Guiné > Zona Leste > Gabu > Carta de Piche (1957) (1/50000) > Local provável da emboscada, levada a cabo por um forte dispositivoo do PAIGC, integrando "cubanos", a "três ou quatro quilómetros de Piche", a seguir a a um curva, do lado esquerdo da estrada (alcatroada) Ponte Caium-Piche, em 14 de Junho de 1973. O troço Ponte Caium-Buruntuma não estava alcatroado em 1974 (segundo o depoimento do Rocha). Repare-se que estamos perto da fronteira com a Guiné Conacri, na direcção sudeste (para onde terão retirado as forças do PAIGC, c. de 200, segundo a versão do Rocha).
Reconstituição da emboscada do dia 14/6/73, feita em 4 do corrente, ao telefone, pelo Florimundo Rocha (ex-sold cond auto, CCCAÇ 3546, Piche e Ponte Caium, 1972/74, natural de Lagoa, e que já expressou a sua vontade de integrar a nossa Tabanca Grande, comprometendo-se as fotos da praxe, através da sua filha Susana Rocha) [, foto à direita, 1973, Ponte Caium]:
1.O Rocha já se lembra do número de viaturas que seguiam na coluna, nesse dia fatídico, de 14/6/1973. Ele ia à frente a conduzir o seu Unimog 411, o “burrinho do mato”, que lhe estava distribuído. A seu lado, de pé, ia o Charlô (alcunha do Carlos Alberto Graça Gonçalves, natural de Lisboa) . E atrás, sentados nos bancos, os restantes camaradas do pelotão que haveriam de morrer nesse dia e hora, numa curva da estrada para Piche, a escassos 3 quilómetros da sede da unidade, a CCAÇ 3546/BCAÇ 3883… A saber: o Torrão, o Fernandes e o Santos…
2.Também não pode precisar a hora, mas terá sido depois das 9 da manhã. Foi seguramente da parte da manhã. Antes de partirem para Piche, uns tinham jogado à bola, e outros (uma secção) tinham ido à lenha, como era habitual… Eram actividades que eles faziam pela fresca. Lembra-se que o Torrão nesse dia estava de serviço à lenha. Quanto ao futebol, costumavam jogar, de manhã, pela fresca. O Rocha não falhava um jogo, aliás veio continuar, depois da peluda, a jogar futebol, em clubes da 2ª e 3ª divisões, no Algarve.
3.Já não tem a certeza, mas atrás de si, devia vir uma Berliet, com restos de materiais de construção ou madeiras. Também não se lembra se havia mais viaturas. Tem ideia que “malta de Buruntuma [, CCAÇ 3544, ], ou de Camajabá [, outro destacamento de Piche, CCAÇ 3546]” também vinha atrás, numa terceira viatura… O Wolkswagen (alcunha de um camarada que ficará ferido) vinha atrás, numa outra viatura. O Rocha não o deixou vir com ele. Nessa altura as relações entre ambos não eram as melhores.
4. A distância entre a primeira viatura (o 411) e a segunda (talvez a Berliet) deveria ser de “80 metros”. Ele, Rocha, não ia a mais de 70 km, que era o máximo que o “burrinho” dava, em estrada alcatroada. O asfalto ia até à Ponte. Trabalho da Tecnil, cujas máquinas chegaram a ser atacadas e algumas incendiadas pelo PAIGC. As bermas estavam limpas, o capim cortado. Estamos no início da época das chuvas. E foi “na curva” que o Rocha começou a ver cabeças, de gente emboscada. “Eles tinham-se entrincheirado nos morros de terra deixados pelas máquinas da Tecnil”… Pelo número de efectivos (falava-se no fim “em mais de 200”), está visto que a emboscada “não era para eles”, mas sim para o pessoal de Piche.
5.Quando o 411, conduzido pelo Rocha, entrou na “zona de morte”, na curva, os primeiros tiros (ou roquetadas) furaram-lhe os pneus. A malta foi projectada. A viatura capotou. O Rocha ficou caído mo lado direito da estrada. Os tipos do PAIGC estavam do lado esquerdo. O fogachal foi tremendo. Ele ainda conseguiu proteger-se atrás da viatura que ficou a trabalhar, de pernas para o ar. Lembra-se de ter pegado em duas ou três G3, dos camaradas feridos, e de ter respondido ao fogo do IN.
6.A emboscada poderá ter demorado “15 a 20 minutos”… O IN teve tempo para tudo: meio escondido, a uns 50 metros já da viatura sinistrada e dos camaradas feridos, viu uns gajos "brancos", “cubanos”, a falar espanhol, a saltar para a estrada… Já não pode precisar quantos eram, mas eram sobretudo “brancos”, poucos negros… Falavam em voz alta, e diziam qualquer coisa, em espanhol, como “condutor morto, condutor morto”… Completamente impotente, sem poder intervir, viu com os seus próprios olhos o espectáculo macabro, os tiros de misericórdia que acabaram com a vida dos camaradas moribundos, tiros na nuca ou na boca. Confirma o que já tínhamos dito antes: os corpos foram depois retalhados, por rajadas de Kalash…
7.Ainda se lembra da chegada das chaimites de Piche, que fizeram fogo contra as forças inimigas, que ripostaram, já no final dos combates. Talvez meia hora depois do início da emboscada. Ainda se lembra, dos 3 ou 4 feridos que foram evacuados, de heli, em Piche. Houve alguém que sugeriu que ele aproveitasse a boleia e se fizesse maluco. Mas ele recusou. Nesse mesmo dia regressaria à Ponte Caium. Não se lembra de ter tido o conforto de nenhum superior hierárquico. Uma simples palavra, muito menos um louvor. Voltou para a ponte e dormiu, como “dormia todos os dias, como ainda hoje dorme” (sem pesadelos ?..., não me respondeu à pergunta)…
Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) > Destacamento da Ponte Caium > Da esquerda para a direita: O 1º Cabo Pinto, e os soldados Ramos, Cristina (segurando granadas de morteiro 60), o Wolkswagen, o Fernandes, de pé (outro que morreu na emboscada de 14/6/1973) e o Silva ("que percorreu 18 km com um tiro no pé!")... Foto e legenda do Jacinto Cristina: falta identificar o condutor do Unimog 404.
Foto: © Jacinto Cristina (2010). Todos os direitos reservados
8. A única versão que até agora tínhamos desta emboscada, era a do Cristina (que ficou no destacamento e que,portanto, só pode contar o que lhe contaram os sobreviventes; ou do que se lembra dessas versões, e que já aqui resumimos, em tempos=:
“Em data que o Cristina já não pode precisar, a sua companhia sofreu uma violenta emboscada, entre Piche e Buruntuma, montada por um grupo ‘estimado em 400’ elementos IN (ou ‘turras, como a gente lhe chamava’)...Um RPG 7 atingiu a viatura da frente da coluna, que ia relativamente distanciada do grosso da coluna, e que explodiu...Houve de imediato 4 mortos: O Charlô e o Fernandes foram dois deles... Dos outros dois o Cristina já não se lembra.
“Com as granadas de mão dos mortos, o Wolkswagen conseguiu aguentar o ímpeto da emboscada, mas chegou a ter uma Kalash apontada à cabeça... Ninguém sabe como ele se safou... O Silva por sua vez levo um tiro no pé, fugiu, e mesmo ferido fez 18 km até ao aquartelamento”...
9… E voltamos ao monumento erigido á memória dos mortos da Ponte Caium. A ideia, não há dúvida, “foi do Alexandre”, do Carlos Alexandre, que tinham conhecimentos de moldes por trabalhar na construção naval, em Peniche. Ele, Rocha, também deu uma ajuda. Mas não lhe perguntem datas nem pormenores. Disse-lhe que o Cristina já não se lembrava de nada e que o Alexandre estava furioso por causa da amnésia dos camaradas.
10. Disse-me, por outro lado, que a filha ia mandar-nos as fotos pedidas, para poder entrar na nossa Tabanca Grande. Sentiu-se muito bem em falar comigo e contar toda esta tragédia. Estava mais calmo do que da primeira vez, em que me falou desta tragédia, emocionadíssimo. É um homem simples e franco. Pu-lo à vontade, mas ainda não consegui que ele me tratasse por tu… “Muito obrigado, o senhor (sic) tem aqui uma casa às suas ordens, quando vier a Lagoa”…
11.Da nossa conversa, à noite ao telefone (foi ele que me ligou), fiquei a saber que, em Janeiro de 1973, tinha vindo de férias à Metrópole. Estava, de regresso, em Piche quando se deu a tragédia que matou o Furriel Cardoso, já em 19 de Fevereiro de 1973. Só depois dessa data é que foi para a ponte, para onde ninguém gostava de ir. E por lá ficou até ao fim da comissão.
12. Mas logo a seguir, aconteceu outra tragédia: a morte do Silva, apontador de canhão sem recuo… Morreu na sua viatura quando tentaram levá-lo, moribundo, até ao helicóptero, foram pela estrada fora, sem picar, sem segurança. Tarde demais. Um estúpido acidente, que marcou muito o grupo.
13. Os furriéis só iam um de cada vez para ponte: o Cardoso, que foi vítima da explosão de uma armadiha; o Ribeiro, de Braga; o Barrroca, alentejano… No dia da embocada, estava o Ribeiro na ponte. Mais o Cristina, municiador, do morteiro “grande”, o 10,7…
O Rocha esclarece ainda que na foto de grupo [vd. poste P8029], não é o Santiago (que é da Covilhã), mas sim o Serra (que é de Barcelos), quem aparece à esquerda, de pé…
Nunca foi a um convívio do batalhão ou da companhia. Voltei a dar-lhe os contactos telefónicos do Cristina. Tentara ligar para o fixo, mas ninguém atendeu. Em, contrapartida, já tinha falado com o Alexandre (ou o Alexandre com ele)….
Sobre a ponte diz que era de boa construção, dos princípios dos anos 60. “Até se dizia que tinha sido construída pelo Amílcar Cabral”… Rectifiquei: o Cabral não era engenheiro de pontes, mas agrónomo… Não bate certo…
13. Outras memórias da ponte: O Gen Spínola um dia aterrou lá, estavam a jogar futebol… Usavam todos barba e cabelo compridos. Não havia barbeiro. O Spínola deu uma piada qualquer, ia de heli para Buruntuma.
14. Despedi-me do Rocha, para o poupar, mas com a promessa de voltarmos a falar, com mais tempo e vagar. Percebo que lhe fazia bem. E que, por outro lado, só lhe interessa a verdade dos factos… Parece ter boa memória fotográfica.
__________
Nota do editor:
Último poste da série 14 de Janeiro de 2011>
Guiné 63/74 - P7615: (De)Caras (6): A emboscada às NT na estrada Galomaro-Bangacia (Duas Fontes), em 1/10/1971: o relim do comandante do PAIGC Constantino dos Santos Teixeira,Tchutchu