Neste dia tão especial para a família e os amigos da Clara Schwarz só queremos fazer-lhe esta homenagem singela, feita a partir da Quinta de Candoz, freguesua de Parede de Viadores, Marco de Canaveses, perto do Rio Douro, a serra de Montemuro ao fundo, um frio de rachar e uma Internet exasperadamente lenta como na Guiné... Obrigado, Clara, pelo tempo que nos dedica, obrigado pela atenção com que nos ouve, obrigado pela sua lição de vida, obrigado pelo seu amor imenso pela Guiné e pelos guineenses. E deixe-me terminar com as palavras que o Artur tanto gostava de citar, e que ele atribuía a esse sábio africano, seu amigo, o Cherno Bokar:

"Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros: ama-se a si póprio. E aquele que ama os que não pensem como ele, ama a Deus, que é pai de todos"... A Clara (e a sua família) é um exemplo dessa enorme capacidade de ouvir, reconhecer, respeitar e admirar os outros, mesmo quando os outros não são exactamente como nós, não pensam como nós... Desejo-lhe, eu e tida a Tabanca Grande, um dia magnífico, ainda para mais em Dia dos Namorados... E que o Amor nunca lhe falte, o Amor dos bisnetos, netos, filhos, demais família e amigos.

PS - A nossa singela prenda de aniversário, é pô-la aqui, debaixo do poilão da nossa Tabanca Grande, a falar com todos os amigos e camaradas da Guiné, a partilhar connosco as histórias de uma vida... A Clara´, que atravessou o Séc. XX e continua a sorrir-nos e a surpreender-nos no Séc. XXI, passa ser a Mulher Grande da nossa Tabanca Grande, o novo membro, o 397º, da nossa tertúlia, (O seu nome figura, desde hoje, na nossa lista alfabética, na letra C)... E daqui a cinco anos, em 2015, vamos apagar-lhe a vela do centenário!... Combinado ?

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 – P5812: Histórias do Eduardo Campos (9): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério (Parte 9): Nhacra 4


1. O nosso camarada Eduardo Ferreira Campos, ex-1º Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74, dando continuidade às suas histórias da Companhia em Nhacra, iniciadas nos postes P5711, P5729 e P5796, enviou-nos a 9ª fracção e mais 3 documentos históricos do seu vasto arquivo pessoal:

CCAÇ 4540 – 72/74

"SOMOS UM CASO SÉRIO"

PARTE 9

NHACRA 4

Pela segunda vez iria passar o Natal na Guiné e nesta quadra em particular, estar longe da família significava ficar mais triste do que habitual.

No entanto como éramos jovens, tínhamos a força necessário para ultrapassar todos os obstáculos e, por muito sentimentais que fossemos, ainda tínhamos a arte e engenho para requisitar o pai natal a estar presente nessa noite.

O Natal de 1973

O calendário parecia ter parado no tempo. Se eu estivesse mais ocupado, talvez fosse diferente o meu estado de espírito, assim sendo, mentalizei-me que não podia ter tudo de bom. Afinal eu até estava de “férias” em Nhacra.

Comecei a pensar, vir passar as minhas férias, mas a abundância de “pesos” não era muita e, como tal, não seria com o auxílio destes que eu conseguiria chegar á Metrópole.

Foi então que resolvi solicitar, através de um requerimento, uma “boleia” nos aviões militares, o que me foi concedido.

Em Março de 73, durante 21 dias lá saí Nhacra e apanhei um North Atlas, até á Ilha do Sal, e só dois dias depois é que consegui continuar a viagem para Lisboa, dessa vez num DC 6.

Mas o barato sai caro e, apenas uma semana depois de ter chegado, recebia eu um telegrama dos Adidos de Lisboa, a comunicar-me que eu teria de regressar à Guiné nessa altura, caso contrário não teria direito a nova “boleia”.

A pressa de voltar a Nhacra, não era nenhuma, e, pensando no tempo que ainda tinha por gozar, tive que comprar o bilhete na TAP, tendo-me desenrascado a arranjar os escudos necessários.

Durante a minha permanência por estas bandas, surgiu em 11 de Março, a “intentona” das Caldas da Rainha, e, creio eu, regressei a Bissau no dia 25 desse mesmo mês, altura em que colocaram as bombas no Quartel General.

Quando cheguei a Nhacra, estava o pessoal das transmissões finalmente a trabalhar a sério, construindo um posto de rádio subterrâneo, em betão maciço, já que havia informações que o PAIGC, tinha aviões “MIGS” na Republica da Guiné Conakri, prontos para bombardear na Guiné.

Eu trocava as noites de serviço com os meus camaradas, com muita frequência, porque adorava trabalhar de noite e, assim, aproveitava para ouvir a BBC e outras rádios, o que começou a despertar-me alguma consciência para a vida política.

Por causa de trabalhar de noite, e como é óbvio dormir de dia, num dia dei origem a que a Companhia estivesse na parada, numa formatura geral, aguardando que eu lá chegasse.

Porquê esperarem por mim, pois se eu tinha o meu direito ao descanso matinal? Esta é uma história ainda mal contada, pelo nosso Camarada bloguista, Vasco Ferreira (ex-Alf Mil At Inf da minha companhia), que nesse dia estava de Oficial de Dia, tendo-me obrigado a sair da cama para a tal formatura, mais cedo do que devia. É claro que não me levantei logo, dando muita resistência para abrir os olhos e sair da cama. Ainda hoje continuo a pensar que o nosso amigo ”Vasquinho” me “roeu a corda” nesse dia.

Entretanto fomos surpreendidos com o 25 de Abril, de que me recordo que algumas mensagens recebidas nesse dia, chegaram ao COP 8 com um conteúdo que não fazia sentido nenhum. Será que a referida falta de sentido, estaria relacionada com instruções e código estabelecidos pela malta envolvida no Movimento Revolucionário?

Nunca o saberei!

DOCUMENTOS DE COLECÇÃO COM HISTÓRIA

O pessoal convivendo no Natal de 1973

O pessoal a festejar a passagem de ano 1973/1974

Boletim PRESSE, do serviço noticioso para as Forças Armadas da Guiné do dia, com notícias captadas na radiodifusão pelas transmissões, no dia 25 de Abril de 1974





Boletim PRESSE, do serviço noticioso para as Forças Armadas da Guiné do dia, com notícias captadas na radiodifusão pelas transmissões, no dia 26 de Abril de 1974


Aproveito também para enviar a primeira página da EDIÇÃO ESPECIAL, do jornal vespertino da Guiné - VOZ DA GUINÉ -, publicado no dia 25 de Abril de 1974, noticiando “Junta de Salvação Nacional Assume Governo do País…”

Um abraço Amigo,

Eduardo Campos

1º Cabo Telegrafista da CCAÇ 4540

Fotos: © Eduardo Campos (2009). Direitos reservados.

___________

Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

10 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5796: Histórias do Eduardo Campos (8): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério (Parte 8): Nhacra 3


Guiné 63/74 - P5811: Notas de leitura (65): Armor Pires Mota (7): A Cubana Que Dançava Flamenco - A consagração de um grande escritor (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Este é o mais recente livro do Armor Pires Mota, considero que se trata de uma obra de consagração e merecia que todos nós a lêssemos. Não paro de me interrogar como é que é possível ter mantido num olvido discreto alguém que escreve em tão bom português e tão bem sobre aquela África da nossa juventude.

Um abraço do
Mário


Armor Pires Mota (7)

A Cubana que dançava flamenco: a consagração de um grande escritor


Beja Santos

“Cabo Donato, pastor de raparigas”, “Estranha Noiva de Guerra” e “A Cubana que dançava flamenco” são obras muito afins na arquitectura literária e nos esquadrinhar das memórias. Direi que entrelaçadas, diferentes prismas do mesmo olhar. O que era convencional nos anos 60, desaguou na sinceridade que é possível a quem já nada tem a perder com a dor revelada. Agora, a linguagem vai-se desprendendo, Armor Pires Mota deixa de procurar soluções lisonjeiras, o que é bruto deixa de ser polido, o que é áspero deixa de ser amaciado, os heróis transgridem, vivem alucinados, superam os tempos da realidade, têm uma capacidade quase sobre-humana de conciliar e reconciliar os pólos opostos. A tropa, os seus figurantes, estão no local de combate e quando se encontram com a gente da guerrilha descobrem as aproximações e a disponibilidade do amor. A gente só se reencontra quando se tornou demencial apontarmos as armas uns aos outros.

Estamos perante um autor que se fixou nos territórios onde combateu, esses locais são tratados com uma relativa fidelidade geográfica, ele vai rodando os espaços e os tempos, Bissorã, Mansoa, Mansabá, Bissau, Morés, são nomes constantes, o que muda é a natureza do combate humano, a superação da solidão, a forma natural como a pessoa pratica o heroísmo sem ficar dependente dos seus efeitos ou dar explicações conjunturais. Cabo Donato é um trabalho preparatório, a germinação de uma obra-prima da literatura da Guerra Colonial, “Estranha Noiva de Guerra”, “A Cubana que dançava flamenco” é a consolidação de um género literário de um autor que amadureceu e autonomizou uma abordagem da guerra, misturando tempos, lançando dúvidas no leitor quanto ao delírio dos personagens, socorrendo-se de um género que privilegia o português castiço, quase à Aquilino, os ritmos avassaladores do realismo fantástico, o estilo da reportagem, o discurso confessional e, é importante insistir, uma permanente mensagem de amor cristão, onde o perdão e o reencontro depois de uma viagem cheia de afrontas tudo sublimam. Armor Pires Mota aprecia a catarse, como se escrevesse para arredar fantasmas, misturando a primeira e a terceira pessoa do singular.

Desta vez, o herói chama-se Silas Macário, vive não muito longe de Coimbra, estudou na Faculdade de Direito de Coimbra, é hoje um homem depressivo, muito virado para o que aconteceu em Santambato, no Morés mítico, tão temido pelas nossas tropas. A sua vida está-se a revelar um desastre até que recebe a carta do seu filho, tudo fruto de uma relação apressada com a bela Usita.

É uma linda carta escrita em crioulo, letra tremida, e que assim começa: “N´ka sibi si é carta na bai octchau, abo ki nha mame fala abo que nha papê, lá lundjo na Lisboa nindê ku bu s´ta nel. Si duno, ku sêdo bô, i branco de certeza, pabia ami nim n’ka branco, nim n’ka preto. N’ fica na metade de pintura (Não sei se esta carta vai encontrar ou não quem a minha mãe diz que é meu pai, longe na Lisboa ou onde é. Branco, é de certeza, porque eu não sou branco nem preto. Fiquei a meio da pintura). Assina António Macário, ele quer conhecer o pai e manda-lhe um abraço do tamanho de um poilão.

E as recordações de Silas põem-se a viajar. Oloto pedira-lhe ajuda, em Mansabá, para ir buscar o filho, envolvido na guerrilha. Irresponsavelmente, Silas acede, embrenham-se no mato, são detidos por uma unidade do PAIGC, o alferes Silas Macário torna-se prisioneiro de guerra. Em termos literários, temos a leitura e a releitura de tudo quanto se passou, é como que Silas estivesse a ganhar uma nova maneira de ver as coisas. A adaptação é cruel, a comida insuportável, o comandante Mamadu Indjai ofende, bate e tortura. O tempo ganha uma nova dimensão: “Os dias e os meses arrastavam-se assim com uma lentidão de pedra rolando em terreno difícil e rugoso, entre risos de troça, trabalhos menores ou perigosos emboscando a tropa, enquanto o alferes marcava o tempo, os dias, as semanas e os meses, com rasgos de canivete na casca da calabaceira por debaixo da qual se aninhava uma figueira-brava. Suportava já tragar, por vezes, raízes silvestres, mel, até mandioca. Como os guerrilheiros. O arroz de chabéu entrou na rotina. Também o irandé. Já não fazia caso e, tal como os negros, limpavam os dentes com pauzinhos”.

Vai sofrendo de ataques de matacanhas, passou a ensinar a ler as crianças e até os guerrilheiros. Depois apareceu Usita, que disse estar casada com Mamadu Injdai. Apareceram os cubanos, Ramon Stella, Angel Fuentes e Paco Sanchez. Assim se vive em Santambato, no coração do Morés. Desperta a paixão entre o Usita e Silas, Usita era desprezada porque não dava filhos. Usita, perigosamente, entrega-se a Silas, quer um filho do branco. Nas noites de solidão, Silas recorda Susana, a mulher do capitão com quem tem encontros esporádicos. De Santambato, Silas é deslocado mesmo para o Morés, aqui conhece Conchita, enfermeira e irmã de Ramon Stella. Como se de uma via-sacra se tratasse, Silas é forçado a trabalhar como carregador das forças do PAIGC, assiste a rixas. Conchita, a revolucionária, sente-se atraída por Silas, passam-se a encontrar regularmente. Silas vive a guerra ao contrário, está no meio das forças do PAIGC quando há emboscadas, vê-os matar e vê-os morrer, tudo sem um queixume. Armor Pires Mota vai desenhando conversas frugais, autênticas perguntas/respostas, tudo pontuado de frases breves que tanto falam de África como da sensualidade estabelecida, assim: “Uma nuvem gorda rolava no céu, agitada pelo vento. O vento desfazia os cabelos meio crespos, meio lisos da cubana que, levantando-se de um pulo contente, se foi amoldar nas pernas de Silas Macário que a puxou toda para si, sentindo-lhe o borbulhar do sangue e o bico erecto dos seios”.

Há um ataque a Mansabá, o autor volta a oferecer-nos uma grande imagem do pesadelo da guerra: “O morteiro berrava estrondos. As espingardas esganiçavam-se em cantigas de aço, insuportáveis aos ouvidos, ritmadas, mais volumosas do lado da tropa, quando uma rajada fez com que dois negros deixassem tombar as armas. Vigiavam-no também. Rogou-lhes por cima do corpo esbarrondado não sabe uantas pragas... O sangue jorrou no mato. Na caserna, de luzes apagadas ou frouxas, a tropa aguentara bem o primeiro ímpeto...” O regresso ao Morés é uma verdadeira debandada, com feridos e mortos. Conchita parece viver o amor da sua vida. Silas é forçado a acompanhar as colunas, assiste ao drama daquelas povoações que vivem no jogo duplo. É assim que ele volta a Santambato e que Usita lhe comunica que está grávida.

Armor Pires Mota não é um autor facilmente classificável. Tem uma notória predilecção pelo vernacular, o telúrico, há um chamamento da terra e de toda a cultura rural que lhe inunda as imagens. Sente-se a influência do jornalismo, do espírito da reportagem, mas o seu estilo povoa-se de arremetidas que nos recordam os hispano-americanos, ele explora habilmente a truculência dos desacertos e desalinhados da retórica militar.

Silas é muito diferente de José Joaquim Bravo Elias; este, como Ulisses, prossegue indómito até ao fim da sua missão; Silas é o produto das contingências, como veremos adiante, haverá o dia em que descobrirá que foi dado como desaparecido em combate e o corpo de um cubano está sepultado com o seu nome no cemitério da sua aldeia. Bravo Elias é o carácter de um povo, um valor, uma épica, Silas é o ser humano que espera décadas para redimir e opor-se ao seu destino. “A Cubana que dançava flamenco”, Armor Pires Mota, Imagens & Letras, 2008).
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5793: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (4): S. Domingos, 21 de Julho de 1961: Benedita, eles já aqui estão!

Vd. último poste sobre Armor Pires Mota de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5753: Notas de leitura (61): Armor Pires Mota (6): Estranha Noiva de Guerra, uma obra prima à espera de reconhecimento (Beja Santos)

Vd. último poste da série Notas de leitura de 7 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5777: Notas de leitura (64): Já participamos nos romances dos outros - A Lucidez do Amor, de Tânia Ganho (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5810: (Ex)citações (57): Os maus exemplos de um 1.º Sargento (Manuel Marinho)

1. Mensagem de Manuel Marinho* (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), com data de 7 de Fevereiro de 2010:


OS MAUS EXEMPLOS

Binta, mais um dia de saída para o mato que era rotina quase diária, procede-se à distribuição das rações de combate, entre nós fazem-se as respectivas trocas de latas, uns gostam da dobrada, outros de conservas, outros ainda preferem apenas os sumos, enfim vocês sabem como era.

Em frente a nós, nesses amanheceres, junta-se um conjunto sempre elevado de miúdos que nos observam nos nossos preparativos, de latas vazias de calda de pêssego na mão, esperam a já habitual distribuição pela nossa malta das possíveis sobras que os nossos organismos já não consomem, por efeito de saturação dos mesmos.

O que começou por ser coisa sem a mínima importância, dar algumas latas de ração, tornou-se numa obrigação por culpa do nosso 1.º.

Distribuem-se latas das rações de combate pelos miúdos, perante a sua alegria incontida, fazemos apelos aos camaradas para que dêem o que não vão comer, estas cenas começaram a ser habituais e causaram azia a um 1.º Sargento que um dia resolveu intervir para acabar com estas pequenas generosidades.

Dirigiu-se a nós e disse mais ou menos isto:

- Esta merda tem de acabar! - Vocês estão a alimentar os filhos dos turras, com o comer do Exército! Estão a dar maus exemplos, depois não se queixem!

Neste caso era uma excepção à regra, mas quantos havia a pensar assim? Adiante….

Perante os nossos protestos e algumas bocas dirigidas ao mesmo, dizendo-lhe que as únicas vítimas inocentes naquela guerra eram as crianças e em surdina, dizíamos:

– Vai mas é para o mato!

As coisas ficaram por ali, mas serviu para comentarmos entre nós a forma de abastecer ainda melhor a miudagem.

Então quando comíamos (mal) no barracão a que se chamava refeitório, as sobras eram entregues aos miúdos que esperavam a distância conveniente, longe de olhares indiscretos para evitar chatices, e lá iam eles todos contentes para as suas tabancas, com as latas fornecidas.

Mesmo alguns dos nossos camaradas (poucos) faziam cara feia, quando ao terminar as nossas refeições, se recolhiam os restos para depois lhes encher as latas, era preciso fazer pedagogia e apelar aos seus melhores sentimentos, o que em verdade se diga não era difícil.

Mesmo que assim fosse, o Exército não dava alimentação decente para o qual tinha todas as obrigações de o fazer, e o que dávamos aos miúdos, não compensava os prejuízos de cabritos que surripiávamos aos pais, para suprir a nossa alimentação.

Convém dizer que se tentava quase sempre a compra junto da população de animais para a nossa alimentação, galinhas, porcos e cabritos, o que não era tarefa fácil, em virtude das suas crenças religiosas.

Tudo o que era negro, era turra ou parente aproximado, e depois nós que andávamos no mato com as milícias, que faziam a mesma guerra ao nosso lado, ouvíamos muitas recriminações e críticas a estas manifestações raciais de mau gosto.

A estas atitudes não era alheio o facto de termos vivido Guidaje, já que deixou revoltas mal resolvidas entre nós, e pelo facto de por essa altura haver sempre Companhias em permanência por causa das colunas que eram feitas, e o desgaste a que éramos submetidos, em permanentes escoltas e patrulhamentos, e a fazer as guardas de sentinela aos postos durante a noite, com intensa actividade operacional, era natural a nossa hostilidade, a comportamentos menos correctos por parte de quem tinha obrigação de dar exemplos.

Felizmente esta foi uma voz isolada, num contexto de guerra em que muitas atitudes similares agravaram o que já era complicado, e foi um acto que não se repetiu porque a razão estava do nosso lado.

Um grande abraço para todos vós.
Manuel Marinho

Foto 1 > Binta > Novembro de 1973 > Elementos do 1.º GCOMB a petiscarem no barracão que servia de caserna. Marinho é o 4.º a contar da esquerda.

Foto 2 > A mesma malta mas tirada do lado contrário.

Foto 3 > Nema > Março de 1973 > De cócoras, eu e o Chico Santos, jogador de futebol do Varzim, e de pé o Tavares, um herói de Guidaje.
Fotos: © Manuel Marinho (2010). Direitos reservados.

__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5644: Blogoterapia (138): Detecção de minas por picagem (Manuel Marinho)

Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5754: (Ex) citações (52): Falando de descolonização com Filomena Sampaio (José Brás)

Guiné 63/74 - P5809: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (7): O Ventoínha e o seu rádio fulminado

1. Mais uma Nota Solta da CART 643, enviada ao Blogue pelo nosso camarada Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), no dia 3 de Fevereiro de 2010:


O VENTOINHA

De baixa estatura e porque andava sempre em correria, este condutor da CART 643 tinha a alcunha do VENTOINHA. Em virtude de haver na altura excesso de Condutores na Companhia, o citado moço foi colocado como impedido do alojamento de Sargentos, alojamento esse que segundo informações passou a ser Bar dos Sargentos das Companhias vindouras, 816 ou 1419?

O seu sonho era ter um rádio/telefonia, para nos momentos de descanso ouvir música e as notícias. Esse sonho era difícil de concretizar, o pré não era mais do que umas centenas de escudos, ainda por cima uma parte ficava na Metrópole.

Juntou a pouco e pouco alguns escudos e comprou em segunda mão a um civil o dito aparelho. Andou de mão em mão a mostrá-lo, e chegado a noite, porque havia fraca recepção, decidiu ligar à antena do rádio militar. A assistência era grande até parecia uma cena do filme O PÁTEO DAS CANTIGAS, os camaradas estavam ansiosos por ouvir aquela fonte.

Mal ligou, caiu uma forte trovoada antecipada por um raio, mas logo por azar foi direito à antena e logo o aparelho começou a deitar fumo.

Claro com a crueldade normal dos jovens ouviu-se dizer:

- Oh Ventoinha a caixa talvez ainda sirva para uma gaiola de periquitos.

Rogério Cardoso
CART 643
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5781: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (6): Rondas e sentido de solidariedade na 643