Tropa a bordo do navio Angra do Heroísmo
Foto de: © Manuel Passos
1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 25 de Setembro de 2014:
Achando eu que o tema é merecedor do nosso melhor interesse e não querendo melindrar ninguém com as minhas opiniões sobre o assunto, deixo aqui a minha participação no tema aproveitando para saudar todos os camaradas e em especial o Vasco Pires e o Manuel Reis
Juvenal Amado
Um auto-retrato de soldado
Tinha eu saído da escola primária quando se deram os massacres da UPA sobre colonos e seus assalariados no Norte de Angola. Lembro-me bem do horror daquelas imagens que circularam meio à socapa e do medo que os jovens em idade militar, e alguns que já tinham o serviço obrigatório, de serem mobilizados, o que aconteceu a muitos.
Os acontecimentos provocaram uma onda de terror associada à ideia de vingança patriótica(*) que tais actos provocaram, porém não conheci ninguém que se tivesse sentido feliz por ir. Passados dez anos quando embarquei, também não conheci ninguém que não ficasse de boa vontade por cá a cumprir o serviço militar sem mais chatices, com férias e fins de semana em casa, mandando assim o espírito de missão ou mesmo de aventura, às urtigas.
Faço aqui um pequeno parênteses para mencionar as tropas especiais, que por serem voluntárias tinham outro espírito.
Ao contrário do que leio hoje, em especial nas redes sociais, faz-me querer que a vasta maioria escondeu na altura o seu patriotismo e seu fervoroso amor à Pátria e que passados 40/50 anos depois veio ao de cima, à medida que uns se calam ficamos com a ideia que a esmagadora maioria foi de bom grado e de livre vontade.
Lá diz no poema de Luís Vaz de Camões, “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”.
Embarque do BCAÇ 3872, em Lisboa, no navio Angra do Heroísmo
O portugueses não eram o povo próspero nem feliz e a ideia de ir dar o corpo ao manifesto por um Portugal Ultramarino, para o qual não havia bilhete da carreira nem de comboio, sendo mesmo necessário uma carta de chamada para se poder ir para lá, por muito portuguesas que fossem essas terras, era uma coisa que pouca felicidade nos trazia. Por outras palavras, a carta de chamada para ir para uma terra que diziam nossa, era o que havia em comum com a nossa saída para qualquer país, por exemplo do continente americano. Até a moeda não tinha o mesmo cunho nem o mesmo valor.
Estou plenamente de acordo com o que o Luís Graça escreve no seu comentário e cito:(1)
As motivações para a saída em massa e ilegal (, "a salto",) são fáceis de perceber: o círculo vicioso a da pobreza, em Portugal, não poderia ser mantido mais tempo, com o "milagre económico europeu" à nossa porta... (Os "trinta gloriosos", as décadas de excecional desenvolvimento económico e social que a Europa conheceu, desde o pós-guerra até 1973)... Já [não] era preciso ir para o Brasil: a França e a Alemanha estavam ali, à nossa porta, ou pelo menos, a partir dos Pirenéus.
Acrescento que foi essa riqueza e bem-estar europeu, que permitiu ao governo português manter aquela guerra por tanto tempo.
Conheço quem fugiu à tropa por motivos económicos, quem fugiu por motivos políticos, mas também quem regressou para cumprir o serviço militar. Considero todos os motivos válidos e tomados por homens conscientes, não cabendo no meu vocabulário o termo cobardia para os que fugiram, nem de coragem e patriotismo para os que ficaram ou regressaram, direi simplesmente que uns e outros assumiram a situação de forma diferente.
Mesmo os que regressaram do estrangeiro para serem incorporados salvo excepções, fizeram-no para poderem regressar às suas aldeias e vilas sem serem incomodados pelo regime, circularem a partir daí livremente até para se irem embora para o País que antes os tinha acolhido, desde que sua a política fosse futebol, fado e Fátima, convém sublinhar.
João Caramba a bordo do Angra do Heroísmo, ao larga da Ilha da Madeira
Alguns apresentaram-se já fora da idade de incorporação normal, a julgar pela idade que tinham quando fizeram as respectivas recrutas e nos apareceram como rendições individuais nos destacamentos no mato. Regressaram da outra Europa livre e próspera, após indultos para refractários e possivelmente também para desertores, concedido por Marcelo Caetano se não estou em erro. Em 1966 o meu pai preparou tudo para que eu fosse a “salto”, seguindo assim o trilho de milhares de portugueses, a caminho de uma situação sem volta à vista, pois quem é que podia dizer quando a guerra acabava. Se acabasse com uma vitória das nossas forças, a situação de quem tinha fugido podia eternizar-se até ao dia que houvesse uma amnistia do regime, que se tornaria “rancoroso” para quem não tinha dado o corpo ao manifesto.
De França veio mesmo uma pessoa para me levar, o que chegou ao meu conhecimento quando já estava na tropa. Não fui tido nem achado na resolução final, e hoje penso que foi melhor assim.
Nessa altura tinha o meu irmão embarcado para Moçambique. O meu pai não querendo arriscar outro filho em tal missão, agiu assim em conformidade com muito do que pensava. Não fora a minha mãe que após muitas suplicas tais como, “que nunca mais o vemos se ele fugir”, “que ele pode ir para tropa e ter a sorte de ficar cá", “que se Deus quiser nada de mal lhe acontecerá”, eu teria mesmo ido para França e de certeza, não regressaria para ser incorporado para combater em tal guerra.
Todas essas súplicas e razões deram à minha mãe, como resultado, muitas noites de insónia, em que me via morto ou sem pernas, e que isso me tinha acontecido por causa de ela não me ter deixado ir para França.
De certo fez muitas promessas para eu regressar vivo e inteiro.
Felizmente para mim, para ela, voltei sem problemas e foi com enorme alegria que vi a guerra acabar dali a muito pouco tempo.
Não foi uma guerra mas muitas guerras, pois as condições alteravam-se como areia movediça. Quem embarcou em 1961, encontrou uma situação que rapidamente se transformou, de ano para ano, à medida que os movimentos passaram de aceso ódio tribal para nacionalismos militantes e exércitos de guerrilha organizados. O armamento também se modificou em quantidade e qualidade, pelo menos o do inimigo.
Quando falo com camaradas que estiveram na Guiné muito tempo antes de mim, não são poucas as vezes que me dizem “no meu tempo é que era, vocês foram uns lordes”. Depois lembro-me daquele tempo, dos anseios, das saudades, das noites acordado, do que vi, lembro os mortos, a violência a que estiveram sujeitos muitos destacamentos nos 28 meses que lá estive e fico a pensar se estamos a falar da mesma guerra.
Um abraço
Juvenal Amado
(*) Que deu em repressão violentíssima na Baixa de Cassange sobre população confinada que cinquenta anos antes (1911) tinha convertido, pela força, guerreiros orgulhosos em agricultores de algodão, humilhando-os na sua condição, daí em diante.
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Notas do editor
(1) Vd. poste de 22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13634: Selfies / autorretratos (1): por que é que fomos à guerra... (Vasco Pires / Luís Graça / Francisco Baptista / José Manuel Matos Dinis)
Último poste da série de 22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13638: Selfies / autorretratos (2): filho único, com pai emigrado no Canadá, podia também ter saído do país, aos 17 anos... Passei pela universidade de Coimbra e lutas académicas, tendo decidido participar na guerra colonial, contrariado e sabendo ao que ia (Manuel Reis, ex-alf mil cav, CCAV 8350, Guileje, 1972/74)