segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14992: Álbum fotográfico de Jaime Machado (ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70) - Parte XI: Bissau



Foto nº 1

Foto nº 2



Foto nº 3 


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8


Foto nº 9


Foto nº 10


Foto nº 11


Foto nº 12

Guiné > Bissau > c. 1968/70  > Fotos de Bissau, do álbum de Jaime Machado


Fotos: © Jaime Machado (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Jaime Machado, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, maio de 1968 / fevereiro de 1970, ao tempo dos BART 1913 e BCAÇ 2852) (*):

[foto atual à direita; o Jaime Machado reside em Senhora da Hora, Matosinhos; mantém com a Guiné-Bissau uma forte relação afetiva e de solidariedade, através do Lions Clube; voltou à Guine-Bissau em 2010]


Não temos legenda para as fotos, esperamos que os nossos leitores contribuam com algumnas dicas... O Jaime Machadfo disse-me que ia uns
dias aos Açores... Se ele nos ler, há de por certo dar uma ajuda, como sempre...

Aqui ficam algumas legendas:

Fotos nº 1,  2 e 3: zona portuária de Bissau e avenida marginal (na foto nº 3, vê-se uma nesga da ilha de Rei):

foto nº 4: fortaleza  da Amura, entrada principal virada para sul (zona portuária);:

foto nº 5: jardim no exterior da  fortaleza da Amura, ao fundo, o edifício da Alfãndega;

foto nº 6: avenida principal, av da República (, hoje, Av Amílcar Cabral), que ia da Praça do Império até à zona portuária;

fotos nº 7 e 8: praça do Império, monumento ao "esforço da raça" e palácio do governador (autoria: Gabinete de Urbanização Colonial / Arquitetos João António Aguiar e José Manuel Galardo Zilhão, 1945);

fotos nºs 9 e 10: piscina da messe de oficiais do QG - Quartel General;

foto nº 11:  Messe de oficiais de Bissau, também conhecido  como "Clube Militar", o  famoso "Biafra" (se não me engano.,..);

foto nº 12: "djubi" de Bissau, pequeno comerciante ambulante, (LG)

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Nota do editor

Guiné 63/74 - P14991: O segredo de... (23): Histórias escondidas com o rabo de fora (Mário Vitorino Gaspar)

1. Em mensagem do dia 1 de Agosto de 2015, o nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) fala-nos de algumas histórias escondidas com o rabo de fora.

Caros Camaradas da Tabanca Grande

No dia 13 de Abril de 1966 apresentei-me com o Posto de Cabo Miliciano (promovido a 3 de Abril) no Regimento de Infantaria 14, em Viseu – deveria apresentar-me de manhã, mas só pelas 17H30 cheguei ao Regimento.
O Comandante do Regimento era o Tenente Coronel Carlos Faustino da Silva Duarte (antigo jogador de futebol e vencedor da Taça de Portugal em 1939). Este efectuou uma Reunião com os novos Sargentos e Oficiais novos que chegaram de manhã ao RI 14.
Fiquei na 1.ª Companhia sendo o Comandante o Capitão Amaral. O Comandante do Pelotão, sendo eu um dos Monitores, era o Alferes Miliciano Antunes. Foi para a Brigada de Trânsito posteriormente, e segundo as informações que possuo aposentou-se.
Eram Monitores um outro Cabo Miliciano Fernando e um Cabo Readmitido (PCAB/RD). Esta equipa manteve-se até Agosto de 1966. Integrado na Equipa de Natação do RI 14, treinava, mas não de início da constituição da mesma, visto não ter sido inscrito por me ter apresentado na Unidade tardiamente. Posteriormente vieram a saber que nadava, foi o próprio Comandante do Regimento o Tenente Coronel Faustino a incluir-me na equipa. Treinei o estilo de bruços.

Tudo corria às maravilhas, só que terminada uma das recrutas da minha Companhia tinha de dormir no campo para onde era transportado à noite e depois de dormir seguia de jipe para Viseu onde continuava os treinos. Isto era estranho, mas sucedeu.
No dia 4 de Julho tive de interromper os treinos, marchando para CIOE, em Lamego para frequentar o Curso de Operações Especiais, e após as provas e julgado no Anfiteatro recusei ser Ranger, regressando com mais 5 Cabos Milicianos a Viseu no dia 10. Integrado na equipa de natação, e como já não contavam com a minha participação, o Tenente Coronel Faustino, entusiasta do desporto, disse-me se me importava de treinar os 100 metros Costas. Estilo que nunca praticara, e aceitei por insistência. Difícil a missão. Teria oportunidades de conquistar um bom lugar nos 100 metros Bruços. Depois de treinarmos nas Piscinas do Luso e outras, a 20 de Julho partiu a equipa de Natação para Tomar, para participarmos nos Campeonatos de Natação da 2.ª Região Militar, na Piscina Vasco Jacob. De todos os nadadores do RI 14, só eu no dia 21 fiquei apurado para a final, terminando em 2.º lugar, mas quase todo o percurso comandei. O meu estilo de costas resumia-se à posição, não batia crawl, complicado por movimentar-me na água só com a força, e grande, de braços. O Júri eliminou-me, sendo o seu líder a figura da terra Vasco Jacob, nome da piscina. Disse ao Comandante Faustino que não me podiam eliminar, o estilo costas é costas, e não crawl. Após protesto decidiram haver razão da minha parte. A 22 de Julho foi o bonito, era a única hipótese. Teria ganho uma medalha se tivesse participado nos 100 metros Bruços.
Complicou-se tudo por cada um ter uma opinião. Como não era nadador do estilo era difícil fazer os 100 metros, teria de dosear as forças. Mas uns diziam para puxar os 100 metros. Era impossível, disse ser melhor quanto a mim puxar os primeiros 33 metros e fazer os segundos 33 metros descansando um pouco e aplicando-me na última volta. Insistiram tanto, cada um com a sua opinião. Explicava-lhes ser possível obter a medalha por ver que somente o nadador que tinha ganho a minha eliminatória me venceria. Confundiram-me e venci os 33 metros e os 66 metros e, passados uns metros rebento. Termino em 4.º lugar e ultrapassado no final da prova.

Todos preparados para seguirmos para Viseu, pergunto a um Tenente se não seria possível darem-me uma dispensa de fim-de-semana, apanhava uma boleia para o Entroncamento e tinha comboio para casa. O Comandante Faustino, um militarista, gostava da minha atitude e passou-me uma dispensa, escrita num papel, dizendo ao Tenente para se oficializar a questão em Viseu.

Aqui é que começa a história. 

Apanhei uma boleia numa viatura militar e apanhei o comboio. Tinha de me apresentar no dia 25, segunda-feira, mas fui ficando, até apanhar o comboio para Viseu no domingo seguinte, 31 de Julho, chegando ao RI 14 a 1 de Agosto.
Um fim-de-semana longo. Dez dias em casa, uma semana mais que essa tal dispensa.
Era o 1 de Agosto e chegado ao quartel começam todos: “Estás… f…”. O 1.º Sargento olhava-me muito sério, mas com vontade de rir, era daqueles que partilhava aquilo que trazia da terra, e lá ia um petisco, salpicão, presunto ou paio.
Dizia-me:
- E agora Mário?
Respondi:
- Agora bate chapas e tinta robbialac!
Disse-me:
- Estiveste de Sargento de Piquete, e quem te fez o Serviço foi o João!

O João era um Cabo Miliciano negro da Guiné.
Fui na direcção do Bar dos Cabos Milicianos. Curioso por ter sido o único quartel que o Cabo Miliciano tinha alguma coisa. Sucedia partilhar-se a Messe com a dos Cabos Milicianos, mas com divisórias, não fosse a moléstia.
Entretanto vejo o Alferes Miliciano Antunes, amigo e camarada. A nossa equipa na instrução, 77 recrutas cada vez, era uma máquina e sem óleo. Éramos os 4 indomáveis na instrução, desde Abril, sem paragens.
 Olhou-me, dizendo:
- Desta não te safas. Sabes que o João fez o Serviço de Piquete por ti, eu estava de Oficial de Prevenção, e tu nas putas… Não te safas não! Olha, amanhã estás de Serviço, novamente de Piquete, nunca pensei que fosses tu, mas ou o nosso Primeiro meteu água, não percebo, mas estás de Sargento de Piquete e eu de Oficial de Prevenção!
Interrompi-o e disse:
- O 1.º deve ter trocado o Serviço do João pelo meu. Como ele fez o meu Serviço, faço amanhã o dele!

Despedi-me a 4 de Agosto de todos. Chamado a frequentar o XX Curso de Minas e Armadilhas, a Tancos. Fiquei bem sensibilizado. O Tenente Coronel Faustino chamou-me e disse:
- Tentei livrá-lo, mas não foi possível. Estava apurado para os Campeonatos das Regiões Militares. Não me recordo das razões que levaram a que não ficasse inscrito logo na Reunião!
Respondi:
- Cheguei à tarde!
- Se chegasse de manhã, não teria sido chamado para Tancos!

Despedi-me com um aperto de mão. Segui para o Comando da Companhia, despedi-me dos Sargentos da Secretaria. Logo encarei com o Capitão Amaral, que disse:
- É bom rapaz, mas para um militar…

O camarada Antunes, parece ter chorado e abraçou-me.
De seguida foi um adeus e especiais cumprimentos para o Cabo Miliciano Fernando e o 1.º Cabo RD.

E a festa continuou. Em vez de me apresentar a 5 em Tancos, fui para casa e cheguei a Tancos de manhã. Espectáculo a chegada, gritavam em coro: “Estás feito e f… desta vez não… ”!

Velhos conhecidos, das Caldas, de Tavira, de Vendas Novas…
Perguntei quem recebia as guias e disseram ser um Sargento que estava sempre nos copos.
Disse:
- Vamos apostar? Entrego-lhe as guias, bebemos uns copos e o nosso amigo paga!

Apostámos uma rodada. O grupo não era pequeno. O Sargento estava junto da cantina e fui na sua direcção, ao ver-me diz:
- É você que falta? Só chega agora?
Respondi:
- Vai um copo?
Riu e disse:
- Onde é que ele está?

Bebemos o primeiro copo, depois o segundo, sem surpresa para mim pagou os copos. O vinho não era mau.
Começámos, não tenho a certeza o Curso nesse mesmo dia, mas só apresentação.
A 17 de Setembro terminámos.
Passei o Curso, mas foi um Curso com história, muitos Aspirantes e Cabos Milicianos chumbaram.

Por andar desenfiado, o Major da Secretaria no Regimento Artilharia de Costa (RAC) pôs-me de Sargento de Dia ao Regimento a 8 de Janeiro, partia para a Guiné a 11.
Dia 8 era domingo. O último domingo que devia estar com a família, fiquei de Serviço. Pagava 500$00, mas o Major fez tudo bem feito, ninguém pegou. Este Serviço era chato, era a bandeira e responsável pelos combustíveis.
Apresentei-me na parada, julgo que Tenente Ferro:
- Apresenta-se o Cabo Miliciano que vai entrar de Sargento de Dia ao Regimento e que parte para a Guiné na quarta-feira!
Respondeu:
- Vai partir para a Guiné e está hoje de Serviço? No final venha falar comigo!
Estando juntos, diz-me:
- Sabe, as braçadeiras põem-se e tiram-se, percebeu?
- Sim meu Tenente!
- Vamos ao rancho…

 Fui para junto da minha cama, tirei a braçadeira. Saí. Dei umas voltas e regressei. Fomos ao rancho, era bacalhau com grão. Nunca tinha visto tal. O Tenente exigiu ver o rancho não no tacho pequeno mas no caldeirão. As espinhas do bacalhau todo desfeito espetadas no grão.
Almocei com o Tenente que me fez a surpresa de encomendar bife com batatas fritas de um restaurante.

 Depois sucedeu mais uma asneira, talvez uma das piores da minha vida militar. Os carros que vinham atestar, entregava as chaves e dizia:
- Abasteçam-se!
Olhavam admirados e era encher e deve alguém ter dado com a língua que apareceu um número razoável de candidatos.
- É encher, encher!

O 1.º Sargento da minha Companhia (que era 2.º Sargento), dizia-me que tínhamos muito que fazer na Secretaria. Na Reunião com o Tenente, depois do jantar, combinou-se como seria feita a ronda. Disse-me que eu seria o último a fazer. Ninguém me acordou e mal abri os olhos e termina o Serviço, mudo de roupa e adeus RAC.
Voltei na quarta-feira, no dia 11 de Janeiro de 1967.

Chegada ao Largo de Bissau a 17. Transbordo para a LDM e barcaça, via fluvial, a vegetação quase a tocar-nos e com uma maçã golden, um ovo, um quarto de pão, uma laranja e destino incerto.
Estes atrasos terminaram aqui. Não existia espaço. Sentido das responsabilidades.
Quando fazia asneiras, ouvi mais de uma vez dos Oficiais:
- Isso era o que você queria! Não ganhei guerra nenhuma!

Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de Agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14981: O segredo de... (22): O problema não eram os pecados, - os nossos segredos -. O problema acontecia quando quem mandava em nós desvendava os pecados (Domingos Gonçalves)

Guiné 63/74 - P14990: Notas de leitura (746): O “Ericeira”: nos primórdios da BD sobre a guerra colonial (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Agosto de 2014:

Queridos amigos,
Acho que chegou a hora para fazermos algum esforço de recolha da BD e a Guiné em particular.
Já aqui foram feitas referências a trabalhos de A. Vassalo, que não esconde a sua admiração pelas façanhas de Alpoim Calvão. Há seguramente mais.
A revista Visão, importantíssima na BD, deu-lhe espaço e muito digno.
A seguir se fará menção a um interessante trabalho de A. Vassalo sobre a LDM 203, várias vezes esteve para soçobrar e, qual Fénix Renascida, voltou às rias da Guiné, e um dia foi desmantelada.
Ficarei agradecido a quem me puder ajudar com sugestões e empréstimos.

Um abraço do
Mário


O “Ericeira”: nos primórdios da BD sobre a guerra colonial

Beja Santos

O acervo da BD na temática da guerra colonial não para de crescer, parece-me que chegou a hora de juntarmos esforços para a coligir na íntegra, ou quase. Já aqui foi feita a referência a obras de A. Vassalo, caso da Operação Mar Verde. Nos seus empréstimos recentes, o nosso confrade Carlos Pedreño Ferreira chamou-me à atenção para estas duas páginas sobre o “Ericeira”, adaptação e desenho de Baptista Mendes publicadas na revista da Armada, Fevereiro de 1972.

O “Ericeira” era Eduardo Henriques Pereira, nascido na Ericeira em 1946. Ofereceu-se muito jovem com voluntário da Armada, aparece na Guiné no Destacamento de Fuzileiros Especiais n.º 9, estamos em 1964. Cedo dá sinais de destemor, finda a primeira comissão, ofereceu-se novamente como voluntário para a Guiné, foi incorporado no DFE n.º 7. Regressa com uma Cruz de Guerra e vários louvores. E três meses depois está a caminho de Angola onde veio a falecer. Como escreve o autor, “no dia do seu funeral”, o comércio da Ericeira encerrou as portas e, pode dizer-se, todo o povo da terra lhe prestou a última e justa homenagem, incorporando-se no funeral.
Recorde-se o “Ericeira” e as suas duas comissões na Guiné.




Oxalá outros confrades deem sugestões para mais referências à BD.
Em breve aqui se mencionará de A. Vassalo, a saga, por ventura única, da LDM 2003.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14979: Notas de leitura (745): Um dia diferente, da autoria do ex-Alf Mil Médico Aníbal Justiniano da CART 494, extraído do livro "Missão Guiné 63-65 Companhia de Artilharia 494”, escrito por Augusto Carias, Adelino Gomes e Aníbal Justiniano (Coutinho e Lima)

Guiné 63/74 - P14989: Parabéns a você (943): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 (Guiné, 1967/68) e Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14986: Parabéns a você (942): Anselmo Reis Garvoa, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 2315 (Guiné, 1968)

domingo, 9 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14988: Libertando-me (Tony Borié) (29): Talvez seja o "nosso aspirante"

Vigésimo nono episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 3 de Agosto de 2015.




Os amigos, companheiros de guerra, estiveram num tempo da nossa vida, onde eram quase a nossa família. Depois da guerra, alguns de nós, começámos uma família, isso mudou um pouco o nosso comportamento, criámos novos grupos, não é que não nos lembrássemos mais daqueles companheiros, mas as novas responsabilidades, dificuldades e a sobrevivência, mudou-nos, mas colocar esses amigos, companheiros de guerra, de novo juntos, pelo menos fisicamente, pois os que por lá ficaram atravessados por estilhaços ou balas inimigas, naquelas savanas, tarrafo e rios de lama, esses seguem juntos, mas no nosso pensamento, mas para colocá-los de volta, agora, quando não há muito tempo nas nossas vidas, quando aparece um, ficamos de algum modo contentes, pelo menos vendo a sua fotografia e, mesmo que qualquer desses companheiros não esteja entre nós, não há nenhuma razão para um momento menos feliz, é um momento sobre o tempo, sobre as nossas relações de quando éramos jovens.

Passando os olhos pelo nosso blogue, no post P14957, o nosso companheiro, João Sacôto, que foi alferes miliciano, fazendo parte da CCAÇ 617/BCAÇ 619, que andou lá por Catió, Ilha do Como e Cachil, precisamente nos mesmos anos que também por lá andámos, mostra umas fotos em que se pode ver uma simpática personagem, cujo nome não nos lembramos, mas deve de ser ele, estou mesmo em dizer que é ele, pois a foto que temos do nosso tempo de convivência, são muito idênticas. Temos alguns amigos, mas “amigos especiais”, daqueles que sempre lembramos, são os da guerra, aqueles que estavam na mesma situação de angústia e aflição, aqueles que estando no interior de África, olhavam o mapa e viam a cidade de Bissau, não como alguma civilização, mas como o caminho da Europa, são esses amigos, daquele tempo de juventude, daquele tempo de aprendizagem, onde a convivência nos fazia copiar os maus e bons costumes.

Nessa altura éramos um normal soldado recruta, vulgo instruendo, que estava no seu dever de cidadão, seguindo os princípios para que foi educado, tanto no seu lar, como na escola primária da vila de Águeda, onde sempre lhe disseram que a sua Pátria, estando em guerra, devia ser defendida, sem quaisquer restrições, mesmo usando o sangue dos seus cidadãos. Neste contexto, o instruendo que nós éramos, veio a sua casa, com licença de fim de semana, retornando ao seu quartel, o tal lugar onde o estavam a preparar para defender a, tal sua Pátria.

Era aquele normal fim de semana para, entre outras coisas, saborear a comida da mãe Joana, todavia, quando saímos da nossa aldeia, o sol ainda não cobria a marca, na base da porta do curral das ovelhas, dizendo-nos que era meio dia, aquilo era fácil, eram vinte e poucos quilómetros, sacola ao ombro, com alguma roupa lavada, assim como o farnel que a mãe Joana nos preparava. Seguíamos quase sempre a corta-mato, ou seja encurtando caminho, percorremos quase todo o trajecto da vila de Águeda à cidade de Aveiro, tirando um pequeno percurso, em que viajámos à boleia no carro do “homem do berbigão”, oriundo de Mourica do Vouga, que encontrámos numa taverna próximo da povoação de Eixo, naquele momento, comia ele, “umas sopas de cavalo cansado”, vulgo “sopas de vinho”, que seguia direito à lota de Aveiro, comprar o berbigão, sardinha e carapau, para vender pela madrugada na nossa zona, cujo carro era puxado por um “macho”, cujo “acelerador” era um valente cajado com que batia no lombo do desgraçado animal, quando este começava a dar sinais de fraqueza, pois não tinha partilhado com o seu dono das tais “sopas de cavalo cansado”.


Era domingo, um dia antes, pois no papel da licença estava escrito segunda-feira, o céu já estava colorido com aquelas cores estranhas, pois lá para o lado das praias já se podia observar o começo da noite, a tal noite que se prolongou por África e nos acompanhou nos próximos três anos.

Com ele nos cruzámos em plena Avenida Lourenço Peixinho, já na cidade de Aveiro, fazendo-lhe uma tremenda saudação, mesmo daquelas em que nos colocamos na posição de sentido, só com a diferença, em que ambos trajávamos civilmente. Ele riu-se, com aquele sorriso maroto, sempre mantendo uma certa compostura, eu fiquei a olhá-lo, talvez espantado. Esta simpática personagem era o nosso aspirante, instrutor que nos ensinou algumas normas militares, como marcar passo, manusear a espingarda “Mauser”, desencavilhar uma granada, que nós nunca aprendemos pois ficávamos nervosos, quase a tremer, alguns exercícios físicos, enfim, aquelas coisas que se aprendem na recruta. Na primeira instrução do nosso pelotão, ele, a tal personagem, muito sério, explicou que trajando civilmente não era necessário “bater a pala” a nenhum superior, nunca mencionou o nosso nome, mas claro, olhando para nós com o tal sorriso maroto. Voltamos a falar sozinhos, já em Lisboa, à saída do comboio especial que nos trouxe para a capital, onde fomos distribuídos por diversos quartéis, aí dizendo-nos que mais cedo ou tarde, o nosso destino era a guerra do ultramar.

Tomando a liberdade de mostrar as fotos do companheiro João Sacôto, para ver a comparação, oxalá que esta simpática personagem esteja viva, se estiver que apareça com saúde e alegria em viver, pois se não houver outra razão, a sua atitude para connosco, tornou-nos cúmplices, podemos mesmo dizer que tivemos o nosso “secreto”, o que nos torna de algum modo felizes por o termos conhecido, neste mundo selvagem, onde os oceanos já não têm aquele azul de outrora, os ventos já não trazem a brisa de orvalho, mas sim, varrem destroços da catástrofe que é o modo de vida e procedimento dos “vindouros”, que não têm nenhuma contemplação ou respeito por quem deu a vida pela sua bandeira, pela tal sua Pátria.

Tony Borie, Agosto de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14960: Libertando-me (Tony Borié) (28): Pôr a carta no Correio, na guerra

Guiné 63/74 - P14987: Fotos à procura de... uma legenda (60): uma viatuira civil, reduzida à carcaça, possivelmente destruída por mina A/C na estrada Bambadinca-Saltinho (Jaime Machado, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/1970)



Foto nº 1


Foto nº 1 A

Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca >  Pel Rec Daimler  2046 (1968/70) >  Presumivelmente, a foto é de 1968  e terá sido tirada na estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho, durante uma operação logística... Um militar, ainda não identificado, inspeciona uma viatura civil, reduzida ao chassi e à cabine, que deve ter sido vítima de uma mina A/C...


Fotos (e legendas): © Jaime Machado (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: LG]



1. Foto (nº 1, e nº 1 A) , surpreendente, que encontramos no álbum do Jaime Machado, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, maio de 1968/fevereiro de 1970, ao tempo dos BART 1913 e BCAÇ 2852) (*):

[foto atual à direita; o Jaime Machado reside em Senhora da Hora, Matosinhos; mantém com a Guiné-Bissau uma forte relação afetiva e de solidariedade, através do Lions Clube; voltou à Guine-Bissau em 2010]


Não temos legenda para a foto, esperamos que os nossos leitores contribuam com uma dica... O Jaime Machadfo disse-me que ia unsd ias aos Açores... Se ele nos ler, há de pro certo dar uma ajuda, como sempre...

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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de julho de  2015 > ída por mina A/C na estrada BambadiOs manos Marques da Silva, fundadores do conjunto musical "Ritmos Caboverdeanos", em digressão por Bissau e Dacar, em junho de 1964, que iam "tramando", sem o quererem, o primo António Medina...

Guiné 63/74 - P14986: Parabéns a você (942): Anselmo Reis Garvoa, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 2315 (Guiné, 1968)

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Nota do editor

Último poste da série > 8 de agosto de  2015 > Guiné 63/74 - P14983: Parabéns a você (941): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor Auto da CART 3521 (Guiné, 1971/74) e José Santos, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)

sábado, 8 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14985: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (38): é possível barrar a emigração a muitos milhões de jovens africanos sem perspectiva de vida? Nem Luís Cabral conseguiu fechar as entradas na Praça de Bissau...

1. Mensagem do Antº Rosinha:

[Foto à direita, o Antº Rosinha , ex-fur mil em Angola, 1961/62, topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979/93, ex-colon e retornado, como ele gosta de dizer com a sabedoria, bonomia e o sentido de humor de quem tem várias vidas para contar ...]:

Data: 3 de agosto de 2015 às 19:46


Assunto: É possível barrar a emigração a muitos milhões de jovens Africanos sem perspectiva de vida? Nem Luís Cabral conseguiu fechar as entradas na Praça de Bissau.


Como é possível fechar a Europa aos jovens de toda a África, se não foi possível fechar as entradas de jovens de toda a Guiné-Bissau dentro de Bissau que é uma ilha?

Em 1980 eram tantos milhares de jovens na cidade de Bissau, vagabundeando na Praça, que Luís Cabral tentou fechar na Chapa Bissau, na estrada de Antula e na estrada que vinha de Bor, com polícias e camiões para recolher, registar os sem emprego e recambiá-los para as suas tabancas.

Eu já escrevi isto, mas agora serve para comparar exactamente tudo, mas tudo mesmo, aquilo que se passa hoje com toda, mas toda mesmo, a juventude africana, com aquilo que se passava nos anos a seguir à independência da Guiné para as mãos do PAIGC.

Isto é, toda a juventude Bissau-guineense, viu a demora em aparecerem os resultados prometidos e apregoados pelo Regime e pelos heróis da Independência e o instinto de defesa muito presente no povo africano não demorou, de uma maneira passiva, mas bem vincada, manifestou-se com uma autêntica invasão maciça da capital, vagabundeando o dia inteiro pela praça, sem qualquer preparação, sem discursos e sem armas, apenas com a sua presença, sempre em movimento, e isto diariamente até que o governo reagiu.

Luís Cabral, reagiu e caíu.

Mas já em 1980, milhares de guineenses sabiam que era preciso "fugir" mesmo da cidade de Bissau porque tal como hoje assistimos, todas as capitais africanas ficaram literalmente inabitáveis.

Não havia perspectiva de uma independência africana à «maneira europeia» sem se ter feito uma colonização europeia real em toda a África Subsariana.

Como tal aquela áfrica vai recorrer à colonização selvagem de árabes e de chineses.

A Europa vai pagar tudo com juros suportando as reclamações dos jovens africanos, pois é apenas a reclamar, aquilo que os africanos estão a fazer em Calais e no Mediterrâneo e em Ceuta.

Em Portugal há muitas reclamações há muitos anos, principalmente na freguesia de São Sebastião da Pedreira.

O primeiro ministro inglês e o presidente francês, estão na situação em que Luís Cabral estava em 1980, sem saber o que fazer com tantos «pretos».

Mas que porra, quem diria?

Havia pessoas que tinham a razão do seu lado, mas não tinham a força das armas.

Seria pior? Seria melhor? Pelo menos seria diferente.

Cumprimentos

Antº Rosinha
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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14583: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (37): Sempre houve emigrantes europeus para África, agora dá-se o inverso

Guiné 63/74 - P14984: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (18): Há festa em Ferrel e nasceu mais uma tabanca, de que será régulo o Joaquim Jorge, ex-alf mil, CCAÇ 616 / BCAÇ 619 (Empada, 1964/66)


Peniche > Ferrel > 5 de agosto de 2015 > Cartaz anunciando as festas (sempre grandiosas e muito concorridas) da vila (e freguesia) de Ferrel, que estão a decorrer entre 5 e 10 de agosto... Hoje, sábado, por volta das 16h, haverá a tradicional "burricada"... em homenagem aos tempos em que os ferralejos eram valentes almocreves, e o burro era um importante meio de trabalho...



Peniche > Ferrel > 5 de agosto de 2015 > Início das festas da vila e freguesai de Ferrel cuja origem (documentada) remonta a 1639... A padroeirta da terra é a Nossa Sra da Guia, tradicionalmente padroeira dos pescadores.


Peniche > Ferrel > 5 de agosto de 2015 > Início das festas da vila e freguesai de Ferrel  
>  Tradicional procissão com a imagem da padroeira, em que participaram diversas associações de ex-combatentes (caso, por ex,,  do Núcleo de Peniche  da Liga dos Combatentes, da AVECO - Associação dos Vetersanos Combatenets do Oeste, com sede ma Lourinhã).


Peniche > Ferrel > 5 de agosto de 2015 > Início das festas da vila e freguesai de Ferrel  
>  Tradicional procissão com a imagem da padroeira, em que participaram diversas associações de ex-combatentes... Do lado direito, de direito, de perfil, óculos e camisola azul, o "régulo da tabanca de Ferrel", o nosso movo grã-tabanqueiro Joaquim Jorge.



Peniche > Ferrel > 5 de agosto de 2015 > Início das festas da vila e freguesai de Ferrel  
>  Tradicional procissão com a imagem da padroeira > A capela local, seiscentista.




Peniche > Ferrel > 5 de agosto de 2015 > Placa. no adro da igreja, evocativa da luta do povo de Ferrel, os ferralejos, contra a tentativa de construção de um central nuclear no pós.25 de abril de 1974, e de que o Joaquim Jorge foi um dos líderes.


Lourinhã > Praia da Areia Branca > 5 de agosto de 2015 >  A Ilha das Berlengas, ao pôr do sol... Vista  á distância de 26 km, depois do regresso de Ferrel.


Lourinhã > Praia da Areia Branca > 5 de agostod e 2015 > Pôr do sol (1)


Lourinhã > Praia da Areia Branca > 5 de agostod e 2015 > Pôr do sol (2)

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados


1. O nosso camarada Joaquim da Silva Jorge, ex-alf mil,  CCAÇ 616 (Empada, 1965/66), 1.  já me prometeu, por boca e por escrito, que vai as fotos da praxe para poder integrar, de pleno direito, a nossa Tabanca Grande...  


Ainda recentemente, a 3 do corrente, me mandou o seguinte mai


Amigo Luís Graça: Antes de mais quero pedir-te desculpa de ainda não te ter enviado a foto e os dados para a minha inscrição. Fá-lo-ei depois do dia dez porque até lá ando envolvido
com as festas de Ferrel.


Este ano o convívio da minha companhia, a CCAÇ 616, foi no passado fim de semana, dia 25 e 26 de Julho, no hotel Pax em Fátima. No sábado a partir das 14h00 começou a chegada da "malta". Às 19h00 na capela do seminário dos Missionários da Consolata foi celebrada a nossa Missa.
Seguiu-se o jantar com uma bacalhauzada bem regada que terminou com a partilha do bolo da Companhia.

Depois, no anfiteatro do Hotel, fizemos um serão bem divertido, com notícias dos companheiros que não  puderam estar presentes, com a organização do convívio do próximo ano [, 2016,] em que comemoramos os 50 anos do nosso regresso e com algumas oportunas intervenções, destacando-se a de um camarada que esteve recentemente em Empada e a de outro que tem uma neta missionária em Empada. 

O domingo de manhã foi ocupado com a continuação do convívio e visita ao Santuário. Seguiu-se o almoço com mais alguns companheiros que não puderem vir no sábado. Por volta das 16h00 começou a debandada para o regresso a casa.
Agradeço que me envies o email do [João] Sacôto, da CCAÇ 617.
Até breve! Um abraço do Joaquim Jorge

2. Comentário de LG:

No passado dia 5, 4ª feir, fui ter com o Joaquim Jorge, "régulo da tabanca de Ferrel"... A terra está em festa, toda esta semana, até 2ª feira, dia 10... Devo dizer vos, camaradas,  que fiquei impressionado com a grandeza dos festejos locais, que superam já as festas de Peniche, sede de concelho...

Há 50 anos Ferrel era uma terra de gente pobre, esquecida e até discriminada... Hoje a vila de Ferrel orgulha-se de estar na lista da frente das terras do concelho, graças ao emigração dos seus filhops e ao desenvolvimento da sua agricultura.

Assisti à procissão, ao fim da tarde, que teve também a participação do núcleo de Peniche da Liga dos Combatentes (LC), bem como da AVECO - Associação dos Veteranos Combatentes do Oeste, entre outras... O Joaquim esteve á frente do núcleo de Peniche da LC durante uns anos...

A coordenação da parte religiosa da festa está a cargo do Joaquim que é um homem muito querido e estimado na sua terra, pela sua generosididade e trabalho feito no campo da acção social e apostólica, da solidariedade, do voluntariado, do desenvolvimento comunitário...

Não deu, desta vez, para eu visitar as instituições locais a cuja história ele está ligado (associação cultural e recreativa, creche, centro de dia, lar de idosos). Além disso, é uma pessoa simples, hospitaleira e excelente conversador... É um regalo ouvi-lo contar histórias da Guiné. Fomos beber um copo com ele, depois da procissão... É, em todos os aspetos, um camarada que nos orgulha a todos, amigo do seu amigo, camarada do seu camarada...

Combinámos, depois do dia 10, fazer uma sardinhada, na nova "tabanca de Ferrel".. Estamos a montar a operação, e já temos data: 4ª feira, dia 12... O João Sacôto virá, de propósito, de Lisboa.  Outros camaradas, aqui do oeste (Louirnhã e Peniche) estarão também presentes... Do meu lado, já arregimentei o Eduardo Jorge Ferreira,  régulo da Tabanca de Porto Dinheiro, o Jaime Bonifácio Marques da Silva, o Pinto Carvalho...

Como diz o Joaquim, Jorge, recordar é viver e temos que aproveitar bem o tempo que nos sobra (ou resta)  para viver e recordar. Aqui ficam algumas fotos do dia 5, incluindo um magnífico pôr do sol que apanhei no regresso a casa. 

Guiné 63/74 - P14983: Parabéns a você (941): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor Auto da CART 3521 (Guiné, 1971/74) e José Santos, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)


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Nota do editor

Último poste da série de 4 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14968: Parabéns a você (940): José Nunes, ex-1.º Cabo Mecânico Electricista do BENG 447 (Guiné, 1968/70) e Rui Alexandrino Ferreira, TCoronel Ref (Guiné, 1965/67 e 1970/72)

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14982: Memórias de Gabú (José Saúde) (55): Em memória do teu avô, major Brito



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

As minhas memórias de Gabu

Ao amigo Cláudio Brito
Em memória do teu avô, major Brito

Desculpa, mas humildemente tratar-te-ei por tu. Coisas da tropa. Não leves obviamente a mal esta velha retórica militar. Mas a verdade porém obriga-nos, em sentido quiçá figurado, remeter o nosso ego para um passado onde registamos momentos sempre inesquecíveis.

A Guiné foi um palco de guerra que nos remete para pensamentos literalmente ínvios, não obstante o local porventura palmilhados. Nas minhas memórias de Gabu tive a oportunidade de conhecer o então 1º sargento Brito. O “tio” Brito, como habitualmente era tratado, aliás, sempre foi, como um militar do quadro extraordinário.

Com ele partilhei alguns momentos sob um clima de guerra que nos era porventura adversa. Estava em Madina Mandiga integrado numa companhia pertencente ao meu, nosso, BART 6523. Dissequei, com ele, conversas transversais quando, a espaços, vinha a Nova Lamego com o intuito de tratar assuntos referentes à sua companhia deslocada algures em pleno mato guineense.

A vida remete-nos para um examinar constante daquilo que fomos, o que fizemos e o que nos resta para concretizar esta vivência no cosmos terrestre.

Cláudio, tive a oportunidade em saber “novas” do teu avô, ainda em vida, através do alferes miliciano ranger Barbosa. Um camarada que estava destacado numa outra companhia, sediada em Buruntuma, do nosso BART, mas que a data altura passou, também, pelo destacamento de Madina.

Disse-me este velho camarada Barbosa, companheiro da escola de Lamego e também conhecedor profundo desta velha especialidade, que o “tio” Brito, que estava reformado em major e residia em Coimbra. Manifestei, na altura, interesse de o contactar. Mas tudo se esvaziou num tempo sem tempo. 

Porém, a fatídica notícia do teu avô chegou-me um dia através do nosso blogue. Fiz então uma referência a um homem que sempre estimei e que faz parte do meu livro – GUINÉ-BISSAU AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU 1973/1974.

Cláudio Brito, amigo de uma outra geração, sendo o mundo na sua plenitude apenas uma pequena gota de orvalho que refresca, por enquanto, ideias que jamais se assumirão como caducas, prezo o teu afeto por um camarada, teu avô, reafirmo, que nunca esquecerei.

Aqui fica uma foto em que brindo com o meu velho camarada Brito, já em tempo de liberdade no palco de guerra na Guiné tendo em conta que a Revolução do 25 de Abril estabeleceu o fim da guerra em África, para sempre recordar. 


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P14981: O segredo de... (22): O problema não eram os pecados, - os nossos segredos -. O problema acontecia quando quem mandava em nós desvendava os pecados (Domingos Gonçalves)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 31 de Julho de 2015:

Prezado Graça:
Saúde, e boas férias.

O problema não eram os pecados, - os nossos segredos -. O problema acontecia quando quem mandava em nós desvendava os pecados.

Vou contar dois casos.
Um pecado acabou por ficar no segredo dos deuses, apesar da desconfiança da divindade. Outro não.

O caso que ficou no segredo, foi o seguinte.

As valas de Guidaje
Com a devida vénia a SPM 0018 - CCAÇ 3

Estava eu em Guidage, com o meu grupo de combate, numa altura em que o capitão estava de Férias, quando chegou lá uma coluna para me entregar a ordem para participar numa operação que decorreria na madrugada e manhã do dia seguinte, na zona do Dungal.
A escolta da coluna ficaria em Guidage, mantendo a segurança do destacamento durante esse período de tempo.
Através de um furriel que vinha nessa coluna, o colega, alferes, que se encontrava a substituir o capitão, enviou-me uma carta pessoal, (secreta) em que me dizia para não participar na operação por diversas razões, que na altura me informou, em virtude das quais me aconselhava prudência reforçada. Li a carta e queimei-a.
Na madrugada do dia seguinte saí com o meu grupo de combate em direcção ao Dungal, após pouco mais de uma hora de marcha simulei estar perdido, demos umas voltas pelo mato, recolhemos bananas numa tabanca abandonada, regressando de seguida a Guidage.
Como era normal, redigi o relatório, que via rádio, seguiu para o batalhão.
Não sei como, nem porquê, quando o capitão regressou de férias chamou-me ao gabinete para saber o que tinha acontecido naquele dia. Menti-lhe, claro. Mas jurei por Deus, que estava a falar verdade. Deixo aqui, e agora, a confissão do meu pecado.

Sobre o outro pecado falarei em breve.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14977: O segredo de... (21): O que custa(va) ser periquito numa terra como a Guiné (Ribeiro Agostinho, ex-Soldado da CCS/GG/CTIG)

Guiné 63/74 - P14980: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (17): Como leitura de férias, depois de "O Corredor da Morte" de Mário Gaspar, este ano, "Cabra Cega", de João Carrasqueira, pseudónimo de António Marques Lopes (Hélder V. Sousa)

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Valério de Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de hoje 31 de Julho de 2015:

Caros camaradas
Dando seguimento ao apelo do Luís Graça para que se alimentasse o Blogue, durante as férias, dando até como sugestão que se 'enviasse um postalinho' ou 'aerograma', aqui vai a segunda contribuição.
Como já disse, tive direito a uns "dias de licença" e entre descansar e apanhar sol e água, aproveitei também para me dedicar a colocar algumas leituras em dia.
Conforme se pode comprovar pela foto anexa, para além da 'barriguinha', e do 'bronze de camionista', ressalta que estou a ler a "Cabra Cega" dum tal João Carrasqueira.
Já o ano passado também aproveitei para, nesta mesma ocasião, ler "O Corredor da Morte" do meu "quase conterrâneo" Mário Gaspar.

E pronto, para 'postalinho' já chega!
Abraços
Hélder Sousa

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14967: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (16): O rio que mais me impressionou na Guiné foi o Corubal (Abel Santos, ex-Soldado Atirador da CART 1742)

Guiné 63/74 - P14979: Notas de leitura (745): Um dia diferente, da autoria do ex-Alf Mil Médico Aníbal Justiniano da CART 494, extraído do livro "Missão Guiné 63-65 Companhia de Artilharia 494”, escrito por Augusto Carias, Adelino Gomes e Aníbal Justiniano (Coutinho e Lima)

1. Mensagem do nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Reformado (ex-Cap Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), com data de 30 de Julho de 2015:

Caro Amigo Carlos Vinhal
Junto envio, em anexo, um texto com o título "Um dia diferente" que, penso ter interesse para ser publicado no nosso blogue.

Um abraço
Coutinho e Lima


Um dia diferente*

Dia 29 de Fevereiro de 1964

Um dia que nada significa para muitos. Um dia igual a tantos outros. Mas para alguém este dia é diferente, não é igual aos outros. Para ele, o dia 29 de Fevereiro de 1964 representa muito, a vitória da sua honradez sobre a desonra daqueles que eram seus subordinados, o regresso à terra que julgava perdida, uma vitória do Exército Português sobre os que têm trazido o desassossego, a fome, as lágrimas aos que vivem na Guiné Portuguesa.

Esse homem é um régulo, um português daqueles de antes quebrar que torcer, um português de alma e coração, apesar da sua pele escura, provando que não há distinção de raças entre os que amam Portugal.
Abibo é o seu nome. Desde há longo tempo que Abibo é o Régulo da área de Gadamael, junto da fronteira sul da Guiné Portuguesa com a República da Guiné.
Abibo é Alferes de 2.ª linha, representando a justiça e a paz entre os habitantes da sua tabanca. Ganturé é uma tabanca de beafadas, raça de trabalhadores que se deixaram seduzir pelas palavras enganadoras dos terroristas.

De um lado e de outro da estrada da fronteira, alinham-se as moranças de adobe, à sombra das árvores, dando-nos a ideia de uma aldeia metropolitana. Apenas os telhados de colmo nos lembram que estamos em África. Noutros tempos, era uma tabanca feliz, onde a vida dos seus habitantes se fazia num ambiente de fartura e alegria, onde a riqueza das colheitas do arroz e dos citrinos lhes dava uma auréola de confiança no futuro.
Abibo representava para todos a certeza da paz e da justiça entre a gente do seu regulado. Abibo Inchassó era conhecido em todo o território desde o Forreá à Península de Cacine. E admirado até pelos habitantes de outros regulados.

Este homem, um dia, viu-se perseguido dentro da sua própria terra. Os aliciadores terroristas lentamente foram minando o seu povo, seduzindo-o com promessas.
Abibo tentava mostrar a verdade ao seu povo, pondo uma barreira àqueles que o afastavam do bom caminho. Um dia, pressentiu que a sua vida perigava. Sentiu-se perseguido, tendo de abandonar todos os seus haveres e a sua própria família e acolher-se entre os seus amigos, entre aqueles em quem tinha sempre confiado.

Os meses foram passando. E, por força das circunstâncias, não foi possível tentar a recuperação de Ganturé. A nossa atenção era necessária noutras regiões.
Abibo, apesar de confiar no exército da sua Pátria, começou a pensar que não voltaria à sua terra. Ali estava ele em Bedanda, sofrendo a ausência dos seus familiares, dos quais apenas sabia que se encontravam na República da Guiné.
Ele, que entre os seus era fidalgo, que vivera sempre na fartura, dando àqueles que necessitavam arroz ou cola para viver, via-se agora despojado de tudo, vivendo das esmolas dos seus amigos.

Mas um dia Abibo soube que na sua tabanca estavam instaladas tropas. Os terroristas tinham sido desalojados, graças ao esforço de um punhado de briosos soldados portugueses.
Estes mesmos soldados quiseram ser eles a entregar-lhe o que por direito lhe pertencia. Quiseram prestar assim homenagem a outro português que também lutava pelo mesmo ideal: a paz e a tranquilidade no território português.

Vista aérea de Ganturé
Com a devida vénia a Panoramio

E no dia 29 de Fevereiro de 1964 a azáfama era grande em Ganturé.
Sabia-se que Abibo chegaria nesse dia pela manhã. Todos queriam expressar-lhe a sua admiração.
Qual seria a reacção do Abibo ao voltar a pisar os velhos caminhos que conduziam a Ganturé?
Todos nós que estávamos presentes – pessoal de Infantaria, de Cavalaria, Milícia fula – pudemos ver as lágrimas sulcando naquele rosto curtido pelo sol da Guiné e pelas amarguras suportadas, um rosto leal de alguém que tem mantido indefectível fidelidade a Portugal.
Ganturé tinha um ar quase festivo, apesar de se verem os sinais de destruição, de vingança, de raiva surda contra quem não tinha curvado a cerviz, mantendo o seu amor pela Pátria, contra tudo e contra todos. De um lado e doutro se ouviam as palmas e gritos de acolhimento de todos aqueles que tinham de algum modo contribuído para o seu sonho. Mas algo fazia descer um véu de tristeza nos seus olhos leais!

Aqui, a casa de Abibo, soberba vivenda de estilo europeu, agora quase arrasada pela malvadez dos que dizem defender a liberdade e a paz na Guiné; ali, as casas da seus irmãos, um dos quais fora prisioneiro e mandado abater pelos terroristas.
Quantas saudades dos dias passados, em que a tranquilidade reinava naquelas terras, em que o trabalho era a lei que as regia!
Mas ali estavam os defensores do solo pátrio, aqueles militares que lhe mostravam que as promessas feitas pelos portugueses não são palavras vãs, dando-lhe as boas-vindas, recebendo-o da braços abertos, como um irmão recebe outro irmão.

Tudo se fundia. A alegria do regresso e a tristeza provocada pelas saudades dos seus familiares, para nascer um sentimento de que uma nova era ia começar na sua tabanca, numa promessa de um futuro que faria esquecer dias passados.
Ele via nos olhos daqueles que o abraçavam a vontade necessária para fazer ressurgir uma nova Ganturé, se possível mais linda, mais harmoniosa, mais garrida, que lhe dissesse que ali também é Portugal.

E, quando lhe entregaram a Bandeira Nacional, símbolo querido da Pátria, para que numa cerimónia singela, mas significativa, a içasse na sua tabanca, enquanto a Milícia fula lhe prestava a guarda de honra, Abibo deixou que as lágrimas corressem, lágrimas de alegria que não serão esquecidas por aqueles que as viram.

Era bem um dia diferente para ele e para aqueles que amam Portugal.

Aníbal Justiniano

(*) - Este texto foi escrito pelo então Alferes Miliciano Médico, Aníbal Justiniano, médico da CART 494 e está incluído no livro “Missão Guiné 63-65 Companhia de Artilharia 494”, escrito por Augusto Carias, Adelino Gomes e Aníbal Justiniano.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14978: Notas de leitura (744): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14978: Notas de leitura (744): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2014:

Queridos amigos,
Acabou-se a narrativa de Calambata, romance memorável de João de Melo onde encontramos a tragédia da guerra e as facetas mais boçais do colonialismo. Há para ali aerogramas de intenso lirismo e descrições onde a senhora da gadanha triunfa em majestade. E despeço-me com uma citação:
- Prometes que ficas aqui à minha espera? O ferido disse vagamente que sim com a cabeça, nada era já importante; se algo de importante houvesse na vida, era estar-se vivo e certo de se ser ainda o único dono dela. O furriel desandou a correr, mas parou a dois metros do sítio onde o Gonçalves se afundava sem remédio. Como um barco, pensou, como um barco a ser devorado pela grande e definitiva tormenta. Recebeu ainda o seu olhar de animal abatido no último instante, recordou que tinha mulher e três filhos e quis fugir dali. Encostou a cabeça ao peito dele. Não corria o rio sonoro de um coração, corriam águas mansas; deslizavam cinzas e pequenos animais de agonia. O furriel descarregou os dois punhos sobre o peito do moribundo, ouviu-se o som das costelas partidas com a pancada, e nada mais, a não ser os olhos, perdurou no último sopro da respiração.
Estou a escrever-vos esta citação e comovo-me pelos meus mortos, os mortos de todos nós, não só no norte de Angola, mas naquele território de palmares, bolanhas, rias e florestas-galeria, a nossa inconfundível e transcendente Guiné.

Um abraço do
Mário


Autópsia de Um Mar de Ruínas (4), por João de Melo

Beja Santos

João de Melo foi furriel enfermeiro, dividiu a sua comissão num destacamento perto de S. Salvador, norte de Angola, entre o apoio direto aos militares e os cuidados com os civis de duas sanzalas de Calambata. Tornou-se um bom observador social, mostra-se esclarecido quanto às relações de domínio entre colonizador e o colonizado, entre a polícia branca e o soba, conhece as doenças tropicais, vê a miséria, pressente nas entrelinhas a pressão dos guerrilheiros junto das populações. A todos os títulos, “Autópsia de Um Mar de Ruínas” é um livro referencial, há um cuidado inexcedível em registar os falares nativos, os usos e costumes, é magistral quando capta a atmosfera de repressão.

Vem aí a caminho uma coluna que é fundamental para a economia de quem vive da agricultura do café, e o autor dá-nos uma impressiva água-forte:
“A polícia branca de S. Salvador vinha a escoltar essa coluna, com os seus jipões azuis, descapotados e sujos de lama, trazendo homens fardados que apontavam as armas no capim.
Os homens tinham-se reunido no centro da sanzala, de braços cruzados no peito, na conversa ou no difícil silêncio; uns e outros mostravam apreensão por esse dia que chegava finalmente. Vender café e receber dinheiro de volta não podia meter cerimónia? Vestiam fatos puídos e remendados, esquecidos muito tempo no caixote das arrumações. Soba Mussunda usou mesmo uma gravata muito velha, talvez quase da sua idade, e o chapéu cinzento dos distantes tempos de contratado.
Madrugada ainda, puseram os sacos do lado de fora da cubata, emparedando-os em pilhas de diversas alturas que, em alguns casos, chegavam mesmo ao zinco ou atingiam a casa a todo o comprimento. Depois, o sol veio subindo nos morros. Bateu no zinco das casas com a bola de fogo que alumiava e ia deslizando vagarosamente. Também as senhoras andavam num remoinho, falando, sorrindo, imitando a felicidade da vida. Houve quem pusesse um rádio a tocar alto as músicas congolesas – canções batucadas e sacudidas que vinham mexer no corpo das pessoas e obrigavam a abanar as ancas e a gingar, gingar sempre (…).
Entrou, primeiro, um jipe da polícia. Logo de seguida, um camião vermelho, de três rodados. Deram a volta ao largo e foram parar em frente da casa do chefe Valentim que esperava à porta, de mãos na barriga. O povo observou os carros a enfileirar cuidadosamente, uns ao lado dos outros, os jipes intercalados com os camiões cobertos pelas lonas que pendiam dos taipais. Lá dentro, centenas de garrafas tilintavam, e os homens sorriam entre si, satisfeitos. As mulheres, não; compreendera imediatamente que o propósito desses brancos era arrancar mais um dia de negócio, levando de volta o dinheiro que traziam, recuperado das monstruosas bebedeiras”.

Começa o cerimonial da apreciação. Todos deram pela chegada do chefe da polícia secreta, limitou-se ao cumprimento de continência de Valentim. Os comentários dos comerciantes brancos são de puro desdém. Começam as negociações para comprar o café, os comerciantes oferecem quatro angolares por cada quilo, os africanos contrapropõem com seis, os brancos não saem dos quatro. Um deles comenta:
”E quem não estiver interessado, guarde o café em casa ou então junte-o, espalhe-o pelo quintal fora, misture-o com a estrumeira que lá tem”.
A contraproposta desce para cinco angolares. O árbitro será o polícia Valentim:
“Quem quiser vender por quatro e meio, vende; quem não quiser, que se lixe. Toca a trazer o café, gente. E eles obedeceram. Vencidos e calados”.

Seguir-se-á a orgia do álcool e os vários negócios em que os agricultores deixaram o seu precioso dinheiro. E regressamos à guerra, dias de marcha através dos pântanos. O cronista chama-se Renato, alguém que teme morrer, invoca a mãe, olha assombrado para a vastidão do território e o seu espetáculo de formas:
“Calambata é este promontório suspenso sobre formas pardas, ao qual trepamos dois caminhos em S e onde as viaturas derrapam na época das chuvas. Por ali passaram todos os mortos: passou a morte de Júlia, a mulatinha do sorriso verde, passaram as viaturas sinistradas pelas minas, os rapazes adormecidos, tapados com a lona mortuária. Era por ali que se regressava sempre, depois de todas as coisas terem acontecido muito longe, nos caminhos por onde não transita a memória, nem o esquecimento”.
Renato olha à volta, vê bambus, hortas de milho e mandioca, os lastros de abacaxi e das bananeiras, os canaviais de uma sanzala. É um momento patético. E de novo o escritor volta ao aerograma e aos chilreios do amor:
“À da Canda, amor, aos morros do Seixel vai demoradamente fixar-se a amargura das noites de guerra. Calambata é um morto que não morre mas adormece. Aqui o tens vivo, as mãos fechadas sobre a sua metralhadora. Pior do que estar de sentinela, pior do que tudo são as chamas ao longe, os olhos que me vigiam. Sente-se um homem espiado pelas próprias árvores, ouvindo carrilhões impossíveis na calada da noite (…). É o que escrevo aqui, sentado na noite. No sítio onde estou, amor. De frente para os morros que cercam o Calambata cercada de guerra pelo Norte. A pensar, amor, que há em mim um morto que não morre”.

E temos uma nova coluna em movimento, até que se ouve um estrondo, um Unimog explodira.  
“Voavam ferros e pneus e peças de motor: caíam corpos decrépitos, e uma fumarola negra, de um negro muito denso, abria-se numa espiral. Do capim em chamas, subiu logo o bafo de dezenas de metralhadoras”.
E fica-nos a ilusão do que o narrador morreu simbolicamente em nome de todas aquelas mortes que lhe tinham passado pelos olhos e ferido a alma. É uma morte universal com que o romancista trava combate:
“Amor, eu não sei se dói. Caiu-me a arma das mãos. O meu último pulmão enche-se de uma agonia de corais, como quando os navios encalham nas rochas. Sei que viram os médicos, os helicópteros: alguém chamará pelo meu nome, abre os olhos, abre os olhos, respira fundo, respira fundo”.

E o romance de João de Melo acaba como um pesadelo, os soldados andam à procura de Romeu, o agente da guerrilha, empurram e pontapeiam, tudo revistam. O soba apercebe-se que se avizinha uma tragédia, se Romeu não aparecer haverá fuzilamentos, e então oferece a sua vida:
“Respondo sempre na minha gente. Deixa viver esses homens, nosso arferes. Grande favor…”.
E então Romeu surge de uma sombra, explica que esteve no mato a montar armadilha, o alferes está fora de si, bate-lhe desalmadamente. Romeu é levado para a viatura, nunca mais voltará a Calambata.

João de Melo burilou um universo concentracionário onde se movem militares e civis num ponto do norte de Angola. Tragédia, agonia, o levantamento do homem, e aquele furriel enfermeiro em que o romancista se vêm ao espelho zela, solícito, tem um pé na guerra, outro na construção do desenvolvimento. Assombra a cultura registada, a perceção de que toda aquela beleza não pode iludir o mar de ruínas deixado pelo colonialismo.
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Nota do editor

Postes da série de:

27 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14934: Notas de leitura (741): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (1) (Mário Beja Santos)

31 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14954: Notas de leitura (742): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (2) (Mário Beja Santos)
e
3 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14963: Notas de leitura (743): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (3) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14977: O segredo de... (21): O que custa(va) ser periquito numa terra como a Guiné (Ribeiro Agostinho, ex-Soldado da CCS/GG/CTIG)


Messe de Oficiais do Quartel General em Sta. Luzia, hoje transformada em Hotel. Ainda dá para ver parte de uma mangueira das muitas que ladeavam os arruamentos.
Foto e legenda: © António Teixeira (2011). Todos os direitos reservados


1. Mensagem do nosso camarada Ribeiro Agostinho (ex-Soldado Radiotelefonista / Condutor Auto e Escriturário da CCS/QG/CTIG, 1968/70), com data de 30 de Julho de 2015:

Boa noite Camarigos
Após vista de olhos, habitualmente diária, acabei de ler a história do António Medina, que me fez lembrar uma passagem também secreta, na época, que vou agora descrever, e que se acham que interessa, podem publicar.

Quando cheguei à Guiné, em rendição individual, desembarquei e fui apresentar-me nos Adidos em Brá.
Na secretaria foi-me dito que a Companhia, à qual ia destinado, tinha regressado à Metrópole havia dois dias (18-08-1968 no UÍGE), estávamos a 20-08-1968.
Então o Sargento da Secretaria perguntou-me se eu tinha carta de condução pois poderia ficar lá como condutor do Comandante, o que eu de imediato aceitei.

Foi preciso ir ao QG, a Santa Luzia, para pedir a minha colocação e lá fomos os dois. Em conversa com o chefe da Secretaria do QG, o Sr. Major Vilas Boas Mouzinho de Albuquerque, apercebendo-se de que eu tinha estado na Secretaria do Comando do RI 6 no Porto, disse que precisava de mim lá e que se arranjaria um condutor para o Sr. Comandante dos Adidos, outro que não eu.
Acabei por cumprir toda a comissão na secretaria do QG, que só foram 16 meses, pois soube contornar os obstáculos, como manda a tropa, desenrascando-me da melhor forma, mas isso contarei noutra oportunidade. Agora vamos ao tal segredo.

Um belo dia estava eu à porta da Secretaria, no corredor do QG, quando ia para entrar e vejo chegar, pela porta principal, um periquito (camuflado novinho ainda sem lavagem) cheio de pompa.
Fiquei ali parado a vê-lo passar cheio de cagança e reparo que era Capitão. Eu que trabalhava sem boina, fui ocupar o meu lugar na secretária, num gabinete só meu, com vista para a parada e refeitórios da CCS e da PM, por trás do balcão onde trabalhavam outros colegas que atendiam quem vinha do corredor.

Ainda não me tinha sentado quando ouço perguntar pelo soldado que estava há pouco ali à porta, pensei logo de quem se tratava, do periquito, pois eu não lhe bati a pala.
O Sargento que chefiava a parte do balcão, chama-me e eu apareço por trás da parede divisória dando de frente com o Sr. Capitão, que de pronto dispara:
- Oh pá, não me conheces? Não me respeitas?

Eu, já em sentido, peço-lhe desculpa e digo-lhe a todo o momento estamos em contacto com patentes superiores às nossas e é normal proceder assim.
Ele virou-me as costas a remoer qualquer coisa e foi-se.
Retomei o meu trabalho, que era o registo de toda a correspondência que entrava no QG, à excepção da Secreta, que era tratada pelo meu chefe directo, o Sr Major Mouzinho de Albuquerque, do qual tenho saudade e de quem gostaria de saber, pois me despedi dele com um grande abraço, deixando-o a chorar. Era da Póvoa de Varzim, mas não mais soube dele.

Estava eu a retomar o trabalho no registo de correspondência e de novo ouço a perguntar algo ao balcão, e o Sargento indica que é ali atrás que deve dirigir-se. Aparece-me outra vez, de repente, o periquito. Desta feita para me perguntar se eu tinha alguma correspondência relativa a ele próprio. Perguntei-lhe o nome e respondi-lhe que não tinha nada relacionado com ele, ao que ele me pergunta como é que eu sabia. Eu explico-lhe que normalmente fixo o que escrevo e com aquele nome não tinha passado lá nada. Ele replica que tinha urgência em tratar do assunto e de novo lhe digo que logo que apareça, eu despacho para a repartição a que vier destinada.
Ele lá sai a falar sozinho e eu, de imediato, procuro a correspondência que tenho na secretária e encontro um envelope que era mesmo o que ele queria e escondo-o no fundo da gaveta. Primeiro irei despachar todos os outros e depois vou pensar o que irei fazer com o dele.

Ainda estou a pensar no caso, quando de repente me aparece o Major, meu chefe, e o periquito de novo. O Major com todo o respeito, como era seu hábito, cumprimenta-me, pois estava noutro gabinete e pergunta-me se eu não teria a dita correspondência que o nosso Capitão pretendia.
- Meu Major, pois se o nosso Capitão ainda há pouco esteve aqui e eu lhe disse que não tenho.

Lá me recomendou que mal chegasse, despachasse de imediato, pois o nosso Capitão tinha muita urgência.
Mais tarde, com calma, lá analisei o assunto e como não havia registos que me comprometessem até ter chegado ali esse envelope, e como o assunto que já nem sei de que se tratava, não era tão importante, e só me comprometeria se o registasse, não o fiz. Rasguei pura e simplesmente.
O que custa ser periquito numa terra como a Guiné.

Foi caso único aquele rasgar de correspondência, mas atrasei vários casos, de alguns oficiais que entravam por lá dentro e ao deparem com um soldado disparavam com o: Óh pá tens aí este processo, ou esta correspondência, ou isto, ou aquilo?... Se tivesse passado, dizia que já estava em tal repartição. Se não tivesse passado, quando me chegasse às mãos, ficava mais uma ou duas semanas à espera, dependendo de onde me chegasse essa correspondência, se da Província se da Metrópole.

O respeito é muito bonito e alguns não tinham mesmo categoria nenhuma, apesar de terem galões a pesar nas suas responsabilidades. Mas depois dessas entradas desses oficiais, quando viravam costas, normalmente a seguir vinham com a cunha do meu Chefe, ao que eu já estava habituado e ao que sabia dar a volta.

Mais um segredo que fica contado. Façam o que entenderem.

Um abraço a cada um de vós.
Ribeiro Agostinho
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14962: O segredo de... (20): Fernando Brito (1932-2014), ex-1º srgt, CCS/BART 2917 (1970/72): quadro, em "folha de capim", do seu infortunado filho (, morto mais tarde num trágico acidenrte, em 2001), pintado pelo caboverdiano Leão Lopes, em Bambadinca, 1971 (Cláudio Brito, neto)