1. "O absurdo do monólogo a dois". Texto enviado pelo nosso camarada Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), em mensagem com data de 9 de Março de 2011:
Guiné - Mansambo - CART 2339
Foto: © Torcato Mendonça (2011). Todos os direitos reservados.
ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 27
O Absurdo do Monólogo a Dois.
Sentados num tronco do velho abrigo, Tabanca ao fundo, ali onde, Mansambo/aquartelamento tinha começado, dois jovens, resguardando-se do calor à sombra da frondosa árvore, conversavam.
Jovens de idade incerta, rostos vincados e onde, certamente há muito os sorrisos não apareciam.
Olhavam duro ou vazio o nada e falavam baixo:
- Como está ele?
- Calmo agora. O enfermeiro já o tratou e os medicamentos começam a fazer efeito.
- Está a repetir-se muito. Vezes demais.
-Diga-me lá o que se passa com ele. Já na Metrópole lhe perguntei e nada disse.
-Não. Na Metrópole era outro assunto sem correlação com este. Eram problemas da vida privada dele. Prefiro não falar. Só tínhamos que informar de quando em vez. Lá, e depois aqui, o comportamento dele sempre foi estupendo e disposto a fazer os mais diversos trabalhos. Você sabe e nem vale a pena falar disso. Tanto assim que praticamente deixou de ser operacional. Era mais útil noutros lados.
-Já falou com o médico nisso tudo?
-Falei durante muito tempo. O médico disse-me pouco quanto a uma solução concreta, uma solução que me descansasse. Não me estou a intrometer em questões de saúde. Vejo a situação dele, como a da maioria dos soldados. Nós, graduados, já fomos uma ou duas vezes de férias. Saímos daqui, voltamos a ver casas, automóveis, luzes, ou, o mais importante, fomos até á Metrópole e voltamos a estar com família e amigos. Os soldados, a quase totalidade, não. O desgaste psicológico é bem maior. Mais nuns do que noutros, é certo. Mas a carga de desgaste é bem maior. Sentimos isso facilmente. Passamos muito tempo juntos, quase as vinte e quatro horas. Comemos igual e dormimos nos mesmos abrigos. As diferenças que existem são poucas, nesse aspecto. Lembra-se de termos caído numa emboscada e o morteiro não ter funcionado normalmente. Porquê? Porque ficaram, apesar de ter havido problemas com um joelho, aqueles dois homens assim estáticos? Já tinham, nessa data, tantas horas debaixo de fogo. Não reagiram bem. Aconteceu a eles. É normal. É humanamente normal. Humanamente. Nós, aqui, preocupamo-nos com o humanamente? Temos preparação para isso? Não.
-Falou com o médico nisso?
-Claro que sim. Foi ele que me alertou para esse aspecto humano. Ele tem preparação. Nós, aos poucos, muitos de nós ou a maioria, fomos perdendo a parte humana que tínhamos. Somos unidos, solidários, partilhamos alegrias e tristezas, medos mas, penso eu, cada vez, estamos mais duros e vazios. Olhe as caras e olhares. Você e eu não notamos. O médico, esse sim, nota e vai vendo as transformações operadas. Se não tem a especialidade de psiquiatra irá acabar. Colocou-me diversas questões e eu fui respondendo e colocando outras. Por isso falo assim. Falei deste caso, do outro que temos e até de mim.
- De si porquê?
- Porque ele colocou-me uma questão e eu recordei algo que se passou comigo. Quando apanharam, na fonte, aquele nosso soldado à mão, tínhamos acabado de almoçar com o Comandante do Pel Mi 103 o Alferes Uro Baldé, da Moricanhe. Depois de ser dado o alarme fomos à fonte e iniciaram uma primeira breve perseguição. Entrei, via rádio, em contacto com o Batalhão. De repente sentimos aquele estouro e soubemos ter sido uma mina. Você estava lá e safou-se por pouco. Quando depois fui apanhar o Alf. Uro Baldé para o pano de tenda, ajudado claro, vi restos do esparguete do almoço, as ervas à volta negras e cortadas, o cheiro adocicado do sangue. Tudo isso, aliado ao pouco tempo que tinha de Guiné, à raiva que sentia provocou em mim uma perturbação forte. Durante tempos, certos cheiros perturbavam-me e dormia mal. O Enfermeiro, temos sorte em ter um enfermeiro assim, deu-me comprimidos para dormir. Foi pior. Antes acordava sobressaltado. Depois não acordava e era pior. Parei logo e o uísque foi bem melhor. Passou. Não ligava e aos poucos foi desaparecendo. Mais tarde fui de férias a primeira vez e foi benéfico. Lá, na Metrópole, não sabem o que aqui se passa. Faz calor e há bichos… Por isso, não só, lhe falei da falta de férias dos soldados. Não só, Não só.
- Isto mexe demais connosco.
- Efectivamente. O que está a acontecer a este homem do nosso grupo, passa-se, segundo o que o médico diz e não concorda, com muitos. A receita dada pelo Exército é, segundo ele, comprimidos "LM" de "x+y" e não admitem outra solução mais. Se ele diz ser impotente para resolver o assunto que direi eu? Por isso, às vezes, sinto o regresso da tal humanidade. Pode não ser e já nem sei ao certo. Por quanto tempo mais? Aqui neste viver ou neste sobreviver que há a fazer? Muito pouco. Qualquer descuido, qualquer fraqueza pode ser fatal para muitos.
- Vamos estar mais atentos. Eu estarei e falaremos mais destes casos. Ainda se lembra de Évora, onde nos conhecemos?
-Claro que sim. Essa agora.
- Parece que foi há muito tempo. Mas você mudou muito.
- Mudamos todos…
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O militar que aqui falamos, de quando em vez, começou, de modo inesperado e não muitas vezes, a ter atitudes pouco consentâneas com a normalidade. De forma inesperada fugia gritando. Numa dessas vezes foi de encontro aos bidões de duzentos litros, cheios de terra, que protegiam os abrigos. Outra foi de encontro à primeira fiada de arame farpado. Feriu-se na cabeça na primeira vez e no corpo na segunda. Melhorou.
Num dia, que devia ser de festa pois era a entrada de mais um ano, por descuido ou pelo tremer dos geradores Lister ficou ferido, pensando nós ser com alguma gravidade. Evacuado no dia seguinte para o Hospital Militar em Bissau veio, muitos dias depois, a ser evacuado para o Hospital Militar em Lisboa.
Encontrei-o trinta e cinco anos depois. Se falamos do tempo militar não recordo. Falamos, isso sim, da vida actual. Os seus olhos irradiavam um brilho que me diziam estar bem com a vida. Aquele brilho que nós vemos, só nós vemos, sair dos olhos de dois ex-combatentes, dois camaradas.
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Hoje, ouço, leio, ou “sonho”, afirmações ditas, descritas, sopradas, ou, em conjunto produzidas e, mesmo sem o tal cheiro incomodam-me. Sinto desagrado. Um ligeiro desagrado. Mas nada digo. Começa a aborrecer.
Deviam ter respeito, mais respeito, por todos os que não voltaram, os que regressaram deficientes, os que só vieram em parte ou por outros que vão calando, falando entre ex camaradas de armas e nada mais exigem do que esse mesmo respeito. Só.
Porque:
- O stresse de guerra existe!
- O sofrimento de muitos deficientes é um facto!
- A guerra dura e violenta existiu!
A não resolução dos problemas, de tantos problemas desses ex militares, por quem de direito, há trinta e muitos anos para cá (1974/2011) ou desde a Índia até os dias de hoje, tem, para a definir uma palavra demasiado “feia”. Ficava mal aqui.
Mas há muito que devia ter sido dito: - BASTA!
O ABSURDO do monólogo a dois é isso mesmo.
A conversa existiu, não textualmente assim talvez, entre um furriel e um alferes sobre o ABSURDO de como certos militares, carentes de ajuda ONTEM e agora HOJE, ERAM e ainda SÃO tratados.
Fnd Mar/2011
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 10 de Março de 2011 >
Guiné 63/74 - P7922: Efemérides (61): Op Lança Afiada, triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, 8 a 19 de Março de 1969 (Torcato Mendonça)
Vd. último poste da série de 2 de Março de 2011 >
Guiné 63/74 - P7889: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (26): Chuva em noite escura