1. Mensagem de Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 1 de Junho de 2012:
Meus caros Luís, Carlos e Eduardo
Aqui vai mais um texto das minhas memórias de guerra.
A importância que lhe dou é capaz de ser muito maior do que a que realmente tem, já que aborda um acontecimento de cariz muito pessoal.
Como sempre, sem qualquer espécie de reserva da minha parte, deixo ao vosso critério a sua publicação.
Um grande abraço
Manuel Joaquim
Um acidente epistolar: “Furriel Milº Paulo Gabriel Péri Éluard”
Olhava para a carta da namorada, carta já “mastigada” em segunda leitura, carta linda, substantiva, essencial mas… era a única carta recebida naquele dia!
- Oh Henriques, há p’raí malta que recebe cartas c’mó cara…!
- Eh pá, se calhar são de gajas que arranjam na Plateia!
- O quê?!
- Sim pá, a Plateia publica pedidos de correspondência, traz sempre manga deles, não sabias?
- Ah!…então se calhar é isso!!!
Fiquei a pensar, a remoer o assunto. Sentia falta de contactos novos com o “mundo” que tinha deixado, precisava de dialogar e de desabafar com outras personagens para além das do meu círculo pessoal.
Surgiu-me uma ideia: e se eu enviasse para a
Plateia um pedido de correspondentes femininas? O género sexual não teria importância mas, não sei explicar, naquela altura precisava de vozes femininas. Talvez porque, de machos, estava bem rodeado!
Pelo conteúdo das páginas da revista, seria difícil encontrar nas suas leitoras quem eu pretendia, mulheres com alguma cultura e que, ao mesmo tempo, se interessassem pela vida política e social do país e também por este tipo de contactos. Não estava com muita confiança nos resultados. Mas… por que não tentar?
Olho para a mesa-de-cabeceira, fixo a capa do livro
"Poèmes", uma compilação de poemas de Paul Éluard (1), cuja poesia era minha companhia quase diária e… sonhei com a hipótese de arranjar uma correspondente com quem pudesse partilhar tal poesia.
“EUREKA! Surgiu-me uma ideia excitante e desafiadora, a de usar um pseudónimo
“éluardiano” que também fosse a chave que me facilitasse a escolha das possíveis futuras correspondentes.
Naquela altura “funcionavam” na minha cabeça dois belíssimos poemas de Éluard, cujas palavras tão sonoramente belas eu tentava decorar para recitar mentalmente. De um,
“Liberté”, bastante longo, decorei partes que às vezes recitava de viva voz. O outro era
“Gabriel Péri”. Estes dois poemas, digo-o do alto dos meus 70 anos, foram peças importantes na minha estruturação emocional e cívica, são belas tatuagens que transporto na alma desde os meus 20 anos e que não apaguei nem quero apagar.
(Obs: para os conhecer, procurar na Net «eluard liberte» e «eluard peri»)
E a ideia foi avante! Com os nomes de Paul Éluard e de um seu poema de homenagem a um resistente francês ao nazismo, Gabriel Péri (2), compus o meu pseudónimo.
Em carta enviada à revista
Plateia, um tal furriel miliciano Paulo Gabriel Péri Éluard, SPM 2838, pede correspondentes do sexo feminino. Fiquei a aguardar com alguma expectativa, mais curioso até do que outra coisa. Alguém iria achar algo estranho naquele nome, para além de o achar de origem estrangeira? Alguém iria descobrir a “chave”?
Não demorou muito para, durante cerca de um mês, o “tal” furriel receber uma mancheia de cartas todas as semanas.
De todas elas seleccionou apenas três, as de quem, à primeira vista, poderia corresponder ao tipo pré-definido. Das outras, algumas foram recuperadas por camaradas interessados, as restantes foram eliminadas.
As três “meninas” que reservei para mim eram, duas delas, professoras primárias e a outra identificou-se como estudante universitária. Esta foi a única a quem o “meu” nome surpreendeu e confundiu. Fiquei radiante!
Dizia ela, a propósito: -
Que coincidência o seu nome ter tanto a ver com o poeta francês Paul Éluard! Será pseudónimo? Se não o é, então é espantosa a coincidência!
Fiz uma festa! Entusiasmado, agarrei-me ao
Poèmes numa leitura mais atenta e aprofundada pois iria ter pela frente alguém que conhecia P. Éluard, imaginando eu que a sua poesia seria o lastro de muitas das nossas mensagens futuras. Estudante universitária a conhecer tal poeta ao ponto de identificar o seu poema Gabriel Péri, era cá das minhas!
Atirei-me ao trabalho de elaborar uma resposta, em grande. De água na boca e pensando já num futuro relacionamento, cultural e politicamente gratificante, fiz “explodir” o pseudónimo para aparecer, entre os estilhaços, o plebeu e “proletário” Manuel Joaquim. Atirei-me de cabeça à resposta a dar-lhe. Falei de poesia e do seu valor na resistência às forças políticas de opressão, à imagem da de Paul Éluard. Abri-me ideologicamente, discorrendo sobre aquela guerra e sobre a minha posição nela, numa onda de pacifismo e de revolta, brandindo a espada contra o regime político que a sustentava e que me tinha enviado para tal sítio! Isto tudo sobre citações de Éluard cuja poesia era para mim, na altura, o combustível que alimentava as minhas chamas “de amor, de sonho e de revolta” (assim alguém tinha caracterizado essa poesia)! Que prazer poder falar com quem gostava de tal poeta!
Enviada a carta, “fiquei em pulgas” à espera da resposta. Esperei pouco tempo, talvez tenha vindo na volta do correio. E ali estava ela, uma volumosa carta! Respirei fundo e abri-a com entusiasmo, ávido pelo seu conteúdo.
Primeiros parágrafos atenciosos, palavras de simpatia para com os militares mobilizados nos campos de batalha, e neste tom continuava a escrita de tal modo que comecei a estranhar. As palavras começaram a parecer-me vagas e insípidas, a afastarem-se cada vez mais do que eu esperava nelas. Vai uma, vão duas páginas e no decorrer da leitura sentia o meu inicial entusiasmo a esvair-se aos poucos até que cheguei a um ponto em que “não me atirei ao chão” porque não calhou! Tinha começado o discurso!
Fiquei de “boca aberta”, espantado, enquanto ia lendo o discurso. Discurso, sim, uma espécie de “direito de resposta” a alguma ofensa minha. Era um discurso que se queria demolidor da minha maneira de pensar, muito paternalista e ainda por cima com ares de admoestação. Não digo que me ameaçava mas atirava-me à cara a doutrina política do governo como sustentação ideológica da guerra do ultramar, apelava à minha “dignidade de combatente pela Pátria” atento à responsabilidade histórica que as Forças Armadas tinham na preservação de um Portugal indivisível, quer dizer, toda a cassete ideológica do regime político de então!
Perplexo com o que lia, fiquei algo amedrontado e expectante. Seria aquilo um aviso, teria a minha carta sido intercetada? Não podia ser, eu era uma peça insignificante para se darem a tal trabalho. Alguém conhecedor da poesia de P. Éluard quis “brincar” comigo? Perante o pseudónimo que usei, alguém sob a capa dum pseudónimo feminino (ou não) e dizendo-se apreciador do poeta, aproveitou a ocasião para me desancar?
É verdade que nas universidades havia, na altura, uma franja de extrema-direita salazarista, muito culta e militante (conheci alguns, mais tarde) onde podia haver amantes de poesia. Mas gostarem de P. Éluard, da sua poesia tão marcadamente ideológica, de esquerda? Ná …!
Tudo era possível. Mas ainda hoje acho que o mais certo foi eu ter “batido” mesmo numa jovem “torre” da direita ideológica universitária, culta e militante, com força para encher uma dezena de páginas a discorrer politica e ideologicamente sobre as minhas ideias e na defesa do regime político de então.
Perante esta “ensaboadela”, paralisei. Nem dava para responder por carta, poderia tornar-se perigoso, nem que fosse só para dizer que o “sabão” não se adaptava à minha “sujidade” porque não me tinha “lavado” nada. Não respondi, de vez! E, interessante, do outro lado sucedeu o mesmo, um silêncio total após o recado dado.
Mas no fim de tudo, o resultado desta minha procura de correspondentes foi-me muito gratificante. Mantive correspondência com as minhas duas colegas durante todo o restante tempo de comissão. Também me identifiquei, falei-lhes no significado do meu pseudónimo, dei-lhes conta do meu modo de ver e sentir a vida e a guerra. Foram excepcionais no nosso convívio epistolar, nunca me faltando o seu carinho e apoio emocional para me ajudarem a suplantar aquela dura prova.
Conheci as duas, pessoalmente. A uma delas, na altura do meu regresso, encontrei-a na sua casa de Bissau para onde tinha ido há pouco para junto de um irmão. Não mais a vi depois. À outra também a perdi de vista mas o nosso relacionamento pessoal durou ainda cerca de dois anos após a minha desmobilização. Espero que tenham sido muito felizes, que estejam vivas e de boa saúde e que, de mim, mantenham boas e gratas recordações como as que eu delas retenho.
E os poemas de Paul Éluard cá continuam a fazer-me companhia: ( Excerto do poema Gabriel Péri. Segue-se a minha tradução:)
… … …
Il y a des mots qui font vivre / Et ce sont des mots innocents / Le mot chaleur le mot confiance / Amour justice et le mot liberté / le mot enfant et le mot gentillesse / Et certains noms de fleurs et certains noms de fruits / le mot courage et le mot découvrir / Et le mot frère et le mot camarade / Et certains noms de pays de villages / Et certains noms de femmes et d’amis / Ajoutons-y Péri / … … …
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Há palavras que fazem viver / e são elas palavras inocentes / A palavra calor a palavra confiança / Amor justiça e a palavra liberdade / A palavra filho e a palavra gentileza / E alguns nomes de flores e alguns nomes de frutos / a palavra coragem e a palavra descobrir / E a palavra irmão e a palavra camarada / E alguns nomes de países de lugares / E alguns nomes de mulheres e de amigos / Juntemo-lhes Péri / …
(1)
Paul Éluard (1895-1952): poeta, herói da Resistência francesa contra a ocupação da Alemanha nazi, militante do PCF.
(2)
Gabriel Péri (1902-1941): jornalista e político, herói da Resistência francesa contra a ocupação nazi, preso pelos alemães e fuzilado. Militante do PCF.
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Notas de CV:
Capa da
Revista Plateia retirada do Blogue
Dias que Voam, com a devida vénia.
Vd. poste de 24 de Janeiro de 2012 >
Guiné 63/74 - P9396: Memórias de Manuel Joaquim (5): Raios e Carícias