sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15050: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (17): De 8 a 21 de Julho de 1973

1. Em mensagem do dia 19 de Agosto de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

17 - 08 a 21-07-1973 


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

JUL73/08 – Forças da 1.ª e 2.ª CCAÇ durante a acção “ORGULHO” detectaram e destruíram parcialmente em (GUILEGE 3 F 9-68), 1 palhota celeiro contendo arroz estimado em 2 TON e várias palhotas abandonadas provavelmente há 1 ou 2 meses.

Na região (Guilege 3 F 7-62) e (Guilege 3 F 4-52) detectaram e destruíram um conjunto de palhotas abandonadas na ocasião provável das anteriores. Na região (Guilege 3 F 4-47) foi detectado à distância 1 elemento IN que perseguido se pôs em fuga abandonando 10 cargas de RPG-2, 10 cartuchos de granadas do morteiro 82 e 2 petardos de trotil. Entre as regiões (Guilege 3 F 9-68 / 3 F 4-47) foram detectados diversos trilhos de utilização IN muito recentes. [No meu caderno, nesta data, nada registei.]

Nhala com vento ciclónico momentos antes do dilúvio.

Do meu caderno de memórias: 

10 de Julho de 1973 – (terça-feira) – Nhala; Cumbijã a piorar. 

Hoje houve coluna. Como sempre, vêm notícias, mas nunca agradáveis. A situação em Cumbijã é horrível, embora a actividade IN, até agora, tenha sido quase nula. É horrível pelo excesso de esforço exigido ao pessoal que se encontra subalimentado e sem os requisitos indispensáveis para recuperar desse esforço. As saídas, quase sempre a nível de duas ou três companhias, têm sido para longas distâncias e bastas vezes. Numa dessas incursões chegaram a estar a 700 metros [?] do Unal, base IN de grande potencial.

O número de elementos por pelotão, decresce a olhos vistos: o meu grupo, que já andava reduzido a 21 homens, agora conta 16, havendo outros grupos com menos ainda. Mesmo os que ficam inoperacionais, regra geral por doença, são obrigados a fazerem reforços durante a noite, qualquer que seja o seu estado de saúde.

Em Aldeia Formosa houve mais um acidente que encurtou a comissão a um soldado. Não se sabe bem como, pois há várias versões, um soldado matou sem intenção um seu camarada com um tiro de G3. Quer expliquem o acidente assim ou assado, o que é certo, é que já são dois os mortos do meu Batalhão, com apenas três meses e pouco de Guiné e, ambos, sem ser em combate. Hoje, na coluna, passou o caixão com o cadáver do infeliz rapaz.

A minha estadia em Nhala deve estar prestes a findar, e lá terei que voltar para o inóspito Cumbijã, onde se avolumam pessoas e problemas. Mais dia, menos dia, dar-se-á o colapso: todo o pessoal, incluindo graduados, está a acumular tensão e indignação perante a realidade, penosa e opressiva, que se vive naquela base. Agora, para além das más condições já várias vezes referidas, impera um regime disciplinar muito semelhante ao de qualquer quartel da Metrópole, tanto no referente ao aprumo e fardamento, como no referente às normas de procedimentos como, por exemplo, as apresentações formais dos grupos chegados do mato, mesmo que lá tenham dormido e passado todo o dia anterior. O Capitão (...) já ameaçou o Major D. M. de que, qualquer dia, se recusa a sair com a sua Companhia para o mato. No que pode ser visto como um caso de indisciplina, eu só vejo atitude digna, na defesa dos seus homens e coerência com atitudes anteriores que lhe são atribuídas no mesmo sentido. O vapor força cada vez mais o testo da panela e, agora, são vários os vapores que se juntam. Adivinha-se o salto do testo. Veremos.

[Estas foram as últimas linhas dos meus Cadernos de Memórias da Guiné. Como já referi antes, os restantes cadernos ficaram com o meu espólio em Nhala aquando da minha vinda de férias, sem regresso, em Agosto/74, faz agora 41 anos. Oficialmente, desde essa data, ainda não sei que o meu Batalhão regressou definitivamente à Pátria. É uma história lamentável que não cabe aqui, mas que devia mexer com a consciência de quem tinha responsabilidades. 

De ora avante, socorrer-me-ei da História da Unidade do BCAÇ 4513 para relembrar datas, nomes, factos, locais, etc., e das minhas notas dispersas. O resto virá dos fundos da memória até que se esgote o arquivo. Poderá ser que estranhem a fluência e o estilo da escrita, ou as histórias mais pobres de detalhes mas, se isso acontecer, apenas se deve à escassez da informação e ao “português mais moderno” mas sempre com a antiga ortografia. 

Passarei a referir “Das minhas memórias” em vez de: “Dos meus cadernos de memórias”].


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

JUL73/11 – Em 110915JUL73 grupo IN não estimado flagelou BRICAMA (GUILEGE 3 F 3-51) com 10 granadas de canhão S/R (sem recuo) da direcção SALANCAUR JATE (GUILEGE 3 C 4-23) sem consequências.

Em 111835 e 1850JUL73 grupo IN não estimado flagelou o Destacamento de Cumbijã com 20 granadas de morteiro 82 da direcção do R. COEL, sem consequências.

JUL73/12 – Forças da 2.ª CCAÇ patrulharam a região (GUILEGE 3 E 6-85), onde emboscaram durante a noite. Sem contacto.

JUL73/13 – Forças da CCAV 8351 patrulharam a região de NHACOBÁ, TUNANE, R. TEMUDE, não encontraram vestígios IN.

(Da H. da Unidade do BCAÇ 3852, Cap. II / Pág. 75) - Registou-se um acidente durante a realização duma coluna entre A. FORMOSA-BUBA, do qual resultou a morte dum soldado da CCAÇ 18.


Das minhas memórias: 

13 de Julho de 1973 – (sexta-feira) – De Nhala para Cumbijã: o regresso.

Sexta, 13: dia de azar para um soldado da CCAÇ 18 que faleceu num acidente na mesma coluna em que eu seguia de Nhala para Cumbijã. Ao fim de 19 dias em Nhala como Comandante Interino da Companhia, eu sei que vou para o inferno. Desse soldado, só Deus, Alá ou outro qualquer deus saberá.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

JUL73/14 – (...). 

JUL73/15 – Forças da 2,ª CCAÇ durante a acção “OLEADO” patrulharam novamente a região de SAMBASÓ, sem contacto.

JUL73/16 – Forças da CCAV 8351 patrulharam a região de SANBASÓ e emboscaram durante a noite em (GUILEGE 3 H 9-65). Choveu torrencialmente.

JUL73/17 – Forças da 2.ª e 3.ª CCAÇ durante a acção “ONDINA” patrulharam a região de SAMENAU, sem contacto. Regressou de BISSAU o CMDT INT do BATALHÃO.


Das minhas memórias: 

17 de Julho de 1973 – (terça-feira) – Cumbijã; Carta para a Metrópole; Regresso às origens?

“ (...). Esta carta, no fim da segunda linha foi interrompida por, de repente, ter ouvido rebentamentos no mato e está lá a minha Companhia. (Eu estou com o meu grupo de serviço ao aquartelamento). Afinal, apesar de não se ter conseguido ligação via rádio, supõe-se tratar-se de Guileje a “embrulhar”. [??? - Suponho que Guileje foi abandonado em 22 de Maio desse ano]. O resto da carta foi escrito ao som dos rebentamentos do ataque do PAIGC. Soube de Bissau que, finalmente, as Companhias do meu Batalhão ocuparão definitivamente as suas posições iniciais”.

[Iria para Nhala, sim, só que ainda correria muita água sob as pontes!].

Nesta data, a meio da noite, sou acordado pelo Major D. M., assim:
- Alferes Murta! Você não tem o pelotão de serviço? - Sento-me de um salto na cama e, confuso, só vejo uma sombra na minha frente. Respondo que sim.
- E não ouviu estes tiros? Vá já ao posto do lado da estrada saber o que se passa.

Enfio o camuflado e as botas sem meias, e corro de G3 em punho para os lados da entrada do aquartelamento, para os fundos da noite, vociferando impropérios e maldições contra o major e a minha sorte.
- Então?! O que é que se passou para estares a dar tiros? - O soldado, embora calmo, via-se que estava apreensivo e com os olhos cravados na mata escura para além da estrada em frente.

Disse:
- Ali mesmo na borda da mata eu vi luzes a mexerem-se e a andarem para o lado de Colibuia. E eu mandei umas rajadas.
- Fizeste bem. A seguir voltaste a vê-las?
- Não, não. Não vi mais nada. - Fixei bem os olhos para onde ele tinha apontado e segui com o olhar a orla para o lado direito. Mas, apesar da proximidade, mal se vislumbrava a mata na noite escura.
- Ok! Vou ficar aqui a fazer-te companhia e a ver se voltam a aparecer.

Estivemos assim quase toda a noite mas não se viu mais nada nem eu esperava ver. Se passaram, passaram e, se regressassem não arriscariam o mesmo caminho, a menos que estivessem a desafiar-nos. Só escuridão e silêncio. Julgo que nem mosquitos havia nessa noite.

“Só luzinhas e mais luzinhas! Os rapazes andam cansados e têm alucinações. Visões! Só pode ser. Olha que não sei, isto tem acontecido às sentinelas de todos os grupos! Tás parvo? Achas que os gajos arriscavam passar aqui mesmo nas nossas barbas? Quer dizer: as sentinelas mandam rajadas para cima deles e eles, uns tempos depois, voltam aqui a fazer fosquinhas?! Achas? Eu não acredito”. Eram os comentários correntes.

No dia 17 de Agosto/73, entre Mampatá e Colibuia, a estrada foi cortada pela quarta vez. Agora, numa extensão de 40 metros, entre os dois pontões destruídos anteriormente. Não restavam dúvidas de que faziam por ali muitas passagens a transportar o material com que, mais tarde, cortavam a estrada. Mas convenhamos que era um grande desaforo.

Aspecto do aquartelamento de Colibuia, provavelmente em 1973.

Eu, de passagem por Colibuia, provavelmente em 1973.

18 de Julho de 1973 – (quarta-feira) – Cumbijã; Aerograma para a Metrópole. 

“ (...) Finalmente irei para Nhala com toda a certeza. Só vamos esperar que chegue aqui o novo Batalhão que está a fazer a IAO em Bolama. Devem chegar, daqui a mais ou menos 3 semanas. Eram para ficar nas localidades que nós ocupámos à chegada, (Buba, Nhala e Aldeia Formos), mas, diz-se, ficarão na zona da “porrada”, apesar da sua inexperiência. Amanhã sairei daqui às 7 horas da manhã para o mato, onde passarei a noite”.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:

JUL73/19 – Forças da 2.ª CCAÇ durante a acção “OLIMPO”, encontraram um porta-granadas de canhão R/S vazio. Verificou-se a destruição pelo IN do pontão do R. HABI. Continua a chover torrencialmente e os rios apresentam já grande caudal e as bolanhas em estado pantanoso pelo que impossibilita a passagem das NT. [Estive nesta acção mas não recordo nada, embora, como escrevi na data anterior, ela implicasse uma dormida no mato naquelas condições atmosféricas].

JUL73/20 – Forças da 3.ª CCAÇ durante a acção “OLINDA” dirigem o seu esforço ao longo do R. LENGUEL a fim de detectarem uma passagem no mesmo. Emboscam durante a noite. Continua a chover torrencialmente.

JUL73/21 – Na madrugada deste dia, são ouvidos uma série de rebentamentos para Sul, sabendo-se mais tarde que se tratava de uma flagelação ao destacamento de CHUGUÉ. As forças da 3.ª CCAÇ regressaram da acção “OLINDA”, sem terem conseguido detectar qualquer passagem no R. LENGUEL.


Das minhas memórias:

21 de Julho de 1973 – (sábado) – Cumbijã: Carta para a Metrópole. 

[Depois de informar que os “crânios” têm intenções de nos mandar ao UNAL, base do PAIGC ainda mais importante do que Nhacobá, refiro com entusiasmo uma novidade]. “(...) tenho aqui um novo camarada que também já foi teu colega de curso. É um furriel e chegou aqui a Cumbijã no dia 15 deste mês, vindo directamente da Metrópole, até passou aí o S. João na Figueira. Chama-se Leiria e é de Buarcos, e eu lembro-me perfeitamente dele de quando tinha aulas contigo. Temos conversado horas seguidas. Ele já sabia que eu estava na Guiné, (disse-lho uma miúda daí), mas não imaginava que me vinha encontrar precisamente na Companhia onde fora colocado. Vou ver se consigo que ele fique no meu pelotão, pois sempre tive apenas dois furriéis e os soldados estão-se a apagar a olhos vistos: o meu grupo passou de 25 para 13 a 14 homens, porque a maioria está doente e, mesmo assim, o meu grupo é o maior. (...)”.

[O referido furriel nunca chegou a integrar o meu grupo. Mesmo na Companhia, acho que esteve pouco tempo, desconhecendo o rumo que levou. Muitos anos depois, já em Portugal, encontrei-o como Comandante. de um posto da GNR aqui perto da Figueira. Depois disso nunca mais o vi].

(Continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

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Guiné 63/74 - P15049: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (33): "Canções da Guerra", programa diário na Antena 1, a partir de 7 de setembro... Sugestões e histórias precisam-se (Luís Marinho, RTP - Gabinete de Projetos Especiais)

1. Mensagem de ontem, de Luís Marinho, da RTP - Gabinete de Projetos Especiais


 Data: 27 de agosto de 2015 às 10:02

Assunto: CANÇÕES DA GUERRA


Caro Luis Graça,

Vamos iniciar a partir de 7 de setembro um programa diário na Antena 1, que se chama "Canções da Guerra". A ideia é apresentar diariamente uma canção que esteve direta ou indiretamente ligada á guerra de África. Envio-lhe em anexo o texto de apresentação.

Como sigo o seu blog, que é um referencial importante para quem se interessa pelo tema da guerra de África, gostaria de lhe propor que divulgasse o programa mas, sobretudo, que incentive os seguidores do seu blog a enviarem sugestões de músicas e histórias ligadas a elas.

Estou ao seu dispor para todos os esclarecimentos que entender necessários,

Muito obrigado e parabéns pelo seu trabalho.

Luis Marinho
RTP – Gabinete de Projetos Especiais


2. CANÇÕES DA GUERRA

APRESENTAÇÃO

A guerra colonial durou 14 anos. Mobilizou quase um milhão de soldados portugueses e várias centenas de milhares de guerrilheiros angolanos, guineenses e moçambicanos.

A exemplo do que aconteceu noutras guerras prolongadas, para além de outras manifestações artísticas, a música também teve inspiração no conflito.

Desde logo, um hino composto logo no início da guerra de Angola.

Depois, o aproveitamento de fados antigos, inspirados na I Guerra Mundial, regravados por artistas populares.

Ao longo dos anos, a guerra inspirou outras canções. Umas, de apoio aos soldados, mas outras foram compostas por artistas no exílio, contra a guerra.

Na verdade, também na música as opiniões estavam divididas, mas cada vez mais, com o passar dos anos, se manifestavam contrárias ao conflito em três frentes em África.

As canções de protesto não eram ouvidas em Portugal através da rádio, por exemplo, uma vez que estavam proibidas pela censura. Eram ouvidas e cantadas em reuniões políticas clandestinas e em convívios universitários, muitos deles interrompidos pela intervenção da polícia.

Nos quartéis do mato africano, os militares ouviam todo o tipo de música. E também adaptavam músicas conhecidas, com letras escritas sobre a sua vida no mato.

As mais célebres constituem hoje o denominado Cancioneiro do Niassa, uma interessante colectânea que revela muito do sentimento dos soldados.

Na guerrilha, a música também esteve presente, quer com hinos dos diferentes movimentos independentistas, quer com canções de incentivo à luta.

É esta recolha de cerca de sete dezenas de músicas, as canções da guerra, que agora apresentamos.

Um programa de Luís Marinho, com produção de Joana Jorge.

Músicas com História, para ouvir de segunda a sexta, na Antena 1, a partir de 7 de setembro.



3. Nota biobibliográfica sobre António Luís Marinho:

(i) nasceu em Lisboa, em 1954;

(ii) é jornalista desde 1981;

(iii) trabalhou em todos os géneros da Comunicação Social: imprensa, rádio e televisão;

(iv) na RTP, desempenhou, entre outros, o o cargo de director geral de conteúdos de rádio e televisão;

(v) é autor dos livros Operação Mar Verde – Um Documento para a História,[vd. nota de leitura do nosso camarada e colaborador permanente Mário Beja Santos]; e 1961 – O Ano Horrível de Salazar, ambos editados pela Temas e Debates e pelo Círculo de Leitores;

(vi) foi coautor, com Joana Pontes, da série de treze documentários televisivos intitulada Século XX Português, emitida na SIC;

(vii) concluiu o curso de especialização em História Contemporânea, na Universidade Nova de Lisboa; 

(viii) frequenta o 3º ano do curso de doutoramento em Ciências da Comunicação, no ISCTE.

(Fonte:  adapt. de Wook, com a devida vénia)

4. Comentário de LG:

Meu caro Luís Marinho:

Parabéns pelo projeto, que aproveito para divulgar, e obrigado pelas palavras simpáticas que nos dirige. Na realidade, não fazemos História com H grande, mas sem as nossas histórias com h pequeno, a grande será ou seria sempre mais pobre e redutora... Refiro-me, naturalmente, àquele pedacinho de História que nos coube na rifa: Guiné, 1961/74...

Para suia informação, temos um marcador que lhe deve interessar, com cerca de 15 referências: "as músicas das nossas vidas"... Vamos apelar aos nossos camaradas que integram a Tabanca Grande e que alimentam o nosso blogue, para que retomem este tema... O Pifas [, mascote do Programa das Forças Armadas,] é outro marcador que lhe pode interessar, a si e à equipa radiofónica que está a fazer o programa "Canções da Guerra"...

Vou-lhe mandar o meu nº de telemóvel. Sei que frequenta as terras da minha natalícia Lourinhã, já o tenho visto por aqui, aos fins de semana.  Gostaria de o conhecer pessoalmente, para trocarmos ideias sobre este projeto. Sinta-se à vontade para me contactar por telemóvel ou email. Boa sorte para o programa a que vou /vamos estar atentos. De resto, a Antena 1 é a minha rádio... LG

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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de agosto de  2015 > Guiné 63/74 - P15041: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (32): O "making of" de um projeto de ajuda ao Hospital de Cumura (João Martel e Ana Maria Gala)

Guiné 63/74 - P15048: Notas de leitura (751): “Nhoma, uma trajetória de luta”, por Bnur-Batër (Respício Nuno e Eduíno Sanca), Edições Corubal, Guiné-Bissau, 2013 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2014:

Queridos amigos,
Creio que há no depoimento de Nhoma-Bitchofula Na Fafe alguns descontos a fazer, aspetos da narrativa serão excessivos ou até mirabolantes. Mas foi uma vida de peripécias, de fidelidades que acabaram em dissabores. É um homem de crenças, um Balanta orgulhoso do sangue e dos seus credos, e dos seus deuses. A escrita luso-guineense tem parágrafos luminosos, que nos dão conta que o português está a dilatar-se, a mudar de look e de natureza, neste caso na Guiné. E aproveito para lembrar que a primeira biografia de um ex-guerrilheiro do PAIGC registada na Guiné. Mais uma peça que a historiografia não pode descurar.

Um abraço do
Mário


Nhoma, um combatente em várias guerras da Guiné-Bissau (2)

Beja Santos

Um ex-guerrilheiro do PAIGC, alguém que muito jovem, obstinadamente, quis combater ao lado do Kabi, entrega a história da sua vida a dois biógrafos. É um Balanta que se adorna de amuletos contra os maus-olhados. Lutou no sul até à independência e depois experimentou muitas guerras até ao assassinato de Nino. O que narra assombra e os biógrafos passam a limpo este extraordinário registo na língua luso-guineense, que não nos assombrará menos. É importante conhecer “Nhoma, uma trajetória de luta”, por Bnur-Batër, Edições Corubal, Guiné-Bissau, 2013.

Nhoma está em Guileje, vai de novo encontrar-se com Osvaldo Vieira. Osvaldo está furioso porque os guerrilheiros não conseguem tirar os tugas de Gadamael, oferece-lhe a missão de os combater, de os afugentar. Nhoma explica que nunca esteve em Gadamael: “Camarada Osvaldo, quando vens a Guileje tens de passar por outra margem, do lado de Sangonhá para poder chegar a Gadamael, mas eu nunca fui lá… Nem Sangonhá conheço direito”. Põe-se à frente dos guerrilheiros, incrédulo irá descobrir que os seus camaradas nunca ali tinham posto os pés. Vai com eles um conselheiro cubano. Metem-se pela mata, descobrem tropa portuguesa na praia, fazem fogo. E nada mais se fica a saber, assim se chega à independência, agora vemos Nhoma no Leste, a integrar o batalhão do comandante Paulo Malú. Depois esteve em Cabo Verde, mais adiante Buscardini (que será morto no 14 de Novembro de 1980) nomeia-o para adjunto de operações na polícia, será mais tarde inspetor-chefe da prisão da 2.ª Esquadra, em Bissau. É chamado por Nino que lhe confessa que está um plano em marcha para matar, a acusação maior é que ele defende os Balantas. Nhoma está atónito, há muitos anos que não ouvia falar em tribalismo. Em casa, reflete-se sobre esta conversa, recorda as diferentes ficções entre as alas na cúpula do partido. Temos depois, Nhoma adere ao golpe de 14 de Novembro. Nhoma, um ano depois, é nomeado pelo ministro do interior para ir controlar o Cacheu.

Seis anos depois do golpe de Estado, Nhoma é acusado de estar na tentativa do golpe de Estado de Paulo Correia, não demora muito tempo a perceber que se trata de uma maquinação reles, destituída de qualquer fundamento. E vê indefetíveis combatentes a serem torturados, a serem sujeitos às sevícias mais degradantes. Nhoma é condenado a sete anos de prisão e a prestar serviço social na ilha de Caraxe. Relata os sofrimentos que ele e os seus camaradas irão ali padecer. E em 1990 serão indultados, Nino anuncia a reconciliação, é nessa sessão que ele desabafa em voz alta e acusa o Kabi de ditador, desmonta a cabala dos Balantas quererem dar golpes contra o poder constituído, lembra-lhe as fidelidades do passado e grita-lhe: “Gostas de fabricar inimigos. Os Balantas protegeram-te e deram-te o nome de Kabi. A luta não pode ter gerado mortos. Dizem também que não sabemos ler, mas uma coisa é certa, a prioridade era estar na linha da frente e combater, cara-a-cara com os tugas. Não tenho mais nada a dizer”. E chegamos à guerra civil de 1998-1999. Temos aqui um parágrafo delicioso: “Nhoma parecia ter visto, em sonho, toiros negros com cabeça de kabaró, ruborizados, com as tranças de um escuro pardacento, dois chifres longos e afiados e enormes ráfias, também negras e vermelhas, caídas de cada lado, com uma espécie de garras de grifo, furiosas, correndo em sua direção”. Acordou e ouviu disparos de AK-47, depois disparos de bazuca. Viu a população em fuga, à varanda assistiu à explosão de uma granada bem perto de sua casa. Chegou-lhe a notícia de que Ansumane Mané capitaneava a revolta. Vai ao mercado, tranquilamente, e é detido. No interrogatório, esbofeteiam-no e espancam-no. É levado para marinha, metido numa prisão fétida, guardado por senegaleses. Arranja material para escavar um buraco, ele e vários presos políticos são bem-sucedidos. É encontrado pela tropa da Junta, e assim chega à base aérea e depois vai até Canchugo para fazer tratamentos. Irá encontrar os seus captores, é uma cena pungente. Estamos agora em Maio de 1999, pelo que se lê no seu relato, as tropas fiéis a Nino, os “aguentas” ou “anguentas”, são acusados de reatar a guerra. Nhoma é nesta altura diretor-geral adjunto do Ministério do Interior. Descreve: “Ao cair da noite, a frente comandada por Bubo Na Tchuto chegou à Chapa de Bissau. Antes do galo da madrugada, atingiram o mercado de Bandim. Ao espreitar o sol matinal, surpreendidas, as milícias anguentas receberam ordem para se renderem. Alguns desfaziam-se das fardas com medo das represálias. Começou a caça às bruxas. Houve execuções sumárias. Era urgente a Junta Militar assumir o controlo da situação para não haver um verdadeiro banho de sangue”. Nino refugia-se na Embaixada de Portugal. Nhoma murmura: “Cabral, aqui estamos de novo… Ainda não nos cansámos! Não parámos porque as instruções que nos deixaste para defender a nossa terra e o nosso povo não estão a ser cumpridas”.

Bissau ficou com as suas feridas, que vão demorar décadas a sarar. Entrámos no derradeiro capítulo. Nhoma fora promovido a tenente-coronel. Ansumane Mané revolta-se contra Kumba Yalá. Acabará morto perto de Quinhamel, na tabanca de Blom. Nhoma vai buscar Kumba e leva-o par o palácio presidencial. O sangue derramado não pára, Veríssimo Seabra será assassinado, um amigo dos dois, Tagme Na Waié, sucede-lhe. O Kabi vem do exílio. Tagme Na Waié jurara vingança a Nino Vieira. Tagme acusa Nhome de conspiração, Tagme rompe com Bubo Na Tchuto. Nhoma encontra-se com Nino e pede-lhe para não se candidatar à presidência, sabia-se que Nino tinha criado um partido, o PRID, exclusivamente para suporte da sua candidatura. Nhoma recrimina-o: “Lembra-te bem do que se passou em Conacri, depois da morte de Cabral. Que nome terá esse partido que vais criar? A tua fama, a tua história é no PAIGC. Volta para lá, mesmo como simples militante”. Os ódios estão à solta, e com ajustes de contas. Tagme morre numa explosão no Estado-Maior. No dia seguinte é a vez de Nino. Nhoma foi até à residência do Kabi, na rua Angola. Ao aproximar-se da casa viu gente a saquear os móveis. Encontrou o corpo do Kabi estendido no chão. Lá estavam as cartas, sobretudo do naipe de espadas. Nhoma chora, curva-se perante o chefe da guerra que muitos anos antes admirara. Por tudo quanto se passou na sua vida, Nhoma entendeu dar a sua contribuição contando o que viveu, como e com quem viveu, a sua alma anseia uma paz verdadeira para a Guiné-Bissau.
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Nota do editor

Poste anterior de 24 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15034: Notas de leitura (750): “Nhoma, uma trajetória de luta”, por Bnur-Batër (Respício Nuno e Eduíno Sanca), Edições Corubal, Guiné-Bissau, 2013 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15047: Parabéns a você (954): António Marques Barbosa, ex-Fur Mil Cav do Pel Rec Panhard 1106 (Guiné, 1966/68) e José Manuel Corceiro, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 5 (Guiné, 1969/71)


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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15043: Parabéns a você (953): Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (Guiné, 1968/70)

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15046: Memória dos lugares (316): Moledo, Lourinhã: a capital do amor, o palco dos amores de Pedro e Inês, ardentes, altamente explosivos, perigosos, clandestinos, subversivos, e de lesa-pátria... Também local (fabuloso, de visita obrigatória) de arte pública, para ver com os olhos... e mexer com mãos (, que nos perdoem a Inês e o Pedro lá no céu dos eternos amantes!) - fotos de Luís Graça












Lourinhã > Moledo > Arte Pública > 25 de agostod e 2015 > Inês, 2 peças de Joana Alves; "Love Captives" [Prisioneiros do amor], de Sana Hashemi Nasl


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados


1. É uma feliz e louvável parceria que já vem de, pelo menos, 2010, e que envolve a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa,  a Câmara Municipal da Lourinhã e a Junta de Freguesia de Moledo (hoje, União das Freguesias de São Bartolomeu dos Galegos e do Moledo).  Aqui vai um excerto de notícia publicada, em 15/6/2010, na página da Câmara Municipal da Lourinhã:


(...) "Moledo Com Vida" dá mote a projecto de parceria entre a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e a Câmara Municipal da Lourinhã/Junta de Freguesia de Moledo

Associado à temática de D. Pedro e D. Inês e à sua passagem por terras da Lourinhã, estabeleceu-se uma estreita colaboração entre a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e a Câmara Municipal da Lourinhã/Junta de Freguesia de Moledo, com o objectivo de, conjuntamente, se proceder ao desenvolvimento de acções comuns, para prossecução do projecto “Moledo Com Vida”.

Assim, e, no momento, está ser desenvolvido o projecto “Escultura Pública”, o qual conta com a participação de um grupo de cinco alunos do Mestrado de Escultura Pública, que ao longo do ano lectivo 2009/2010 trabalharão a temática de D. Pedro e D. Inês de Castro, associada, essencialmente à localidade de Moledo.

Esta acção conta com a colaboração dos Professores Escultores António Matos e João Duarte, responsáveis pela disciplina “Projecto e Laboratório de Escultura Pública”, e dos alunos/escultores: Constança Clara, Denise Romano, Francisco Cid, Joana Alves e Roberto Miquelino, os quais oferecerão os seus trabalhos à Junta de Freguesia do Moledo, para exposição permanente, tendo apenas esta que disponibilizar o espaço expositivo, bem como o material para os trabalhos.

Neste sentido e, de modo sucinto, irão descrever-se as respectivas obras, sendo que quatro delas serão executadas em duas oficinas da freguesia.

Constança Clara: o trabalho pretende dialogar com dois spectos: o paço (palácio), outrora existente, que terá albergado o casal enamorado com a colaboração dos habitantes da aldeia. Neste contexto, a população oferece pedras, à escultora, que simbolizam a referida edificação que aí existiu, com as quais ela construirá a sua instalação, na zona da Beira Rio, sendo este trabalho um dos grandes pretextos para a requalificação dessa zona;

Denise Romano: numa alusão à coroação póstuma de D. Inês de Castro, este trabalho consiste numa representação de uma “ausência presente”, com a construção de um trono, no qual figura a presença da referida donzela. Os materiais utilizados são o aço inoxidável e a pedra de uma pedreira situada na freguesia;

Francisco Cid: uma representação de D.Pedro e D.Inês numa perspectiva intemporal, a qual figura sobre os seus túmulos;

Joana Alves: a impossibilidade de representar a vida sem a morte. O corpo enquanto ser em metamorfose para a morte. Neste caso o leito de morte é uma banheira em que o corpo, delicadamente, se separa da vida; onde se materializa um afastamento e se impõe uma distância. Este trabalho, todo feito em pedra, extraída de uma pedreira situada na freguesia, consiste na construção de uma banheira que assenta sobre quatro pés, réplicas dos que, no Mosteiro de Alcobaça, sustentam o túmulo de D. Inês de Castro;

Roberto Miquelino: reporta-nos ao tema do amor e, nesse contexto, surge o coração, como elemento indicador e demonstrativo do amor, através de dois ventrículos, sobre os quais se exerce a acção reflexiva. O material eleito para este coração gigante é o metal.

Trata-se, então, de um trabalho académico, que estará concluído no dia 24 de Junho de 2010, data da sua inauguração, com a participação de todos os intervenientes. Até lá, e como já foi referido, quatro dos cinco escultores estarão a trabalhar na aldeia, com o envolvimento de uma grande parte da população, seja na entrega das pedras, como acontece com o trabalho da escultora Constança Clara, seja nas oficinas locais, onde Joana Alves, Roberto Miquelino e Denise Romano, trabalham nas suas peças, a par dos outros trabalhadores das mesmas oficinas, seja nas escolas, com as visitas de estudos que têm sido organizadas pela autarquia em conjunto com as escolas da Freguesia." (...).

As fotos acima publicadas são de 2 obras recentes, inauguradas em 2014, e que eu ainda não conhecia: "Inês", 2 peças de Joana Alves; e "Love Captives" [Prisioneiros do amor], de Sana Hashemi Nasl. Há uma terceira peça, "Relógio de sol", de Teixeira Lopes (de que não tenho fotos).

O Moledo, pequena povoação do planalto das Cesaredas, terra rica de história(s) e património (cultural e natural), já aqui tem sido evocado no nosso bloguie, nomeadamente pelo seu monumento aos combatentes do ultramar, erigido em 2005. Pelo TO da Guiné, passaram, 15 dos seus filhos, todos felizmente tendo regressado vivos a casa.



Lourinhã > Moledo > 2 de Agosto de 2010 > Monumento aos combatentes do ultramar > Passei por lá, pelo Moledo, numa manhã cinzenta de verão, mas gostei do monumento erigido em 2005, em terra que foi de amores ardentes mas altamente explosivos, perigosos, clandestinos e de lesa-pátria, os de Pedro e Inês... Gostei do singelo monumento aos combatentes da(s) guerra(s) do ultramar, não apenas os mortos mas também os vivos... Não apenas os de Angola, Guiné e Moçambique... mas também os que passaram por Cabo Verde, durante a II Guerra Mundial, e mais tarde pela Índia" (...). 

Nesta pequena e bonita aldeia  do concelho da Lourinhã, distrito de Lisboa, e que foi sede da freguesia do mioledo até 2013, situada no planalto das Cesaredas, nenhum combatente morreu, por doença, acidente ou combate em África, durante a guerra colonial (1961/74)... Acima, a publica-se uma foto com, um detalho do monumento, em que se listam os 15 combatentes que passaram pelo TO da Guiné.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados.

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Guiné 63/74 - P15045: Como Tudo Aconteceu (Manuel Vaz, ex-Alf Mil da CCAÇ 798): Parte IV - A Guiné: O Parente pobre da Colonização Portuguesa

1. Parte IV do trabalho "Como Tudo Aconteceu", da autoria do nosso camarada Manuel Vaz (ex-Alf Mil da CCAÇ 798, Gadamael Porto, 1965/67), enviado ao nosso Blogue em 18 de Agosto de 2015:


COMO TUDO ACONTECEU

PARTE IV

A GUINÉ: O PARENTE POBRE DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA


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Nota do editor

Poste anterior da série de 18 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15017: Como Tudo Aconteceu (Manuel Vaz, ex-Alf Mil da CCAÇ 798): Parte III - A Guiné do Século XV e meados do Século XVI

Guiné 63/74 - P15044: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XII Parte): Guia em fuga; Um descapotável em Bissau e Entram os Alouettes

1. Parte XII de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 26 de Agosto de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XII

Guia em fuga 

O Capitão Leandro era o novo Comandante da Companhia. Trazia boas referências operacionais, tinha vindo de Sangonhã, bem lá para o sul, encostado à Guiné do Sékou Touré.
Alguém no QG teria dito que o Comandante Militar se impressionara com uma acção da Companhia1, um ataque em beleza a um acampamento IN, ao raiar de um dia. Entraram tão sorrateiros que, conta quem viu, o capitão, curioso, espreitara para uma barraca e viu um tipo lá dentro com duas bajudas ao lado. Não pediu foi licença. O comandante IN como uma mola, atirou-se com toda a honra ao capitão, engalfinharam-se um no outro, as bajudas aos gritos, até que um soldado entrou na hora, e o meu capitão com a mania de resolver isto tudo com diplomacia.

É de um capitão destes que os gajos precisam, imagina-se que terá pensado. Mande-o cá vir. O Chefe do Estado-Maior enviou um rádio para o Batalhão, que se apresentasse com urgência no QG, ao Comandante Militar.

O capitão encarregou-o de os pôr na ordem. Tomou-lhes o pulso no início, os alferes desconfiados de um capitão de outra família. Com o tempo, a competência administrativa e operacional impôs-se, ganhou ascendência, confiança, corrigiu a organização, alterou alguns procedimentos, tudo embalado em diplomacia, acompanhando os processos todos, desde a escolha e preparação das saídas, até à logística de Brá, e sobretudo moralizara o pessoal, cada dia que passava mais satisfeito com a escolha.

Menino da Luz,  tinha conhecimentos por todo o lado, sabe-se como eles são, o Brigadeiro acertou na mouche. Ficaram a dar-se bem, fricções iniciais resolvidas, era sempre com satisfação que se encontravam.

E na primeira saída de um grupo fez questão de o acompanhar.


Informações referiam a existência de um acampamento IN na mata de Sabá. O grupo, com o novo comandante como observador, deslocou-se até Mansoa em viaturas. Para evitar detecção prematura, mantiveram-se dentro das Mercedes, com as lonas corridas. A seguir, incorporou-se numa coluna da ronda, saindo de Mansoa até à extremidade da pista de aterragem, onde se apeou discretamente.

Noite de intensa luminosidade.  Permaneceram imóveis no local cerca de um quarto de hora. Depois, apoiados por um experiente Grupo de Combate adstrito ao Comando de Batalhão sediado em Mansoa, começou a progressão apeada, a corta-mato, paralelamente à estrada Mansoa-Mansabá, até atingirem Caur.

À frente, um guia com as mãos atadas atrás das costas por uma corda que rodeava a cintura de um dos homens das milícias de Mansoa. Um trilho levou-os até Mancofine. Rodeada a tabanca, seguiram para a antiga tabanca de Sabá. Passaram ao largo, em direcção à bolanha. Localizaram um ponto de cambança utilizado pelo IN. Sempre nas margens da bolanha viram outro local de cambança, com algumas tábuas desfeitas. O guia disse existir outro local de cambança mais à frente, perto do acampamento e com acesso directo. Entraram na mata, progressão difícil.
Cerca de meia hora depois, barulho, correrias, vozes, uma rajada do primeiro homem do grupo. O guia tinha-se escapado. Alguém terá aliviado as cordas que o prendiam, não havia dúvidas. A procura no local não resultou, não havia qualquer hipótese de sucesso. Às 05h30, um carreiro levou-os a atravessar a mata até voltarem a ver a antiga tabanca de Sabá. Retiraram por Mancofine até à estrada que liga Mansabá a Mansoa.
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Nota:
1 - CCaç 640

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Um descapotável em Bissau

Desde que o Toni Ramalho fora para o mato formar milícias, deixara de ser frequentador do Hotel Portugal, parava lá, de longe a longe, só na esplanada para beber qualquer coisa, encontrar-se com alguém, muito raramente jantava. A mesa continuava no mesmo sítio, as pessoas é que tinham mudado.

Da mesa antiga só o Carlos e a sua Helena, os outros eram todos conhecimentos recentes. No final de um dia, viu-os na esplanada do hotel com uma roda de machos à volta, um fuzileiro de que não percebeu o nome e um conhecido capitão de artilharia, o Capitão Marques.

Apresentaram-se e foi aí que viu pela primeira vez as caras dos novos companheiros de mesa do Carlos. Demorou-se um quarto de hora, se tanto, o tempo suficiente para ouvir de rajada relatos do capitão em batalhas que travou no Comodoro do Rossio, no famoso Ritz e na Cave da Avenida António A. Aguiar.

Então não se senta, fica de pé, o capitão a virar o pescoço, enquanto lhe vinham à lembrança os amigos de há uns tempos atrás. Mudado o carregador, o capitão virado para um felizardo a passar as últimas noites na Guiné. Então, as escadas para a cave, o salão grande, o ambiente de tango, as mesas para dois, duas gentilezas em cada, uma no balde de gelo a aguardar que a abram, a outra sentada de perna traçada à espera que alguém as destrace, o pianista de brilhantina na careca, o do contrabaixo a abanar os cabelos encaracolados até aos ombros. Era como estivesse lá, os pormenores todos.

E você, para o que se mantinha de pé, não se esqueça, tome nota, que estou a ser seu amigo. Quando regressar, reserve para si a primeira noite em Lisboa, deixe a família e os amigalhaços para depois, que vai ter tempo para eles até se chatear. Diga adeus ao Depósito de Adidos, apanhe uma boleia da Ajuda para a baixa, suba o Chiado, encoste-se à Brasileira e deixe os olhos habituarem-se, deixe-os ver o que quiserem, até não quererem mais. Jante por aí, se quiser vá até ao Pic-Nic, um filme no Condes ou no S. Jorge serve para fazer tempo, suba depois até ao Marquês, aqui já sabe, com este nome é só coisa boa à sua espera, seja para que lado vá.

Fontes Pereira de Melo acima, pelo lado esquerdo, corte para a António Augusto de Aguiar, e suba a avenida pelo passeio da direita, vá olhando até dar de caras com a Cave e um porteiro fardado, lá para o meio da avenida. Só tem que abrir a boca, diga-lhe que o Capitão Marques manda cumprimentos, aquele que está agora com os ossos na Guiné, é só o que tem a dizer, ele mete-o lá dentro, sem mais. Ao descer as escadas, preste atenção, ouça, mas não quer jantar com a malta, olhe que isto é tudo bom pessoal.

A insinuante Helena nem parecia a mesma de quando chegou, a voz mais rouca, um vestido preto, brilhante, pendurado só no peito, como é que aquele vestido consegue ficar assim, tão seguro? Os joelhos cruzados um em cima do outro, o cabelo apanhado, uns brincos aos saltinhos. O Carlos parecia-lhe mais adulto, um ar quase indiferente para os outros, e também para a Helena, pareceu-lhe. Só um sorriso para cima, envergonhado.

Já apanhara com a artilharia toda, cansado de imaginar o percurso até à Cave. Despediu-se deles, um aperto de mão para aqui e para ali, o Carlos dá cá um abraço, quando apareces para jantar?

A Helena estava alugada ao mês. O pai do Carlos convencera-a, finalmente, a fazer companhia ao filho, depois tratara de tudo com ela, o salário base, as diárias, as condições todas. A Helena fizera questão que todas as despesas em Bissau, todas mesmo, ficassem a cargo do Carlos. E ainda um carro para as deslocações em Bissau. Foram ao J. J. Gonçalves2 em Lisboa escolher a cor, a marca e o modelo ela já tinha dito qual era. Ficaram instalados no Hotel Portugal, numa espécie de suite.
Um ou dois meses depois, mais dia, menos dia, o Carlos, acompanhado da Helena, foi ao cais levantar o Austin Sprite, de um vermelho lindo. Um brinquedo, a subir devagar a Avenida, a capota para baixo, o Carlos ao volante, a brisa a cuidar dos cabelos dela, o maralhal no Bento e na avenida de boca aberta, olhos arregalados.

Depois dos primeiros tempos, em que para onde ia um, o outro ia atrás, pelo que se estava a ver, o Carlos estava a aprender depressa, mais calado ainda, mas menos submisso. Noites dentro era visto quase sempre só, quando lhe perguntavam pela companheira, se achava que o dono da pergunta merecia resposta, dizia que tinha ficado no Hotel ou em casa de alguma gente conhecida e não adiantava muito mais. Levavam uma vida cada vez mais independente e a certa altura o Carlos tirou as coisas dele do hotel Portugal e mudou-se para a base de Bissalanca. Depois, ela começou a ser vista hoje com este e com aquele amanhã.

O Gabriel, empregado do hotel, contou mais tarde que uma noite apanharam um empregado do hotel em cima de um escadote, pano na mão a passar pelo vidro, os olhos todos lá para dentro. A limpar vidro que a senhora mandou! Contaram também outras coisas, sabe-se como é.
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Nota
2 - Empresa imortadora de automóveis, nomeadamente os Austin.

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Entram os Alouettes

6 de Março, domingo. Manhã quente. Carregador fora da G3, balas extraídas, um pano macio nelas. Uma a uma dentro outra vez. Os outros três carregadores cheios em cima da cama, para o cinturão. 100 projécteis ao todo, como de costume. Arma aos pés da cama. Granadas de mão, duas defensivas, uma ofensiva e uma incendiária para o cinturão, mais duas de fumos laranja para o bolso esquerdo do dólman3. Em cima da cama o camuflado e as meias. Botas de borracha junto à mesa da cabeceira. Tudo conferido outra vez. Duche.

À civil, meteu-se no ME-14-04, com o Alegre ao volante, em direcção a Bissau. Às 11 e pouco, na esplanada do Bento cheia de militares, um bolo de coco e um café. Volta a pé pelo quarteirão, olhar para o Geba, mexer pernas. De novo com o Alegre, regresso a Brá.

Camarata do grupo. O Sargento Valente e o Furriel Azevedo com as equipas conferiam o material, G3, MG 42, granadas de mão, lança-rockets, tudo a ser vistoriado e limpo.
Reunião do grupo para informação sobre a missão. Heliportagem4 de assalto a uma base IN nas imediações de Jabadá. Pertencente ao batalhão aquartelado em Tite, o destacamento de Jabadá estava a ser flagelado, há meses, quase todas os dias, às vezes mais que uma vez no mesmo dia.

13h00, Bissalanca. 30 homens em 6 Alouettes-III da esquadrilha comandada pelo Major Piloto Mendonça iam finalmente pôr em acção as práticas treinadas desde meados de Janeiro.


Minutos depois descolaram, formados em duas colunas, aos pares. Ganharam altura, sobrevoaram Bissau e começaram a subir o Geba castanho-escuro. Flectiram para a outra margem do rio, baixaram e, junto à orla, subiram o rio, a rasar as árvores.

De súbito, viraram à direita, dispuseram-se em linha, separaram-se, 3 helis para uma ponta da mata, os outros três para a outra.

Fumo a escapar-se das casas no mato em frente. Sinais do piloto, preparar para saltar. Portas abertas, olhos ansiosos. Junto ao solo, um metro para aí, saltar!


Um descampado seco, capim mais alto do que contavam. As equipas correram para a mata, em linha, torta como uma cobra a fugir.

Alguns guerrilheiros começaram a reagir. Rajadas de PPSH e Kalash, rebentamentos de morteiro, granadas, silvos de disparo de rockets, barulho das pás dos Allouettes.
Surpreendido, o IN retirou sem oferecer grande resistência, deixando baixas no terreno. Recolhidas crianças, mulheres e um velho. E algum material, meia dúzia de granadas, munições, correspondência vária, documentos.

13h45. Problemas na 2.ª Equipa. O Roberto à procura da parelha, o António Silva5. Deixara de o ver quando saltaram. Ouviam-se ainda chicotadas de disparos. A equipa do comandante do grupo voltou atrás, ao local de lançamento, a vasculhar o capim. Encontraram-no deitado, desajeitado, de barriga em cima da G3. Alguém o virou. Olhos abertos, um fio de sangue a espreitar da boca aberta e do nariz. Uma bala alojada no peito. Respiração boca a boca, uma golfada de sangue quente foi a única resposta.

Diabo Maior chama Lebre, evacuação, pediu e repetiu. Lebre chama Diabo Maior, indique local com fumo.

Até o capim estava contra, recusava-se quase sempre a arder quando lhe atiravam granadas incendiárias, agora até uma simples granada de fumos lhe pegara, o vento a empurrar-lhes as chamas, nem sabiam para onde ir, o Silva na maca improvisada, nem sabes quanto pesas, pá, desabafa um! Esgotados, meteram-no no heli, junto ao rio.


Explosões de granadas, berros, chicotadas de projécteis, crepitar do capim a arder e o barulho das pás do heli a curvar rapidamente para a outra margem do Geba, directo ao Hospital Militar de Bissau.


Soldado Comando António Alves Maria da Silva, o segundo a contar da direita

Uns dias antes, os olhos do Silva molharam-se quando o Furriel Azevedo lhe disse que não ia mais para o mato, que a comissão já estava terminada e que não queriam mais nenhuma edição do Furriel Morais dos Fantasmas, morto no sul, em Maio do ano passado, duas semanas depois de ter terminado a comissão. O alferes transigiu, a história repetiu-se.

Às 17h30 dessa tarde de domingo, o Soldado-Condutor Alegre deixava o alferes, já à civil, em Bissau frente à esplanada do Bento.

(Continua)
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Notas
3 - Casaco justo e curto que fazia parte do fardamento camuflado.
4 - Operação "Hermínia", a primeira heliportagem de assalto efectuada na Guiné.
5 - Soldado António Alves Maria da Silva, oriundo da CCaç 674, natural de Erada, Covilhã, ficou sepultado na campa 247, no Talhão Militar do Cemitério de Bissau.

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Nota do editor

Poste anterior da série de 20 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15024: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XI Parte): Mornas e Segundo Encontro com o RDM num mês

Guiné 63/74 - P15043: Parabéns a você (953): Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 25 de Agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15037: Parabéns a você (952): Manuel Carmelita, ex-Fur Mil Radiomontador do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15042: O nosso livro de visitas (184): António Mário Leitão, natural de Ponte de Lima, ex-fur mil, Farmácia Militar de Luanda, delegação nº 11 do LMPQF - Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos, Angola, 1971/73

1. Mensagem de António Mário Leitão, de Ponte de Lima, nosso leitor e camarada [ex- furriel mil na Farmácia Militar de Luanda, Delegação n.º 11 do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos (LMPQF), Luanda, 1971 a 1973]


Data: 21 de agosto de 2015 às 15:18
Assunto: 52 Heróis Limianos


Obrigado, Luís!

Em meu nome e desses 52 Heróis, muito obrigado! (*)

Fico espantado com a vossa  capacidade de trabalho! A sério, que vos admiro!

Estais a deixar para os vindouros um registo incrivelmente histórico, imensurável e cheio de sentimento sobre a Guerra!
Brasão da Farmácia Militar de Luanda.
Cortesia do portal Ultramar TerraWeb.
Delicio-me a ler os relatos dos nossos camaradas, muitos deles cheios de humor e humanidade!

Além disso, o vosso sítio é importantíssimo para os artigos que escrevo e os livros que estou a preparar.

Obrigado pela vossa  dedicação, caro Luís!

PS - Se vieres a Ponte de Lima, de dia, de noite,  ao sol ou à chuva, avisa-me, camarada! Quero conhecer-te!

Grande abraço!

Mário

2. Comentário de LG:

Obrigado, Mário, pelas tuas palavras sinceras, calorosas e fraternas. E pelo teu nº de telemóvel que vou gravar. Tens o nosso blogue sempre à tua disposição, e nomeadamente sempre que queiras evocar e honrar a memória dos limianos que passaram por (e alguns tombaram em) o TO da Guiné.

Quanto ao teu convite, terei também muito gosto em conhecer-te pessoalmente. Às vezes dou aí um salto, à tua bela terra, rica pelas suas gentes e pelo seu património (natural e cultural), quando estou no norte (Porto e/ou Marco de Canaveses).

Assim de repente, lembro-me de lá ter estado por ocasião do 8º Festival Internacional de Jardins de Ponte de Lima, em 7 de junho de 2012. Publiquei aqui algumas fotos... 

Na ocasião, se não erro, também descobri, maravilhado, a lagoa de Bertiandos (sobre cuja biodiversidade tens um livro de que és autor e sobre o qual gostaria que nos fizesses um curta apresentação)... Pelo vi na Net, és também membro do Lions Clube de Ponte de Lima e uma figura estimada entre a gente limiana.

Haveremos,.. por certo, de nos encontrar. Afinal, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca...é Grande! Fico feliz por seres nosso leitor assíduo e achares utilidade neste blogue como fonte de informação e conhecimento sobre a África lussófona, e em especial sobre a Guiné. Também há lugar aqui para ti, se assim o entenderes... Fica aqui o convite formal para integrares, como camarada, a nossa Tabanca Grande. Precisamos de camaradas como tu, que escrevam e saibam guardar, honrar e fazer respeitar a memória dos antigos combatentes da guerra colonial (ou do ultramar, como queiras).

Um alfabravo. Luís Graça (**).
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(**) Último poste da série > 5 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14436: O nosso livro de visitas (183): Luis Eiras, ex-alf mil, que esteve no CTIG, de abril a outubro de 1974, que passou por Caboxanque, que esteve em Vendas Novas com o Joaquim Sabido e que quer ir ao 10º Encontro Nacional da Tabanca Grande, no próximo dia 18, em Monte Real

Guiné 63/74 - P15041: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (32): O "making of" de um projeto de ajuda ao Hospital de Cumura (João Martel e Ana Maria Gala)


1. Mensagem de João Martel, com data de 19 de fevereiro de 2014, que não foi publicado na devida altura (*) e que nos parece agora relevante para perceber melhor o projeto deste jovem médico, João Martel, com quem já falei ao telemóvel duas ou três vezes... 

[foto á esquerda, João Martel com Ana Maria Gala; são os dois mais recentes membros da Tabanca Grande (**)]


Boa tarde, caro Luís Graça

O meu nome é João Martel.

Em primeiro lugar, e ainda sem me conhecer, aceite os meus sentimentos pela partida do Carlos Schwarz, "Pepito", para a Casa do Pai. O Senhor o recompensa já, por certo, pelas suas grandes e boas obras. A luta desse grande homem, que pude conhecer pelo seu blog, também me motivou a falar consigo hoje.

Cheguei até si pela leitura do seu blog "Luís Graça e Camaradas da Guiné" e pelo site da ENSP (já agora, perdoe-me a invasão de tantos endereços de e-mail, tentei apenas acautelar as falhas do digital).

O seu blog aparece sistematicamente em tudo o que são pesquisas sobre a Guiné-Bissau e tenho ficado cada vez mais motivado para contactar consigo, dado que tenho um interesse cada vez maior neste país e neste povo.

Mas começando do início:

Estou actualmente a terminar o curso de Medicina na FCML. Vim a aperceber-me que comecei o curso no ano de término do seu filho João, em 2008, cujo relato de Cumura também li com interesse.

Há já bastantes anos que vegeta em mim a vontade de poder aplicar algum do meu tempo (e, quiçá, saber) a um povo que sinta precisar especialmente de auxílio no esforço para o desenvolvimento. Como é próprio dos maçaricos, o tempo de partir parece que nunca chega mas circunstâncias da vida e dos estudos obrigam a um adiamento. Este tempo serve para maturar, claro, e tornar a nossa visão um pouco mais clara, mais informada, mais consciente de nós e dos outros, o que não pode ser senão positivo.

Estando actualmente a terminar o 6º ano, penso que chega a altura de soltar amarras! Mas para onde, como?

Através de alguns contactos com os Franciscanos Portugueses, soube da existência da Missão de Cumura e do trabalho do Frei Vitor Henriques, médico, na missão, durante vários períodos.

Falei o ano passado com ele, falei de raspão com a drª Alice, pediatra que também lá esteve.. As coisas foram-se ligando...

Nas pesquisas on-line, como lhe disse, o seu blog, a vossa Tabanca, aparece sistematicamente. Através dele, pude completar melhor o meu olhar sobre este país e as aventuras e desventuras de tantos que por ele tanto têm feito. Nomeadamente (e terei que usar o tom coloquial) o Carlos Schwarz e a AD Bissau, o seu filho João Graça, o Zé Teixeira e o seu filho Tiago, o dr. Francisco Silva, ortopedista e tantos outros... são personagens que, ainda que só dentro da blogosfera, já habitam a minha ideia da Guiné-Bissau e me motivam a seguir em frente.

Na verdade, falo em nome de um grupo de três pessoas, eu próprio, uma colega de medicina e uma professora do ensino primário, trio que pretende partir em conjunto, em princípio no ano de 2015, dado que ainda estamos a terminar a nossa formação base.

Não querendo maçá-lo muito mais com este testamento, gostava de lhe pedir se poderia falar consigo um pouco sobre a Guiné e algumas perspectivas para o futuro dos nossos trabalhos. Igualmente, e abusando, sem querer abusar, se poderia facilitar-me alguns contactos, que adivinho muito úteis, do seu filho João e do José e Tiago Teixeira, ou outros contactos que ache importantes para nós.

Agradeço desde já a sua atenção e, logo em primeira mão, todo o sonho que já me fez viver com as suas escritas e de tantos Tabanqueiros!

Com as minhas desculpas por este rolo de texto, com amizade

João Martel (e Ana Maria e Rita)



Guiné-Bissau > Bissau > Estrada de Prábis, a 10 km de Bissau > Cumura > Missão Católica e Hospital de Cumura > Cortesia da página da União Missionária Franciscana.


2. Resposta de Luís Graça,. com data de 24 de fevereiro de 2014:

João: Vejo que é um homem crente, com sentido de coerência, e solidário. A Guiné-Bissau precisa de todos nós, e de pessoas jovens e generosas como você e as suas amigas.

Obrigado, antes de mais, por me contactar. Obrigado pelas referências elogiosas ao nosso blogue. Terei todo o gosto em poder ajudá-lo, eu e outros amigos da GB e do seu povo que se acolhem à sombra do poilão da nossa Tabanca Grande...

Espero que possa concretizar, em 2015, os seus sonhos de,, uma vez concluído o mestrado integrado de medicina, na nossa FCM/UNL [, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade NOVA de Lisboa], possa partir para a GB em missão humanitária ou de cooperação ou em regime de simples voluntariado. Vou pô-lo em contacto com as pessoas que referiu.

Para já fique com os meus contactos pessoais (...)

Um alfabravo (ABraço), em linguagem dos antigos combatentes... Luís Graça

PS - Gostaria de poder publicar um pequeno texto seu, no nosso blogue, a partir desta mensagem. Caso ache oportuno, adequado e pertinente.

3. Informação sobre os promotores do projeto:

Ana Maria Gala

Formada em Educação como professora do 1º e 2º Ciclos do Ensino Básico. Com 25 anos sobre este planeta, actualmente a trabalhar no Serviço Educativo do Museu Calouste Gulbenkian. No entanto, tem como grande paixão o Ensino e desde cedo desejou fazer um período de trabalho missionário,  pondo ao serviço a sua formação.

João Martel

Formado em Medicina pela Universidade Nova de Lisboa, actualmente a realizar o Ano Comum (o antigo Internato Geral). Igualmente com 25 anos, uma boa parte deles com o sonho de ser útil na construção do diálogo entre os povos. Aceita os desafios de uma medicina pobre, com múltiplas carências básicas.

O João e a Ana veem na Acção Missionária uma forma de honrar as ligações fraternas de Portugal com o Mundo Lusófono, contribuindo para o caminho do desenvolvimento. Encontraram na Ordem Franciscana uma estrutura organizada e coerente para o fazer.

(Fonte: PPL | Crowdfunding Porttugal > Causas > Um pé na Guiné)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 20 de maio de  2015 > Guiné 63/74 - P14640: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (31): Em busca das minhas raízes nalus / In search of my Nalu family origins (Nigel Davies, historiador britânico, originário da Serra Leoa / British historian, specialising in the study of Sierra Leone Creole people)

Guiné 63/74 - P15040: Os nossos seres, saberes e lazeres (112): Un viaggio nel sud Italia (3): Ver Nápoles por um canudo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
Às vezes talhamos as nossas viagens e cometemos a leviandade de querer meter o Rossio na Betesga.
Nápoles é tão jubilosa, magnífica desde o período greco-romano até às ousadias da modernidade, tem o impressionante Vesúvio, o seu peculiar bulício nas ruas compactadas de gente e trânsito, o seu museu arqueológico é magnífico, há a catedral e dezenas de igrejas e praças, que até quase sinto vergonha pela insignificância que mostro.
Espero voltar a ter outra oportunidade para acariciar Nápoles como deve ser.

Um abraço do
Mário


Un viaggio nel sud Italia (3) 

Beja Santos

Ver Nápoles por um canudo

Tivesse eu seguido à letra todas as propostas para conhecer os tesouros artísticos de Nápoles e arredores, muito provavelmente ainda lá estava, a passear-me entre palácios, igrejas, museus, catacumbas, a coscuvilhar todo o casco histórico.

Levo o “Kaputt” de Curzio Malaparte debaixo do braço, vem a propósito fazer referências a Nápoles. Malaparte encontra a princesa do Piamonte (mulher de Umberto de Itália, viveu muito tempo em Cascais, na Villa Italia) no hall da gare de Nápoles, pouco depois de um bombardeamento. E escreve: “Os feridos jaziam em cima de macas alinhadas no cais, aguardando as ambulâncias. A princesa o Piamonte mostrava no seu rosto a palidez mortal da angústia – mas não apenas da angústia: qualquer coisa de mais profundo, de mais secreto. Emagrecera, tinha umas olheiras enormes e as têmporas floridas de uma ligeira tatuagem branca de rugas. Para todo o sempre, aquele puro esplendor que a iluminava quando fora a Turim pela primeira vez, alguns dias depois do seu casamento, apagara-se. Tornara-se mais lenta, mais pesada e parecia estranhamente envelhecida”. Cumprimentam-se, a princesa procura palavras tranquilizadoras. Malaparte responde. “Nós já perdemos a guerra; todos nós perdemos a guerra. Vós também”.


Saio da gare de Nápoles e presto esta homenagem a Malaparte, nada resta desse passado, 70 anos é muito tempo e esta estação ferroviária está cercada de arranha-céus. A obra-prima absoluta de Malaparte termina em Nápoles, ele concluiu o livro em Capri, no mês de Setembro de 1943. Há bombardeamentos, multidões em pânico, fome e sede, mas essa multidão só fala no sangue, o sangue do santo padroeiro de Nápoles, San Gennaro, que se liquefaz periodicamente. Tinha-se espraiado pela cidade o boato segundo o qual uma bomba atingira a catedral e fizera desmoronar-se a cripta onde se conservam os dois relicários com o precioso sangue. E Malaparte dá-nos um parágrafo prodigioso: “Era a primeira vez, depois de quatro anos de guerra, a primeira vez no decurso da minha cruel viagem através dos massacres, da fome, das cidades destruídas, a primeira vez que ouvia pronunciar a palavra sangue com sagrado e misterioso respeito. Em todas as partes da Europa, na Sérvia, na Croácia, na Roménia, na Polónia, na Rússia, na Finlândia, essa palavra soava com ódio, medo, desprezo, alegria, horror, cruel e bárbara complacência, prazer sensual – num tom que sempre me causara horror e nojo. A palavra sangue tornara-se para mim mais terrível que o próprio sangue. Ora em Nápoles, precisamente em Nápoles, na mais infeliz, na mais esfaimada, na mais humilhada e torturada cidade da Europa, na mais desgraçada cidade da Europa, que eu ouvi a pronunciar a palavra sangue com um religioso respeito, sagrado tumor e profundo sentido de caridade, na voz clara, pura, inocente e amável que tem o povo italiano ao pronunciar as palavras mamma, bimbo, cielo, Madonna, pane, Gesú, a mesma inocência, a mesma pureza, a mesma amável candura”.
Fatalmente, e sempre a pensar em Malaparte, avancei para a catedral, três quilómetros a pé num calor insuportável e a ver as maiores montureiras que imaginar se pode, nunca vi tanto lixo na rua.


Fachada de gótico italiano, concluída por Roberto de Anjou, em 1313, muitas vezes alterada. Celebrava-se missa, sorrateiramente fui até à capela do tesouro de San Genaro, é muito faustosa, ficamos embasbacados com os enormes relicários com bustos de prata. É aqui que se expõe durante duas semanas o relicário para ocasião do milagre da liquefação. Na véspera, e durante a viagem de comboio de Salerno até aqui, angustiei-me a ler o património que a cidade oferece, só o museu arqueológico tem acervo para um dia inteiro, o melhor de Pompeia e Herculano, por exemplo, expõe-se aqui. Estava tomada uma decisão: vamos ver Nápoles pela imagem que nos dão os viajantes há muitos séculos.






O núcleo histórico de Nápoles conserva a sua antiga estrutura greco-romana e prossegue em espaços medievais e renascentistas. O comércio estava aberto, pedi licença ao quinquilheiro para mostrar a fachada da sua loja, autorizou sem hesitação. Seguem-se as ruas do umbigo da cidade, dá gosto ver a reciclagem de tudo quanto é antigo nas habitações e mobiliário urbano atuais. É pena que as imagens em certos casos não tenham som, asseguro-vos que se ouviria o bater do coração napolitano, até canções se misturam nestas ruas de trânsito caótico, com grandes fachadas de palácios, árvores, praças, sente-se uma irrecusável alegria de viver, todos se falam, param frente às montras cheias de iguarias, também eu não resisti, entrei para comer uma babá, um dos doces tradicionais da cidade. É nisto que dou com o complexo monumental de Santa Clara, ao longo da via Benedetto Croce, um sábio italiano que estudei em Teoria da História. A igreja é austera, em gótico provençal, foi bastante afetada pelos bombardeamentos de 1943, o restauro é magnífico. Quando ouvi a palavra majólica em profusão nos claustros, não resisti, entrei todo lampeiro.




Só para ver este claustro valeu a pena vir a Nápoles. É gigantesco mais harmonioso, tem uns belos jardins, as paredes estão cobertas por frescos do século XVIII, representando santos, alegorias e cenas do antigo testamento. Mas a azulejaria a toda a volta, os bancos primorosos com cenas da vida quotidiana da época que nos fazem palpitar, nada vira nesta policromia azulejar de tão belo, num edifício religioso. O cansaço era enorme, fiz dois em um, contemplava os frescos e os azulejos e aproveitei para passar pelas brasas. E depois entrei no museu, mal sabia que ia ter um encontro inesperado, inesquecível.


A Idade Média deu enorme destaque a um encontro entre a Virgem e a sua prima Isabel, é a imagem da afetuosidade familiar e da hospitalidade. Cativou-me este mármore do século XIV, a singeleza do drapejamento e as mãos a abraçarem-se, os corpos a acolherem-se. É tão tocante não preciso de saber como eram os seus rostos, que o tempo erodiu.



Estou a despedir-me de uma cidade que teve vice-reis de Espanha entre os séculos XVI e XVIII, vieram depois os Borbons e o seu reino de Nápoles até 1860, quando surgiu a Itália. Foi um simples passeio, ainda irei até ao porto e até viajarei no moderníssimo metropolitano. Vi o Vesúvio, impressionante. Fica o sabor amargo de uma pálida amostra, que teria valido a pena organizar as coisas para estar mais tempo. Agora é tarde, hei de voltar. As casas palácio têm dimensões medonhas, fiz quatro ou cinco fotografias desta entrada apalaçada, até me acocorei para que tudo coubesse na imagem, em vão, o leitor que suponha como é tudo vasto, para impressionar. E mais adiante avistei uma casa de bicos, a rivalizar com a nossa, ali no Campo das Cebolas, onde se comemora Saramago. Para que conste. A dormitar em pé, regresso a Salerno. Preparei as coisas para ter amanhã um dia agitado. Será todo o dia a percorrer a Costa Amalfitana.

(Continua)
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