sexta-feira, 29 de maio de 2015

Guiné 634/74 - P14677: Manuscrito(s) (Luís Graça (58): Cais de partida(s): Porto de Lisboa (Parte I): Gare Marítima de Alcântara: os painéis de Almada Negreiros

















Lisboa > Gare Matítima de Alcãntara > 10 de maio de 2015 >painéis de Almada Negreiros


Fotos: © Luís Graça  (2015). Todos os direitos reservados





Cais de partida(s)

Sempre detestei os cais de partida,
as estações ferroviárias,
as gares marítimas,
os aeroportos que nos levam aos céus,
as linhas de todas as cores do metro
que vão até ao centro do inferno,
as paragens dos elétricos,
no inverno,
os terminais de autocarro,
em todo o ano,
e mesmo as praças de táxis,
tudo sítios onde há gente vulgar,
apressada, ou mal dormida,
ou com lágrima fácil ao canto do olho
e até pombos ou gaivotas
debicando restos de comida.

São sombrios e tristes os ares das gares,
como é sombrio e triste qualquer lugar
onde se parte e reparte
e há sempre alguém
que fica com a melhor parte (...)

´
(Excerto)

v11 28abr 2015


1. A modernização do porto de Lisboa é relativamente recente. As primeiras grandes obras remontam ao ano de 1887, no reinado de D. Luís. Até 1907 não havia cais acostável para os navios de passageiros, de maior tonelagem. Ficavam ao largo do Tejo, fazendo-se o transbordo de  passageiros e bagagens, "à moda antiga"...

 Datam dos finais da monarquia, os trabalhos de dragagem, na margem norte do rio, a oeste do cais de Alcântara. Em 1918 começaram a poder atracar no porto de Lisboa os transatlânticos de maior arqueação bruta. A atracação de navios de passageiros passou a ser obrigatória em 1927.

O cais de Alcântara e o molhe oeste do cais de Santos ficaram reservados para as companhias de navegação estrangeiras. Os navios nacionais, com destino às ilhas adjacentes e a África,  partiam do cais da Fundição, Terreiro do Trigo (junto a Santa Apolónia) e molhe leste do cais de Santos.

É no âmbito do “plano de melhoramentos do porto de Lisboa: margem norte do Rio Tejo”, da iniciativa do Estado Novo, que vão ser construídas as gares marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos. Era então ministro das Obras Públicas e Comunicações, o eng Duarte Pacheco (1901-1943).

O projeto destas gares marítimas com 2 pisos, é do arquiteto Pardal Monteiro (1895-1957), um dos grandes aruitetos estadonovistas (autor também do edífício do Instituto Nacional de Saúde dr. Ricardo Jorge e Escola Nacional de Saúde Pública). A gare marítima de Alcântara será inaugurada ainda em plena II Guerra Mundial (7 de julho de 1943), quando afluíam a Lisboa dezenas de milhares de refugiados de um continente devastado pela tragédia da deriva totalitária e da guerra.

A gare marítima da Rocha de Conde de Óbidos (chamava-se assim em virtude do cais estar próximo do palácio do Conde de Óbidos, hoje edifício  da Cruz Vermelha) só foi inaugurada em 1948. É aqui se localiza. o estaleiro naval que, em  1936,  é concessionado a um empresa do grupo CUF,  a
primeira do país a construir navios com casco de aço.

Para muito de nós, ex-combatentes da guerra colonial, o cais da Rocha de Conde de Óbidos Pimeiro foi o local de embarque para a guerra colonial... Vínhamos, geralmente de noite, de comboio, das unidades de mobilização (. no meu caso, vim diretamente do Campo Militar de Santa Margarida, se não erro). Mas não havia tempo sequer para passar pelo Salão Almada Negreiros e admirar os seus paineis (ou frescos), hoje famosos...





Lisboa > Gare Marítima de Alcântara (arq. Pardal Monteiro), inaugurada em 1943 > 10 de maio de 2015 > O cais e a gare, vistos do navio-escola "Sagres".

Fots (e legenda): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados


Lisboa > 22 de Março de 2009 > Cais e Gare Marítima de Alcântara, vistas da Ponte 25 de Abril... > Não, não foi o nosso cais de partida...A nossa "porta de saída" para Áfrca foi o Cais da Rocha do Conde Óbidos, que fica mais para leste,,. Às vezes confundimos os dois cais e as duas gares (que são do mesmo aqruiteto). (Não sei se o cais de Alcântara também foi utilizado para o embarque e desembarque de tropas; é possível que sim, já vi isso por aí escrito; mas era o cais da Rocha do Conde de Óbidos que estava destinado a esse fim)...

Foto: © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados



Lisboa > Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos > Arquiteto Pardal Monteiro, foi inaugurada em 1948... Foi daqui que partimos, muitos de nós,  para a Guiné... Nos últimos anos da guerra, o transporte já se fazia por via aérea, através dos TAM - Transportes Aéreos Militares. (LG)

Foto do domínio público. Cortesia de Wikipedia.

2. No portal do Porto de Lisboa pode ler-se, 
(...) "São de 1939 e 1940 os diplomas que autorizaram a celebração dos contratos para a construção das estações marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, sendo entregue ao Arquitecto Pardal Monteiro a tarefa de executar o traçado das mesmas. No hall do 2º piso das Gares podem admirar-se os catorze painéis sobre o Tejo, representando lides ribeirinhas e cenas portuárias, executados segundo a técnica da pintura mural a fresco, pelo pintor José de Almada Negreiros." (...)

Ao que parece o artista, terá levado dois anos e meio de estudos e setenta dias de execução: (i) em 1945,  na Gare Marítima de Alcântara, oito pinturas, que se distribuem por dois trípticos e duas composições isoladas; (e (ii) em 1949, na Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos, seis pinturas  distribuídas por dois trípticos.

Na entrada da Wikipédia sobre Almada Negreiros pode ler-se, seguindo nomeadamente o historiador e crítico de arte José Augusto França ("A Arte em Portugal no Século XX, 1911-1961". Lisboa: Bertrand Editora, 1991):

(...) "Na Gare Marítima de Alcântara, Almada faz ainda um compromisso com certa "ideologia decorativa" e socorre-se de formas de representação e de uma espacialidade mais ancoradas na tradição. Este ciclo de obras divide-se em dois trípticos – no primeiro é abordada a lenda da Nau Catrineta; no outro, a vida da Lisboa ribeirinha –, e duas composições isoladas, onde representa uma festa de romaria e a lenda de D. Fuas Roupinho. De modo diferente e mais moderno, em sintonia com a evolução da linguagem cubista que então se registava no Ocidente, na Rocha do Conde de Óbidos Almada fala-nos, num dos dois trípticos, da partida dos emigrantes; no outro centra-se num imaginário de domingo lisboeta à beira rio. (...)  .
Considerados por muitos como as melhores pinturas murais portuguesas e o trabalho mais importante da pintura de Almada, o conjunto de painéis da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos é significativo de uma espécie de diluição involuntária das fronteiras entre pintura e ilustração. Estes painéis reúnem, em síntese, a sua atividade plástica anterior. Essa síntese ocorre a nível formal, com a frontalidade e fragmentação cubistas a fundirem-se com reminiscências da espacialidade tradicional, perspética, e a acentuação da teatralidade das poses e da ação; e narrativo, com a recorrência de imagens provenientes de trabalhos anteriores (...) . 
(...) Em Almada, as citações, as transposições e as redefinições são aliás frequentes, e não se restringem ao universo das artes plásticas (segundo Rui Mário Gonçalves, Almada aproxima-se de um processo explorado por Picasso na pintura, por Diaghilev nos seus bailados, por Stravinsky na música, por Jean Cocteau na poesia e teatro). 'Muitas vezes, as diversas artes que ele praticou foram-se citando umas às outras e a si próprias, retomando desenhos antigos em novas composições' (...) . Os elementos narrativos e formas que atravessam a sua obra são sobretudo as pessoas, dos saltimbancos e arlequins às mães com os filhos, às mulheres do povo; são também os lugares que todos eles habitam, a cidade com os seus cafés e tascas, as zonas ribeirinhas de Lisboa e os seus portos, povoados de guindastes, escadas, navios." (...)  .

3. Confesso que também gosto mais dos painéis da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos, pela sua modernidade e ousadia (temática e estética). De qualquer modo,  escrevi ontem, em comentário a um poste do José Martins (*) o seguinte:
(...) "Mas já agora diz-me porque é que tu partiste do Cais da Rocha do Conde Óbidos e não do Cais de Alcântara (...). Tu saberás a resposta, mas, olha, eu só a descobri há tempos... E há malta que faz confusão com as duas gares marítima, a "nossa!", a da Rocha de Conde de Óbidos, e a de Alcãntara... Tenho aqui fotos, tiradas há dias, no Salão Almada Negreiros, da Gare Marítima de Alcântara...Há uns anos atrás tambémn andei a (re)visitar a Gare Marítima da Rocha (de) Conde de Óbidos... 
Maldita sorte, que nem direito tivemos a uma 'visita guiada'  aos painéis do mestre Almada Negreiros, hoje famosos, obras-primas da pintura portuguesa do séc. XX... Só me lembro de ter chegado, de camboio, ainda de noite, ou pela madrugada, e nos terem enfiado no navio... Ou talvez não: ainda tivemos, os graduados pelo menos, umas horitas para beber um copo e, alguns, mais afoitos, para 'mudar o óleo', na estação de serviço mais próxima, que era o cais do Sodré" (...).

E prometi publicar dois postes sobre os painéis do Almada Negreiros...Um deles aqui está. As duas gares marítimas fazem parte do nosso património (e do nosso imaginário). E merecem uma visita, sentimental (em memória do 'cruzeiro das nossas vidas'...) e cultural (por causa da arquitetira do Pardal Monteiro e sobretudo pelos painéis do grande Almada Negreiros). De preferência, uma visita guiada... (**)...
_______________
Notas do editor

Guiné 63/74 - P14676: Parabéns a você (912): António Vaz, ex-Cap Mil, CMDT da CART 1746 (Guiné, 1967/69)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 de Maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14666: Parabéns a você (911): António Manuel Salvador, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14675: Agenda cultural (407): "África em Lisboa": cinco países irmãos (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé), cinco dias (de 27 a 31 de maio), no Museu da Carris



África em Lisboa | 27 a 31 de Maio

Quarta a sexta-feira: 18h00-00h00

Sábado e domingo : 13h00-00h00

Museu da Carris | Rua Primeiro de Maio, 101-103, 1300-472 Lisboa


Bilhetes:
+ 6 anos:: 5 €/dia
Passe Família/dia (4 pessoas: dois adultos e dois menores 12 anos):: 18 €
Passe 5 dias:: 22 €
Locais de venda:: Bilheteira no local


Do sítio da Carris, com a devida vénia (e adaptação livre do texto)


Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé marcam presença no “África em Lisboa”.

O evento lugar no Museu da Carris até o dia 31 de maio, e mostra o melhor das artes performativas, moda, artesanato e gastronomia destes cinco países de ritmos, cores, cheiros e sabores apaixonantes.

Um mercado de marcas e produtos africanos e uma área de gastronomia, com ementas típicas dos países representados, além de espetáculos musicais, teatro, dança, exposições de pintura, escultura e fotografia, tertúlias literárias, moda e acessórios, juntam-se no mesmo espaço, no coração da capital portuguesa, para reavivar sensações aos africanos que moram em Portugal, arrebatar os portugueses que amam África e cativar os inúmeros turistas estrangeiros que visitam Lisboa.

Cada dia terá um país em destaque e, também, momentos de fusão da cultura africana com a portuguesa, numa exaltação à partilha dos percursos quotidianos dos vários povos.

África em Lisboa é paixão!

[Vd, também página do Facebook, África em Lisboa.]

 __________________

Nota do editor;

Guiné 63/74 - P14674: Notas de leitura (718): "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial" (autor: João Gaspar Carrasqueira, pseudónimo literário de A. Marques Lopes): Excertos (Parte I): "Tinha-se interrogado várias vezes sobre as razões que o levaram a entrar no seminário"...


Guiné > Região do Ccaheu > Barro > CCAÇ 3 > 1968 > À direita.  ex-al fmil at inf, A. Marques Lopes, que comandava o grupo Os Jagudis.  Antes, em 1967, tinha passado pela CART 1690, om sede em Geba (Zona leste, região de Bafatá, onde foi gravemente ferido; evacuado para  metrópole, voltaria cerca de nove meses depois para acabar a sua comissão de serviço na CCAÇ 3,. em Barro, na fronteira com o Senegal).

Foto: © A. Marques Lopes (2005). Todos os  direitos reservados


Guiné > Região do Ccaheu > Barro > CCAÇ 3 > 1968 > Grupo Os Jagudis > Ao centro, o ex-al fmil at inf, A. Marques Lopes,

Fotos: © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados



Capa do livro (Lisboa, Chiado Editora, 2015). Já está á venda na 85ª edição da Feira do Livro de Lisboa (que abre esta tarde, e vai prolongar-se até 14 de junho,  no Parque Eduardo Sétimo).


Ficha técncia:

Título: Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial
Autor: João Gaspar Carrasqueira
Data de publicação: Junho de 2015
Número de páginas: 582
ISBN: 978-989-51-3510-3
Colecção: Bíos
Género: Biografia
Preço: 19 € (edição em papel) [10 € na sessão de lançamento)


1. Excertos do livro de memórias "Cabra-cega", que vai ser lançado no próximo dia 3 de
junho, às 15h30, na biblioteca municipal de Matosinhos (*)



Gentileza do nosso camarada e amigo A. Marques Lopes, coronel inf, DFA, na situação de reforma, ex-alf mil da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968), um dos primeiros membros membros da nossa Tabanca Grande (entrou em 14 de maio de 2005) [, foto atual à direita]:


(...)  Guardava os papéis há muito tempo e ficou preocupado com as gotas que pingavam das telhas partidas das águas-furtadas. Oxalá não tivessem borrado o que lá tinha escrito. Aquele último andar do velho prédio pombalino da Calçada da Patriarcal metia água sempre que chovia.

Mas paciência, era o que podia ser. Apesar de mau era bem melhor do que morar em partes de casa ou quartos alugados, como antigamente. Agora, com a idade que tinha, não queria passar novamente por essa situação.

A caixa de lata da Oliva tinha uns pingos na tampa mas nenhum passara para dentro. Estavam bem, felizmente. Era nela que a mãe antes guardava os dedais, tesouras, carrinhos de linhas e demais coisas do seu trabalho de costura para os Rodrigues da Rua de São Paulo. Porque já não podia por causa da doença, coitada, teve de deixá-lo e deu-lhe a caixa para ele guardar os cadernos onde escrevera os seus diários e pensamentos.

Ontem viera um aviso para se apresentar na Escola Prática de Infantaria em Mafra. Disciplina de quartel, vida de caserna não eram coisas que o preocupavam, não era muito mais do que aquilo a que estava habituado desde pequeno.

Mas havia a guerra, e era mais que certo ir lá parar e isso é que o fazia estar receoso e apreensivo e com pena de ter deixado os estudos na universidade. Preferia tê-los acabado primeiro. É claro que, acabados ou não, estava condenado na mesma. Para morrer lá, tanto fazia ter acabado ou não.

Já dissera aos pais desta ordem de apresentação na tropa e viu a angústia com que ficaram, na cara do pai e nas lágrimas da mãe. Já tinham essa preocupação há muito, sempre na expectativa que sucedesse. Sabiam que era assim para todos e que, num dia qualquer, também lhes ia acontecer. Mas estava ali aquele papel a dizer que era agora, o que supunham aconteceu mesmo. Pensar que pode ser que um dia é diferente de ver que já é. Tentara um lenitivo dizendo-lhes que vir a ser oficial era uma coisa simpática, um salto na condição de filho de pobres, e podia ser que não lhe calhasse ter que ir para a guerra, sempre havia alguns que não iam. O pai não ficou convencido mas ficou mais calmo, a mãe não deixou de chorar. O irmão não se manifestou, pareceu não ser nada com ele, mas a irmã acompanhou a mãe nas lamentações.

Agora, só ele é que estava em casa. Os irmãos estavam no trabalho, o pai também, e a mãe fora a uma consulta no hospital. Altura ideal para ver com calma o que escrevera.

Era a recordação dos dias em que lhe doíam a alma por quase tudo e o corpo por não ter nada, quando a vida parecia fugir, quando a desilusão o afundou no purgatório dos vencidos. Ia ler cada “caderno diário”, este com uma caravela e um padrão dos descobrimentos na capa e a inscrição “por mares nunca dantes navegados”, e este com Viriato e a narrativa da saga dos lusitanos, com Camões e outros heróis muito elogiados. Conseguira escrevê-los no seminário quando estava mais sereno e podia estar sozinho, o que não era nada fácil no ambiente extremamente vigiado em que era obrigado a estar.

A vida alterou-se depois disto que escrevera e estava para mudar agora novamente, mas num novo ciclo totalmente diferente.

Queria ver novamente como foi, tentar compreender as tramas do seu destino, ver se conseguia desfazer esta dúvida que ainda tinha de se foi ele ou se foram outros que as teceram. Interrogou-se se não seria masoquismo voltar a esse passado. Não, não era. Precisava aprofundar o conhecimento de tudo o que lhe aconteceu, de tirar lições para que não sucedesse o mesmo nesta nova situação que se avizinhava.

Tinha tudo lá escrito.

O pai e a mãe, bem como os seus avós, bisavós e trisavós nasceram todos no Alentejo, no Baixo, e talvez os de antes também, mas isso não sabia ao certo. Já falara sobre isso, sobre as raízes e a árvore genealógica da família, mas o pai riu-se dizendo-lhe que essa árvore era um chaparro com raízes fundas, como há muitos nos montados. Lembravam-se dos seus antepassados directos mais chegados mas não conseguiam ir muito longe. A mãe foi ceifeira que andava à calma, lembrava-se bem desta canção, e o pai foi tractorista nos campos dos latifundiários, rasgando-os com aivecas. Pensa que foi por isso que lhe acrescentaram a alcunha Aiveca ao nome próprio, sendo conhecido lá na terra como Eduardo Aiveca. Mas a vida era má, contaram-lhe da miséria e da fome passada, razão por que tinham vindo para Lisboa na tentativa de encontrar melhor. Foi por isso que nascera na maternidade Magalhães Coutinho, ali para os lados da Estefânia. O pai quis pôr-lhe o nome de António Aiveca mas o registo civil do Socorro não deixou acrescentar Aiveca pois não era o apelido que ele tinha no bilhete de identidade. Mas a família sempre o tratou assim e assumiu esse nome toda a vida. Até porque, após o nascimento, só passara um anito na Rua da Mouraria. A mãe adoeceu dos pulmões e o médico disse-lhe para ir apanhar ares para o campo, lá para baixo. Fora com ela, ainda bebé, e ali ficou sete anos. Lá na terra sempre foi tratado por António Aiveca, o filho do Eduardo Aiveca. Não desgostava do nome.

Quando tinha seis anos metera-se-lhe na cabeça que queria ser padre. Não havia pároco a residir no Penedo Gordo, devido á extrema miséria dos assalariados rurais que constituíam a grande maioria da população da aldeia e porque a maior parte deles não ligava grande coisa às questões da religião. Só aos domingos é que o seminário de Beja mandava um padre para que os crentes pudessem cumprir os seus deveres dominicais. Nessa altura ia à igreja com a avó Rosário. Os avôs Salustiano e João, materno e paterno, não ligavam, nem os tios, a mãe não ia porque estava doente, dizia ela, mas sempre lhe pareceu a ele que também não ligava muito àquilo. A avó Violante, a mãe do seu pai, nunca a vira na igreja. Mas ele gostava de ver o senhor prior com aquelas vestes bonitas, as campainhas, a solenidade, e o respeito de todos os que lá estavam impressionavam-no muito. Todas aquelas cores, luzes e sons eram uma maravilha. Os revérberos do sol através dos vidros coloridos das janelas exerciam o mesmo efeito que qualquer coisa extraterrestre poderia exercer, encantamento, espanto e redobrado respeito. Era bonito, também queria ser padre. Tanto insistiu com a mãe que esta, num dia que teve de ir a Beja, levou-o ao seminário para lá ficar. O reitor ficou encantado, sorriu e afagou-lhe a cabeça. Mas recomendou-lhe, depois, com ar sério que tinha primeiro de tirar a 4ª classe e deu-lhe uma mancheia de rebuçados. Deixou-o contente e muito esperançado de um dia poder igualmente viver no meio de tantas maravilhas, numa casa enorme e bonita como aquela e ter sempre à mão quantos rebuçados quisesse.

Estas lembranças ainda agora eram agradáveis e o faziam sorrir. Mas queria ver mais algumas páginas

(...) Tinha-se interrogado várias vezes sobre as razões que o levaram a entrar no seminário. Mais para carpir a mágoa por um passo mal dado do que para tentar esclarecer aquilo que já sabia. Tinha sido a condição de menino pobre que levara a isso como necessidade. Mas é claro que não fora responsável pela decisão. A necessidade era dos seus pais, que aproveitaram o desejo de um padre que se tinha armado em protector.

As pressões daí decorrentes e os meios em que passou a ter que se mover fizeram o resto. À distância, sentia uma grande mágoa por não ter conseguido libertar-se mais cedo dessa catástrofe que lhe sucedera na vida. Mas, nem sabia se poderia ter sido diferente. Para quem tinha fome, para quem passava o dia com uma fatia de pão com margarina ou, mais do que uma vez, com uma côdea seca, era impossível recusar a possibilidade de ter refeições a tempo e horas. Como não aceitar a perspectiva do café com leite e pão com marmelada, da sopa, da carne e do peixe, se chegara, quando era puto, a ter que andar aos caixotes?
Preço: 19 € (edição em papel) [10 € na sessão de lançamento)
Já tinha desejado muitas vezes não acreditar em Deus. Mas não tinha conseguido. Numa guerra, nesta guerra em que se encontrava como interveniente activo, os desejos, a esperança, a ideia de que quem morria eram os outros e não ele, tudo estava depositado no Deus que o havia de proteger e guardar. Mas porquê a ele e não aos outros, aos que morreram, aos que ficaram sem braços e sem pernas, aos que ficaram cegos e aos que ficaram loucos? Era uma dúvida e, ao mesmo tempo, uma incompreensão muito funda que se afogava e perdia naquilo que a sua formação religiosa chamava os insondáveis desígnios de Deus. Queria dizer que era desígnio de Deus morrer ou ficar estropeado, e também era vontade d’Ele se saísse bem disto tudo. Deus era a explicação de todas as coisas, ele não riscava nem decidia nada, podia tranquilamente continuar a fazer a guerra. Podia matar porque nos desígnios de Deus tanto podia estar o prémio como o castigo. Ele é que decide quem mata e quem morre. O prémio era para ele que matara e não morrera e o castigo era para o outro que não o matara e morrera? Ou ele seria castigado porque matara o outro e este terá um prémio na outra vida porque não o matara? Se comparecer perante Deus, durante ou após esta guerra, será condenado às penas eternas ou entrará no rol dos bem aventurados? Será condenado ou premiado por ter matado para obedecer aos seus legítimos superiores, àqueles que têm sobre ele a pesada responsabilidade de governar e mandar? Será condenado ou premiado se lhes desobedecer e não matar?

A Deus o que é de Deus e a César o que é de César... Citação hipócrita para justificar a passividade da Igreja perante a guerra quando César vai contra o mandamento não matarás. Ou consentimento? Como admitir que a Igreja abençoe a guerra?  (...) (**)

(Continua)





Guiné > Região do Ccaheu > Barro > CCAÇ 3 > 1968 > Natal de 1968 > Areograma do A. Marques Lopes, enviado á irmã e cunhado: "Querida irmã e cunhado, um Natal feliz e que o Ano Novo seja sepre melhor que o anterior. António Manuel... Uma ginginha!.. Pois dar de beber à dar é o melhor"...

"Este é mais outro aerograma que descobri. Mandei-o, pelo Natal, em 1968. O que eu quis transmitir é que eram natais de morte e que o que procurava era esquecer, dando de beber à dor".

Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados

_________________

Notas do editor:


Guiné 63/74 - P14673: Tabanca Grande (465): José Rodrigues, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1419/BCAÇ 1857 (Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) - 689.º Grã-Tabanqueiro

1. Convidado através do facebook a fazer parte da nossa tertúlia, recebemos do nosso camarada José Rodrigues, (ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1419/BCAÇ 1857, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), a seguinte mensagem:

Boa tarde Carlos
Uma falha grave da minha parte, não me ter apresentado nas devidas condições.
Como castigo, não adianta dares-me uma carecada, porque não há nada para cortar. Deixo ao teu critério o castigo a aplicar.

Histórias sobre a guerra, não vale a pena pois o meu percurso foi igual ao de milhares de "mancebos", mas tive a sorte de regressar vivo. Digo vivo, porque mentalmente quer queiramos quer não, todos viemos com "pancada".

Mas recordo-me que havia um nativo que poderíamos apelidar de "ordenança", pois dava apoio à nossa moradia em Bissorã.
Pedi-lhe um dia que fosse à cantina comprar-me um sabonete e disse-lhe uma marca que na altura estava muito em voga "CADUM". Passados minutos aparece-me com meia dúzia de sabonetes.
Admirado, perguntei-lhe... porquê tantos sabonetes?
- Furriel disse-me para trazer um de cada um !!!

No dia 6 de Janeiro de 1966, ele e mais cinco camaradas, tombaram ao pisar um fornilho.
Para ele e para todos os camaradas, minha homenagem!!!

Recebe um abraço amigo,
Zé Rodrigues

José Rodrigues a caminho da Guiné, diz o editor observando aquelas divisas tão novinhas


2. Comentário do editor:

Caro amigo e camarada José Rodrigues, bem-vindo à Tertúlia.
Já nos conhecemos pelo facebook onde vais acompanhando a Tabanca Grande. Aqui fazes companhia ao teu e nosso amigo Manuel Joaquim de quem foste camarada na CCAÇ 1419. A tua cara não nos é estranha pois já publicámos várias fotos dos convívios da Magnífica Tabanca da Linha onde apareces, como neste último convívio de Maio.

José Rodrigues no Encontro da Magnífica Tabanca da Linha, 21 de Maio de 2015

Já sabes que estamos disponíveis para publicar as tuas fotos e uma ou outra memória dos tempos de Guiné que surja e queiras partilhar.

Se quiseres conviver com a tertúlia da Tabanca Grande, terás a primeira oportunidade no dia 16 de Abril do próximo ano. Muita da malta da Tabanca da Linha é assídua dos Encontros nacionais, assim como muitos camaradas da grande Lisboa pelo que até nem darás pela diferença.

Em nome da tertúlia da Tabanca Grande e dos seus editores, aqui fica um abraço de boas-vindas.

Carlos Vinhal
____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14665: Tabanca Grande (464): António Melo de Carvalho, Coronel Inf na situação de Reforma, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2465/BCAÇ 2861 (Có e Bissum-Naga, 1969/70), Grã-Tabanqueiro 688

Guiné 63/74 - P14672: O cruzeiro das nossas vidas (21): Os últimos dias, a família, os amigos e finalmente o embarque, em 28/5/1968 (José Martins)

1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 27 de Maio de 2015, falando-nos do Cruzeiro da sua vida.

Amanhã, 28 de Maio, faz 47 anos que iniciei o meu primeiro cruzeiro da minha vida, que podia ser o cruzeiro da minha morte.

Abraços
Zé Martins


O EMBARQUE

Os amigos e conhecidos ao saberem da minha mobilização, mesmo sem lhes ser pedido, passaram a fazer as suas recomendações, sobre os problemas e carência comuns a qualquer das frentes de combate. No casão militar adquiri uma quantidade enorme de fardamento, para fazer face às necessidades em campanha, e, sobretudo, porque lá não haveria a possibilidade de adquirir algo que tenha faltado ou que fosse necessário substituir.

Mais uma vez, com as malas às costas e de volta a Torres Novas, nova guia de marcha para Lisboa, para me ir apresentar no Depósito Geral de Adidos, na Ajuda.

Os mobilizados em rendição individual mais não eram que pedras de xadrez num tabuleiro desmantelado, em que era extremamente difícil deslocar-se qualquer que fosse a direcção. Com apatia, insensibilidade, desmotivação ou desprezo, temos de admitir, era assim que os militares, independentemente da patente, eram recebidos. Os soldados que desempenhavam as funções de recepção, não só não tinham qualquer preparação para a tarefa, como não tinham qualquer problema em mostrar desagrado.
A falta de organização dentro da unidade, apesar de ser compreensível dada a quantidade de militares que chegavam e partiam, originavam enormes problemas de logística; a marcação dos embarques e o seu adiamento sistemático, provocava uma sensação de vazio e mal-estar, que obrigava a que cada um procurasse, fora do âmbito militar, o apoio que necessita naqueles dias difíceis.

Cargueiro N/M Alenquer, da Sociedade Geral 
© Foto Google – imagens de navio Alenquer

Esta situação originou que efectuasse várias viagens Lisboa/Porto e Porto/Lisboa, obrigado a noites mal dormidas, a gastos inesperados de dinheiro, e, sobretudo, a despedidas contínuas. Foi numa dessas vezes, ao deixar a casa paterna, que ouvi um barulho fora do normal. Parei. Pensei em voltar atrás. Mas fosse o que fosse, nada poderia fazer. Cerrando os dentes a apertando com mais força as pegas do saco de viagem que transportava, segui em frente, segui o curso da minha própria história.

Só dois anos mais tarde, já de regresso e com a missão cumprida, apesar de ter estado duas vezes de licença na metrópole, é que soube que, perante a impossibilidade de fazer parar e/ou alterar os acontecimentos, o meu pai, na sua raiva e desespero igual à de tantos outros pais, tinha partido o tampo da mesa da sala.

Enfim. Ao cabo de quase uma semana de “embarca hoje de avião”, “o voo foi adiado vinte e quatro horas”, “o embarque aéreo foi cancelado”, “vão de barco dentro de dias”, chegou o dia do meu embarque.

Nesse dia, sabendo da odisseia passada nos Adidos, ou melhor, à sua volta, o meu irmão mais velho, o João, invocando que tinha de resolver alguns assuntos em Lisboa, telefonou e marcamos um encontro para a hora do almoço.

O local do encontro foi algures na baixa lisboeta. Com o meu irmão, vinha a minha cunhada, a Lai.

Como o João era vegetariano, de curta data, rumamos para a Rua da Emenda, ao Bairro Alto, para um almoço de vegetais no restaurante Colmeia.

A ementa era extremamente simples: vários vegetais cozidos, acompanhados com um sumo de laranja e como sobremesa um doce de cenoura.

A minha cunhada apenas observou o almoço. O seu seria a seguir num restaurante mais tradicional na Rua Primeiro de Dezembro, e com uma refeição menos sofisticada: bife com batatas fritas, que, por cavalheirismo e porque realmente “aquilo dos vegetais não era propriamente almoço”, a acompanhei “aviando” uma boa costeleta.

Mal sabia eu que este duplo almoço do dia 27 de Maio de 1968 me ficaria na memória para sempre, sendo recordado, com saudade, especialmente quando me sentava à mesa para a refeição, no destacamento longínquo perdido no leste da Guiné, e tinha para comer, quase invariavelmente, feijão ou arroz com chouriço ou salsichas.

A hora da partida aproximava-se e o carro rumou o Cais da Rocha do Conde de Óbidos.
Naquela tarde de Maio de 68, o cais e a zona envolvente estava calma. Só o N/M Alenquer deixava escapar algum fumo pela chaminé, prenúncio de que aquecia as máquinas para a viagem que iria iniciar.

Não havia a aglomeração de militares e de suas famílias, a que nos habituara, desde há muito, a televisão. Constatou-se que havia, como passageiros, apenas, quatro furriéis e oito marinheiros, que constituíam as tripulações de duas lanchas LDM que estavam embarcadas no convés, mas, no porão, a carga era constituída por armamento e munições, mas que só o viemos a saber quando o navio procedia à descarga.

Despedi-me da família e subi a bordo, onde um velho guarda-fiscal me saudou militarmente. A promoção a Furriel Miliciano era tão recente, que nem sequer raciocinei de que já tinha direito a continência. Correspondi com um “boa tarde” seguido de um aperto de mão, a que o guarda correspondeu entre o satisfeito e o surpreendido.
O alojamento duplo que me estava destinado para os dias seguintes, podia ser catalogado como de cinco estrelas e era de fazer inveja a muitos hotéis da capital. Além das duas camas, dispunha de dois guarda-fatos individuais, uma secretária com material para escrita, e além de uma zona de descanso, dispunha de instalações sanitárias amplas e modernas.
Mas a família tinha ficado no cais. Há que voltar ao convés para corresponder ao sinal de despedida que, os que ficavam em terra, queriam enviar.

Tirando a boina e despindo o blusão, fui até à amurada.

Ouviu-se um silvo agudo seguido pelo roncar das máquinas do N/M Alenquer e do rebocador que o auxiliava na manobra.

Algo estranho se passou, pois um militar não chora (?). Tirei um cigarro do bolso e escondi as lágrimas, que me escorriam pela cara abaixo, atrás do fumo que o mesmo libertava.

Lisboa ficava para trás, iluminando-se, cada vez mais longe, na noite cálida. A proa indicava o futuro e o futuro, naquele dia, chamava-se África...

Chamava-se Guiné!

12 de Julho de 2000
____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10958: O cruzeiro das nossas vidas (20): Viagens de avião de ida para a Guiné, e volta, patrocinadas pelo Estado Português (Henrique Cerqueira)

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14671: Inquérito online: Os "nossos filhos da guerra" deveriam ter acesso à nacionalidade portuguesa... A maioria dos nossos leitores (4 em cada 5 dos votantes) acha que sim... Resultados preliminares (n=62)


Lisboa > Cinema São Jorge > Festival Rotas & Rituais 2015 > "Filhos do vento" > Exposição fotográfica de Manuel Roberto > "Inês Miriam Henrique é filha de um ex-combatente português de quem conhece apenas o apelido". Foto de Manuel Roberto (cortesia do autor e do jornal Público)

Ver aqui a sua história resumida:

 "Nasceu em 1967, sabe apenas que o pai português trabalhava no Hospital Militar de Bissau. A mãe, Lígia Vaz Martins, teve mais dois filhos de militares portugueses, um deles é José Carlos Martins, o outro rumou a Portugal à procura do pai, mas não teve sucesso e foi para a Alemanha. Miriam vende sacos de carvão à porta da sua casa. Tem oito filhos. Nos seus sonhos, o seu pai aparece-lhe a dizer que a quer conhecer. Ela só sabe o que julga ser o seu apelido". 

(Fonte: cortesia de Catarina Gomes e Manuel Roberto, Público > Os filhos do vento)


I.  Resultados preliminares (n=62) da sondagem em curso no nosso blogue (vd. coluna do lado esquerdo, ao alto):

SONDAGEM: OS "NOSSOS FILHOS DA GUERRA" DEVERIAM PODER TER ACESSO À NACIONALIDADE PORTUGUESA


1. Discordo totalmente  > 1 (1%)


2. Discordo  > 1 (1%)

3. Não discordo nem concordo / Não sei  > 9 (14%)

4. Concorrdo  > 23 (37%)

5. Concordo totalmente  > 28 (45%)


Total de votos  apurados = 62 (até às 13h de hoje)

Faltam 3 dias para fechar a sondagem


II. CAMARADA, NÃO DEIXES QUE SEJAM OS "OUTROS" A MANDAR "BITAITES" SOBRE OS ASSUNTOS QUE TE DIZEM RESPEITO...

Camarada:

Não é fácil falar, com serenidade, objetividade e rigor, deste tema: os "nossos filhos da guerra" (pessoalmente, prefiro esta expressão)...

Estamos a falar de filhos de portugueses que passaram pela antiga província ultramarina (ou colónia) da Guiné, entre 1961 e 1974, em geral no âmbito do cumprimento de uma missão de serviço militar... Haverá, por certo, também filhos de pessoal civil (por exemplo, comerciantes, administradores, missionários, etc.)...

Independemtente do direito à procura e conhecimento do progenitor (pai biológico) e até do reconhecimento da paternidade, há uma questão sobre a qual se começa a fazer um consenso: estes homens e mulheres, hoje na casa dos 40/50 anos, são filhos de portugueses e, como tal, deveriam poder ter "acesso à nacionalidade portuguesa"...

Se há um reparação (material e/ou simbólica) que, na maior parte dos casos, ainda se pode fazer ao fim destes 40/50 anos, é o reconhecimento pelo Estado português da origem portuguesa destes "nossos filhos da guerra"... Como isso se faz, é já um problema técnico, jurídico e político, que nos ultrapassa...(Esperemos que a embaixada portuguesa na Guiné-Bissau possa fazer qualquer coisa neste sentido.)

De qualquer modo, como simples membro (entre 700) desta Tabanca Grande, também defendo que "mais do que apontar o dedo, é preciso estender a mão para a ajudar"... A exposição fotográfico do Manuel Roberto, no "foyer" do cinema São Jorge, em Lisboa, no âmbito do Festival Rotas & Rituais 2015 (dedicado aos 40 anos da descolonização portuguesa)  interpela-nos a todos, sendo no mínimo "obrigatório" ir vê-la por estes dias... (É só tomar o metro e sair na estação da Avenida.)

 Camarada, sobre este tema (como sobre muitos outros temas que temos aqui abordado)  é importante que dês a tua opinião, sincera, qualificada, serena, sem preconceitos...  E a questão desta vez é simples, é a da possibilidade (legal) de atribuição da nacionalidade portuguesa àqueles dos "nossos filhos da guerra" que eventualmente ainda a (re)queiram... No caso da Guiné-Bissau, não sabemos ao certo quantos são os elegíveis, podem ser umas (escassas) centenas. Infelizmente nunca foi feito nenhum recenseamento destes filhos de portugueses, nascidos entre 1961 e 1975 (*).

Podemos tomar como exemplo os norte-americanos em relação aos seus "mestiços vietnamitas" (e também aprender com os sucessos e insucessos deste processo levado a cabo pelos EUA em relação aos "filhos do pó", deixados pelos seus soldados no Vietname)... 

Este assunto, os "nossos filhos da guerra", nunca sequer chegou ao parlamento português, tanto quanto sabemos... Ora precisamos sensibilizar os nossos deputados que fizeram a guerra colonial... Ainda há alguns, felizmente,  que não têm vergonha de dar a cara, isto é, de pôr no currículo a sua participação na guerra colonial... Temos pelo menos um,  na nossa Tabanca Grande, o Arménio Santos, do grupo parlamentar do PSD, nascido em 1945, sindicalista, aluno do prof Jorge Cabral na Lusófona (**)... Esteve no TO da Guiné como  fur mil reec Inf (Aldeia Formosa, 1968/70). (*)

Por sua vez, Jerónimo de Sousa, deputado e secretário geral do PCP, ainda recentemente, em entrevista ao jornal on line "Observador", de 22/5/2015,  fez referência ao seu passado militar, no TO da Guiné 1969/71. No seu breve CV, no sítio do PCP, diz apenas que "entre 1969 e 1971 cumpriu serviço militar no Regimento de Lanceiros 2 e na Guiné". Como já aqui o temos referido, no nosso blogue, ele foi 1ºcabo PM (polícia militar), da CPM 2537, que participou para a Guiné no T/T Niassa em 24/5/1969.

São seguramente dois homens (e camaradas) com sensibilidade política e social para este problema dos "nossos filhos da guerra".

Mais uma vez queremos chamar a atenção para o facto de esta "sondagem" ter uma finalidade apenas didática e pedagógica: qualquer que seja o seu resultado final, não dá aos editores do blogue qualquer legitimidade (a não ser moral) para falar em nome dos ex-combatentes da guerra colonial na Guiné: este tipo de sondagem (ou inquérito de opinião "on line") é apenas uma forma de auscultar e revelar sensibilidades e opiniões dos amigos e camaradas da Guiné que se reunem à volta do simbólico poilão da Tabanca Grande...Ótimo, se ela puder contribuir para algo mais... e nomeadamente ser útil à causa da associação Fidju di Tuga e dos que, em Angola, Guiné e Moçambique,os 3 teatros de operações da guerra colonial, por onde passaram mais de um milhão de militares,  querem dar uma ajuda concreta a estes homens e mulheres que, muitos deles, apenas querem ver reconhecida a sua ligação (biológica e sentimental) a Portugal.

Camarada, se ainda não votaste ou se queres mudar o teu voto, restam-te 3 (dias) para o fazer... 

_____________

Notas do editor:

Guiné 63/74 - P14670: Filhos do vento (35): "Não nego a existência de 'filhos da guerra', mas defenderei sempre a dignidade dos combatentes portugueses" (Jorge Cabral) / "Sempre considerei e tratei os/as guineenses como sendo tão portugueses/as como eu" (João Martins) / "Sou claramente pela concessão da nacionalidade, o Estado que assuma as suas obrigações" (José Manuel Matos Dinis)

1. Comentário de Jorge Cabral (*) [, foto à esquerda, alguns anos atrás: ao lado da sua aluna da licenciatura de serviço social,  Beni Barbosa Ferreira, guineense, nascida em Bissau em 1980; jurista, especialista em direito penal, professor universitário reformado da Universidade Lusófona]:


Defenderei até à morte a honra e a dignidade dos Combatentes Portugueses na Guiné. Filhos de Portugueses e de Mulheres Guineenses,claro que existiram. Seria interessante averiguar quanto filhos de pai incógnito,nasceram no mesmo período em Portugal.

Concordo que os todos os Filhos sem nome de Pai devem ter o direito de conhecer a identidade do respectivo Progenitor. Claro que ser Progenitor e ser Pai constituem realidades diferentes. 

Abraço! Jorge Cabral


2. Comentário do João Martins (*) [, foto à direita, em 1978, em 

São Martinho do Porto; ex-alf mil art, do BAC 1 (Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/70)]


Amigo e camarada Luís Graça:

Bem sei que não é políticamente correto, mas, como não sou mentiroso e sempre defendi a verdade, embora, durante a minha vida tenha mentido, mas espero que tenham sido mentiras sem consequências de maior, não posso deixar de pensar que estivemos na Província Ultramarina da Guiné, território tão português como o Algarve, a Madeira, os Açores, e muitos outros territórios ultramarinos, pelo que, considero, os seus naturais e seus descendentes tão portugueses como eu, e é dessa maneira que os trato quando os tenho pela frente.

Lamento é que, com a tal descolonização, tenhamos ficado, e refiro-me à grande maioria, mais pobres, mais endividados, e mais "colonizados" pelos grandes interesses internacionais contra os quais combatíamos e continuamos a combater e que nos derrotaram. 

Face a esta perda de direitos e de poder de compra que nos afeta, considero que a "solidariedade" não deve ser um sentimento para "meter na gaveta", e devemos assumir as nossas responsabilidades para com todos estes nossos concidadãos com um passado histórico comum, devendo votar em partidos que os defendam, se é que existem..., e muito particularmente, que defendam esses nossos descendentes a que te referes, que têm sangue bem lusitano correndo em suas veias.

Grande abraço de alguém que teve a sorte de conhecer a Guiné como poucos... e apaixonar-se por aquelas gentes, francas, sinceras, gentis e amigas...

João Martins

PS - Lutemos por um espaço lusófono de entreajuda entre povos com origens diferentes mas que se expressam na mesma língua e acabam por ter a possibilidade de uma comunicação, de um diálogo, de uma sintonia, que nos afasta de outros povos com passados históricos e experiências bem diferentes.
Haverá no caminho muitos espinhos, mas a beleza e o perfume das rosas sairão vitoriosos, e o bom senso virá ao de cima e apagará todos os mal-entendidos.


3. Comentário de José Manuel Matos Diniz (*) [ex-fur mil, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), "amanuense da Magnífica Tabanca da Linha, em efectividade de serviço"; ex-quadro técnico da Diamang, Angola, 1972/74; membro de longa data da Tabanca Grande, mãe de todas as tabancas]


Camaradas,

A questão é muito delicada e, presumo, deve ser tratada sem que se criem falsas expectativas e graves perturbações.

Na presunção de que ainda haverá muitos combatentes vivos com descendência na Guiné, também não me parece razoável que se façam denúncias de casos supostamente conhecidos. Passados 40 a 50 anos, só os filhos nunca se sentiram com vida estruturada, mas colocá-los perante a amargura de não serem reconhecidos, será o maior trauma que pode vitimar um ser humano.

O Blogue, e outras pessoas de boa intenção, já deram indicações de filhos do vento", às vezes com identificação dos pais. Assim, aqueles que tomaram conhecimento e sentiram necessidade de se apaziguarem, já terão dado os passos necessários com vista ao reencontro.

Quanto à questão da nacionalidade, já é outra coisa, muito mais fácil de decidir, quanto a mim, mas muito mais dificil quanto ao Estado. Sou também da opinião que devia ser concedida a nacionalidade a todos os que comprovadamente a solicitassem. 

Diz o João José que são todos filhos de Portugal. Alguém tem dúvidas? Só que estão tão deslocados do "jardim", e dependentes de raízes que entretanto desenvolveram, que na ausência dos pais, pouco proveito poderão receber.

Mas sou claramente pela concessão da nacionalidade. O Estado deve assumir as suas obrigações. (**)

______________

Notas  do editor:

(*) Último poste da série > 25 de maio de  2015 > Guiné 63774 - P14659: Filhos do vento (32): Festival Rotas e Rituais, 2015: 22 de maio > Conferência "Filhos da Guerra": apontar o dedo ou dar a mão para ajudar ? (Hélder Sousa / João Sacôto)

(**) Último poste da série > 27 de maio de  2015 > Guiné 63/74 - P14667: Filhos do vento (34): Festival Rotas e Rituais, 2015: 22 de maio > Conferência "Filhos da Guerra": vídeo com a intervenção da jornalista Catarina Gomes

Guiné 63/74 - P14669: Os nossos seres, saberes e lazeres (96): Tomar à la minuta (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 29 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
Por muito insólito que pareça, tenho casa em Tomar, troquei uma casa em pedra no concelho de Pedrógão Grande por um andar junto de um lugar mágico, a magia é sempre produto da nossa imaginação ou dos nossos credos. Vou conhecendo Tomar, tateia-se aqui e acolá, descobre-se o cineclube, o espaço dedicado a Lopes Graça, um museu de arte contemporânea com a doação do professor José Augusto França à cidade, percorro as ruas do centro histórico, vou ao Café Paraíso, impecavelmente Arte Deco, há muitíssimos pontos a descobrir. E por isso tomei a liberdade de escancarar algumas imagens para vos convocar ao idílio tomarense.
Espero que gostem.

Um abraço do
Mário


Tomar à la minuta (1)

Beja Santos

Trago uma relação idílica com este local que é, sem qualquer exagero, um dos berços da Nacionalidade. Berço e berçário: aqui se afirmou a Ordem do Templo, os guerreiros guardiães que afugentavam mouros e que partiam em cruzada para Jerusalém, quando extintos o gémeo de um rei concebeu a nacionalização dos seus bens, a Tomar vinha o Infante D. Henrique avaliar as suas posses, daqui partiu muito capital para as expedições para cá e para lá do Bojador; o Convento de Cristo é mesmo património da Humanidade, visita-se a charola, ali perto a mais bela janela que existe em Portugal, a do Capítulo, um devaneio de D. Manuel I, de que o filho certamente considerava excêntrico, aquele D. João III que resolveu entaipar o ponto alto da arquitetura tomarense construindo um convento para que ninguém tivesse acesso aos delírios do grande patrocinador do estilo manuelino.

Tomar oferece muito: o Nabão, que serpenteia entre vales dulcíssimos; tem a Igreja dos Templários, que comove e arrepia; tem a Festa dos Tabuleiros, um dos fenómenos mais mirabolantes do culto do Espírito Santo; tem cineclube, teatro amador, bandas, futebol e hóquei; tem sinagoga, raríssimo exemplar de templos judaicos medievais; tem espécimenes de valor absoluto na arte da Contra-Reforma, basta pensar-se no claustro de D. João III, ali muito perto dos delírios manuelinos; tem a singularidade de um museu dos fósforos, aparentemente uma estopada, e de facto um regalo para os olhos; tem um centro histórico onde apetece passear, numa atmosfera apaziguante; e tem o RI 15, daqui partiram muitos mancebos do nosso tempo para a Guiné e outras paragens. Habito em cima de uma lezíria, no termo do Ribatejo, da janela da sala avisto castelo, convento e charola e também os choupos do Nabão, a ventania apresenta-se com regularidade, sibilante, lavando os ares e torcendo a ramaria das árvores. Ponho-me a caminho, e centenas de metros à frente encontro monumentos de valor incalculável, a recordar o encontro das hostes do Contestável D. Nuno com os homens do Mestre de Avis, uma memória a El Rei D. Sebastião, sigo depois por uma avenida onde habita a comunidade cigana, seguem-se stands, lojas dos chineses, de roupa para noiva, aqui e acolá moradias magníficas e vestígios da Tomar industrial, pois aqui pontificou Jácome Ratton e Manuel Mendes Godinho. E estou no centro histórico, o Nabão corre desalmado e entro naquela que é a minha rua mais bela, a Serpa Pinto ou a Corredoura. Daqui perto, minha avó partiu com 14 anos, levando bonecas, destinada a casar com um homem de 36, a viver no Cuanza Norte. Chega de conversa, vou dar-vos algumas imagens em passo de corrida, são imagens ligadas a lugares da minha atração, pode muito bem acontecer que depois, pelo adiante, se dê sequência e se faça uma apresentação mais acabada e até mais vistosa.



Estamos no Museu dos Fósforos, chama-se Aquiles da Mota Lima, este senhor foi assistir à coroação de Isabel II, viu caixas de fósforos, tomou-lhe o gosto e juntou-as aos muitos milhares, de muitos países. Doou a sua coleção à edilidade tomarense, prantaram o museu no antigo RI 15, resulta bem, entra-se e temos uma infinidade de compartimentos, com fósforos por todos os lados. É impressionante, recomendo a visita ao forasteiro.



Estamos na Igreja da Misericórdia, deixo-vos duas imagens contrastantes, a riqueza polícroma e ao fundo uma nave típica da Contra-Reforma, severa, é uma das grandes peças da arquitetura religiosa tomarense, uma das demonstrações do poder das misericórdias.


Por aqui se entra para visitar o Convento de Cristo, o guardião da Ordem, o Infante D. Henrique passou muito provavelmente por aqui, bem perto está o Paço, são ruínas imponentes nem dá para perceber como D. Catarina de Áustria, que foi regente do reino até D. Sebastião atingir a maioridade, pode viver com o mínimo de conforto.



Recomenda-se a visita guiada a quem se afoitar a entrar pelas muralhas do castelo, é tudo extenso e muito é indecifrável. Quando estamos para entrar no convento avista-se uma construção monumental arruinada, o teto há muito que desapareceu. Nesse lugar celebraram-se as Cortes de Tomar onde Filipe II de Espanha foi aclamado como Filipe I de Portugal, percebe-se o incómodo logo a seguir à Restauração. O que não se entende são as belas paredes pejadas de salitre e o Paço Real todo desconjuntado.



Lá dentro as coisas fiam mais fino. Fiz a visita no Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, havia descontos chorudos na loja de vendas, comprei um álbum de desenhos de Domingos Sequeira ao preço da chuva. E o teto da loja é a magnificência que vos mostro. E a seguir entrei na charola, é sempre a primeira vez, à falta de uma Capela Sistina temos outra sorte de fausto, é um cocktail de arte oriental, opulência de ouros, frescos, tudo cheio de telas em madeiras que vieram do Báltico, o monarca não se poupou a despesas, convocou grandes mestres flamengos e o produto final é o deslumbramento, ficamos de garganta seca, aturdidos com tanto e tal esplendor.



Sai-se da charola e deparam-se detalhes de como o severíssimo D. João III quis esconder o estilo manuelino, a primeira imagem é quase um entaipamento, os motivos escultóricos ficaram encobertos, o piedoso fomentador da Inquisição exigiu que o desafogo se concentrasse numa peça feita ao estilo italiano, o claustro, reconheça-se que é muito belo, mas fica-se indignado como o monarca absoluto, ao tempo que o nosso Império atingira a sua máxima extensão e se encaminhava para o declínio, escondeu manuelino só para que o visitante se sinta enfeitiçado por esta arte depurada do neoclassicismo, um pouco da Itália em Portugal. Isto assombra, mas volto as costas a D. João III e aos seus rigores, vou-me desenfastiar a contemplar a mais linda janela que foi feita em Portugal.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14649: Os nossos seres, saberes e lazeres (95): Se fosse presunto... (Manuel Luís R. Sousa)

Guiné 63/74 - P14668: Agenda cultural (406): Colóquio - O Jornalismo Português na Guerra Colonial, dia 28 de Maio de 2015, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Auditório 1 - Torre B, em Lisboa



____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 de Maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14662: Agenda cultural (403): Lançamento do livro de memórias "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", Biblioteca Florbela Espanca, Matosinhos, 3 de junho, 15h30: convite do nosso camarada A. Marques Lopes, cor inf DFA, reformado