sexta-feira, 4 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9850: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (52): Bula - A guerra das minas (2) - Os "eleitos"

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 28 de Abril de 2012:

Olá amigo Carlos Vinhal,
Bom, acho que já te chega de folgas e comesainas, ao que parece bem animadas por sinal, nesse belo pedaço do ainda nosso Portugal.
É hora de trabalho para ti, que és um ”Mouro do mesmo” e de que estou certo, por norma gostas.
Como tal, cá vai mais um lanço de “Viagem…”que, já sabes, varres para a valeta se assim considerares.

Um abraço para ti e um outro para a”Juventude de outrora” e de agora que nos vai seguindo
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (52)

Bula – guerra das minas ( 2 ) Os “ Eleitos ”

Apeados dos Unimog, após a segurança estar montada e percorrida a pouca distancia até à zona de trabalho estabelecida no campo minado, os ”eleitos” munidos do equipamento preparavam-se para umas horas de trabalho de alto desgaste, onde a atenção e tensão seriam quase constantes, intervaladas por momentos de descanso e descompressão individuais e subjectivos na escolha do momento e duração, que só o próprio poderia e saberia determinar e quantificar.

Mentalização feita, azimutes tirados, zona de actuação definida e localização primária conseguida, era chegada a altura de a atenção não se dispersar. Depois e em seguimento do “lançamento” da “vara-medida” que deveria localizar o engenho ou a sua proximidade, a pica ligeira de verga de aço começava a funcionar com sensibilidade e moderação de força - de modo a não provocar inadvertidamente um eventual rebentamento caso acertasse em espoleta mais sensível (como veio a acontecer) - explorando a faixa de terreno que íamos pisar no curto trajecto até consumar a localização do engenho, dando então lugar à actuação da faca.

Com a atenção no máximo e tensão controlada em função da menor ou maior dificuldade do que se nos parecia apresentar, começava o manuseamento da faca (a minha tinha-a comprado na “Casa Barral”- Porto), uma espécie de “arte” que deveria ser executado com respeito e desapaixonadamente, com sensibilidade, sem facilidades e aplicando os saberes adquiridos, “desbagando” os cachos em quadrado com “AUPS” nos vértices e uma portuguesa ao centro, enfileirados e sequenciais.

Disposição das minas e dos cachos 
(parece-me ser o posicionamento dos cachos)

Sendo que grande parte das minas estava localizada nos locais previstos ou na proximidade, muitas havia no entanto em situação para todos os gostos: umas afastadas e completamente a descoberto, outras com camadas de terra encimada e difíceis de detectar, outras desviadas q.b., outras enterrados de viés (bem perigosas por sinal) muitas enraizadas em tufos e arbustos, outras incorporadas em formigueiros … enfim, tornando-se variadíssimas vezes um trabalho “cú de boi” encontrá-las, desactiva-las e levantá-las.

Os intervalos de descanso para esticar o corpo e aliviar as costas, falo por mim, faziam-se quando se achasse mas eram por norma de pouca duração, tempo de uma golada de água e uma cigarrada enquanto o pensamento esvoaçava por outras bandas. O trabalho tinha que ser feito.

Quando um desses “cú de boi” aparecia, bom aí podia acontecer que a paciência se começava a esgotar, os suores davam para alagar, os palavrões sucediam-se, a atenção começava a querer dispersar-se, o desânimo ameaçava rondar, o facilitismo começava espreitar. Era chegado o momento de espairecer, de descomprimir e travar tendências negativas para aquela função onde o perigo estava sempre à espreita. Demorasse o tempo que demorasse, só nós próprios é que podíamos sentir e saber o momento de recomeçar a labuta, não podendo haver lugar a pressões e muito menos a imposições. Éramos, continuo a falar por mim, os decisores em causa própria e não devia nem podia ser de outra maneira, sob pena de acontecimento grave.

Nos ”cú de boi” era bom tomarem-se estas precauções preventivas, eu tomava-as,  pois uma das coisas passíveis de acontecer e que não queria, seria por exemplo, exasperado pelo esforço e ao mesmo tempo contente por ter conseguido encontra-la e levanta-la, agarrar na mina e “fungá-la” no chão ou no caixote de recolha acompanhada talvez dum “cabrona f.d.p.” ainda por cima sem antes a neutralizar, ou pinchar em cima dela a chamar-lhe nomes feios, dar-lhe uma biqueirada à guarda-redes… exagero o que digo?… pois será, mas aconteceu!

Devíamos dar o nosso melhor contributo para a nossa própria segurança e para isso também era, sempre o soube e pratiquei, indispensável manter o equilíbrio físico e mental em todos os momentos, na tentativa de minimizar os riscos de um trabalho extenuante por ser em contínuo, num campo de minas com aquela dimensão e densidade. Daí e a meu ver, a importância dos descansos autónomos.


Deitados, acocorados ou de joelho no chão conforme as situações, os “mineiros encartados” iam avançando com e ao seu ritmo, “lavrando” os seus terrenos com minúcia e destreza por norma consciente, descobrindo e colhendo uma a uma as sementes de mutilação, neutralizando-as de imediato, ao que me parece recordar apondo-lhes as protecções de segurança, tampas nas plásticas, cavilhas nas metálicas portuguesas retirando-lhes depois o sistema de detonação e acomodando-as de seguida e separadamente em recipientes de recolha próprios .

Esta espécie de rotina, que não deveria ser rotineira, sucedia-se mina a mina, cacho a cacho durante horas a fio até final da jorna, altura em que se regressava às viaturas que nos levariam de regresso ao quartel onde a tarde e a noite eram nossas, pois tínhamo-las ganho e bem ganho. Era chegada a hora dum belo “banho à Nharro”(sem ofensa), duns bons canecos, talvez do dedilhar na viola, de escrever um “bate-estradas”, duma bela sorna com leitura à mistura e à fresca do ar movimentado pela ventoinha… pois na manhã seguinte teríamos que estar recuperados e frescos para mais do mesmo, tendo sido esta a nossa vida durante dias e mais dias nos finais de uma comissão que já não tinha sido fácil.

Faca de mato em acção e mais uma "AUPS" recuperada

© Foto de Carlos Vinhal

No dia a dia renovava-se a esperança de que não houvesse qualquer acidente, o que nem sempre aconteceu. Logo nos primeiros dias do início, inadvertidamente o primeiro desastre aconteceu e infelizmente mais se seguiriam ao longa daquela ”caminhada” não ocorrendo outros por… sabe-se lá porquê!

Sorte, destino? Cá por mim acredito que por Graça Divina.
Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9690: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (51): Bula - A guerra das minas

Guiné 63/74 - P9849: Parabéns a você (415): José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CART 2716/BART 2917 (Guiné, 1970/72)

Para aceder aos postes do camarada José Rodrigues, clicar aqui
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9843: Parabéns a você (414): Delfim Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAV 3366/BCAV 3846 (Guiné, 1971/73)

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9848: Cartas do meu avô (1): Primeira: No Cachil (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Como, Cachil e Catió, 1964/66)

 A. Mensagem, datada de 25 de abril último, do nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Como, Cachil e Catió) nos anos de 1964/66 e que, agora, com todo o tempo do mundo, passa a vida entre Algés, Aveiro, Ovar e Berlim...


Caros Co-Editores: 


Com um grande abraço e , mais uma vez,  a confissão da minha admiração pelo vosso esplendoroso trabalho, aqui vos trago a continuação das minhas Cartas (*) que, em tempos, aqui foram partilhadas... se assim o entenderdes fazer. Joaquim Luís Mendes Gomes.


B. Nova série, dando seguimento à anterior,  Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (*).  



CARTAS DO MEU AVÔ
por J.L. Mendes Gomes [Berlim, Alemanha]
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Índice

PRIMEIRA - Tempos da Guerra 

I - No Cachil II - Em Catió III - Em Bissau 


SEGUNDA - Regresso ao Continente 
I - Chegada II - Primeiro Emprego e Casamento III - Universidade IV - Quadro Técnico 

TERCEIRA - Em Aveiro 

I - Azurva II - Quintãs 


QUARTA – De novo para Lisboa 
I – A Frustração do CEJ II - O Calvário do Contencioso III – A Aposentação 


QUINTA - Como Saltimbancos entre… 
I - Algés  II - Aveiro III -Ovar IV - Berlim 


 SEXTA – O pior estava para vir… 
I – Clínica de Coimbra II – O neto Tomás 


13 Março 2012, 3ª Feira 
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Lichtenrade, em Berlim – 5 de Março de 2012- terça-feira



PRIMEIRA  - NO CACHIL, ILHA DO COMO

1. Fazia nesse dia exactamente um mês que a companhia [, a CCAÇ 728,] se instalara no Cachil [, na ilha do Como]. Em rendição da CCaç [ 557] que restou da grande e histórica operação Tridente. Esta fora a empresa suprema das altas chefias militares de então para extirpar de vez o cancro da autopropagandeada independência que os turras da Guiné estavam a espalhar por toda a parte. Com todos os meios militares disponíveis, dizia-se. Mas foi empresa falhada. Pois que o que se conseguiu foi, apenas, implantar, no fim, uma companhia, naquele ilhéu do sul, a marcar presença. Como quem diz:
 - Quem manda aqui… somos nós.- Nada mais. 


Extenuada pelas duras refregas que sofrera, durante os três meses que durou aquela operação, as forças que sobraram aos homens da 557, deram só para erguer o tosco quartel, murado de troncos de palmeiras justapostos, em quadrilátero com uns 150 m de lado, e umas escassas casernas e barracos, dentro, feitas com o mesmo, mais as chapas de bidões, como cobertura. 
 - Mais um pouco e teríamos de ser todos evacuados de exaustão - exclamava-me, de olhos esbugalhados, quando ali chegámos, o jovem e esquálido médico, que os assistira desde o início. 


 Nós tínhamos arribado uns três meses atrás à Guiné. Fizéramos a ambientação à guerra, ao terreno e ao clima, com emboscadas e golpes de mão semi-fictícios,( tudo podia acontecer…) de dia e de noite, ali à volta de Bissau. Uma zona calma, entre Nhacra e Mansoa. Em Bissau, não se ouvia falar doutra coisa, senão do terror do Sul, para as bandas de Catió. Mal sabíamos que essa seria a prenda que nos estava reservada. A muito breve trecho. 


 2 - Prenda de Natal,  24 de Dezembro de 1964 


Era a hora do jantar. Os soldados já tinham ido à cozinha com suas marmitas buscar o jantar e tinham-se espalhado por onde dava jeito, pelas casernas e outros recantos, a comê-lo. Meia dúzia de batatas cozidas, com bacalhau, azeite e feijão frade, um casqueiro e um caneco de vinho tinto do barril. 


Era a véspera de Natal. Estava escuro como breu. Ouvia-se, apenas, o ronronar surdo do gerador de gasóleo que não parava, não podia parar, noite e dia. Essencial, sobretudo, durante a noite. Para lá duns 300 metros, ficava a orla das sinistras matas densas que convinha ter bem à vista das três sentinelas de serviço. Era o serviço mais rigoroso e responsável que havia no quartel. No alto das suas guaritas, o melhor reforçadas possível. Sobretudo daquele lado. Porque dos outros, era muito improvável qualquer aproximação que nos pusesse em risco. Eram o lado das bolanhas e do emaranhado de ramos afluentes do rio Cacine (?).  A essa hora, era hora de maré-cheia. Dava para que a lancha pudesse atracar ao cais tosco, lá ao fundo, a uns 1000 metros mais ou menos. No quartel não havia água que se pudesse beber ou cozinhar. Vinha toda em barris de Catió. E tinha chegado mesmo, porque, de repente, fez-se o silêncio geral no quartel. 


 Toda a gente saiu das casernas e veio pespegar-se, sofregamente, à volta da tenda do nosso Primeiro, onde era habitual fazer-se a chamada para o correio. O nosso, vieram trazê-lo à mesa comprida, de 6 ou 7 longas tábuas corridas, debaixo dum toldo, onde ficava a sala de jantar dos oficiais e sargentos. Ali, debaixo dum embondeiro gigantesco. Eram cinco oficiais e uns vinte e tal sargentos. 


Eu também fui prendado com uma carta de avião. Um envelope comprido de papel fino e leve, debruado com as cores da bandeira nacional. Vinha de uma tal A.T. De Lisboa. Fiz as minhas contas, de imediato. Nada esperava, e, daquelas bandas, de Lisboa, com aquele nome, nada constava na minha memória. A letra era redondinha e elegante. Os iis tinham todos uma bolinha redonda em cima, em vez da pintinha, simples. Um toque que me pareceu simpático, bem como o nome que ela tinha. Fez-me lembrar alguém da minha infância, a cobiçada Doroteia, filha mais nova duma simpática família afidalgada, ao pé da minha casa. Abri com cuidado, sem rasgar nem amachucar, o envelope. Era o instinto de 
conservação, para mais tarde recordar… que despontava. 


Li a correr a única folha muito bem dobradinha. Escrevia muito bem. Quem a mandara era uma moça que ia a meio do curso de biologia em Lisboa; gostava de ler, escrever, ouvir música e de ir com os pais para a praia, no tempo dela; era a sua única companhia - tinha um só irmão no colégio militar. E passava muito tempo na catequese da sua igreja. 


Fez-se luz na minha cabeça. Tinha esquecido que, em tempos, ainda em Bissau, havia pedido uma madrinha de guerra ao movimento nacionalfeminino…com duas condições:  que fosse culta e com sólida formação moral. Exigência altamente redutora. Vieram alguns aerogramas. Nenhum me seduziu. Por isso, esqueci. Fosse lá porque fosse, ou porque estivéssemos nós na véspera de Natal, ou porque já me estivesse a custar muito manter contacto com a moça do Funchal, devido sobretudo, à extrema pobreza das suas cartas…apeteceu-me responder-lhe. Ficaria para depois. 


 2 – Naqueles primeiros tempos de Cachil, havia muito trabalho para fazer no quartel. As reuniões dos quatro oficiais e sargentos, com o comandante de companhia eram frequentes e demoradas. Na tenda-bivaque em pano, onde ele tinha o gabinete de comando. Havia que delinear a melhor forma de ali passarmos o tempo que nos fosse determinado a partir das altas chefias de Bissau. 


O capitão não se cansava de frisar que a segurança e a boa ordem dentro do quartel eram a base de sucesso. Acima de tudo, era preciso manter a rapaziada sempre activa e bemdisposta. Melhorar os aposentos e os abrigos; sobretudo os do material de guerra, granadas, minas e munições; abrir latrinas que chegassem e postos de balneário, para cada pelotão; a cozinha, um refeitório e um bar seriam objectivos de execução imediata. Depois viria a reconstrução das instalações em cimento, se Bissau nos mandasse os necessários tijolos. 


O breve contacto que tivemos no início, com a soldadesca esgrouviada da 557, muito cansada, tirou ao duro comandante qualquer veleidade de manter a desmesurada militarice que fora seu apanágio, desde Évora. Nada de fardamento a condizer ou a reluzir. Com bivaque ou sem bivaque. De camisa ou peito nu. Sempre em calções. Com barba ou bigode. Nada de cabelos compridos nem brinquinhos na orelha. Tudo estava bem. A G3, de cada um, essa, deveria estar sempre funcional, à mão e segura. Era o pára-raios do quartel. Mas, o respeito pela hierarquia, também deveria ser bem trabalhado e fomentado. Sem imposições fúteis ou desnecessárias. Disciplina, sim. Haveria que fomentá-la e conservá-la. Cada comandante de pelotão deveria puxar pela sua criatividade para executar essas directivas inquestionáveis. Para bem de todos.Quando as coisas estivessem bem arrumadas, então, pensar-se-ia noutros tipos de acção que propiciassem bem-estar à rapaziada. Com torneios de cartas ou dominó, pingue-pongue, aulas de escolaridade etc. 


Não foi preciso muito tempo. Quem, de antes, ao cabo de um mês, revisitasse o Cachil, ficaria de olhos arregalados com o que ali se fez. Com tão poucos recursos. Quando se quer e se está empenhado, as maravilhas não se fazem rogadas. 


3 – Eu herdei e fiz questão de ficar com um quarto, incrustado na paliçada, que o habilidoso corneteiro da companhia anterior erguera para si. Um cubículo com certo conforto. Não fosse ele carpinteiro de profissão. Com as tábuas dos barris de vinho, engendrou uma estante com mesa e tudo. Onde pude pôr os meus fiéis e inseparáveis companheiros. Umas dezenas de livros de estudo, dicionário e até um gravador estereofónico… Sony. Ultramoderno. Sobretudo, estaria sozinho, como gostava. Livre das arruaças e devaneios habituais dos meus jovens camaradas. Era o meu feitio. Excessivamente reservado e limitado. O que já conheciam e, de alguma forma, toleravam. 


É preciso notar que não foram em vão os quase dez longos anos passados no seminário. Numa altura em que a árvore cresce e se ramifica.Tanta poeira e cinza sobre seus ramos se me poisou. E quão difícil para sacudi-las… Ainda hoje, por aqui andam a atrapalhar-me. Também nem tudo foi mau. O gosto pelo estudo e uma vontade irreprimível de crescer e ser alguém ilustrado que me incutiram e, porque escondê-lo, ilustre, se possível, ficou bem gravado, até à obsessão. 


 Com todos os retrocessos provocados pelo jogo da complicada correspondência de estudos entre seminário e o ensino oficial, cozinhada e imposta pela dupla – cardeal Cerejeira e Salazar,- eu ainda não tinha garantido o acesso à universidade. Era oficial miliciano, graças ao grau que retinha do curso de teologia. 


 Se a sorte me brindasse com um feliz regresso, o que eu queria era entrar numa faculdade. Que curso? Uma incógnita. Muito espinhosa. Teria muita facilidade e um notável avanço, se escolhesse as “clássicas” : Linguística, latim e grego. Mas, ser professor de liceu… seria o que me esperava. Não agradava. Teria de andar de malas às costas por esse país fora… e, sobretudo, estava farto de ouvir falar de gregos e romanos. Sentia, porém, uma vontade de sentir outros ventos. Que me arejassem a cabeça. Num curso que me desse sucesso financeiro e social. Psicologia aplicada. Estava a nascer. Gostava. Só em Lovaina, como meus ex-colegas fizeram. Cá não havia tal curso. Direito? Até dava jeito. Só que não percebia nada desse mundo das leis. Nem eram do meu agrado. E, advocacia, nem pensar. Medicina? Sim. Mas, as matemáticas eram como galgar a pé, os Alpes ou os Pirinéus… Bom. Depois, se veria. 


 Foi aqui que a carta de Lisboa apareceu. Muito certeira e oportuna. Duma estudante de Biologia, a meio do curso. Dava certo. Calhava mesmo bem. Além do mais, facilitar-me-ia o ingresso no mundo académico. Vamos a isso. Quando chegou a hora, no silêncio do meu casebre, com electricidade e tudo, pus-me a escrever-lhe o meu primeiro aerograma dos que eram fornecidos grátis, na secretaria do Primeiro-sargento. 


4 – Fim dum Pesadelo


O pior estava para vir. Nos quatro meses que passei no BI 19 do Funchal (*), deu para me amarrar a uma donzela nativa… Sem eu dar conta, mas sempre com meu acordo, me erigiram seu noivo, com festa e apresentação à família e tudo. Antes de regressar ao “continente”. E, uma vez regressado em Évora, deslocou-se ela com a mãe a Lisboa, onde permaneceu umas semanas, para nos vermos aos fins de semana. E, na mesma linha, desloquei-me eu lá no paquete Funchal, nas curtas férias, antes de partir para guerra…Tudo estava muito bem soldadinho e apertado. Um dia que regressasse era só casar…Emprego, reservado na empresa de automóveis do sogro… 


No fundo, não me importei porque sabia que tudo poderia desfazer-se. Como me enganei. Que grande carga de trabalhos me esperava. Aconteceu que cada aerograma que me chegava, depois do primeiro, era um balde de insatisfação intelectual. Este aspecto era-me muito importante. O afastamento físico dava para discernir melhor se aquela seria a tal… companheira para uma vida inteira. Cada vez se me afigurava mais claro que não. Tudo tinha sido um entusiasmo de muito sonho e muita ilusão. Fora o primeiro contacto tête-a-tête com os perfumes de mulher, para quem renunciara, há bem pouco tempo, às sendas eclesiáticas. À medida que choviam regulares os aerogramas da nova desconhecida, de Lisboa desvanecia-se mais e mais a possibilidade de continuar com a do Funchal. 


Que turbilhão de ondas se ergueu no oceano da minha cabeça… me iam naufragando. Choros e ameaças lancinantes, dela, insistentes cartas pungentes suas, da mãe e de familiares, aqueles que apenas me viram no dia de apresentação à família, queriam, a todo o custo, repor as coisas no mesmo ponto. Tão confuso e atormentado me sentia que não havia estrondo ou ameaça de ataque inimigo, por maior que fossem, que se lhe sobrepusesse… Um duelo sangrento de forças antagónicas disputava constantemente todos os recantos e poros da minha cabeça. Noite e dia. Já me sentia um desgraçado. No princípio da vida adulta. Pensava que não seria mais capaz de voltar para trás. De tal forma que a preocupação com o risco de morrer na guerra quase se esvaiu…tanto valia. 


Mergulhado na guerra, eu pedia mais a Deus que me ajudasse a sair daquela encruzilhada do que a sair-me vivo dela. E Ele ouviu-me. Assim pensei. Veio a primeira grande operação. Iria acontecer o nosso baptismo de fogo a sério. A minha companhia fora destacada para montar segurança, algures na estrada de Catió-Cufar, uma função de rectaguarda, enquanto se desencadearia uma grande operação, com tropas veteranas, da força aérea, da marinha e do temível e lendário obus de Bedanda. 


Foi então, que, nos intervalos da guerra, pude conhecer o famoso e inesquecível capelão militar que sempre acompanhava as suas tropas, no terreno, totalmente desarmado. A sua arma era só uma discreta cruz na lapela. Que exemplo de coragem! Que arrimo para o moral da companhia!... 


Não demorou que lhe estivesse a expor o meu dilema terrível. Ponto por ponto. Eu sabia e acreditava que estas pessoas, quaisquer que sejam as suas imperfeições, têm poderes que os transcendem…são um instrumento nas mãos de quem tudo pode. 
- Olhe, lá!... Você ficou a dever-lhe alguma coisa?
- Não. Tudo intacto como encontrei...- respondi. - Mas…
- Mas, nada!...Não tem a mais pequena obrigação de continuar… Esta é a minha opinião…Você, agora é que sabe… 


Que alívio!... Fez-se luz. E veio-me a força para seguir em frente. Estava traçado o caminho. Iria acabar todos os contactos com ela. Abençoado capelão militar. 


J.L. Mendes Gomes


(Continua)


Fotos (do Cachil): © José Colaço (2011) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
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Nota do editor

(*) Vd. último poste da série > 18 de novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7302: Cartas, aos netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (7): Funchal, 1964: quando o amor não resiste à dura realidade da guerra...

Guiné 63/74 - P9847: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (1): Cobumba, Pessoas, Guerra e Reflexões

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), com data de 28 de Abril de 2012:

Carlos,
Aqui vai um texto (reflexão sobre o meu tempo de Cobumba) que publicarás se entenderes conveniente.

Recebe um abraço, extensivo a todos que tornam possível a manutenção do Blogue, aproveito também para agradecer terem publicado o meu tempo de tropa (O Tempo Que Ninguém Queria), assim como a quantos tiveram a paciência para seguir a publicação.

António Eduardo Ferreira




PEDAÇOS DE UM TEMPO

1 - COBUMBA / PESSOAS / GUERRA / REFLEXÕES

Foi difícil, a vida dos homens da CART 3493 em Cobumba, mas a daquela gente que por lá morava não foi melhor, deixaram de ser bombardeados pelos tugas, passaram a ser por alguns dos seus que integravam as forças do PAIGC (uma mulher da população morreu vitima de uma flagelação.) 

Não deve de ter sido nada fácil de encaixar a mudança, o que eles de facto desejavam era a paz e não a continuação da guerra. (Muito tempo já passou e a esperança de muita daquela gente numa vida melhor, parece continuar a ser uma miragem.)

Havia certos dias em que as poucas pessoas que por lá estavam a maior parte do dia passavam-no junto ao seu abrigo, que seria certamente mais seguro que os nossos dado o sítio onde se localizavam (debaixo de um grande mangueiro) e a forma como eram construídos, apenas com cerca de um metro de largura. Era nossa convicção que eles estavam por ali porque tinham informações que nós não tínhamos… algumas vezes o “arraial” acontecia mesmo e nesses momentos estar perto de um abrigo podia fazer toda a diferença… também havia dias em que passavam lá grande parte do tempo mas nada acontecia, (provavelmente alguma informação que não se concretizava.)

Apesar das poucas conversas que tínhamos com a população, por vezes lá íamos fazendo algumas perguntas a que eles normalmente respondiam (aqueles que nos entendiam), certo dia perguntei ao filho do chefe de tabanca de que é que eles tinham medo quando ainda não estava lá a tropa branca, ele respondeu que era do passarinho grande (o avião), quando o passarinho aparecia se estavam na bolanha e esta tinha água (velhos e novos) deitavam-se, ficando apenas com parte da cabeça de fora, ele dizia, só com um olho fora da água. Era um menino de doze ou treze anos (o Zé) que certos dias saía com uma pequena saca onde dizia levar os livros e que ia para a escola em Pericuto que ficava do lado de lá da bolanha mas onde nós não íamos, porque apesar de ser perto era arriscado… a haver escola ou coisa parecida, teria que ser da responsabilidade do PAIGC…

Um outro com quem falei dizia que tinha sido carregador do PAIGC, transportava material de guerra à cabeça (chamava-se Miranda) o sítio mais longe onde tinha chegado foi ao Xitole, era um homem já de certa idade normalmente não saía lá da tabanca. Já perto do fim da nossa estadia naquele sítio as minas continuavam a causar-nos grandes preocupações, pois eram colocadas mesmo do lado de dentro do arame que nessa altura já circundava todos os abrigos e parte da picada. 

Devido a essa situação foi exigido ao chefe da tabanca que nomeasse alguém, que teria de andar todo o dia no carro ao lado do condutor, era uma forma de pressionar possíveis familiares que estavam do lado do PAIGC para não colocarem as minas, se é que isso poderia ter alguma influência nas ordens dimanadas do Partido. 

Recordo-me do primeiro e não sei se o único que andou comigo foi o filho do chefe, o Zé, entre eles era quem falava melhor português. Também para os condutores era uma situação estranha, andarmos todo o dia com alguém a nosso lado coisa a que não estávamos habituados. Não sei se psicologicamente isso nos terá ajudado.

Não me recordo se foi detectada mais alguma mina depois dessa exigência (nem faço ideia com que vontade) cumprida pelo chefe de tabanca. Também nunca soube se essa ordem foi pensada no Comando da Companhia ou veio de outro sítio, o certo é que aconteceu e chegou ao conhecimento do PAIGC, pois na rádio que transmitia em seu nome através da voz daquela a quem chamávamos a “Maria Turra” esse assunto foi muito falado. A esta distância no tempo dá para entender melhor como era difícil a vida daquela gente, que tinha de parecer estar bem com os dois lados (PAIGC e a Tropa Portuguesa), mas na verdade isso não era possível.

Coisas a que a guerra obriga. Como seria bom acabar com as guerras! E erradicar a palavra de todos os dicionários para que os vindouros não a chegassem a conhecer e assim não pudessem pensar que com ela, resolviam os grandes problemas que afetam a humanidade e deixassem de morrer tantos inocentes, existissem tantos estropiados, tantas viúvas, tantas crianças órfãs e outros para quem o viver perdeu o sentido.

Na guerra todos saem perdedores, uns mais do que outros é certo, mas todos sofrem as terríveis consequências que dela resultam. Pensar assim é uma utopia, eu sei, mas permite-me acreditar naquilo que eu gostava que acontecesse e não tenho dúvidas que o mundo assim seria um mundo melhor.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9683: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (4): De Cobumba para Bissau e regresso à Metrópole

Guiné 63/74 - P9846: Tabanca Grande (335): Maximino Guimarães Alves, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do Centro de Escuta do Agrupamento de Transmissões de Bissau, 1972/74

1. Em mensagem do dia 25 de Abril de 2012, recebemos as fotos da praxe do nosso camarada e novo tertuliano Maximino Alves, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do STM, Centro de Escuta do Agrupamento de Transmissões de Bissau, 1972/74. Passa a ser o nosso grã-tabanqueiro nº 554.


2. Lembremos o que nos disse o camarada Maximino num comentário deixado no P3498, que por sua vez deu origem ao P9799*:

Chamo-me Maximino Guimarães Alves, sou de Fafe, Minho.

Como Radiotelegrafista do STM a minha comissão na Guiné foi no Centro de Escuta do Agrupamento de Transmissões (Outubro de 1972 a Agosto de 1974).

O 1º Centro de Escuta onde fiz serviço ficava fora do quartel. Era numa das vivendas do lado de fora, quase em frente à Intendência... O 2º Centro de Escuta, quase no fim da minha comissão, já era junto a um dos blocos de casernas novas, perto do campo de futebol e do refeitório.

Recordo, do Centro de Escuta, o Furriel Santos Pereira, (fazia dupla comigo durante os serviços nocturnos, excelente parceiro, tradutor das mensagens que recebíamos), Garcia, Faustino Estanqueiro, Faustino Pinto de Jesus, Páscoa, Fur. Meira, Adelino Rei, Couto, e muitos outros que não me lembro o nome agora...

Terminei as segundas férias no dia 21 de Abril de 1974 regressando à Guiné no dia 22 de Abril de manhã. Iniciei o serviço precisamente no dia 25 de Abril de manhã, já no Centro de Escuta novo.

O que o Furriel Hélder Valério diz sobre o Centro de Escuta é exacto. Consistia, no que ao meu serviço dizia respeito, em receber mensagens em morse, normalmente com o texto em francês que depois eram traduzidas se fossem em texto normal, ou descodificadas pelos criptos se fossem codificadas.

Também gravávamos programas da BBC, Voz da América, discursos do Amílcar Cabral, da esposa, conhecida por Maria «Turra», etc...

No primeiro ano no Agrupamento, íamos almoçar e jantar ao Quartel General que fazia «fronteira» com o nosso... Só em 1973 tivemos o nosso refeitório novo que, por sinal, era excelente. Tenho várias fotografias do quartel e do centro de escuta. Gostava de as partilhar. O que devo fazer?


Também posso informar que vai haver um encontro no dia 5 de Maio, nos Arcos de Valdevez, de antigos militares do Agrupamento de Transmissões da Guiné. É organizado pelo Garcia. Se alguém estiver interessado posso fornecer o contacto dele.
O meu email é: maxalves@netcabo.pt


3. Comentário de CV:

Caro Maximino, este poste é só para te apresentar formalmente como novo camarada à tertúlia do nosso Blogue.

Já te apresentaste no Poste 9799, pelo que já sabemos seres um minhoto de Fafe, terra onde ninguém fanfe.

Do teu percurso militar, que se confinou felizmente para ti a Bissau, já sabemos alguma coisa, mas muito mais queremos saber porque este Blogue ainda tem muitas páginas em branco.

Resta-me dar-te o habitual e indispensável abraço de boas-vindas em nome da tertúlia e dos editores.

O teu camarada
Carlos Vinhal
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9799: O Nosso Livro de Visitas (133): Maximino Guimarães Alves, ex-Radiotelegrafista do STM (Bissau, 1972/74)

Vd. último poste da série de 1 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9840: Tabanca Grande (334): Leopoldo Correia, ex-Fur Mil da CART 564 (Guiné, 1963/65)

Guiné 63/74 - P9845: Documentos (25): Análise da situação do inimigo - Acta da reunião de Comandos, realizada em 15 de Maio de 1973 - Parte IV (Luís Vaz Gonçalves)

1. O nosso amigo Luís Gonçalves Vaz, membro da Tabanca Grande e filho do Cor Cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (último Chefe do Estado-Maior do CTIG - 1973/74), enviou-nos mais uma mensagem dando continuidade ao trabalho documental iniciado nos postes P9639, P9748, P9755 e P9765, relativo à Análise da situação do inimigo - Acta da reunião de Comandos, realizada em 15 de Maio de 1973 no Quartel-general do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné. 

Camarigos: 

Aí vai a PARTE IV, sobre a "Reunião de Comandos, realizada em 15 de Maio de 1973", onde se apresenta a comunicação do tenente-coronel do CEM, Mário Martins Pinto de Almeida, o Chefe da Repartição de Operações: 

PARTE IV 

Reunião de Comandos, em 15 de Maio de 1973, “Ata da Reunião" 


“Em 15 de Maio de 1973, pelas 10H30, no Quartel-general do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, teve lugar, sob a presidência e mediante convocação do General Comandante-Chefe, General António de Spinola, uma reunião de Comandos na qual participaram os comandantes-adjuntos respectivamente, Comodoro António Horta Galvão de Almeida Brandão, Comandante da Defesa Marítima da Guiné, Brigadeiro Alberto da Silva Banazol, Comandante Territorial Independente da Guiné, Brigadeiro Manuel Leitão Pereira Marques, Comandante-Adjunto Operacional e Coronel Gualdino Moura Pinto, Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné, entre outros oficiais superiores chefes das diversas Repartições, nomeadamente os das "Informações" e das "Operações"…” 

 General Comandante-Chefe, General António de Spínola 

“… Dou a palavra ao tenente-coronel do CEM Mário Pinto de Almeida, o Chefe da Repartição de Operações …” 

"... torna-se necessário dotar o TO com uma Nova Força de Retaliação que, pelo seu poder dissuasor, impeça os países vizinhos de apoiar e reforçar o IN, lançando acções ofensivas, aéreas ou convencionais, com utilização de carros de combate, a partir do seu território. Esta força de Retaliação poderá ser constituída por meios aéreos mais aperfeiçoados e eficientes do que aqueles que agora possuímos e por uma força com base nos 3 Batalhões de Caçadores que se julgam necessários para reserva do TO..." 

Tenente-coronel do CEM Mário Pinto de Almeida 
(O Chefe da Repartição de Operações) 
in: Anexo "B" à Acta da Reunião de Comandos de 15 de Maio de 1973 

Segue digitalizado e para vossa análise, o Anexo "B" à Acta da Reunião de Comandos de 15 de Maio de 1973 







Luís Beleza Vaz 
(Tabanqueiro 530) 
__________ 

Nota de MR: 

Vd. também sobre esta matéria os seguintes postes do mesmo autor em: 




Guiné 63/74 - P9844: Memórias da minha comissão (João Martins, ex-alf mil art, BAC 1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69): Parte II_ Batismo de fogo em Bissum-Naga até às férias...





Guiné > Bissau > BAC 1 > Dezeembro de 1967 > Peça de museu, de arilharia, possivelmente do tempo da(s) "guerra(s) de pacificação", à entrada da messe de oficias > Foto nº 23/199 do álbum do João Martins (ex-Alf Mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69) .





Guiné > Bissau > BAC 1 > Dezeembro de 1967 >  Obuses 10.5 > Foto nº 31/199
 



Guiné > Bissau > Bissau > c. meados de 1968, tempo das chuvas > Avenida marginal, dando ao acesso ao porto de embarque >  Foto nº 56/199.






Guiné > Bissau > Bissau > c. meados de 1968 >  Instalações da marinha, junto ao porto >  Foto nº 57/199.






Guiné > Bissau > Bissau > c. meados de 1968 > LDM no Rio Geba, ao fundo  do  lhéu do Rei, frente ao porto de Bissau. (Distância aproximada: 1,5 km) [... e não "Ilha do Príncipe"] > Foto nº 62/199.





Guiné > Região do Cacheu > Bissum-Naga > 1968 > "Eu em Bissum - à esquerda ainda se vê o 'canhão' de um obus 8,8cm e a entrada do aquartelamento virada a Nordeste; ao fundo, um abrigo onde dormia, com um posto de vigia em cima, e à direita e em primeiro plano, no meio da parada, e danificado pelas granadas de morteiro do IN que caíam com muita frequência, estava o paiol das munições". 



Fotos (e legendas): © João José Alves Martins (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da  Guiné. Todos os direitos reservados. (Fotos editadas e parcialmente legendadas por L.G.)



Memórias da minha comissão na Província Ultramarina da Guiné - Parte II (*)




Por João Martins  (ex-Alf Mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69) . 


(Continuação)

4 – Chegada à Guiné e partida para Bissum-Naga

Na manhã do dia 19 de Dezembro de 1967 (*), chegámos e atracámos ao cais de Bissau. Vieram-nos buscar e conduziram-nos à nossa nova unidade, a BAC 1 (Bateria de Artilharia de Campanha nº1). 


Apresentámo-nos ao Capitão Abreu Faro, comandante da unidade, que nos deu as boas-vindas e teve uma breve conversa connosco. Perguntou-nos quais as nossas perspectivas, comecei por ouvir os meus dois camaradas. Um, disse que sofria do estômago e que agradecia um lugar em que se comesse bem, o outro, que tinha mulher e um filho de modo que lhe dava jeito um local onde não houvesse muita “porrada”.

Depois de ter pensado duas vezes, e já que não fazia sentido pedir o mesmo que os meus camaradas, se bem que fosse essa a minha vontade, resolvi pedir as férias em Agosto [, de 1968], na Metrópole, para as poder gozar em S. Martinho do Porto, porque, sem praia e sem mar, as férias para mim não são férias. E assim aconteceu tanto em 1968 como em 1969.

A seguir, o capitão mandou-me vestir o camuflado e mandou-me para a Lancha de Desembarque Média (LDM) que já se encontrava no cais,  com um pelotão de 3 obuses 8,8 cm.

Não me lembrei da ração de combate, pelo que, na ida para Bissum-Naga pelo rio Cacheu, passando por Joanlandim [o João Landim, na travessia do Rio Mansoa], durante dois dias praticamente não soube o que era comer nem beber, nem mesmo os da lancha me deram o que quer que fosse.

Era esta a falta de solidariedade que se vivia entre militares de ramos diferentes, o que mostra a falta de espírito de “unidade nacional” sem a qual não se vencem guerras, e, quanto ao dormir, faz-se ideia do que é dormir ao ar livre, numa noite bem escura para não sermos vistos pelo IN, em cima de um colchão de espuma.







Guiné > Região do Cacheu > Carta de Bula (1953) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bissum-Naga e de Biambe.



5 – Bissum-Naga

Chegámos a Bissum a 21 de Dezembro [de 1967], portanto, na semana que precede o Natal, pelo que, como de costume, e talvez para esquecer as saudades das famílias que nessa quadra ainda são mais intensas, iniciámos a operação “Bolo Rei”, a que se seguiu a operação “Cavalo Orgulhoso”.

Tive uma adaptação particularmente difícil, porquanto logo nos meus primeiros dias tivemos feridos e mortos, e, na véspera de Natal, de forma imprópria de gente civilizada, houve um elemento considerado afecto ao inimigo que foi muito, mas muito maltratado, pelo que fiquei a saber da selvajaria de que também éramos capazes. Foi um dos piores locais da Guiné por onde passei.

Terra de balantas, etnia altiva e independente, nunca me senti muito bem visitando as palhotas e interagindo com a população, dir-se-ia que, ao longo de cerca de 500 anos de convivência os nossos povos tiveram muito poucos contactos.

A tabanca localizava-se entre o aquartelamento e o rio Cacheu, ao longo da estrada, de modo que eramos atacados apenas dos quadrantes Sul e Este. Nós e a população éramos frequentemente sujeitos a flagelações por parte do IN que nos atacava tanto de dia como de noite, pelo que, durante os meses que estive lá, dormi sempre sem saber o que eram uns lençóis e um pijama.

Recordo vários episódios:

Uma vez, numa operação, um dos nossos soldados tropeçou num ninho de abelhas. Ficou com a cara de tal maneira picada e inchada que estava completamente irreconhecível, é claro que teve que ser imediatamente evacuado para Bissau.

Todos os dias era necessário ir buscar água à bolanha que não ficava longe, cerca de 800 metros a Nordeste, e estava rodeada de palmeiras que tapavam a visibilidade. Era uma rotina normalmente sem incidentes, pelo que os nossos soldados iam com sapatilhas, descontraídos, sem qualquer preocupação em montar segurança, e iam mais preocupados em apanhar algum pássaro que pudessem comer ao almoço já que a comida escasseava.

Aconteceu que, certa vez, depararam-se com uma emboscada; o IN estava à espera deles e apanhou-os completamente desprevenidos. Quando começou o tiroteio corri para o obus que estava voltado para Este e dei ordem de fogo na direcção da orla da bolanha calculando que não atingiria nenhum dos nossos. Creio que o disparo e o barulho do rebentamento das granadas pô-los em fuga, mas não evitou algumas baixas.

Noutra altura, na sequência de uma operação, trouxeram para o aquartelamento uma rapariga muito “bonita e jeitosa”, uns tantos abusaram dela, dei-lhe todo o apoio que me foi possível e lamentei o sucedido.

Mais tarde, vi um dos principais responsáveis com a cabeça muito inchada, porque, a jogar futebol, tinha batido com ela, tinha perdido os sentidos e a memória, e não se lembrava de nada. Não sei se foi castigo de Deus… Mas não descarto essa hipótese…

Uma vez, num ataque que fizeram ao quartel, entrámos em tiro direto, estávamos a ver se descortinávamos onde se encontrava o IN pela observação dos disparos das espingardas quando ouvimos um tilintar no canhão; aberta a culatra, encontrámos uma bala que tinha entrado pelo cano, o alvo eramos nós mas não tiveram essa sorte.

Outra vez, estava a tomar banho de chuveiro à hora do almoço dos soldados, porque era a melhor hora para estar completamente nu e mais à vontade. Quando começou o ataque ao aquartelamento pensei que não iria durar muito, estando completamente nu, não estava em condições de ir para onde quer que fosse.

Decidi esperar pacientemente pelo final da flagelação. Esta porém estava a prolongar-se mais do que poderia esperar e as balas e as granadas de morteiro passavam cada vez mais próximo pelo que já me estava a aborrecer… Estava eu nesta conjectura quando ouço um som sibilino que, pela minha já longa experiência de flagelações ao aquartelamento,  me levou a concluir que se tratava de uma granada que se aproximava perigosamente. Só tinha uma decisão a tomar, atirar-me para o chão, a granada caiu a menos de dois metros e felizmente do outro lado de um tronco de palmeira que delimitava a zona do duche. Depois, já recomposto do susto, e constatando que tinham parado de disparar, resolvi fugir para dentro de um abrigo como Deus me deitou ao Mundo. Foi então que alguém reparou que eu estava a deitar sangue de uma perna, felizmente que estava apenas ligeiramente ferido.

Dias mais tarde, vieram-me dizer que o PAIGC tinha dado a informação na rádio de que me tinham abatido. Eles bem fizeram por isso em tiro direto, estilo tiro ao alvo e o alvo era eu, percebi então porque é que as tinha sentido a passar tão perto de mim, mas não tinha chegado a minha hora…

Era raro sair do aquartelamento, aquela gente não me inspirava grande confiança, talvez porque ainda era “periquito”, mas uma vez vieram-me dizer que havia “ronco” na aldeia. Decidi ir ver como era. Compreendi que era dia de festa estilo S. João e com a particularidade dos habitantes das redondezas (“turras”) também virem participar na festa. Não fiquei nem muito à-vontade nem muito descansado, e menos fiquei quando em plena “sala do baile” me vieram avisar que “eles” andavam à minha procura. Resolvi não armar em herói e regressar rapidamente ao quartel. No caminho, ainda houve quem me apontasse um arco com uma flecha, mas não teve coragem para me atingir.

Recordo que para melhor ocupar o tempo decidi ensinar os soldados [, guineenses,] do meu pelotão que eram iletrados, a ler e a escrever. Contrariamente ao que eu poderia supor, alguns opuseram-se radicalmente, parecia que atentávamos contra a sua liberdade de optarem pela ignorância e que muito mal lhes queríamos.

Expliquei que o nosso único desejo quando largávamos os nossos familiares na Metrópole era irmos defendê-los dos terroristas ficando sujeitos a sermos feridos ou mesmo a morrermos e o facto de nos dispormos a ensiná-los a ler e a escrever era o de pretendermos para eles uma vida melhor. Também argumentei que teriam a possibilidade de escrever aerogramas às suas famílias.

Não ficaram convencidos, o que muito me entristeceu na medida em que revelava pouca confiança relativamente aos nossos verdadeiros propósitos e também uma certa dose de estupidez, porque, no fundo, era um esforço adicional a que nos dispúnhamos tendo em vista a melhoria das suas condições de vida. Só depois de falarem uns com os outros é que alguns aceitaram fazer o esforço de aprendizagem, dir-se-ia que estavam satisfeitos com o que tinham, um vencimento ao fim do mês com pouco trabalho e que lhes dava para viver.

Não mostravam estar muito preocupados com o seu futuro nem como iriam sustentar as suas famílias, talvez contassem que fossem as mulheres a trabalhar para os sustentar… ou então, seriam os europeus.

A certa altura, o capitão da companhia de cavalaria que defendia Bissum e que era miliciano (**), resolveu construir uma pista para avionetas, e como não tinha os meios adequados, resolveu pôr a viatura do pelotão de Artilharia a puxar um tronco de árvore. A pista, vista do ar podia ser muito bonita, mas em terra era notória a existência de lombas acentuadas, o que não podia ser do agrado dos pilotos.



João Martins


(Continua)
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Notas do editor:


(*) Vd. primeiro poste da série > 30 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9834: Memórias da minha comissão (João Martins, ex-alf mil art, BAC 1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69): Parte I: De Mafra (EPI) a Bissau (BAC1)

(**) Provavelmente, o Cap Mil Inf Manuel Carlos Dias, comandante da CCAV 1747: mobilizada pelo RC 7, partiu partiu para o TO da Guiné em 20/7/1967 e regressou à metrópole em 7/6/1969. Esteve apenas em dois sítios, segundo a respetiva ficha de unidade: Farim e Bissum. 


A CCAV 1747 é contemporânea da CCAV 1748 (Bissau, Bula, Contuboel, Bissau, Farim; Comandante: Cap Mil  Inf Emílio  Augusto Pires); e da CCAV 1749 (Mansoa, Mansabá, Quinhamel; Comandante: Cap Mil Inf  Germano da Silva Domingos). 


Nenhuma destas três companhias - que se presume fossem independentes - está devidamente representada da nossa Tabanca Grande. O nosso camarada José Nunes, do BENG 447 (15jan68 / 15jan70), confirma - através de uma foto aqui publicada - que a CCAV 1747 - "Unos e Firmes" - esteve em Bissum-Naga (em 1968). Também sabemos, por outras fotos do José Nunes, que em 1966/67, esteve aqui a CCAÇ 1497, pelo menos com três grupos de combate (o 1º,  o 2º e o 3º).

Guiné 63/74 - P9843: Parabéns a você (414): Delfim Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAV 3366/BCAV 3846 (Guiné, 1971/73)

Para aceder aos postes do nosso camarada Delfim Rodrigues, clicar aqui
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9836: Parabéns a você (413): José Carlos Neves, ex-Soldado Radiotelegrafista (Guiné, 1974)

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9842: VII Encontro Nacional da Tabanca Grande (19): Em 2013 lá estaremos todos novamente, e em maior número (Valentim Oliveira)

1. Mensagem do nosso camarada Valentim Oliveira (ex-Soldado Condutor da CCAV 489/BCAV 490, Como, Guidaje e Farim, 1963/65), com data de 29 de Abril de 2012:

Caros Amigos e companheiros de jornada.
Passados oito dias que já foram depois do nosso exemplar encontro em Monte Real, apenas me resta dizer que fica a saudade com a firmeza segura de que para o ano de 2013 lá estaremos todos novamente, e em maior número.

Se me é permitido deixo aqui bem expresso uma nota de louvor à organização constituída pelos incansáveis Joaquim Mexia Alves, Carlos Vinhal e Miguel Pessoa. A todos os meus parabéns.

Estive com o Rui Alexandrino no dia 26, e fiz-lhe a entrega do livro que o Idálio me deu para lhe entregar, fui encontrá-lo no consultório médico.
De momento está um pouco abalado com o sistema de saúde, mas dias melhores hão-de vir.

Um abraço amigo
Valentim Oliveira

Os mânfios em assembleia

Eu e o Idálio Reis falando do livro

Recordando passagens com o Marinho
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9830: VII Encontro Nacional da Tabanca Grande (16): Álbuns dos nossos fotógrafos Jorge Canhão, Juvenal Amado, Luís Moreira, Manuel Carmelita, Manuel Lema Santos, Manuel Resende, Miguel Pessoa, Rui Silva e Sousa de Castro

Guiné 63/74 - P9841: Agenda cultural (199): Intervenção de Mário Beja Santos na Tertúlia sobre o livro de sua autoria "Adeus até ao meu regresso", realizada no passado dia 26 de Abril em Lisboa

Realizou-se no passado dia 26 de Abril, na Bertrand Dolce Vita Monumental, Lisboa, uma sessão integrada no ciclo "Tertúlia, Literaturas da guerra colonial: há memórias que nunca acabam", com coordenação do Cor Carlos Matos Gomes, em que esteve em destaque o livro "Adeus até ao meu regresso" de autoria do nosso camarada Mário Beja Santos que foi um dos intervenientes a par do nosso camarada e Editor/Administrador deste Blogue, Luís Graça.


1. Deixa-se aqui um apontamento da intervenção de Mário Beja Santos:


Adeus, até ao meu regresso:

Algumas questões sobre a literatura da guerra da Guiné

Por Mário Beja Santos

Pode não ter uma elevada qualidade, esta literatura da guerra da Guiné, mas tem uma longevidade assombrosa, basta dizer que surgiu logo aos primeiros tiros, em 1964, e não para de nos surpreender.

Abraça, esta literatura, o romance e o conto, as memórias de vários matizes, o ensaio, a poesia, a reportagem, a investigação histórica e os diários.

Obedece às vicissitudes dos ciclos históricos do Império, da descolonização, do desatar dos constrangimentos, da gradual equidistância que permite aos participantes joeirarem azedumes e centrarem-se no essencial. Foi essa a trajetória que eu escolhi para tratar no livro Adeus, até ao meu regresso as impressões que colhi sobre os títulos que tive oportunidade de conhecer e, tanto quanto sei, até tive a felicidade de ler o essencial.

Começou a guerra, não havia espaço para dúvidas de fé, o regime não permitia sedições nem clamores anticoloniais. O que se escreveu tem a ver com a dinâmica militar, o apoio à guerra, o exame do estudioso da evolução da guerrilha ou a nomeação do verdor do soldado português: Armor Pires Mota, Manuel Barão da Cunha, Hélio Felgas, por exemplo.

No final da década, numa linguagem totalmente codificada, emerge um nome importante das letras portuguesas, Álvaro Guerra, ex-combatente, a quem se ficará a dever alguns parágrafos belíssimos e irrecusáveis sobre esta guerra (desde O Disfarce até já nos anos 70, O Capitão Nemo e Eu).

Estamos nos anos 70, antes do 25 de Abril temos a escrita desalentada de A Flor e a Guerra, de Manuel Barão da Cunha e os textos sempre encriptados (ou quase) de Álvaro Guerra. Vejamos com algum detalhe algumas obras de Álvaro Guerra. Oiçamo-lo em O Disfarce: «Nasci na pátria do ódio gentil, na pátria da paz e do sono, do idílio de uma seringa cheia de medo com uma veia cheia de velho sangue, uma veia sossegada e antiga, sem dores de me parir. Cresci entre as histórias mentirosas e as mezinhas mitológicas de adiar mortes serenas, milhões de tranquilíssimas mortes conformadas, ao som do fado-hino e da saudade-destino».

Falta agora uma apreciação de O Capitão Nemo e Eu (1973), é a última incursão de Álvaro Guerra na guerra da Guiné.

Alguns críticos que saudaram a obra na época interrogaram-se se se estava perante um romance, uma narrativa ou uma memória. Há um homem que está ferido, preso a uma cama de hospital, que entra num processo de convalescença, que divaga quase em estado de delírio, entre o sono e a vigília, nunca é dado estabelecer as fronteiras entre o que é sono e o que é sonho.

Temos um ferido que tateia o corpo e o meio envolvente, que vigia a fisiologia e que repesca os factos acontecidos, a justificação por estar ali, sujeito a remédios e injeções. 



Pequena tertúlia que contou comn a presença de alguns camaradas da Tabanca Grande: além do Beja Santos, o Jorge Cabral, o Luís, a Alice, o Alberto Branquinho, o João Martins, o António Vaz,  o Francisco Henriques da Silva (antigo embaixador na Guiné-Bissau, o Joaquim Carvalho (do BENG)... Fotos de L.G.

É bem possível que tenha regressado ferido na perna, tal como Álvaro Guerra, tão ferido que volta à infância, vê aparecer no seu quarto um anjo, depois regressa ao Geba e amaldiçoa a sua sorte: «Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me na fornalha de um sol quase invisível, dissolvi-me na chuva vertical, e amei como um danado aquela terra que me injetou a febre, me secou, me expulsou a tiro. Mas nunca o preço do amor é excessivo nem a presença da morte o pode aniquilar». Bastava este parágrafo de Álvaro Guerra para o colocar obrigatoriamente em qualquer antologia referente à literatura da guerra da Guiné.

E chegamos a 1974, a dinâmica literária dá uma sacudidela veloz, é tempo de niilismo e de irreverência. José Martins Garcia será o arauto e o grão-mestre dessa viragem. E  

Lugar de Massacre a obra incontornável do anúncio desses novos tempos.

Lugar de Massacre é um livro soberbo (3ª edição, 1996). É difícil acreditar que haja prosa mais niilista, corrosiva e grotesca que a que ele utiliza na construção dos personagens, dos ambientes e atmosferas, nos diálogos entre guerreiros, até nas circunstâncias do quotidiano. Martins Garcia usa até à exaustão o nonsense como metáfora, a relação entre chefes e subordinados decorre habitualmente entre o despotismo, a orgia sexual e a bebedeira que culmina no embrutecimento e até mesmo na hospitalização. É um livro autobiográfico, como ele próprio anota: «Este romance foi redigido entre o mês de Dezembro de 1973 e o dia 8 de Setembro de 1974. Qualquer coincidência com a realidade colonial dos anos 1966 – 1968, no que respeita à Guiné-Bissau, não é produto do acaso».

Os anos 80 terão novas características: os autores estão mais disponíveis para os relatos confessionais, a intimidade vem à flor dos relatos, tornam-se crus, pujantes, como numa corrediça os acontecimentos circulam velozmente do presente ao passado ou vice-versa. Três autores (Álamo Oliveira, José Brás e Cristóvão de Aguiar) merecem incontestável destaque.

Álamo Oliveira com o seu Até Hoje (Memória de Cão) vem desafrontadamente falar da homossexualidade e da guerra, entre João e Fernando, as personagens principais. É uma obra rica na descrição de ambientes. Por exemplo, a chegada do correio é um acontecimento avassalador, como Álamo Oliveira descreve: «Estão como cabras espantadas, prisioneiros ridículos, inocentes, amantes de cordel, aos saltos, gritinhos tarzânicos. Doentes de alegria explosiva, rapazes com o coração a viajar para o princípio do ser, primitivos os sentidos expostos. Fixam-se no meio da parada, a mão à testa para tapar o sol, a avioneta de voo raso, dois sacos de correio que se despenham e se amparam nos mil dedos que os agarram... As notícias vinham ali ensacadas, cadeadas, atrasadas quase quatro semanas. Vinham alegrias de tempo contado, saudades moídas pela azenha da distância, tristezas em rebanho... Os olhos estão fixos nas mãos do cabo-escriturário que agora é todo o quartel de Binta e só aquele tamanho, a mão emocionado metendo a chave no cadeado do saco com a mesma untuosa demora da desfloração».

José Brás é um estreante e traz uma grande surpresa com as suas Vindimas no Capim. Vindimas no Capim é uma obra de peso da literatura da guerra colonial guineense. Um Filipe Bento que vem à fala orgulhoso do pai barbeiro e da mãe costureira, orgulhoso das origens, da fossanga das vinhas, íntegro numa raiva desmedida à instituição militar com quem, tudo leva a crer, ficou definitivamente incompatibilizado. Enternece este regresso à juventude e depois saltar para Cutima-Fula, Camba-Jate ou caminhar até Guileje, nos entretantos deixar claro o que o pessoal da 4022 viveu em estafadeira. Há imagens que, de tão bem resumidas, nunca mais se esquecem: «Buba! Ao longe pareceu-nos um bairro de lata. O Prior Velho. O rio era a autoestrada do norte e o barco a carreira dos Claras a caminho de Lisboa. As barracas iam crescendo e já se viam braços no ar à beira do espelho da estrada; um amontoado de troncos a entrar na largura da rota, em forma de cais, e uma mancha a alargar-se, a mexer-se, a gritar».

É uma narrativa que fala de bruxa de vários tipos, das eleições no tempo de Salazar, do obscurantismo de vários matizes, de um mundo que gradualmente foi desaparecendo com o termo daquela guerra. Compreendemos, no fim da narrativa, porquê vindimas no capim: é a voz do chamamento da terra, dentre as tabancas, ao pé do corredor da morte, com os palavrões da guerra. E também se compreende a dedicatória «Àqueles que se estoiravam, eles próprios, por dentro e por fora, para que a terra continuasse a parir e o sol a fecundá-la». Seguramente, estas Vindimas no Capim têm lugar merecido entre o que melhor se escreveu nos já longínquos anos 80.

Temos finalmente Cristóvão de Aguiar, ainda hoje às voltas com o seu livro Braço Tatuado.

Desde que escreveu Ciclone de Setembro (1985), Cristóvão de Aguiar (1940) nunca mais largou o filão da Guiné, onde combateu de 1965 a 1967. Virá a desafetar de Ciclone de Setembro o romance O Braço Tatuado (1990), segue-se Relação de Bordo (1999), Trasfega (2003) e A Tabuada do Tempo (2006).

A expedição de Arquelau de Mendonça em terras da Guiné, publicada em Ciclone de Setembro (1985) deve ter sabido a pouco quer ao escritor quer aos leitores. Arquelau é um ilhéu típico: foi à guerra para não se demorar, andou lá a correr, acompanhado de um casal de rafeiros, comandou o 1.º grupo de combate da CCAÇ 666. As suas correrias, tanto quanto parece, centraram-se no Leste, procurou alhear-se da guerra, era impossível, viu execuções sumárias, dez mortos numa emboscada, entre Piche e Canquelifá. Sofreu as solidões do aquartelamento de Dunane, sentiu a sombra da loucura, depois o Niza, o tal soldado do braço tatuado, resolveu suicidar-se quando a Lena (cujo nome estava tatuado) o preteriu por outro. Não é difícil perceber como o episódio do Niza lhe ficou gravado, obriga Cristóvão de Aguiar a revisitações: «Tento de onde estou parado parlamentar com ele. Faço-lhe ver que aquela loucura o poderá desgraçar para o resto da vida. Não me dá ouvidos. Desgraçado já ele estava, nenhuma outra desgraça o poderia afetar tanto. Dão uns passos a medo e muito devagar. Mal nota que me vou aproximando, dá dois tiros para o ar. Estaco estarrecido. Muito subtil, levo a mão ao bolso e palpo a arma. Ele olha-me com a fixidez de um dementado e entende o meu gesto sorrateiro. Diz ele: Se o meu alferes sonha em tirar a pistola, abato-o de seguida... E despeja, em rajada, quase todo o carregador da G-3 para o ar, mas não tanto para o ar que não sinta o assobio de uma bala rente ao ouvido direito. Não me dou por achado, mas entro em pânico por dentro. A minha cabeça é um carrossel de fogo. Mordo os beiços numa tentativa de autodomínio, se calhar de autodefesa. Verifico que o Niza não traz cinturão nem as cartucheiras. Respiro de alívio».

Dos anos 90 em diante temos toda a gente a escrever: Armor Pires Mota regressa com Cabo Donato Pastor de Raparigas e surpreende-nos com uma obra-prima Estranha Noiva de Guerra. Seja em edições de autor ou com chancela de editora, surgem títulos à volta do romance e conto, de um modo geral coisas insignificantes, mesmo quando há boa vontade. O registo vai para Tempo Africano de Manuel Barão da Cunha, Memória dos Dias sem Fim, de Luís Rosa e As Ausências de Deus, de António Loja. Barão da Cunha remexe nos seus diferentes títulos anteriores, põe alguém em nome das jovens gerações a interpelar um ex-combatente que cirandou por África, o resultado é o de um bom exercício didático. Ficamos a dever a Luís Rosa e a António Loja parágrafos belíssimos, diria mesmo que se acaso se vier a publicar uma antologia de grandes textos eles terão presença obrigatória.

No campo das memórias é onde mais longe se foi, no escol e no rol. Vasco Lourenço, Salgueiro Maia, Gustavo Pimenta, as reportagens de João Paulo Guerra, antigos prisioneiros do PAIGC e essencialmente José Talhadas, Amadú Djaló e Moura Calheiros. A equidistância veio garantir olhares mais serenos sobre a guerra colonial, a investigação revelou-se parte interessada sobretudo com os trabalhos de João de Melo, Rui de Azevedo Teixeira e Margarida Calafate Ribeiro. 

Muita gente começou a vazar recordações, a título exemplificativo: Nuno Mira Vaz escreveu sobre o BCP 12 e a Guiné; Garcia Proença sobre os movimentos independentistas, o Islão e a Guiné; António Duarte Silva deu continuidade ao estudo da história recente da Guiné, é hoje um investigador indispensável; Sanches de Baêna escreveu sobre os fuzileiros da Guiné como Kruz Abecassis sobre a aviação. 

No campo da História Luís Nuno Rodrigues escreveu uma biografia sobre Spínola, recorrendo aos parâmetros da história oral, José Freire Antunes escreveu nos anos 90 (recentemente reeditado) A Guerra de África, 1961-1974. E Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso deram devido relevo à história da Guiné nos já incontornáveis Os Anos da Guerra Colonial. A súmula sobre a guerra da Guiné de Fernando Policarpo tem poucas rugas e muitos méritos para acicatar a curiosidade dos não-iniciados.

Graça de Abreu colige notas da sua observação, não escondendo o quotidiano entediante, estava atento ao evoluir da guerra e tinha acesso a muita informação, daí a utilidade em ler-se o seu trabalho como uma apreciação do agigantar da guerra, entre 1972 e 1974; Leonel Olhero está num Esquadrão Panhard, sobretudo em Bula, doseia as recordações entre o antes e o durante a guerra e profere declarações altamente polémicas como aquelas que tece ao capitão Salgueiro Maia. Mário Beja Santos pretende reconstituir a sua comissão militar desde que desembarcou em Bissau, em Julho de 1968, até ao seu regresso, em Agosto de 1970. Organiza metodicamente os acontecimentos por semanas, interessa-se em mostrar como descobriu o deslumbramento pelo Cuor, onde viveu 17 meses, com a missão principal de garantir a navegabilidade do Geba.

Urgindo pôr temo a este arrazoado de considerações sobre uma literatura sem fim à vista, tendo mesmo em conta que este arrazoado poderá ter sido injusto em omissões graves ou qualificações menos abonatórias, importa sublinhar que qualquer síntese é espinhosa quando não abre espaço à antologia. Isto para significar que se revela indispensável entregar a um especialista o cotejo de textos representativos de autores representativos. O único mérito que posso conferir a este apanhado é a chamada de atenção para obras e autores até agora omitidos, sabe-se lá por que razões de cariz ideológico ou outras. Afinal, até eu me esqueci de apresentar A Cubana que Dançava Flamenco, de Armor Pires Mota, de dizer que continuam a surgir obras com depoimentos de ex-combatentes, caso de Dias de Coragem e de Amizade, Angola, Guiné Moçambique: 50 histórias da guerra colonial, de Nuno Tiago Pinto, com prefácio de Carlos de Matos Gomes (A Esfera dos Livros, 2011); deixei no olvido inúmeras histórias de companhias, algumas delas de grande significado. Não quero estar na pele do historiador a quem couber tal missão! Todos os dias o investigador é confrontado com surpresas, entra num arquivo ou num alfarrabista e surgem mais novidades. Há depois amigos zelosos que juntam outras peças e, com um sorriso nos lábios, surpreendem-nos. Falou-se na literatura propagandística do regime, o exemplo escolhido foi o de Amândio César. Mas há mais. Horácio Caio escreveu em 1970 Guiné 9 Dias em Março, José Manuel Pintasilgo escreveu em 1972 Manga de Ronco no Chão e Horácio Caio volta às lides do panegírico em 1974 com Guiné 1974, Vigilância e Resposta. Para que conste que o rol é supostamente infindável.

A despeito de uma maioritária falta de qualidade desta literatura, há parágrafos extraordinários assinados por Álvaro Guerra, Martins Garcia, Cristóvão de Aguiar, António Loja ou Luís Rosa. E Estranha Noiva de Guerra, de Armor Pires Mota, o mais persistente dos todos os escritores da guerra da Guiné, é autor de uma obra-prima digna de constar na bibliografia indispensável de todas as literaturas de guerra.

Haverá surpresas? E porque não? As memórias de Amadú Djaló, do sargento Talhadas e do coronel Moura Calheiros não foram publicadas nos últimos anos? Até ao lavar dos cestos, até estar vivo o último militar que combateu na Guiné, há que contar com as surpresas da vindima, não há mês em que não surja um título, um depoimento, um olhar sobre aquela guerra que se travou enquanto se caminhava na farroba de lala, entre cipós e tabás, a patinhar no tarrafo, nas emboscadas montadas em florestas secas densas, militares acoitados atrás do baga-baga, a resistir à fúria das emboscadas, ou dentro dos aquartelamentos, imprecando em noites de flagelação destruidora. Haverá seguramente surpresas, este género literário está muito longe de ter fechado para obras e muito menos para mudança de ramo.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9797: Agenda cultural (197): "Adeus até ao meu regresso" em foco na "Tertúlia - Literaturas da guerra colonial: há memórias que nunca acabam", dia 26 de Abril de 2012, pelas 18 horas, na Bertrand Dolce Vita Monumental, Lisboa, com a participação de Mário Beja Santos e Luís Graça

Vd. último poste da série de 29 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9828: Agenda cultural (198): "O Trilho: um cruzar de épocas em gerações transversais – 1950-2050", novo livro de José Saúde