sábado, 7 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9327: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (20): O plágio

1. Em mensagem do dia 5 de Janeiro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias.



HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (20)

Plágio

Todos sabemos o que significa plágio; direi apenas que é bem mais grave, mais recriminável que a “cábula”, o tema que recentemente tratei. Direi ainda que a cábula é jocosa (quase) é frequentemente divertida; o plágio é normalmente praticado com mais anos em cima do autor; é assunto mais sério; é doloso; o autor pode (e deve) ser judicialmente incriminado... mas isto são contas doutro rosário!

Após a revolução dita dos cravos o país entrou em convulsão endémica atingindo o auge logo no chamado “verão quente” de 1975.
As escolas, em geral, não fugiram à regra; o ensino foi “pretensamente” reformulado... em cima dos joelhos... até mesmo nas Universidades. O curso de Filologia Germânica não deixou de seguir as mesmas pegadas; sofreu uma “reforma” que, como noutros casos, constou apenas da redução do número de cadeiras; o objectivo era simplificar ou facilitar para formar à pressa sem que os alunos tivessem de queimar muito as pestanas para concluir os cursos.
Anos mais tarde, consta até que um agente técnico de Engenharia passou a ser engenheiro fazendo exames ao domingo e três cadeiras... com o mesmo examinador... mas esta história é outra... não é das nossas relações!

Antes de 1972 eu tinha feito algumas “cadeiras”, enquanto permaneci no Colégio Militar. Naquele ano comecei a trabalhar na vida civil. Em 1974, quinze dias antes da bronca (leia-se revolução dos cravos) mudei de ramo; estas mudanças tiveram consequências bicudas nos meus estudos. Recomecei no ano lectivo de 1975/76.

Para reiniciar passei pela Reitoria e perguntei:
- Quantas cadeiras tem agora o curso de Germânicas?
- Vinte e quatro! Foi a resposta na ponta da língua.
- Eu já fiz 25! – Curso concluído!
- Não é bem assim! Falta-lhe uma cadeira em seminário! É essencial!
- Quais são as cadeiras que podemos fazer em seminário?

Citaram várias; uma delas era História do Cristianismo.
- Já fiz essa, em Coimbra!
- Mas não a fez em grupo! A situação mantém-se!

Fazer mais uma cadeira... era só mais uma! Eu até já tinha sido engenheiro de pontes...!
As aulas já tinham começado e eu não conhecia ninguém com quem pudesse formar equipa para preparar o tal exame – que era obrigatório.
Encontrei uma ex-colega de Oliveira de Azeméis e de Coimbra, Maria do Céu Sousa e Silva, nome a que, por casamento, já tinha acrescentado “Castro Lopes”; ela estava a preparar o exame (o tal em seminário) sobre a Revolução Industrial.
A Maria do Céu houve por bem interromper o curso para estar perto do marido (casadinhos de fresco) enquanto ele prestava serviço militar obrigatório na Marinha. Acabada a tropa dele, ela voltou à Universidade.

Os grupos podiam ter de três a cinco elementos; no grupo dela eram apenas três (duas moças eram jovens e solteiras); pedimos à professora – e ela autorizou – que eu entrasse naquele grupo com o estatuto de trabalhador estudante – coisa importante!
Sempre que me era possível – naquela época, a vida nas empresas era febril, alucinante – eu ia comparecendo e assistia a uma ou outra aula. Com a frequência permissível reunia com as prestantes colegas de grupo em que, por especial favor e com a sua cara boa vontade, eu me tinha encaixado.

Numa das primeiras aulas a que assisti tomei conhecimento do modo suigéneris como cada grupo iria ser avaliado.
O grupo apresentava o seu trabalho; entregava uma cópia à professora e outra a cada um dos restantes grupos; marcava-se a data em que os eruditos autores iam ser ouvidos (examinados). Cada aluno, vestindo a capa de examinador, colocava objecções e/ou dúvidas e formulava perguntas; os examinandos respondiam, prestando os esclarecimentos cabais e necessários, ou como tal considerados.
Cada grupo de “examinadores” decidia a nota a atribuir ao trabalho em discussão; ao grupo examinado era atribuída a especial nota grotesca de “apto” ou “não apto”; esta apreciação era extensiva a cada elemento do grupo. Obtinha-se a nota final por maioria simples (50% + 1). Em caso de empate, à professora, qual rainha de Inglaterra que reina mas não manda, cabia o supremo poder decisório de desempatar.

Fiquei desapontado, pasmado, quando me apercebi que só havia notas de “sim” ou “sopas” e como elas iriam ser atribuídas; exprimi o meu veemente desacordo mais ou menos nos seguintes termos:
- Que se considere que as notas de zero a vinte já pouco significam nos tempos que correm, eu concordo.
- Que se pretenda praticar escalas de 1 a 10 ou de 1 a 5 como já acontece em muitas escolas secundárias e até em algumas Faculdades, é pura aberração.
Que se pretenda “legislar” que o aluno não pode ter zero (nota eliminada) só porque assinou a folha é estupidez no seu mais alto expoente; e se não assinar!?... Também não pode ter zero porque essa nota já não “consta” dos alfarrábios.
No entanto, mais abstronso que tudo isto é pretender atribuir, na última cadeira do curso a nota “apto” ou “não apto”. Não pretendo ofender o burro... Caso contrário diria que é burrice pura!

Neste ponto fui interrompido por uma colega que diziam ser MRPP (meninos rabinos que pintam paredes):
- Oh colega! Isso já foi discutido no início do ano! Agora não podemos voltar atrás!
- Pode-se voltar atrás (e deve-se voltar) sempre que nos apercebermos que errámos; é mais fácil defender o erro que reconhecê-lo! O futuro mostrará, por certo, o lamaçal para onde nos deixámos arrastar.
Ao que disse anteriormente só pretendo acrescentar três pontos:
1 – Ao contrário de muitos de vós eu estou a tentar concluir um curso que “devo”... aos meus pais pela sua coragem inaudita e pelos imensos sacrifícios que, deliberadamente enfrentaram para me proporcionar a possibilidade de estudar; penso que, em princípio, não o utilizarei eu proveito próprio, pois exerço já um cargo cimeiro numa empresa onde me sinto bem e sei que os patrões estão satisfeitos com o meu desempenho.
2 – Se um dia me aparecerem dois candidatos a um emprego (um cota dez na escala de zero a vinte e outro classificado desconexadamente com nota “apto” – (a nota do “sim ou “sopas”) podem ter a certeza que, mesmo de olhos fechados, eu escolherei o candidato do 1º caso; e tenho a certeza que a ilustre colega que tão denodadamente, tão acerrimamente defende este desconjuntado sistema, se tiver de proceder à mesma escolha, na hora da verdade, ela será sem dúvida, da minha opinião.
3 – Numa época em que os povos mais evoluídos optaram por notas de zero a cem será que nos dicionários existem reais palavrões para classificar esta brutal decisão?
Eu prefiro afirmar que não os conheço... para não ter de os utilizar porque seriam obscenidades tais que fariam corar as faces de um qualquer jumento inocente.

É verdade que fiz o sermão aos peixes! Não houve mais discussão! E nada foi alterado!
A professora não se pronunciou. Era muito jovem – creio que seria o 1º ano que lecionava – e talvez tivesse também ideias um tanto revolucionárias.

Começaram a aparecer os primeiros trabalhos de grupo para serem avaliados. Se bem me lembro, o primeiro foi mesmo do grupo da colega MRPP. Todos os primeiros trabalhos foram considerados aptos. Só me lembro de um cujos autores foram classificados de “não aptos”.

E o trabalho do meu grupo?

Nas variegadas reuniões que tivemos (frequentemente em casa da colega Micéu, porque ela tinha dois filhos; o mais novo com apenas 3 anos e que não frequentava o pré-escolar – coisa rara ou ainda inexistente) quase sempre houve acordo sobre os textos apresentados. Apenas recordo duas situações discutidas com mais calor: num caso houve desacordo e noutro houve apenas sugestão de alteração de forma (imperativa).

O primeiro caso ocorreu quando uma colega (das mais novas) escreveu que tinha lido algures (e pretendia incluir no texto colectivo) que, durante a Revolução Industrial em Inglaterra, havia patrões que admitiam crianças de 3 anos para trabalhar nas suas fábricas.

Protestei veementemente! A moça defendia que tinha lido e citava obra e autor. Retorqui:
- Os maiores disparates e/ou baboseiras podem aparecer em qualquer livro de autor menos coerente ou mais distraído; a opinião pública influencia os autores menos cuidadosos ou mais ingénuos. Numa época em que se pretende deliberadamente molestar os criadores de postos de trabalho que, tal como hoje, eram os – “causadores” de todos os males – qualquer autor é bem visto se conseguir denegrir a imagem deste sector da sociedade, mesmo que através de disparates. Nós temos de discernir e atingir o que terá “naturalmente” acontecido e o que poderá ter sido tomado por base em tal descalabro. Não podemos confundir deliberadamente “inchaço com gordura”.

Depois de avanços e recuos dirigi-me à colega Micéu, mãe duma criança de 3 anos e ali presente:
- Entendes que alguém consegue que o teu filho trabalhe, produza para ser remunerado mesmo que mal, numa qualquer oficina?
- Claro que não! Absolutamente impossível! – Foi a resposta.

O que terá acontecido foi o seguinte:
- Uma qualquer mãe extremosa solicitou ao bom do patrão que a autorizasse a trazer a criança para a oficina porque não tinha com quem a deixar e “ela é bem comportada e não prejudicará” o trabalho de ninguém. A certa altura a criança estava saturada; a mãe deu-lhe uma vassoura para “varrer a oficina”; a criança “brincou” com os resíduos, empurrando-os dum lado para o outro.

Eis que um inoportuno escrevinhador passou por ali e poderá ter perguntado à criança:
- Que estás a fazer aqui, minha menina?
- Estou a varrer! Terá respondido inocentemente a bebé.
Assim, o escrevedor, provavelmente mal-intencionado, conseguiu um “belo tema” para sua obra.

Logo se decidiu que aquela tolice não constaria do nosso trabalho. Boa decisão! Devemos ser sempre imparciais ou... procurar sê-lo!

Àcerca dum texto meu sobre o “Emile” de Rousseau, aconselharam-me a “desempolar” o tema porque o estilo não se enquadrava no texto geral. Sem alterar o conteúdo (isso não estava em causa) lá “desenfatuei” o que tinha escrito.


Caro leitor! Está surpreendido porque ainda ninguém plagiou? Então aí vai!

Um grupo de 4 moças apresentou as necessárias cópias do seu trabalho; lembro-me que foi dos mais acaloradamente discutidos; as autoras foram advertidas pelos muitos erros ortográficos e sintáticos.
Elas defenderam-se, atribuindo a “culpa” ao dactilógrafo e elas não tiveram tempo de reler e corrigir o que tinham “bem” escrito. Ainda não tinha chegado a era da informática e a fotocópia ainda era um luxo de má qualidade e de custo elevado.
A discussão continuou acesa mas o trabalho foi aprovado não sei já com que percentagem de votos a favor e elas foram consideradas “aptas”.

Dois ou três dias mais tarde, estabeleceu-se a confusão! Que grande balbúrdia! Autêntico regabofe!
Umas colegas que trabalhavam no Algarve enviaram o seu douto comentário escrito e formularam uma série de perguntas absolutamente pertinentes. Afirmavam e demonstravam claramente que o trabalho em causa era um constante plágio (elas diziam cópia) quase de fio a pavio. E citavam:
- No parágrafo tal da página tal as autoras afirmam categoricamente... e transcreviam o citado parágrafo.

Elas continuavam: - o autor fulano na obra e página tal e tal diz... e concluíam que até a tradução estava falseada e os erros ortográficos e sintáticos eram assíduos.
Citaram uma chusma de parágrafos plagiados e quase sempre mal traduzidos e com erros.

Alguém perguntou à professora se era ainda possível recuperar e anular a nossa decisão anterior. A professora respondeu que tal era absolutamente impossível porque as notas já haviam sido escrituradas nos cadastros individuais. Nada se podia fazer para repor a legalidade. Talvez pretendesse defender-se do erro coletivo!

Chegou a minha vez de reentrar na contenda, atacar o sistema, tentando desancar os seus defensores:
- Temos de concluir, doa a quem doer, que somos acusados de ter cometido uma tremenda injustiça e a culpa não pode ser atribuída ao “sistema”. Já sabíamos que tal decisão não poderia conduzir-nos a bom porto. Cada macaco no seu galho! A professora na sua cátedra, deve defendê-la e respeitá-la; nós nos nossos assentos devemos ser alunos até ao fim.
Por outro aldo, perante a avaliação elaborada pelas colegas do Algarve, somos obrigados a concluir que elas conhecem a fundo esta matéria; elas detectaram com grande pormenor o que, nem nós, nem a professora, conseguimos denunciar. Somos levados a concluir que nenhum de nós tem condições para aquilatar os conhecimentos que elas irão exibir no trabalho que apresentarão dentro de dias. Perante isto e tendo em conta que elas já provaram que são excelentes conhecedoras da matéria, proponho que o seu trabalho seja considerado apto sem qualquer discussão. É a maneira de reconhecermos que elas já são na verdade “doutoras” no assunto em causa. Eu recuso-me a atribuir-lhes nota doutra maneira,... por incapacidade minha.

A proposta foi aprovada por unanimidade, incluindo a professora.
A colega MRPP, logo que viu o seu trabalho aprovado, nunca mais apareceu nas aulas.
De seguida a professora lamentou profundamente o que tinha acontecido e garantiu que tal não mais se repetiria – nunca!
As fraudulentas, (plagiadoras) porém, foram (já tinham sido) consideradas “aptas” e não havia (?) maneira “legal” de corrigir aquela bestial monstruosidade. Era mais um acontecimento excêntrico, estupendo (estúpido) do PREC (processo revolucionário em curso)... no seu auge!

Lisboa, 04 de Janeiro de 2012
Belmiro Tavares
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9258: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (19): Recordações de um colega cego

Guiné 63/74 - P9326: Memórias de Manuel Joaquim (2): Manhã maculada


1. Mensagem de Manuel Joaquim* (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 5 de Janeiro de 2012:

Meus caros amigos e camaradas,
Aqui vai uma coisinha que ainda vive na minha memória. Se acharem que vale a pena

Um grande abraço
Manuel Joaquim



MEMÓRIAS DE MANUEL JOAQUIM - 2

MANHÃ MACULADA

Introdução

Os primeiros dois meses e meio de comissão passou-os, a minha CCaç 1419, em Bissau. Rondas, serviços de guarda, ações de vigilância na área do aeroporto, uma ou outra escolta a batelões de abastecimento nas suas deslocações pelo rio Cacheu ou pelos canais do sul da Guiné. Uma maravilha comparando com o que acontecia às duas outras Companhias operacionais do Bcaç 1857 (1420 e 1421), a primeira em Fulacunda e a segunda em Mansabá/K3. Cheiros de guerra a sério também tivemos mas poucas vezes e foram só cheirinhos. Saíamos para Mansoa onde, enquadrados por tropas já veteranas, participámos em ações de reconhecimento. Houve contactos com o IN mas de fraca intensidade e sem vítimas visíveis de qualquer dos lados, exceto uma vez, no início de outubro de 1965, dois meses depois da chegada à Guiné. Mas, “aburguesados” em Bissau, estas participações causavam-nos algum nervosismo. Coisas de “periquitos”.


Manhã maculada

E mais uma vez, náufragos inseguros num “mar” quase desconhecido, massas de sombras embrulhadas em silêncio e medos indefinidos, lá vamos a caminho de Mansoa. As viaturas, estrada fora roncando, vão rompendo o negrume espesso daquela noite chuvosa e trovejante.
Espera-nos um grupo de “velhinhos”, prontos para nos apoiar e instruir em mais uma das nossas idas à guerra. Havia algum exibicionismo da sua parte. Ao nosso ar encolhido, tímido e ansioso contrapunham uma pose desinibida, à gingão, fardas desbotadas com falha de botões e/ou rasgada, botas cambadas, manuseio fácil e displicente da G3, pose madura e superior mas apaziguadora para estes “periquitos” de camuflado novo de cores vivas, idos de Bissau.
E é nesta pose ostensivamente protetora que nos juntam ao seu grupo para os acompanharmos numa ação de vigilância, de segurança e de reconhecimento.

Na escuridão da noite os relâmpagos próximos dão cabo da nossa, já de si difícil, perceção visual. A progressão faz-se de mãos nas costas ou no ombro do camarada da frente. Ouvem-se sons dos toques entre capacetes e armas devidos a cortes frequentes na coluna que obrigam a fortes acelerações e a choques inesperados ... ... ...

Amanhece. As sombras começam a dissipar-se e as formas da natureza envolvente tornam-se rapidamente mais nítidas. Acariciados pelo resplandecer matutino e pelos golpes de luz entre os intervalos da chuva, somos embalados pelo cantar das aves e interpelados pelos novos sons da floresta. Um ribeiro bem cheio é atravessado. A exemplo dos de mais baixa estatura, preparo-me para o atravessar elevando os braços e segurando a arma e o capacete com os cigarros dentro. Ao chegar a minha vez vejo-me com água pelos olhos. De braços no ar lá vou avançando, qual canguru aos saltos para a frente, tentando respirar na parte alta do salto. Há um matulão atrás de mim que deve ter perdido a paciência e, não sei como, dei por mim a pairar sobre a água e a aterrar na margem, sob risadas surdas e gozonas! Mas que culpa tenho eu do meu 1,63 m?

Avançamos. A paisagem inebria, uma mescla de aromas densos e acres evola-se da terra molhada, a folhagem verde do capim brilha nas gotas de água que a salpicam e que refletem, faiscando, os raios do sol. Há qualquer coisa de sagrado naquele ambiente que uma fila de homens armados ofende. Repetem-se momentos onde se chocam sensações opostas de sofrimento e de gozo, de ansiedade e de paz ... ... ...

E, de repente ...! Um grito lancinante de mulher corta os ares, seguido de rajadas de G3 e de alguns tiros de som diferente. Houve contacto com o IN, um encontro inesperado para os dois lados. Segue-se um silêncio interrogativo e de preocupação nas hostes “periquitas”. Ouvem-se ruídos de vozes lá para a frente da coluna.... (Ah, aquele grito de mulher, aquele grito de dor, de impotência, de desespero e aviso (... ...)! Ah, aquele grito que nunca mais me sairá dos ouvidos, que ecoou na selva ao momento da aurora, seguido de rajadas de espingarda automática! Ela sentiu que se acabava, mostrou-me como é grande o desejo de viver e antes de cair varada pelas balas gritou bem alto o aviso aos outros que, como ela, estavam sob o nosso cerco.)*

Levanto-me e procuro informação. Avanço e vejo um corpo de mulher varado pelas balas. Diz-se que o grupo seria numeroso e que o seu grito tão forte foi de aviso aos seus companheiros de caminho. Alguns ripostaram com fogo de modo a facilitarem a fuga de quase todo o grupo que, tudo levava a crer, tinha funções de reabastecimento de alguma célula do IN.

Olho de novo para o corpo estendido e reparo numa figura sentada, ali perto e encostada às pernas de um soldado. Calada, alguns fios e salpicos de sangue pelo corpo, olhar vago, expressão indefinida, talvez em estado de choque, está uma jovem bajuda, aparentando uns 15 a 17 anos (viçosa, semi-nua, seios túrgidos e vigorosos pintalgados de sangue, talvez filha. Manhã maculada! Manhã terrivelmente dolorosa. Infelizmente, manhã inesquecível. Quão estúpida e vergonhosa, horrível e criminosa é a guerra, minha querida...)*

*Em itálico, excertos duma carta enviada, na altura, à minha namorada e futura esposa.

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9153: Notas de leitura (309): Guillaume Apollinaire, de George Vergnes (Manuel Joaquim)

Vd. primeiro poste da série de 27 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5358: Memórias de Manuel Joaquim (1): O Balanta furtador

Guiné 63/74 - P9325: Ser solidário (119): Anabela Pires: A caminho de Iemberém como voluntária da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento (JERO)



1. O nosso Camarada José Eduardo Oliveira - JERO -, (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), enviou-nos a seguinte mensagem: 


A CAMINHO DE IEMBERÉM COMO VOLUNTÁRIA DA “AD”

Camaradas,


Remeto-vos mais um texto que, nos tempos que correm, julgo ser um  grande exemplo de generosidade e amor pelo próximo. Uma senhora, que  poucos meses depois da reforma, resolve ir fazer voluntariado para a  Guiné, para a zona da Mata do Cantanhez.

Família, amigos(as), ex-colegas, ex-vizinhos:
 
Chegou o dia da partida. Hoje às 21.30 embarco para a Guiné-Bissau. No Domingo bem cedo,às 6 da manhã, farei a viagem para o Sul, para Iemberém, onde ficarei a residir nos próximos 6 meses. Vou contente, esperançosa, de muito aprender e, quem sabe, ensinar também.
 
Obrigada a todos os que partilharam comigo estes meses de preparação desta viagem, àqueles que me ajudaram de uma ou outra forma, àqueles que nos últimos dias me têm contactado para um último adeus.
 
Parece que vou para o fim do mundo mas não é assim. São só 3300 Kms de distância, 4 horas de voo e até dá para lá ir de carro. A alguns, os(as) mais atrevidos(as), eu espero um dia receber em Iemberém.
 
Aqui fica para cada um de vós um grande abraço e um até breve.
 
Anabela Pires
(6.Janeiro.2011)


Fotografia: © João Graça (2009). Direitos reservados.

Voluntariado na Guiné 

Conheci a Anabela Pires, em Coimbra, no dia do falecimento de sua Mãe.Já lá vão um bom par de meses. A conversa foi de circunstância e a minha presença na cerimónia religiosa ,no dia do funeral, deveu-se à minha relação fraterna com a sua irmã Margarida Pires, professora em Alcobaça e camarada de boas causas (Defesa de Património Cultural e outras). 

No último Verão soube pela Margarida que a sua irmã Anabela queria fazer serviço voluntário na Guiné. Falei-lhe do nosso Pepito (nickname do Engenheiro Agrícola Carlos Schwarz da Silva), que vive e trabalha em Bissau desde 1975, sendo um dos fundadores da AD - Acção para o Desenvolvimento. 

O mundo é pequeno e a Anabela Pires tinha sido colega e amiga da Alice Carneiro, mulher do nosso Editor Luís Graça. 

Poucos dias depois estava a falar com as pessoas certas e em poucos meses “arrumou” a sua vida para cumprir esse seu velho de sonho de fazer voluntariado em África. 

Esteve em minha casa na passada 4ª. feira, dia 4, a despedir-se e, obviamente a fazer-me perguntas sobre a “nossa” Guiné. Respondi-lhe gostosamente e tentei atenuar alguns dos seus receios em relação “a cobras e lagartos”. E ofereci-lhe um exemplar do meu livro “Golpes de Mão’s” com uma dedicatória em que lhe chamava “Mulher Grande”. 


Pedi-lhe para escrever alguma coisa para o nosso blogue. Agradeceu o convite mas disse-me que era cedo. Escreveria “quando tivesse feito alguma coisa de bom na Guiné”.
Recebi hoje o e.mail que reproduzi no início deste texto. E respondi como segue.

«Olá Anabela




Relendo o texto fixei-me de novo na parte do e.mail da Anabela em que diz:

«A alguns, os(as) mais atrevidos(as), eu espero um dia receber em Iemberém.»

Sinceramente passei ,a partir deste momento, a ser candidato a uma viagem à Guiné.
O futuro o dirá.

Em ano de crise percorrer 3.300 kms…não é (quase) nada!

E por uma boa causa…valerá sempre a pena.

JERO
Fur Mil da CCAÇ 675 
___________ 
Nota de M.R.: 

Vd. Também o último poste desta série em: 




Obrigado em meu nome e ,julgo poder dizê-lo, em nome de todos que passaram pela Guiné fazendo a guerra mas recordando, essencialmente, a paz..

Que tudo corra bem e parabéns aos Guineenses por terem junto deles a partir de hoje uma Mulher da sua raça. Uma Mulher (de) Grande (coragem).

Até breve.

Com todo o afecto (com “c”) aceite um apertado abraço do JERO».

Guiné 63/74 - P9324: História do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) (3): Homilia do Alf Mil Capelão Arsénio Chaves Puim, em Viana do Castelo, a 6/5/1970, na missa da benção dos guiões, antes da partida (Benjamim Durães)

Fonte: Excertos de História do Batallhão de Artilharia nº 2917, de 15 de Novembro de 1969 a 27 de Março de 1972. (*)


Anexo ao Capítulo I da História da Unidade >

CERIMÓNIAS DE DESPEDIDA > 06.MAIO.70


 O dia amanheceu chuvoso em Viana do Castelo. Foi o dia marcado para oficialmente a Cidade se despedir do BART 2917. Foi o dia em que cada Unidade recebeu o seu Guião.


Igreja de São Domingos – 10, 30 horas


Na Capela-Mor as entidades de Viana do Castelo que quiseram honrarem com a sua presença:

- Reverendíssimo Arcipreste do Julgado Eclesiástico de Viana do Castelo;
- Governador Civil do Distrito;
- Presidente da Câmara Municipal de Viana do Castelo;
- Comandante Militar;
- Capitão do Porto de Viana do Castelo;
- Comandante Distrital da GNR;
- Presidente da Junta Distrital;
- Delegado do INTP;
- Comandante Distrital da PSP;
- Comandante da Secção da Guarda Fiscal;
- Comandante Distrital da Legião Portuguesa;
- Senhoras do Movimento Nacional Feminino local;
- Senhoras da Cruz Vermelha Portuguesa;
- Delegado Distrital da Mocidade Portuguesa;
- Delegado Distrital da Mocidade Portuguesa Feminina;
- Comandante do Batalhão de Caçadores Nº 9.


Estranhos a Viana do Castelo, [eram] apenas o Comandante do RAP 2, Coronel de Artilharia Neto Parra, a quem pelo telefone foi pedido que representasse o Comandante da Região Militar do Porto que,  intimidado pela chuva ou pela distância, brilhou pela ausência, e o Capelão da Região Militar do Porto.

Presente na vasta nave, o Batalhão assistiu à “Bênção dos seus Guiões”,  seguida de missa celebrada pelo nosso Capelão, Alferes dos Serviços Religiosos Arsénio Chaves Puim

À homilia o nosso Capelão Alferes Graduado Arsénio Chaves Puim  [foto à direita] disse:

“Amigos e Companheiros:


"O problema fundamental do homem não é ser oficialmente cristão. O cristianismo existe em razão e em função da verdade e do bem objectivos e não é, portanto, verdadeiro e bom porque é cristianismo, mas é cristianismo, porque é verdadeiro e bom.


"De resto, o cristianismo é essencialmente um espírito e uma vida, uma mentalidade e uma conduta efectiva, que não aceita monopolistas nem detentores absolutos.


"O problema fundamental do homem também não é ser oficialmente cristão, na medida em que isso pode implicar desvio da verdade e do bem, e até cobardia e falta de personalidade, além da falta de estudo e procura. O problema fundamental dos homens, penso que é um problema de seriedade e verdade, de coerência consigo, de autenticidade humana e realização da missão de vida.


"Cristo apareceu num determinado ponto do curso da história humana e, num programa de autêntico revolucionário, destroçou erros, descentralizou frases legalistas, focalizou as grandes virtudes do amor e da justiça e aperfeiçoou o âmbito dos conhecimentos e da Fédos homens.

"A Igreja adoptou, ou melhor, nasceu desse Cristo e pregou-o. Os povos aceitaram-no ou guerrearam-no e todos, em movimentos de adesão ou combate e heresia, influenciando-se mutuamente, têm contribuído para o desenvolvimento progressivo da verdade evangélica e a realização mais precisa e renovada do espírito de Cristo no Mundo, que é de Fraternidade na Liberdade, Acção na Justiça, Paz no Progresso.

"No fim de contas, todo o Mundo e todos nós, Cristãos ou não, assumimos muito do espírito cristão e encontramo-nos num ponto de convergência, não só pelo respeito e amor mútuos, mas na posse da verdade essencial.

"É por isso que aqui estamos todos nesta Missa e que eu ouso confiar na compreensão daqueles que, porventura, em circunstâncias de maior espontaneidade, não estariam aqui presentes neste momento.

"A Missa é de facto, na sua origem, essência e história, um acto do culto católico, que não pode ser número de, programa acomodado sem efeito a propósito ou, ideologias que não sejam a prestação pura de honra ao Pai da humanidade e com Cristo incarnado e sacrificado, e a comunhão da Palavra e do Pão de Deus.

"Julgo porém que, segundo o que disse, esta missa será um acto de grande profundidade existencial e estimulante solidariedade humana e religiosa para esta comunidade, que todos nós formamos - ”O Batalhão 2917”.


"Deixamos com saudades as nossas famílias, estamo-nos a despedir deste simpático povo de Viana do Castelo, e em breve deslocar-nos-emos para a Guiné, onde vivemos juntos dia a dia, pisando as mesmas dificuldades e sacrifícios, realizando a mesma vida, com uma nova família, onde todos formarão um, cada um viverá para todos e todos para os outros.


"Esta hora de missa deverá bem sintetizar, consolidar e intensificar esse espírito de comunidade que nos une, assim como os altos ideais humanos e cristãos, que são apanágios de todos os homens de boa vontade em quaisquer circunstâncias.


"Os exércitos também têm a sua mística altamente humanitária, que não a guerra, essa nunca poderá ser um ideal ou valor em si mas a defesa do direito de todos, a garantia da liberdade dos povos, a consecução da paz justa, o compromisso apenas com verdade.


"O Batalhão 2917 viverá rectamente esta missa e a sua comissão de serviço na Guiné se para todos pesar um desejo sério de sermos homens mais perfeitos, uma comunidade militar autêntica ao serviço dos outros (da África Negra) e construirmos um Mundo melhor.”


Que assim seja!
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Nota do editor:


(*) Vd. último poste da série > 6 de desembro de 2012 > Guiné 63/74 - P9322: História do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) (2): "P'la Guiné e suas gentes": a alocução patriótica do comandante, em Viana do Castelo, a 8/4/1970, antes da partida (Benjamim Durães)

Guiné 63/74 - P9323: Álbum fotográfico de José Eduardo Silva: A Marinha e a FAP em 1966

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Janeiro de 2012:

Queridos Amigos,
Fotos que nos foram oferecidas pelo Zé Eduardo*, amigo de um primo, autoriza a sua divulgação no nosso blogue. Ele explica a proveniência, di-lo explicitamente.
Um pequenino ronco, mais uma glória para o nosso grandioso álbum.

Um abraço do
Mário


Álbum fotográfico de José Eduardo Silva: A Marinha e a FAP em 1966

Fotos da Guiné, e provavelmente alguma de Cabo Verde, tiradas pelo Capitão de Fragata José Januário da Conceição e Silva, Ajudante de Campo do Ministro da Marinha Almirante Quintanilha de Mendonça Dias, numa visita aos teatros de operações em 1966.
Zé Eduardo



Fotos: © Coleção familiar, cedidas por José Eduardo Conceição e Silva - Jan 2012. Direitos reservados

Notas do editor:

(*) Zé Eduardo é Presidente da Direcção da AGM - Associação Grémio das Músicas

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9322: História do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) (2): "P'la Guiné e suas gentes": a alocução patriótica do comandante, em Viana do Castelo, a 8/4/1970, antes da partida (Benjamim Durães)

Raras são as histórias das unidades, que serviram no TO da Guiné, que transcrevem discursos ou alocuções dos seus comandantes e oficiais. A História do BART 2917 surpreende pela exceção: publica uma alocução do seu comandante, no final do IAO, em Viana do Castelo, bem como uma homilia do seu capelão (o alf graduado cpelão Arsénio Puim, membro da nossa Tabanca Grande)... 

É material de inegável interesse para o estudo dos aspetos discursivos, éticos, disciplinares, doutrinários e político-ideológicos, da formação, comando e enquadramento das NT. Vamos publicar essas duas peças, em separado.

Referência à História do BART 2917, Bambadinca, 1970/72 - documento classificado como "reservado" - , segundo versão policopiada gentilmente cedida ao nosso blogue pelo ex-Fur Mil Trms Inf, José Armando Ferreira de Almeida, CCS/ BART 2917, Bambadinca, 1970/72, membro da nossa Tabanca Grande; o excerto que hoje se publica consta da versão, em suporte digital, corrigida, aumentada e melhorada pelo Benjamim Durães, igualmente nembro da nossa Tabanca Grande.  

Com a devida vénia e com o nosso apreço por todos os camaradas do BART 2917 para quem vão as nossas saudações, ainda a tempo, no início do novo ano de 2012. L.G. (*)


Fonte: Excertos de História do Batallhão  de Artilharia nº 2917, de 15 de Novembro de 1969 a 27 de Março de 1972.



CAPÍTULO I

HISTÓRIA DO BATALHÃO DE ARTILHARIA Nº 2917

MOBILIZAÇÃO, COMPOSIÇÃO E DESLOCAMENTO PARA O C. T. I. G.


01 –A Circular Nº 33631/MOB de 15.NOV.69 da Repartição de Oficiais da DSP/ME difundiu a mobilização dos Oficiais superiores para o BART 2917 destinado a reforço do CTIG, ficando assim constituído o seu Comando:

- CMDT – Tenente-Coronel de Artª DOMINGOS MAGALHÃES FILIPE;

- 2º CMDT – Major de Artª                                JOSÉ ANTÓNIO ANJOS DE CARVALHO; e,
- ADJUNTO – Major de Artª                               JORGE VIEIRA DE BARROS E BASTOS.

02 – A Circular 33570/MOB de 15.NOV.69 da Repartição de Oficiais da DSP/ME difunde a mobilização em bloco dos quatro Capitães do Batalhão que, após uma escolha pessoal, ficaram distribuídos como se segue:

- CCS / BART – Capitão de Artª                      GUALBERTO MAGNO PASSOS MARQUES;
- CART 2714 – Capitão de Artª                      JOSÉ MANUEL DA SILVA AGORDELA;
- CART 2715 – Capitão de Artª                      VITOR MANUEL AMARO DOS SANTOS; e,
- CART 2716 – Capitão Mil. de Artª               FRANCISCO MANUEL ESPINHA DE ALMEIDA.




03 – Várias Circulares posteriores nomeiam o restante pessoal do Batalhão.

04 – Depois do estágio de contra-insurreição, frequentado no Centro de Instrução de Operações Especiais em LAMEGO (CIOE), pela quase totalidade dos seus quadros, estes apresentaram-se no RAP-2 (Regimento de Artilharia Pesada Nº 2) onde de 03.DEZ.69 a 20.DEZ.69 decorreu a Instrução Preparatória de Quadros com vista à instrução da Especialidade de Atirador de Artilharia do 4º Turno da Escola de Recrutas de 1969 que ali iria decorrer e que forneceria o grande contingente de atiradores do Batalhão.

- Tendo como Director de Instrução o ADJUNTO DO BATALHÃO (Major de Artª Barros e Bastos), que no desempenho das funções foi sempre interessadamente apoiado pelo CMDT DO BART - TENENTE CORONEL DOMINGOS MAGALHÃES FILIPE, a instrução programada foi frequentemente alterada devido às condições climatéricas do momento. Contudo, com excepção do Aspirante a Oficial Miliciano ANTERO J. D. SOARES que apenas a frequentou durante 5 dias por ter baixado ao HMP, todo o pessoal teve aproveitamento.  [...]

05 – Em 03.JAN e 04.JAN.70 fez-se a concentração no Quartel da Serra do Pilar, (RAP-2) em VILA NOVA DE GAIA, dos recrutas vindos do Centro de Instrução Básica, a quem foi ministrada durante sete semanas a especialidade de Atirador de Artilharia, instrução que decorreu nos terrenos do RAP 2, Monte da Virgem em VILA NOVA DE GAIA, terrenos da Carreira de Tiro de ESPINHO, e matas nacionais na área de CORTEGAÇA-ESMORIZ.

06 – Em 23.FEV.70 inicia-se a organização das Unidades mobilizadas para o Ultramar do 4º Turno de 1969, realizando-se a concentração do BART 2917 na vetusta fortaleza de SANTIAGO DA BARRA, em VIANA DO CASTELO, ficando o BATALHÃO adido ao BC 9 (Batalhão de Caçadores nº 9), seguindo-se-lhe de 02.MAR.70 a 21.MAR.70 a primeira parte da Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IOA).

07 – De 23.MAR a 01.ABR.70, todo o pessoal gozou a “licença de nomeação para o Ultramar” nos termos do Artº 20º das Normas para a Nomeação e Cumprimento de Comissões Militares ficando o Batalhão pronto para embarque em 04.ABR.70.

08 – Entretanto fora tomado conhecimento da Circular 519/PM de 12.FEV.70 da 1ª REP do E.M.E. que informava que o BATALHÃO DE ARTILHARIA 2917 e suas COMPANHIAS DE ARTILHARIA 2714, 2715 e 2716 se destinavam a render no Comando Territorial e Independente da Guiné (C. T. I. G.) o BATALHÃO DE CAÇADORES 2852 e as COMPANHIAS DE CAÇADORES 2404, 2405 e 2406 em serviço na mesma Província.

09 – Em virtude de ter sido protelado o embarque do BART 2917 inicia-se, após o regresso de “Licença das Normas”, a segunda parte de Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (I. A. O.).

10 – Toda a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (I.A.O.) decorreu predominantemente em ambiente muito acidentado (Serra de Santa Luzia em Viana do Castelo) apesar dos esforços feitos pelo Comando do Batalhão para que tal se desenrolasse em zonas tanto quanto possível planas semelhantes às da Província em que o Batalhão viria servir, pelo menos como as de CORTEGAÇA-ESMORIZ onde se haviam desenrolado os exercícios de campo da I. E., mas razões de ordem logística e de planeamento superior impediram a satisfação de tal desejo.

11 – Na segunda parte do I. A. O., a mentalização do pessoal para servir na Província da GUINÉ teve os seus momentos de maior exaltação.

- Quando foi imposto individualmente a cada homem pelo graduado seu imediato comandante, em formatura geral do Batalhão, o emblema do BART 2917 com a sua divisa “P’LA GUINÉ E SUAS GENTES”.      
      
– Quando foram entregues em cerimónia pública os Guiões do Batalhão.


12 – Em 16.MAI.70 o BATALHÃO DE ARTILHARIA 2917 abandonou VIANA DO CASTELO, por via-férrea, a caminho de LISBOA, onde embarcaria na manhã de 17 DE MAIO no navio CARVALHO DE ARAÚJO, rumo à Província Ultramarina da Guiné.

  
13Em 25.MAI.70 o BATALHÃO DE ARTILHARIA 2917 desembarca em BISSAU e segue para o DEPÓSITO DE ADIDOS em BRÁ.

14 – Desembarcaram em BISSAU em 25.MAI.70, 30 Oficiais, 64 Sargentos, na sua maioria provenientes do MINHO com efeito dos 641 homens que desembarcaram em BISSAU, 269 eram naturais daquela Província. [...]

ANEXO 1

AO CAPÍTULO I DA HISTÓRIA DA UNIDADE
EMBLEMAS DO BATALHÃO

- Durante a primeira parte da Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (I. A. O.) concluímos as discussões para encontrarmos o emblema que simbolizasse a nossa Unidade.

- Depois de grande azáfama, em que os projectos se modificavam todos os dias, por unanimidade foi aceite:

- Primeiro a forma (a do ESCUDO das centúrias romanas e ao utilizá-la invocámos a determinação dos Centuriões), depois a cor fundamental - (o VERDE da nossa esperança) a seguir, com os parcos conhecimentos de heráldica e muita boa vontade de todos, a mão firme do Furriel Miliciano Atirador FRANCISCO MANUEL ESTEVES SANTOS, da CART 2716, deu forma às ideias traçando:

- O cavaleiro de um escudete, quartejado pela cruz da Região Militar do Porto; o elmo encimado pelo leão rampante empunhando a granada característicos do Exército Português e das suas unidades de Artilharia; no quartel superior esquerdo do escudete, as granadas da nossa Unidade Mobilizadora (RAP 2); no quartel superior direito a armas da Província da Guiné onde vamos servir; enquadrando todo o conjunto ao alto a designação da nossa Unidade (BART 2917), e na base a nossa divisa “P’LA GUINÉ E SUAS GENTES” lateralmente as palmas de louros que acompanham os vencedores.

- E chegou o dia 08.ABR.70, estava no fim a primeira parte da Instrução de Aperfeiçoamento Operacional; já não era uma amálgama de homens, era o BATALHÃO DE ARTILHARIA 2917 formado por um conjunto de equipas agrupadas em secções, estas em Grupos de Combate e estes em Companhias.

- As velhas pedras da vetusta FORTALEZA DE SÃO TIAGO DA BARRA viram formado no seu pátio o BART 2917, sob o Comando do 2º Comandante, prestar continência ao seu Comandante, Tenente Coronel de Artilharia DOMINGOS MAGALHÃES FILIPE e ouviram-no proferir:



 "Militares do BART 2917,

"Estamos hoje aqui reunidos quase todos os elementos que constituem o nosso Batalhão. É desejo de todos nós que, daqui a 2 anos, ao regressarmos, aqui todos também nos possamos voltar a juntar.

"No Ultramar, muitos dos que morrem ou se incapacitam, são vítimas de desleixo e falta de obediência pronta e completa, às ordens recebidas. A maioria das baixas é devida a desastres com viaturas auto ou a acidentes com armas de fogo. Os excessos de velocidade e as manobras perigosas são permanente precaução. No mato só se atira para acertar. Os tiros à sorte, são os que matam os nossos Camaradas.

"No Quartel as armas estão sempre em segurança, sem bala na câmara. Não queremos que a falta de cuidado nos abra ferida na nossa consciência.

"Mesmo em situações difíceis nem tudo está perdido quando não se perde a cabeça. Como vocês irão ver, com os vossos próprios olhos, não é a situação da Guiné tão má como a pintam, e posso assegurar-vos de que ela melhorou consideravelmente nos últimos meses.

"Vai-nos ser exigido muito esforço. Há abrigos para melhorar, trincheiras para abrir, capim para cortar, e tudo isto sob a acção dum sol que queima e de um calor que sufoca. Mas vale a pena, quanto mais suarmos, menos sangue derramaremos. Muito teremos de palmilhar na mata, muitas e longas noites teremos de permanecer imóveis de olho alerta e ouvido à escuta em silenciosas emboscadas, isso nos poupará muitas vidas.

"Procurando, perseguindo e abatendo o inimigo, impedimos que nos procure a nós, nos surpreenda e nos cause danos que todos profundamente sentiríamos. Sendo fortes, corajosos e animados de inquebrantável vontade de vencer, logo o inimigo disso se aperceberá, e perante a nossa força, fugirá como gato de água, deixando-nos livre o caminho do sucesso. Por tudo isto, o Militar do nosso Batalhão cumprirá sempre, com alegria e determinação, as ordens que receber, por mais duras que lhe pareçam.

"O êxito é o prémio da disciplina bem observada e bem compreendida …! Vestimos a mesma farda, somos uma parte do Exército duma Nação que há mais de oito Séculos vem escrevendo, com letras de ouro e de sangue, as mais belas páginas do livro da História do Mundo. Recebemos uma herança do passado, que muitos cobiçaram e cobiçam no presente, mas que temos de a transmitir intacta aos nossos filhos.

"Contra os rochedos da nossa vontade e da nossa fé, se irão despedaçando, uma após outra, as vagas do mar turvo da subversão alimentado pelas águas sujas dos interesses das outras Nações.

"Militares do BART 2917!...

"Somos uma parte do glorioso Exército Português, somos Militares do BART 2917, e isso terá de estar sempre presente na nossa mente, na nossa alma, no nosso coração.

Vai-vos ser agora imposto o emblema da nossa querida Unidade! Vai ele ser o símbolo que nos une. Nele vedes o verde da nossa fé, aureolado pelos louros da vitória que todos ardentemente queremos. Nele estão os elementos representativos do Regimento a que pertencemos e queremos honrar, nele está simbolizado o escudo da Província, onde a nossa passagem, também queremos, fique na memória de todos. Nele está inscrita a legenda “P’LA GUINÉ E SUAS GENTES”, essas gentes portuguesas que, a seu lado e de armas na mão, vamos ajudar a defender, bem como a sua terra, que sendo sua também é nossa.

"Que o nosso emblema inspire nas populações sentimentos de simpatia, estima, confiança e admiração; que o inimigo tema quem o usa no seu peito porque somos o BART 2917; que ele se torne para nós motivo de orgulho porque sempre o honraremos; e que mais tarde, no ambiente calmo das nossas casas, no calor dos nossos lares, colocado em lugar de destaque como relíquia de um passado nosso, recorde com saudade os altos momentos vividos, a amizade que nos ligará para sempre, os esforços e sacrifícios que fizemos, com a satisfação intima de ter-mos cumprido o nosso dever, com o generoso contributo que cada um de nós deu à Pátria, mãe de todos os português de todas as corres, de todas as raças, de todas as religiões e costumes”.
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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9021: História do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) (1): Resumo dos factos e feitos mais importantes, por João Polidoro Monteiro, Ten Cor Inf (Benjamim Durães)

Guiné 63/74 - P9321: As minhas memórias (Fernandino Vigário) (1): Um Alferes Capelão que queria ensinar o Pai-Nosso ao Vigário

1. Mensagem do nosso camarada Fernandino Vigário* (ex-Soldado Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 1911, Teixeira Pinto, Pelundo, Có e Jolmete, 1967/69), com data de 2 de Janeiro de 2012:

Caro amigo Carlos Vinhal , uma boa noite.
Recebi hoje teu E-mail que fala das dúvidas do Carlos Pinheiro e sobre esse assunto eu já disse o que sei.

Aproveito para enviar uma história passada comigo e um Alferes Capelão que, creio, estava no QG, não sei o seu nome nem o conhecia. Entre missas e funerais eu conheci vários, havia um que, se não estou em erro, com o posto de Tenente,  corpo franzino mas espírito de oficial militar, não dava grande confiança aos soldados.

Vai também duas fotos, uma sou eu no jipe, a outra sou eu mais três amigos e vizinhos que estavam no QG. O outro elemento não faço a mínima ideia quem seja.

Um forte abraço
Fernandino Vigário



AS MINHAS MEMÓRIAS - 1

Um Alferes Capelão que queria ensinar o Pai-Nosso ao Vigário

Caro amigo Carlos Vinhal.
Olá amigos e camaradas.
Estou de volta, e às voltas com a minha memória: como não tenho nada escrito vou tentar reconstituir uma história passada comigo e um alferes Capelão. Hesitei se a devo contar ou não, mas resolvi contar nem que seja para ficar em arquivo.

Eu, Fernandino Vigário,  ex-Soldado Condutor,  estava em Bissau no quartel conhecido por "600". Já no fim da comissão, numa manhã de Domingo (não me recorda a data, mas deve ter sido num dos primeiros meses de 1969), fui escalado para transportar um Alferes Capelão,  ainda bastante jovem a três ou quatro destacamentos limítrofes de Bissau, Safim e outros, onde estavam destacados Pelotões de Companhias do meu Batalhão 1911.

Transportar um Capelão,  para ir celebrar a Eucaristia aos ditos destacamentos, foi serviço que eu fiz várias vezes, e nem sempre foi o mesmo. O que aconteceu nesse Domingo com um bastante jovem, devia ter a minha idade ou pouco mais, que eu não o conhecia, nem nunca soube o nome porque só fiz um único serviço com ele.

Neste Domingo de manhã, depois de darmos os bons dias e trocarmos algumas palavras de circunstância, iniciámos a viagem que nos iria levar aos ditos destacamentos. O Capelão.  além de jovem era simpático e extrovertido, falava pelos cotovelos, e para espanto meu, ainda na estrada de Sª. Luzia ao cruzarmos com uma mulher ainda jovem, cabo-verdiana, por sinal bem jeitosa, atira a seguinte frase:
- Ena pá! Que gaja boa. Uff, que brasa!

Percorridas mais umas dezenas de metros, e de novo ao avistar outra mulher cabo-verdiana,  repete os comentários. Eu,  perante este cenário e vindo de um Padre, olhei-o de soslaio, meio petrificado e a pensar no que é que viria a seguir. Seria aquilo verdade?

Como eu falava pouco, na verdade sou um pouco introvertido e reservado, havia também a hierarquia, alferes e soldado,  a separar-nos, o Capelão resolve puxar por mim.
- Então, condutor, não dizes nada, o gato comeu-te a língua... pra começar diz-me lá o teu nome?
- Fernandino Vigário, meu Capelão, mas todos me tratam por Vigário.
- Vigário? Oh pá, mas és Vigário ou és vigarista?

Hesitei um pouco, mas logo respondi:
- Meu Capelão, eu sou Vigário de nome, mas sei que há por aí uns Vigários com obras feitas. Olhe, alguns até vieram parar a Bissau.
- Pois é, condutor, para quem falava pouco já estás a falar de mais, eu vou ter que te ensinar o Pai-Nosso.

Tive que me fazer um pouco palonço, não senti a rigidez militar e respondi:
- Meu Capelão, não é necessário! Eu na minha parvónia aprendi a Doutrina toda, foi o meu pai que me ensinou. Até fiz a comunhão solene!
- O teu pai ensinou-te a Doutrina mas foi às avessas, agora quem te vai ensinar sou eu.
- Meu Capelão, peço desculpa se o ofendi, mas não vejo onde o tenha feito, e longe de mim ofender quem quer que seja.
-Bem condutor, aceito as tuas desculpas e não se fala mais nisso, afinal hoje é Domingo, é o dia do Senhor, e de ouvir a Santa missa.

PS - Sou católico praticante, e nada me move contra a igreja e os Padres, antes pelo contrário, porque sempre os respeitei e ao contar esta história não pretendo denegrir nem esta, nem os padres, e estou convicto que aquele jovem Capelão tenha dado um bom padre, para mim aqueles comentários sobre mulheres eram fruto da sua juventude.

Um forte abraço para toda a Tabanca.


Malta amiga, maiatos, num Café de Bissau > A partir da esquerda: 1.º Cabo Op Cripto/QG Domingos,  Sousa da CCAÇ 1743, (?), 1.º Cabo Escriturário/QG e eu Fernandino Vigário
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9229: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (40): Comprei um computador pequeno e lentamente fui aprendendo a navegar na Net (Fernandino Vigário)

Guiné 63/74 - P9320: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (7): Fragmentos Genuínos - 5

FRAGMENTOS GENUÍNOS - 5

Por Carlos Rios, 
Ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66

A minha curiosidade e ânsia de aprendizagem e o imutável espírito popularucho que sempre fez o meu tipo, contribuiu para que em todo o tempo e locais por onde passei, me interligasse com toda a facilidade com as populações e estas me aceitassem quase sem reserva.
Aqui em Fulacunda e através do Soleimane Djaló e do Salu, milícias que trabalhavam comigo observei e participei em algumas actividades que a população realizava.

Mais que uma vez o Soleimane acompanhado com diversos elementos em que se incluíam mulheres me veio ao quartel chamar para ir à pesca com eles.
O meu amigo pedia-me para levar duas granadas, o que eu fiz embora de pé atrás, desconfiado, levando também à cintura ma pistola Walter e a minha acompanhante, a Formosa (G3); saí a sorrelfa do arame farpado (nunca na Companhia ninguém soube) o aparecer armado, mereceu alguma critica, – não tem perigo Rios, dizia o Soleimane, quando me juntei ao grupo já na tabanca e onde muitos demonstraram o seu desagrado, mas depois de algumas explicações em que transmiti a minha insegurança, não fosse aparecer algum inimigo, etc… lá aceitaram relutantemente e partimos pela picada por 4/5 Km até ao porto no Geba.

Este grupo era constituído por todo o tipo de população em que se incluíam mulheres e crianças e transportava imensos cestos, esteiras e catanas.
De notar que eu era sempre o ultimo da fila; alguma insegurança, sei lá?

Chegados ao local, estava a maré vazia, o pessoal espalhou as esteiras pelo chão e pôs-se na beira da rio com os cestos e as catanas, após o que o Soleimane me disse para lançar as granadas para dentro de água .
Poucos momentos passados um imenso cardume de todo o tipo de peixes, vogava à superfície e foi recolhido em grande quantidade com os cestos principalmente utilizados pelas mulheres, enquanto os homens aos pares junto do tarrafo apanhavam ostras às centenas, enquanto um aparava com um cesto, o outro com a catana raspava aí para dentro as grandes quantidade ali presas.

As mulheres espalhavam o peixe nas esteiras, escolhiam os que entendiam e logo ali na beira do rio os arranjavam e escalavam para depois de preparados, salpicavam-nos com sal e qualquer outro ingrediente que nunca soube o que era, para serem postos ao sol nas coberturas dos tabancas.

Depois do regresso e após um retemperador banho de agua fria, o regresso era sempre muito cansativo e ensolarado dirigia-me à cantina onde se comentava que de certeza ao “turras” tinham bombardeado algum barco patrulha da marinha lá para os lados do porto porque se ouviram bem os rebentamentos. Pela minha parte moita carrasco!

Grandes petiscadas de ostras, peixe seco, etc..etc… fiz no seio da tabanca! Só o diabo dos picantes e bebidas é que eram fogo.
Só muitos anos mais tarde tive oportunidade de entender o porquê daquela preparação do peixe, quando em Sesimbra vi um sistema de tratamento e secagem do bacalhau.

Passados mais alguns dias de momentos e vivências num meio hostil, agreste em que a par de milhões de mosquitos e toda a espécie de insectos, também o barulho ensurdecedor do gerador, e a natural ansiedade e sobressalto pouco nos deixavam descansar, apresentou-se a Companhia 1423, comandada pelo então Capitão P. A., sendo que no dia seguinte saímos em conjunto para uma operação, dita pelos chefes, de grande importância, seguindo então através do capim dado que a estrada se encontrava cheia de abatizes e o caminho por aí nos tornar mais vulneráveis. Perto de Nova Sintra onde à posteriori veio e ser construído um destacamento nosso no entroncamento com a estrada que levava à Ponta de Maasa, já no litoral do rio Geba, o Comandante da Operação mandou avançar ao encontro da estrada decidindo que o nosso Pelotão devia formar três colunas de frente, sendo que após o a realização desta actividade retornaríamos àquele lugar que era o de encontro, o que foi feito, ficando o Vasco à direita eu no centro e o Monteiro na esquerda.

Assim que entrámos na picada aconteceu aquilo que se pode considerar o nosso baptismo de fogo. Fomos confrontados com uma imensa fuzilaria a partir do interior da mata do outro lado da estrada. Coibidos de nos movimentarmos e disparar ou actuar sem pôr em risco os nossos camaradas que se encontravam a par connosco, conforme a desbragada técnica que engendrou o Comandante da operação, e com receio e na iminência de ficarmos imobilizados, avancei de supetão, acompanhado por todo o Pelotão, impulsiva e obstinadamente, sendo nesta altura que toda a coluna se partiu, porquanto o resto das Companhias recuou para o local de encontro já esfrangalhado em grupos, vindo o nosso pelotão e ficar segmentado em três, cada uma das secções laterais tomado a sua direcção e conseguido os meus rapazes obrigar à fuga dos elementos do IN tendo dois destes sido feridos deixando no terreno uma metralhadora PPSH, uma das primeiras a ser capturada na Guiné-Bissau.

Dramático veio a tornar-se este nosso baptismo de fogo, porque seis dos elementos do grupo que estava à minha direita e em que estava incluído o meu amigo e conterrâneo Alferes Miliciano Vasco Sousa Cardoso, curiosamente sobrinho do na altura Governador Geral de Angola, General Silva Tavares, o que pôs em polvorosa as cabeças pensantes daquele Sector, veio a perder-se e infiltrar-se em zona onde proliferavam forças do IN que lhe moveram implacável perseguição durante dois dias, onde passaram provações tremendas acabando depois de um deles se ter suicidado com um tiro na cabeça, já depois de um outro se ter deixado arrastar pela corrente do rio, acabando o Vasco por ser abatido e tendo o Leiró por ultimo sido capturado. Foi por este elemento que foi depois evacuado a partir da Guiné-Conacri, creio que depois de três anos de cativeiro através da Suíça para Portugal. Apenas viemos a tomar conhecimento destes dolorosos momentos, já que uma aura de incompreensão e mistério nos acompanhou, nada jamais nos foi transmitido, já nos anos noventa por nos ter chamado a atenção um artigo numa das revistas da época, e nos deslocámos a Marrases-Leiria (aquilo a que auto-chamo a confraria sempre presente) - o Rui, o Malaca dos Santos, o Monteiro, o Bastos, o Cabral e o Rios, enfim a nata da Companhia. Ah..ah…ah…! Os corpos destes infelizes jovens filhos de Portugal nascidos numa época madrasta para a juventude, exceptuando os filhos e afilhados de figuras de proa e os que fugiam, por lá ficaram a servir de pasto nas miseráveis condições atmosféricas, aos predadores que por lá existiam – esta é a ditosa pátria minha amada!!!

A par da actividade normal e tímida desenvolvida pela desmotivada Companhia, algumas peripécias verdadeiramente rocambolescas iam servindo como motivadoras de uma maior aproximação e conhecimento do pessoal. Num dos dias, entendeu o inaudito Capitão C. que se devia abater uma vaca que tínhamos capturado e trazido para o aquartelamento de um dos patrulhamentos que tínhamos realizado nas redondezas, e munindo-se de uma pistola disparou dois tiros no bicho, ele mais não fez que soltar débeis mugidos mantendo-se placidamente de pé, ai o azougado Silva, condutor auto-rodas, que já não conduzia pois que tinha entrado directamente com o jipe, dentro do buraco junto da messe de Sargentos que o Cap. C. tinha mandado abrir igual ao que também mandara fazer, colado a messe de Oficiais e destinados a abrigos de protecção, pegou numa segunda-feira (marreta de cinco quilos) e pum…, deu uma pancada brutal e certeira na cabeça da vaca e ei-la como fulminada virada de pantanas, ganhou de imediato o cognome de mata-vacas que ainda hoje nas nossas reuniões de confraternização o acompanha; veio a ser um precioso auxiliar do Jaime, o cozinheiro da nossa messe. Nestes buracos que nunca serviram para nada, o da messe de Oficiais foi ainda palco de uma das mais hilariantes cenas a que assistimos: Num violentíssimo ataque ao aquartelamento em que caíram dentro deste dezenas de granadas de morteiro que provocaram imensos estragos, felizmente, sem acidentes pessoais porquanto na maioria nos metemos dentro dos abrigos desmoronou-se para dentro do abortado pré-abrigo a parede lateral da messe e que correspondia ao quarto dos Capitães C. e P. A., pelo que aquele ainda não completamente refeito do ataque, chamou o pessoal, para retirar os escombros e procurar a sua estimada máquina fotográfica, sendo que um dos rapazes ao encontrar uma máquina se apressou a entregá-la ao nervoso e ansioso Caria que de imediato respondeu: - Esse caixote é do P. A., a minha é uma Kodak genuína. Foi o efeito descompressor da tensão daqueles rapazes e o motivo de imensa gargalhada geral.

Com este conjunto de acontecimentos vividos na área de intervenção da Companhia na solidão e isolamento deste local cercado de uma imensidão de mata verde luxuriante que deveria aparentar paz e tranquilidade, mas que era em nosso entendimento, propiciadora dos maiores receios, ansiedades e perigos que se vieram a confirmar; houve ainda oportunidade para as peripécias o mais caricatas possíveis. A messe de Sargentos era mensalmente gerida por um dos comensais, tendo nesta ocasião calhado ao inaudito trovador, Ernesto Fernandes (parece que ainda o estou a ver onde passava a maior parte do tempo; placidamente deitado a simultaneamente, fumar umas cigarrilhas de cheiro horroroso (Negritas), a ler e a beber latas de leite com chocolate; raramente tomava uma refeição como nós entendemos como normal. O Ernesto (bela voz que acompanhava à guitarra, é de origem indiana o que se nota acentuadamente), resolveu um dia presentear-nos com um almoço VIP, com dois pratos.

Estupefactos, quando nos sentamos à mesa, estava com a respectiva chave, dentro de cada prato, uma lata de atum ou sardinha em conserva por abrir. Quem quisesse podia trocar, eram dois pratos dizia o cómico sacripanta. Foi uma paródia pegada para a malta, apenas um pretensioso, isolado complexado Sargento da Companhia barafustou. Como nota curiosa relembro-me do ênfase com que esta codiciosa criatura salientava o facto de já aqui ter feito, em Fulacunda, uma comissão como Furriel Miliciano, mas curioso é que nas diversas conversas com as nossas conselheiras na tabanca, nenhuma delas o conhecia.

Ainda traumatizados e rejeitando sub-conscientemente, a perca do Vasco Cardoso e dos seus companheiros, acreditando que os mesmos ainda poderiam aparecer, ficamos ainda surpreendidos ao tomar conhecimento da ida do Cap. C. para o Hospital de Bissau, para tentar, o que conseguiu, a evacuação para a Metrópole, invocando o agravamento na inócua deslocação a Uaná Porto, que deu origem a sua épica frase “Rumo a Fulacunda”, que utilizava a todo o momento nas parcas curtas incursões que fez fora do Aquartelamento.

Foram feitas alterações na Companhia de tal modo que de quatro passámos a três Pelotões passando o Serigado que era o comandante do segundo pelotão e com o desaparecimento do Vasco a livrar-se das saídas para o mato, passando acolitado pelo inefável Dr. D. N., a comandar interinamente a Companhia.

O Serigado para além de ser o introvertido que já tínhamos detectado desde o início da formação da Companhia ainda em Abrantes, veio a revelar-se um individuo calado, distante e frio, alentejano complexado e desconfiado, que ao assumir o Comando da Companhia, criou um clima de difícil relacionamento porquanto eram visíveis e intoleráveis para nós os tiques de sobranceria e displicência que ostentava despudoradamente, inadequados quanto a nós para um miliciano e poucas vezes encontrado nas nossas andanças e contactos com diversos Oficiais do Q.P. de patente superior.

Nestas alterações e durante um pequeno período ficou o nosso grupo sem comandante de pelotão.

(Continua)
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Nota de CV.

Vd. último poste da série de 4 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9310: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (6): Fragmentos Genuínos - 4