segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15291: Vídeos da guerra (12): "A ternura dos 20 anos", de Armando Ferreira, natural de Alpiarça, escultor de profissão, ex-fur mil cav, CCAV 8353 (Cumeré, Bula, Pete, Ilondé, Bissau, 1973/74): uma emocionante e emocionada homenagem aos seus camaradas mortos e feridos, há 42 anos, no "batismo de fogo", em 5/5/1973, em Bula, em que "deixei de ser eu" (sic)


Vídeo (11' 29'') do Armando Ferreira, nosso grã-tabanqueiro nº 704, disponível no You Tube > Armando Ferreira.





Foto nº 1 > O fur mil at cav Armando Ferreira


Foto nº 2 > O fur mil at cav Armando Ferreira


Foto nº 3 > O fur mil at cav Armando Ferreira e mais furrieis na classe turística do navio que os levou, em março de 1973, até à Guiné

Foto nº 4 > O fur mil at cav Armando Ferreira



Foto nº 5 > P fut mil cav Serafim de Jesus Lopes Fortuna, morto em combate em 5/5/1973, mês e meio depois da companhia ter chegado ao TO da Guiné. Era um dos amigos chegados do Armando Ferreira: andaram juntos desde o primeiro dia, na recruta e especiliadade em Santarém, na EPC



Foto nº 5 > O fur mil at cav Armando Ferreira


Foto nº 6 > O fur mil at cav Armando Ferreira e camaradas


Foto nº 7 > Foto sem legenda...[Segundo o "olho clínico" do nosso amigo Cherno Baldé, esta foto deve deve ter sido "tirada entre junho a agosto de 1974, no período de euforia do pós-25A74, nela estão elementos da guerrilha e jovens simpatizantes do PAIGC"... Não se sabe o local.]

Fotos: © Armando Ferreira (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

1. O Armando Ferreira, natural de Alpiarça, escultor de profissão, foi fur mil cav, CCAV 8353, Cumeré, Bula e Pete (1973/74). 

Esta companhia não pertenceu ao BCAV 8320/72, era independente. Foi mobilizada pelo RC 3. Partiu para a Guiné em 16/3/1973 e regressou a 29/8/1974 (17 meses de comissão). Esteve em Bula, Pete, Ilondé e Bissau. Cmdt: cap mil cav António Mota Calado

Veio  substituir a mítica companhia do cap cav Salgueiro Maia, a CCAV 3420 (Bula, 1971/73).  Neste vídeo, de mais de 11 minutos, o Armando faz um emocionado e emociante relato do historial da sua companhia, declamando em "voz off" um dramático e longo texto poético,  a que deu significativamente o título "A ternura dos 20 anos"... 

O vídeo foi colocado no You Tube,  42 anos depois do "batismo de fogo" do Armando e dos seus camaradas, a trágica emboscada que a companhia sofreu em 5/5/1973, na região de Bula,  de que resultaram as 17 primeiras baixas da companhia, das quais 4 mortos:

(i) fur mil cav Serafim de Jesus Lopes Fortuna, natural da Madalena, Vila Nova de Gaia, e que era um dos seus grandes amigos;

(ii) 1º cabo at cav José João Marques Agostinho, natural de Reguengo Grande, Lourinhã;

(iii) Sold at cav João Luís Pereira dos Santos, natural de Brejos da Moita, Alhos Vedros, Moita; e

(iv) Sold at cav Quintino Batalha Cartaxo, natural de Castelo, Sesimbra.

Mais tarde, em 4/11/1973, da mesma companhia morrerá, também em combate, Madaíl Baptista, natural de Carvalhais, Ponte de Vagos, Vagos. (Dados do portal Ultramar TerraWeb).

As fotos acima reproduzidas foram recuperadas do vídeo.  Espero que o Armando nos ceda cópias das originais, com maior resolução (**).

Esta CCAV 8353 tem um um blogue em construção, editado pelo Nuno Esteves. Até
a data da entrada do Armando Ferreira na nossa Tabanca Grande não tínhamos qualquer referência a esta subunidade. Temos alguns camaradas do tempo do Armando, e do BCAV 8320/72, que estiveram em Bula como o Fernando Súcio, o Leonel Olhero ou o José Alberto Leal Pinto.

Não confundir este BCAV 8320/72 com o BCAV 8320/73, a que pertenceu por exemplo  o Nelson Henriques Cerveira (fur mil enf, CCS/BCAV 8320/73, Bissorã e Bissau, 1974).

O BCAV 8320/72 foi mobilizado pelo RC 3, partiu para o TO da Guiné em 21/7/1972 e regressou a 25/8/1974. Esteve em Bula, sendo comandado pelo ten cor cav Alfredo Alves Ferreira da Cunha. Era composto,  para além da CCS, pelas seguintes unidades de quadrícula: 1ª C/BCAV 8320/72 (Bula, Pete, Nhamate e Bissau); 2ª BCAV 8320/72 (Bula, Nhamate); e 3ª C/BCAV 8320/72 (Bula, BIssorã, Catió, Pete).






Guiné > região de Cacheu > Bula > CCS/BCAÇ 8320/72 (Bula, 1972/74) > Casa dos geradores > O fur mil Olhero vendo os estragos causados por um míssil. O Leonel Olhero, ex-fur mil cav, e nosso grã-tabanqueiro, pertencia ao EREC 3432 (Panhard), 1971/73.

Foto: © Leonel Olhero (2012). Todos os direitos reservados [Edição: CV]


2. Enquanto artista plástico,  e nomeadamente escultor, o nosso camarada Armando Ferreira tem participado em diversas exposições individuais e colectivas: Lisboa, Porto, Faro, Monsaraz,Torres Novas,  Alpiarça.  Está representado com obras em Portugal, Espanha, França, Bélgica, Itália e Holanda. É também autor de cartazes, cenários interiores e exteriores para várias sessões comemorativas: festivais da canção infantil, encontros musicais, ilustração de livros infantis e designers for books. Tem diversas entrevistas, críticas e apreciações por nomes ligados á arte, publicadas em revistas, jornais nacionais, televisão e em várias obras literárias (Portugal e Espanha). (LG)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15287: Tabanca Grande (475): Armando Ferreira, ex-Fur Mil Cav da CCAV 8353 (Cumeré, Bula e Pete, 1973/74)

(**) Último poste da série > 31 de outubro de  2012 > Guiné 63/74 - P10600: Vídeos da guerra (11): Sete anos no bacalhau em alternativa aos dois anos no ultramar: o filme A Outra Guerra (Portugal, 2010, 48')

domingo, 25 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15290: Por Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-mar em África, etc.: legislação régia (1603-1910) (3): Como se podem enjeitar os escravos e bestas por os acharem doentes ou mancos (Ordenações manuelinas, decreto de 1 de janeiro de 1521)






Portugal > Assembleia da República > Legislação régia > Ordenações manuelinas > Decreto, 1 de janeiro de 1521 > Como se podem engeitar os escrauos , e bestas, por os acharem doentes ou mancos > Sem Entidade Livro V. (Reproduzido com a devida vénia...) (*)


1. Apesar de nos podermos orgulhar de Portugal ter sido
Reprodução de uma xilogravura da edição de 1514
das Ordenações Manuelinas,
impressa por João Pedro Buonhomini
nas instalações de Valentim Fernandes,
em Lisboa. Fonte: Wikipedia. 

Vd. cópia pública, em formato pdf, desta edição 
de 1514  na Biblioteca Digital Nacional
um primeiros  países a abolir a escravatura (no território nacional, em 1761, ao tempo do Marquês de Pombal, o todo poderoso primeiro ministro do rei Dom José), tivemos tráfico (luso-africano, convém sempre lembrar...) de escravos desde a expansão marítima, e utilização de mão de obra escrava, de origem africana, da ilha da Madeira ao Brasil, passando por Cabo Verde e pelo continente... 

Originalmente os primeiros escravos vinham da Guiné (topónimo que designava uma vasta região da costa de África Ocidental, incluindo o Senegal, a Gâmbia, a Guiné-Conacri, a Guiné-Bissau, a Guiné Equatorial, etc.). Na legislação régia, há naturalmente referências aos "escravos da Guiné", que eram vistos na época de uma tripla perspectiva: (i) tinham alma e era preciso batizá-los;  (ii) eram mão de obra valiosa (, fundamentais na exploração mineira e nas plantações de açúcar); (iii) tinham valor económico, sendo transacionáveis; e (iv) eram um "bem de luxo" para a corte e as classes dirigentes, uma forma de ostentação da riqueza, do poder e da honra (!)...

À luz dos nossos princípios e valores de hoje, esta linguagem "jurídica" das ordenações manuelinas (**) é chocante. (E mais chocante ainda a realidade que o poder régio procurava ordenar e regulamentar)... Mas estamos em 1521, mesmo no final do reinado de D. Manuel I, o "Venturoso", que irá morrer a 13 de dezembro desse ano, e que é descrito, por um dos seus biógrafos, "como um rei centralizador, inovador e reformador" (Costa, 2015, p. 259).

A 19 de dezembro de 1521 era aclamado rei seu filho, D. João III... Era o fim de uma época e o início de uma outra. (COSTA, João Paulo Oliveira e - D. Manuel I, 1469-1521: um príncipe do Renascimento. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, col. "Reis de Portugal", 333 pp.).

2. Yoro Fall, conceituado historiador senegalês, antigo professor da universidade de Dakar,  no Dicionário de História dos Descobrimentos (sob a direção de Luís Albuquerque) (Lisboa: Círculo de Leitores,1994), vol. I, "Escravutura", pp. 367-384, escvreve o seguinte:

(...) "o arranque económico da Europa foi largamente determinado, sobretudo no século XVIII, período de maior intensidade do tráfico de escravos, pela interconexão estabelecida entre a colonização da América e a utilização de escravos africanos na construção de novos espaços e de novas estruturas econonómicas" (p. 383).

A expressão "tráfico luso-africano" é dele, não é minha. É um artigo de leitura obrigatória... LG

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 17 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15260: Por Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-mar em África, etc.: legislação régia (1603-1910) (2): "Que todos os que teuerem escrauos de Guinee os baptizem"... (Ordenações manuelinas, decreto de 1/1/1521)... Em busca do rei (cristão ?) de Guandem e Sará (Carta régia de 17/6/1603).

(**) Sobre as "ordenações manuelinas":

"(...) são três diferentes sistemas de preceitos jurídicos que compilaram a totalidade da legislação portuguesa, de 1512 ou 1513 a 1605. Fizeram parte do esforço do rei Manuel I de Portugal para adequar a administração no Reino ao enorme crescimento do Império Português na era dos descobrimentos. Consideradas como o primeiro corpo legislativo impresso no país

(,,,) , elas sucederam as pioneiras Ordenações Afonsinas, ainda manuscritas, e vigoraram até a publicação das Ordenações Filipinas (...) , durante a União Ibérica. Representam um importante marco na evolução do direito português, consolidado o papel do rei na administração da Justiça e afirmando a unidade nacional (...) " (Fonte: Wikipédia, com a devida vénia...).

Na Biblioteca Digital Nacional pode consultar-se, página a página (são 866!) a cópia pública, em formatop pdf, desta preciosidade bibliográfica.

Guiné 63/74 - P15289: Meu pai, meu velho, meu camarada (47): A minha mãe terá adorado esta fotografia do seu namorado, pelo aprumo e elegância, realçados pela distinção da farda que lhe assentava tão bem, que se lhe assemelhava a um general conquistador (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 21 de Outubro de 2015:

No quarto dos meus pais, lembro-me desde criança, da fotografia deste jovem soldado. A minha mãe por não ter outra fotografia dos bons tempos de namorados, em que ambos trocavam olhares com promessas de beijos e palavras cheias de significado e de futuro, tirou esta fotografia da caderneta militar deste soldado garboso e colocou-a num lugar de destaque no quarto do casal.

Nesses tempos antigos do século XX, até à década de cinquenta, em que todos os militares tinham direito a uma farda número um, com dólman e quepe, semelhante aos dos oficiais superiores, em lugar do quico e do blusão verde dos nossos tempos, a minha mãe, costureira e esteta amadora, terá adorado esta fotografia do seu namorado, pelo aprumo e elegância que já lhe reconhecia, realçados pela distinção da farda que lhe assentava tão bem, que se lhe assemelhava a um general conquistador.

Emídio Baptista, meu pai

A fotografia dos últimos trinta anos ou talvez mais, já não será a original, pois a minha irmã mais nova, que sempre gostou de recordações da família, mandou fazer uma cópia e guardou para si uma delas.

À minha mãe, esse retrato de militar, devia trazer à memória recordações gratas da sua juventude e do seu namorado, tão discreto mas que sabia tão bem dizer-lhe as palavras apropriadas, que acompanhadas por um sorriso afável, lhe adoçavam os dias, a faziam sonhar e lhe prometiam um futuro radiante.

Apesar de todas as contrariedades e dissabores próprios do casamento, a minha mãe continuou a confiar para sempre nesse homem, que ela conheceu menino, adolescente e jovem.

Ele morava tão perto da sua casa, a menos de 100 metros. Aos 19 anos, por morte do pai dele, por ser o mais velho de 4 irmãos, teve que tomar conta da casa de lavoura e de dar todo o apoio possível à sua mãe viúva. Nesses anos e em anos anteriores teve tempo e oportunidade de avaliar esse vizinho, da idade dela, que passava à sua porta com as vacas e vitelos, com o carro puxado pelas vacas, vazio, para trazer cortiça, trigo, ou lenha, ou outros produtos agrícolas, ou com as charruas e os arados para lavrar as hortas, as oliveiras ou os campos de trigo e centeio. Muitas vezes se terão cumprimentado conforme os usos e costumes da terra: Bom dia Maria! Bom dia Emídio! E pela urgência das lides quotidianas ou pela timidez de um ou do outro, a troca de palavras terá ficado por aí.

Afinal, apesar do silêncio, da reserva e da dureza da vida após o casamento, o seu homem não era pior do que todos, mesmo irmãos ou cunhados. O seu homem era trabalhador e responsável e nunca faltaria com o indispensável às necessidades da família que ia aumentando ano após ano. Nessa sociedade patriarcal todos tinham essa máscara ou marca de rudeza, que tinham herdado dos pais e avós que lhe dava autoridade, até demasiada, mas que lhe iria também exigir muitas responsabilidades. O sustento da mulher de dos filhos ficaria para sempre a seu cargo, bem como todos os trabalhos agrícolas. A mulher teria o encargo de criar os filhos e de ajudar em alguns trabalhos agrícolas menores, se possível, como por exemplo alguma ajuda no tratamento da horta.

A minha mãe, uma mulher inteligente, acreditava na escolha da sua vida, pelo conhecimento e enamoramento que terá crescido dentro dela desde criança, ao longo dos anos, pela forma gentil com lhe terá dito que gostava dela e pelo seu sorriso simpático de garoto brincalhão ou trocista. Na fotografia desse soldado, a melhor representação do seu amor juvenil, que imaginou para a vida inteira, a minha mãe apostou todo o seu projecto de vida.

Apesar dos seus silêncios, do seu feitio reservado que não lhe conhecia bem dos tempos de namorado, os filhos iam nascendo para alegria dela, cada qual o mais belo (os filhos são sempre tão lindos), para compensar desgostos passageiros. Ao seu marido autoritário ela sabia que o sabia vergar e moldar aos seus gostos quando fosse necessário. Recordo-me bem quando plantávamos a horta, com feijões, tomates, cebolas, batatas, pepinos, melões, etc., as guerras que a minha mãe tinha com o meu pai, por ele não lhe querer garantir um bom lote de terreno para plantar as suas flores: os crisântemos, as sécias e as zínias. A nossa mãe ganhava sempre.

Quando os filhos começaram a crescer, depois de fazerem a escola primária, a minha mãe lutou como uma leoa para que a todos fosse garantida toda a continuação da educação escolar possível.

O nosso pai já a pensar que com a ajuda dos quatro filhos varões podia aumentar bastante a riqueza da família teve que se curvar perante as exigências da mulher, que não sendo autoritária, se sabia impor em defesa das suas flores e dos seus filhos, os bens que mais amava.

A vida deste militar, garboso e aprumado, com o mesmo porte que conservaria para o resto da sua vida civil, continua a ser para mim um enigma, já que ele nunca falava do seu passado, civil ou militar, nem das suas recordações da meninice ou da juventude. Sei somente algumas coisas que a minha mãe ou outros contaram.

Consta-se que era da arma de Cavalaria e que terá tido uma repreensão por um dia ter vergastado um cavalo mais rebelde. Terá passado por Mafra em 1939, por onde eu passei 30 anos mais tarde. Sei que escrevia cartas muito meigas à namorada que a minha irmã mais nova, já depois da sua morte, morreu cedo, aos 59 nos, encontrou numa arca de madeira. no meio de lençóis de linho.

Cartas que tinham sempre no cabeçalho duas palavras: Minha Maria. A minha irmã, sempre a mais nova, teve tempo de ler duas cartas porque entretanto foi encontrada pela nossa mãe, nesse delito de inconfidência, as cartas, com os segredos desses namorados, terão sido queimadas ou bem escondidas, o que se sabe é que não mais foram encontradas.

Esta é a minha homenagem singela, que se me permitem os meus camaradas, presto a estes dois guerreiros que lutaram até ao limite das suas forças, pelo futuro dos filhos, e que a todos deixaram uma herança tão grande em valores humanos: honra, honestidade verticalidade, companheirismo, dedicação e solidariedade .

Um abraço.
Francisco Baptista
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OBS: 
- Foto editada por CV
- Título do poste da responsabilidade do editor 
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14648: Meu pai, meu velho, meu camarada (46): O meu avô, cruz de guerra de 1ª classe, esteve na I Grande Grande, nas margens do rio Rovuma, norte de Moçambique.... Quando regressou, trouxe com ele um "filho da guerra", que seria mais tarde o meu pai, que eu sempre adorei e adoro (Jaime Machado, ex-alf mil cav, Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70; membro do Lions Clube Lusofonia)

Guiné 63/74 - P15288: Libertando-me (Tony Borié) (40): Isto é a Flórida

Quadragésimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 21 de Outubro de 2015.




...isto é a Flórida!

As rajadas de vento passavam a 31 milhas por hora, naquela água revoltada do mar, podia-se ver, talvez a mais de um quarto de milha de distância da costa, dezenas de ondas seguidas, cobrindo-se umas às outras, pintadas de branco, que não era bem branco, pois havia alguns sinais, aqui e ali, mais escuros, que deviam de ser troncos de árvores, restos de costas tropicais que vinham dar à praia, fugindo da tempestade, da fúria daquele pequeno furacão, que devastava a areia, destruindo as dunas, onde dias antes era um lugar paradisíaco.

Este foi o cenário que encontrámos, quando, entusiasmados, na esperança de alguma aventura, viemos passar uns dias fora da cidade, fora do ambiente quotidiano, do conforto daquelas coisas que existem na nossa casa, procurando viver em contacto com a natureza, sem computadores, sem rádio ou televisão, sem ouvir e tomar conhecimento pelo que vai no mundo, pois no “six o’clock news”, que é o noticiário das seis, é só desgraças, são só notícias que excitam as pessoas, se for uma boa notícia, não tem interesse, tem que ser uma catástrofe, para aparecer a todas as horas ao abrir dos noticiários, assim têm maior audiência, faz deles os melhores.

Mas continuando, viemos cozinhar as nossas refeições numa fogueira, com lenha de cedro, perfumada com aquele cheiro que não existe à venda em nenhuma casa de perfumes, tomando banho na água do mar, ou em qualquer riacho, caminhando por trilhos selvagens, às vezes tropeçando, caindo aqui, levantando-se ali, dormindo no pequeno espaço da nossa caravana, falando e convivendo com novas pessoas, vindas de outros estados, também aventureiras, que gostam de conversar, que contam anedotas e vivências de aventura pela noite dentro, em volta da tal fogueira, onde o café e alguma cerveja, dão alguma cor àqueles rostos antigos, de pessoas da nossa idade.

Um casal que acampou num espaço ao nosso lado, portanto nossos vizinhos, oriundos do estado de Montana, falavam entre si, dizendo:
- Meu Deus, isto é a Florida? E viemos nós de tão longe para ver o mar, a minha avó, que nunca viu a cor do mar, chamaria a isto uma planície de neve a querer derreter-se, que saudades da minha Montana!


Quando o vento vinha do norte, a caravana balançava, havia pequenos ramos e folhas no ar. Para caminhar, colocava-se a mão sobre a testa, cobrindo os olhos, protegendo-os, era a natureza revoltada, que encontrámos nos primeiros dois dias da nossa fuga para o passado mas, como diz o ditado, “depois da tempestade bem a bonança”, agora o mar está calmo, a corrente é serena, pode-se mesmo pescar, apanhar sol, entrar nas pequenas ondas que estendem a água suavemente pelo grande areal plano, que existe, antes de tocar nas dunas, onde a vegetação rasteira tenta sobreviver, acolhendo algumas palmeiras que começam a tomar o sentido vertical, pois algumas vergaram no sentido sul, com o forte vento que vinha do norte. Limpámos todo o local à volta da nossa nova “vivenda”, abrimos o tolde da nossa caravana, passamos algumas horas lendo, admirando a natureza, meditando, criando em nós algum sossego de espírito, tentando limpar a nossa mente, já antiga e baralhada, deixando de pensar por alguns momentos em emboscadas, ataques ao aquartelamento, sobretudo naqueles irmãos mortos em plena juventude, embrulhados nos restos do camuflado, a cheirar a medo e pólvora, sujos de lama e sangue, daquela maldita guerra que lá vivemos, na então nossa Guiné.

Tony Borie, Outubro 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15263: Libertando-me (Tony Borié) (39): Tal e qual lá na Guiné

Guiné 63/74 - P15287: Tabanca Grande (475): Armando Ferreira, ex-Fur Mil Cav da CCAV 8353 (Cumeré, Bula e Pete, 1973/74)

1. Mensagem do nosso camarada e novo amigo Armando Ferreira (ex-Fur Mil Cav da CCAV 8353, Cumeré, Bula e Pete, 1973/74), com data de 13 de Outubro de 2015:

Camarada Luís,
Sou mais um igual a milhares que sobrevivemos cada qual à sua maneira.
Fui Furriel Miliciano Atirador e pertenci à Companhia Independente de Cavalaria 8353.
Fomos para o Cumeré, depois para Bula para render a CCav do famoso Cap.Maia. Mais tarde com o meu grupo fomos viver subterraneamente para Capunga e depois S.Vicente, e por fim, fazer colunas a Farim.

Tivemos várias baixas, vários feridos com armamento deficiente, fomos atacados várias vezes com misseis russos e ainda aqui estou.  

Nasci em Alpiarça e aos dez anos parti para Lisboa, aí estudei em escola de artes e trabalhei, e muito mais tarde regresso para ter espaço físico na realização com o meu trabalho.
Tenho dois filhos e dois netos, e estou disposto a fazer seja o que for para que a minha família e as outras, terem direito ao país onde nasceram e receberam a sua própria cultura, TER A VIDA COM FELICIDADE.
Sou escultor de profissão, o meu trabalho está entre o Realismo e Expressionismo e tenho neste Portugal muitas esculturas urbanas, representando: feitos, heróis, individualidades, conjuntos escultóricos de grande dimensão, alegorias etc.
Trabalho em pedra e em bronze. Estou representado em vários países.

 À Liberdade - Estudo

 À Solidariedade

Homenagem à Juventude

Homenagem a Passos Manuel(1)

No passado mês de maio, fiz uma pequena homenagem a camaradas que perdi ao meu lado e aqui te mando o link, pois é ainda o que me vai na alma. Se entendes que deves publicar, força.


Desejo-te saúde e alegria, até breve um grande abraço
Armando Ferreira

Nota do editor:
(1) - Passos Manuel (Matosinhos, 1801 - Santarém, 1862), natural da freguesia de Guifões.
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Comentário do editor:

Camarada Armando Ferreira, sê bem-vindo à nossa tertúlia.
Foi um prazer receber-te nesta tabanca virtual de combatentes da Guiné. Se bem me lembro és o primeiro escultor na tertúlia. Vou dedicar um poste para divulgação das fotos que me mandaste com as tuas obras, além das que hoje publico, para a malta tomar conhecimento da tua arte e dos locais onde a mesma pode ser apreciada.
Hoje divulguei uma foto do teu Passos Manuel, que como sabes nasceu no concelho de Matosinhos em 1801 (ou 1806?), onde aliás tem também uma estátua, inaugurada em 1864, cujo autor não consegui descobrir. Já agora, se souberes diz-nos.
Ficamos desde já ao teu dispor para a divulgação de eventos relacionados com a tua actividade artística.

Quanto à missão que cabe a cada um de nós, combatentes da Guiné, neste Blogue, é, dentro das condicionantes de cada um, colaborar no registo, em texto e em fotos, dos momentos que mais nos marcaram. Fotos há muito guardadas e esquecidas, e memórias que julgávamos já apagadas, podem ver a luz do dia na nossa página, e ficarem a fazer parte da nossa História mais recente. Ficas então convidado a participar nesta missão colectiva.

Ficamos por aqui disponíveis para qualquer esclarecimento adicional quanto ao funcionamento e fins deste blogue.

Cabe-me deixar-te, em nome de toda a tertúlia, editores incluídos, um forte abraço de boas-vindas.

O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15094: Tabanca Grande (474): Joaquim dos Santos Ascenção, ex-Fur Mil AP Inf da CCAÇ 3460/BCAÇ 3863 (Cacheu, 1971/73)

Guiné 63/74 - P15286: Recortes de imprensa (76): a AMFAP (Associação dos ex-Militares das Forças Armadas Portuguesas) ainda existe (e reivindica), segundo notícia recente da Agência de Notícias da Guiné

1. Na sequência do poste P15284 (*), aqui vai um eecorte de imprensa, uma notícia,  recente,  Agência de Notícias da Guiné > 7 de agosto de 2015, relativa à AMFAP (Assoccação dos ex-Militares das Forças Armadas Portuguesas)... Com a devida vénia... (**)

[Repare-se que é uma foto nossa, da autoria do Humberto Reis, sem qualquer referência à fonte... Não é bonito, senhores jornalistas da ANG - Agência de Notícias da Guiné... Mas, enfim, que
seja tudo por uma boa causa...].





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Notas do editor:

 (*) 23 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15284: Os nossos camaradas guineenses (43): Quem se lembra do Madjo Baldé, natural de Mampatá, nascido em 1936, sold at inf, Madjo Baldé. que serviu o exército português desde 1961 a 1966, incluindo a 1ª Companhia de Caçadores (Umaro Baldé, filho, a viver na ilha do Sal, Cabo Verde)

(**) Último pose da série > 14 de outubro de 2015 >Guiné 63/74 - P15252: Recortes de imprensa (75): "Guiné-Bissau, um dia de cada vez", fotorreportagem de Adriano Miranda, Público -Multimédia, 11/10/2015... Quatro dezenas de fotos, a preto e branco, que nos emocionam e interpelam (António Duarte, ex-fur mil at, CART 3493 e CCAÇ 12, dez 1971/jan 1974)

sábado, 24 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15285: Manuscrito(s) (Luís Graça) (67): As intermitências do amor no país sem pátria... Pensando na minha amiga de Alex, M..., nascida em Angola, "retornada", que hoje faz anos... Mas também no poeta e músico luso-angolano, Luaty Beirão que vai morrer de fome e sobretudo de sede de justiça e de liberdade!

As intermitências do amor no país sem pátria


por Luís Graça

[in: Amor(es), guerra(s), lugar(es): vol. I: amor(es). Lisboa: edição de autor, 2015, pp. 46-54. Edição limitada a 6 exemplares e já esgotada]



Para a minha amiga M... , nascida em Angola, e que hoje celebra a vida, ao fazer mais uma aninho!... A sua história de vida inspirou-me  este poema, há 10 anos atrás...  Como muitos outros portugueses e outras portuguesas, é sociologicamente uma "retornada"... É uma "amiga de Alex" a quem desejo muita saúde e longa vida, agora no país que não era a sua pátria... Não posso deixar de pensar também, neste dia,  no luso-angolano Luaty Beirão, poeta e músico,  que vai morrer, de fome e sobretudo de sede de justiça e de liberdade... (LG)



Na bicha das cinco da tarde,
no para arranca do trabalho casa trabalho,
para não para,
arranca não arranca, empanca,
a vida,
a vida tão cara,
tão avara,
tão complicada às vezes,
à tarde,
uma mulher só na cidade,
formiguinha no meio do grande formigueiro humano,
ouves o sax do velho Luís Morais,
evocando as cores das impossíveis ilhas tropicais,
às cinco da tarde, 
na RDP África,
Lura, essa voz magnífica,
amor ca tem
o amor que não há,
o amor que não chega, 
nem por e-mail,
toupeira,
nas autoestradas das linhas de montagem
onde para arranca empanca a vida,
em viagem,
ah! que pena, 
já não se escrevem mais cartas de amor,
diz o locutor de serviço,
com selo e lacre,
envelope fechado 
e carimbo do correio,
entregue pelo moleque lá no musseque,
para certificar a data-hora dos nossos desencontros,
aqui e agora, 
ou lá no Puto
(ah!, Portugal, Portugal!),
a propósito de alguém que se foi embora
e de quem não fizeste o luto,
o namorado que irá morrer na guerra colonial.


Tiram-te a pele, 
o tutano, 
e, de permeio, o amor, 
o doce engano,
e não há coração que aguente
o para arranca da bicha do trabalho casa trabalho,
a gigantesca centopeia de homens e mulheres sós na cidade,
na segunda circular, 
no IC 19,
na mesa a toalha barata, 
aos quadrados,
a sopa fria, 
os fugazes amores de verão,
os suores da meia estação,
veste, despe o robe,
e no outono a depressão,
e se há inferno é no inverno,
a massa fria polar
da solidão,
a caixa do correio cheia
por causa dessa coisa do spam,
desesperando por esperar
um toque de telemóvel, 
um msn, 
um sinal,
a campainha,
a cama, 
as insónias,
os lençóis desfeitos,
à tarde, demasiado tarde para amar
no Monte Abraão,
uma mulher no para arranca empanca da vida,
nos anéis circulares da cidade sitiada,
a cidade anaconda,
a paixão de quarentena
aos cinquentas e tais,
o corpo exangue,
o desejo, surfando na onda,
a doença do amor, letal,
proibido amar,
diz o semáforo, vermelho,
e não é amor, é dor,
é saudade, diz a morna,
que o B.Leza é morabeza,
faria cem anos
se ele ainda hoje fosse vivo,
lá no Mindelo piquinino,
às cinco da tarde a casa vazia,
os filhos que partiram
mas deixaram cá as fotos, emolduradas,
de quando eram bebés,
e eram louros,
lindos de morrer,
ternurentos,
e eram filhos de sua mãe,
ah! as intermitências da liberdade vigiada,
o guarda-mor da saúde, totalitário,
mantendo tenso o cordão sanitário
que estrangula a vida,
a pele esticada, 
o tutano chupado,
a merda da vida, fodida,
que o aumento da esperança média de vida te traz,
sobre os carris dos quilómetros
do teu têgêvê sem futuro,
as contas por pagar,
a casa hipotecada à banca,
os anos que faltam para a reforma,
o risco de cancro da mama,
a carreira amorosa congelada como a feijoada,
o multibanco do coração cor de rosa fora de serviço,
os cheques que vencem 
antes de a paixão esfriar e morrer,
ao virar da esquina da última rua do quarteirão,
no para arranca empanca da casa trabalho casa,
e o Ribeiro Sanches, 
físico-mor do reino no exílio,
a dizer-te que não há cura para os males de amor
e o passado é um país estranho,
e, se a paixão é doença, 
não sei o que fazes aqui,
parada na maldita picada,
minada,
que te leva do trabalho para casa
e da casa para o trabalho,
e um dia para a casa mortuária
e o forno crematório,
o ninho da cegonha abandonado,
a casa vazia,
a sopa fria no prato,
o trabalho sem pica,
a vida sem sal,
sem o teu chabéu da Guiné de comer e chorar por mais,
stress, the kiss of death 
or spice of life,
cada meco a falar sozinho
para o boneco,
no bar do fast food,
emparedado,
no comboio do Cacém,
no autocarro da Carris,
na CRIL, na CREL,
no carro comprado a prestações,
o último amante, romântico ma non troppo,
morto em Israel,
os amigos de Alex cada um para seu canto,
e o baile, combinado, dos anos sessenta
que ficou para as calendas gregas,
quando a crise acabar,
se algum dia acabar e o FMI deixar,
as flores no cabelo, 
Make Love Not War,
All You Need is Love,
Vietname nunca mais
black power, blá-blá…
em plena guerra fria a quente,
o terror do nuclear ao sol poente.

E a tua velha senhora no fim da estação
da linha de Sintra da vida,
em casa à tua espera,
o Alzheimer devastador,
o avião  que não mais faz escala na tua África perdida,
na tua infância em Nova Lisboa, hoje Huambo,
a morena de Angola que leva o chocalho na canela,
a tua adolescência de Luanda e as suas ilhas,
a restinga do Mussulo,
o meu tarrafe do Geba,
as balas tracejantes,
o teu Huambo sem meninos à volta da fogueira,
o comboio para Benguela metralhado,
os erros meus,
as doces ilusões,
terríveis as deceções,
as tuas negras emoções,
os amanhãs que não cantam mais,
o mundo que a gente queria mudar de repente,
assim com um toque de varinha mágica,
a crise de valores,
a profusão de cores,
o pilão dos teus cheiros e sabores,
e a muamba que já não é mesma muamba,
nem muito menos o óleo de palma, o fungi,
a cachupa do nosso contentamento,
as mornas, as coladeras
aos fins de semana,
nos anos oitenta,
a rebeca do Travadinha, bem gemidinha,
a mãe preta,
o muzonguê frio no fim da rebita,
de manhã ao acordar, 
para mais um dia, sem pica,
para afivelar a máscara 
e desempenhar os papéis
que os outros esperam de nós,
l’enfer, c’est les autres,
o inferno são os outros
mas começa em nós...

Não te adianta, amiga,  chorar 
sobre o leite de coco derramado,
ou dizer que fizeste tudo errado,
o amor da tua vida,
o curso, 
o emprego,
os filhos, 
o império por um fio,
o país de retorno que não era o teu,
o divórcio,
o século ao dobrar do milénio,
a liberdade avençada, ameaçada,
porque esta é a tua história, 
mesmo indevida,
este é o teu tempo e o teu lugar,
e até pode ter um final feliz,
a tua telenovela das cinco
no para arranca empanca da vida,
só depende da autora do guião
e do tempo de reflexão que antecede a ação,
deixa o carro na garagem, 
compra um passe social,
vai a pé ou de metro,
mas não trepes pelas paredes,
atira a matar,
não de kalash mas de ternura,
direitinho ao coração
que diz que não aguenta mais uma paixão 
aos cinquenta…
e tal,
querida amiga, afinal,
fomos feitos para amar 
e desamar
(que não é o mesmo que odiar),
esperar e desesperar,
viver e morrer,
e não há volta a dar,
se há uma antídoto para a morte,
é o amor, 
escrevia o Saramago, o mal amado,
e eu acho que ele tinha razão,
mas o meu livro de culinária existencial
diz para lhe acrescentares
uma pitada de humor quê bê,
ao amor
que segue dentro de momentos...
Se conseguires rir-te do amor, 
como o teu negão do Martinho da Vila,
estás salva.
Eu quero dar
eu quero dar
e receber
e receber
fazer, fazer
me refazer fazendo amor
sem machucar seu coração
sem me envolver.


Carpe diem, amiga,
compra um bom vinho tinto, 
encorpado, 
do Douro ou do Alto Alentejo,
e põe um cêdê,
ouve a tua Mariza Monte
ou grita à janela do Monte Abraão
Amor I Love You,
porque gritar faz bem,
gritar à janela a plenos pulmões
liberta a tua energia negativa,
esses miasmas,
esses iões,
manda à merda esses cabrões.
e depois senta-te,
no sofá,
desliga a droga da televisão
e põe a máscara da tua serenidade,
respira fundo,
dá tempo de antena a ti própria,
lambe as tuas próprias feridas,
que a vida não se delega, 
nem se congela,
nem se põe entre parênteses.
Ou então pinta um grafito 
nas muralhas alexandrinas da tua cidade.
Vi um há dias:
– Amor ? Amor ? … Amor és tu!
Só podia ser de uma adolescente,
apaixonada, doente, 
como tu,
no teu caso, eu sugeria 
uma pequena emenda, subtil:
– Amor ? Amor ?... Amor sou eu!

E ninguém morre, louco, 
de amores intermitentes,
no píncaro do verão da nossa raiva, 
aos quarenta graus centígrados,
com as febres palúdicas,
com as velhas e malditas sezões da ex-África nossa,
nossa, da humanidade,
mal amada, perdida, reencontrada,
no para arranca empanca do trabalho para casa
e da casa para o trabalho:
dizem que a vida é bela
e que, afinal,
somos nós... 
que damos cabo dela.

PS – Querida amiga de Alex, 
minha querida amiga,
sem pátria,
no país sem retorno,
e agora sem império,
não sabia o que te dizer 
com princípio, meio e fim,
mas se isto fosse um poema, 
era recado,
uma canção ligeiramente desesperada,
a deixar no voice mail,
e seria uma coisa assim,
sem palavras a mais:
vais ver que a dor passa,
que, com esse  coração, ainda aguentas,
e que já não é pecado,
o amor aos cinquentas...
e tais
.

Alfragide, 15/12/2005. Última, enésima, revisão, 24/10/2015


In: GRAÇA. L. -   Amor(es), guerra(s), lugar(es): vol. I: amor(es). Lisboa: edição de autor, 2015., pp. 46-54. 

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Nota do editor:

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15284: Os nossos camaradas guineenses (43): Quem se lembra do Madjo Baldé, natural de Mampatá, nascido em 1936, sold at inf, Madjo Baldé. que serviu o exército português desde 1961 a 1966, incluindo a 1ª Companhia de Caçadores (Umaro Baldé, filho, a viver na ilha do Sal, Cabo Verde)





Cartão de órfão, emitido em 5/1/2008, pela Associação dos ex-Militares das Forças Armadas Portuguesas (AMFAP), com sede em Bissau, em nome de Umaro Baldé, filho de Madjo Baldé.



Umaro Baldé
Fotos: © Umaro Baldé  (2015) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


1. Mensagem do nosso leitor Suker Umaro Baldé, guineense, residente em Cabo Verde [, foto atual à esquerda:

De: Suker Umaro Balde <sukerancem@hotmail.com>
Data: 22 de outubro de 2015 às 23:56
Assunto: Saudação


Madjo Baldé, nascido em 1936
Meu caro camarada, sou eu,  Umaro Baldé, maior, nascido em Bafatá em 6/4/1982, solteiro e residente na ilha do Sal, em Cabo Verde, filho de um ex-combatente português da guerra colonial, na cidade Bafatá, de nome MADJU BALDÉ, soldado, nº mec 82023361, Companhia ou Batalhão D. R. M. 

Gostaria muito de encontrar ou saber se há alguém que conheceu o meu pai. Tenho poucos conhecimentos para descrever o meu pai, militarmente falando. Por isso, passei algumas referências e anexei algumas cópias dos seus documentos [. Caderneta Militar,], que, de certeza, o senhor poderá identificá-lo melhor, caso haja alguém do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, que seja dessa época (1961/66) e que tenha servido na(s) mesma(s) unidade(s). 

 Antecipadamente, agradeço muito obrigado pela atenção e colaboração.

Umaro Baldé



Presume-se que seja a foto, de corpo inteiro, tirada em estúdio,  do nosso camarada Madjo Baldé, nascido em 1936, em Mampatá, e entretanto falecido.  A foto,enviada pelo seu filho Umaro Baldé, infelizmente não traz legenda. 



Página 3 da Caderneta  Militar de Madjo Baldé, guineense, fula forro, com 1 m e 71 
de altura, nº mec 82023361,  nº de matrícula 61/233,



Página 5 da Caderneta  Militar de Madjo Baldé, que se alistou no exército português como voluntário em 27 de maio  de 1961, como 25 anos feitos.  Foi dado como pronto da escola de recrutas em 24/9/1961. Passou à disponibilidade em 1/8/1966, com 30 anos,  por "ter terminado a obrigação de serviço" (sic).




Página 4 da Caderneta  Militar de Madjo Baldé,  natural de Mampatá, freguesia de Buba, concelho de Bafatá, filho de Bacar Demba Baldé e Molo Baldé, solteiro, ajudante de motorista.


Formulário, preenchido e assinado pelo filho Umaro Baldé, datado de Bafatá, 26/9/2007, do Arquivo Geral do Exército (secção das ex-províncias ultramarinas),  donde ficamos a saber que o Madjo Baldé nasceu em 5 (?) / 4/ 1936, era sold atirador de infantaria e fez a recruta no CIM [Centro de Instrução Militar] de Bolama, tendo prestado serviço nas seguintes unidades:

C.I. M . [Bolema] - desde 27/5/1961
1ª CC - de 2/2/1961 a 9/2/1962
CESP [ou CR?] OG  (?) - de 25/6/1963 a 1/1/1966
DRM [Distrito de Recrutamento Militar] - 1/8/1966

Não conseguimos identificar a unidade onde esteve colocado o Madjo Baldé, de 25/6/1963 a 1/1/1966: CESP [ou CR?] .OG (?), onde passou mais tempo (dois anos e meio]. Espero que o nosso "assessor militar", o José Martins, me dè um ajuda.  Sobre 1ª Companhia de Caçadores Índigenas, talvez o nosso camarada Jorge Rosales nos possa dizer alguma coisa. Ele é de 1964/66, também esteve no CIM dem Bolama.




Declaração, para os devidos efeitos, em que o Umaro Baldé se diz filho de Madjo Baldé.


2. Comentário de LG:

Meu caro Umaro: fico muito emocionado pela tua mensagem.  Fazes anos no dia da minha filha, 6 de abril, embora sejas mais novo do que ela 4 anos.

Todos temos ou tivemos pai e mãe. E tu vens agora recordar a memória do teu querido pai, Madjo Baldé, nosso camarada da Guiné. Dizes-te filho de um "ex-combatente português da guerra colonial". (sic) A ternura, manifestada publicamente,  pelo teu pai e nosso camarada, não nos pode deixar de tocar e sensibilizar.

Não pedes nada. Queres apenas encontrar camaradas do tempo do teu pai, que o tenham conhecido e com ele convido. É um gesto de amor filial, de grande nobreza. Vamos ver se o teu pedido vai ter eco. Se ele fosse vivo, o teu pai teria  hoje 79 anos, Infelizmente, já não temos muitos camaradas, com essa idade, ativos, no nosso blogue. É verdade que o tempo entrou para a tropa aos 25 anos e saiu aos 30. Os militares portugueses metropolitanos eram mais novos.

Mas a esperança é a última coisa a morrer. Precisamos de esclarecer em que unidade o teu pai serviu, de meados de 1963 a finais de 1965. No documento que mandaste, a sigla (CESP.OG ?) não é legível... Vê lá melhor na caderneta militar. Por outro lado, DRM não é nenhuma companhia ou batalhão, é apenas a abreviatura de Distrito de Recrutamente Militar. Temos alguns, poucos camaradas, que estiveram na 1ª CC [Companhia de Caçadores Indígena], como o alferes miliciano Jorge Rosales. Vou-lhe dar conhecimento do teu mail.

Temos como divisa do nosso blogue (e Tabanca Grande) que "os filhos dos nossos camaradas nossos filhos são". Isso significa que és acarinhado e bem recebido pelos camaradas do teu pai. Diz-nos algo mais sobre ele e sobre essa associação, a Associação dos ex-Militares das Forças Armadas Portuguesas (AMFAP), de que és sócio, e de que só ouvimos falar, muito esporadicamente, quando  mudam os governos, na Guiné-Bissau e em Portugal, ou quando há visitas oficiais,.,,

Diz-nos o que podemos fazer mais pelos nossos camaradas guineenses e pelos seus filhos. No teu caso, convido-te a integrar a nossa Tabanca Grande, para poderes receber os nossos mails e ir acompanhando mais regularmente o nosso blogue. Diz-nos algo mais sobre ti, o que fazes na ilha do Sal, como foste lá parar... E, claro, manda-nos mais memórias do teu pai.  Temos bastantes camaradas, no nosso blogue, que passaram por Mampatá, terra natal do teu pai, Mantenhas para ti, (LG)

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Último poste da série > 8 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14585: Os nossos camaradas guineenses (42): em 1/12/1973, na tabanca do Xime, vítima de fogo amigo ou inimigo, morreu na sua morança um militar da CCAÇ 12 e toda a sua família, duas mulheres, duas crianças em idade escolar e um recém nascido (António Manuel Sucena Rodrigues, ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972-74)

Guiné 63/74 - P15283: Notas de leitura (769): “Diário de Ébano", por Sofia Yala Rodrigues (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
Vai-se a uma instituição universitária à procura de uma potencial leitora que amenize a vida de um cego culto que pretende os serviços de alguém que goze de boa dição, e enquanto se espera lê-se num jornal da respetiva associação de estudantes um texto magnifico, fala-se de uma África que corre nas veias de alguém que se ri de todos aqueles que supõem que África não tem História. O que deu para pensar a quem ali foi que teve também almoços como aqueles, com moamba, funge, pirão, brancos, mestiços e pretos à volta, tudo em risada desbocada. E assim se cozeram duas falas e o produto é o que se segue.

Um abraço do
Mário


Diário de Ébano, por Sofia Yala Rodrigues

Beja Santos

Há bem mais de 30 anos que eu não entrava na Faculdade de Letras de Lisboa. A fachada, concebida por Almada Negreiros, mantém-se intocável, felizmente. O átrio principal mudou muito, é um convidativo espaço de marketing lucrativo e de causas, as paredes bem pintadas, desci até ao piso inferior, depois de olhar nostalgicamente para as vitrinas onde se afixavam as pautas, onde se anunciavam as conferências, as datas das frequências e dos exames, a sobriedade do passado desapareceu, é tudo rutilante, um quase chamamento de relações públicas. No piso inferior, foi confrontado com vendas de livros, novos e usados, atravessei um corredor infindável até chegar à associação de estudantes, era esse o meu objetivo. Sempre tentado pelas bancas, lá comprei António Carreira, André Álvares de Almada e mais uns papéis, a Guiné é o meu fado. Procurava uma jovem com cultura e boa dicção, para ler a um cego exigente, alguém que não gosta de vacilações na voz. A menina que me ia atender estava em derriço numa chamada telefónica, mandou-me sentar e eu obedeci. E estes casos, como nas esperas dos consultórios, tenho um impulso automático e saco de um livro, desta feita chamou-me à atenção o jornal da associação com o nome “Os Fazedores de Letras”, mais a mais com um título provocatório na capa “como se Deus sofresse de um reumático do Diabo”. O telefonema era interminável, embrenhei-me na leitura deste jornal referente ao mês de Setembro, a menina com os cotovelos no balcão continua a falar de ordens de batalha no campo dos estudos, entra gente e logo recua, apercebem-se da indisponibilidade da rececionista. E é nisto que um texto me engole por inteiro, uma África plena, uma saudade luxuriante, quem quer que tenha escrito esta belíssima página tem África no sangue e no coração e senti-me no dever (entenda-se no gostoso dever) de transcrever para gente ofuscada por África este...

Diário de Ébano
Sinto o cheiro a óleo de palma, oiço as conversas e vejo o Sol a atravessar a persiana do meu quarto. Ao fundo do corredor uma melodia de vozes femininas e o barulho de água a escorrer na cozinha. Falam em Kinkongo, concluo que é razão para saltar da cama e correr pelo corredor como uma louca. Ao chegar à cozinha perdi o Alzheimer temporal, como é óbvio. É Domingo porque a cozinha cheira a Fubá e a minha tia Ngundu está a fazer funge ou fu fu, como dizem os meus primos franceses. O Kiluanji também veio, consigo ouvi-lo cantar para os pombos na varanda.

Na minha casa come-se funge somente ao Domingo, porque é o único dia em que conseguimos reunir a família e sentar à mesa sem horas e sem compromisso. O meu pai insistentemente conta que no Kakongo comia funge todos os dias, tenho a certeza que na altura devia ficar farto mas hoje ele conta essa história sempre em tom saudoso.

Voltei, a saltitar de felicidade, para o meu quarto, arranjei-me e por fim peguei no meu pente favorito e penteei o meu cabelo o melhor que podia para reavivar o meu afro que agora estava parecido ao da Kathleen Cleaver ou da Angela Davis. Sou linda e serei uma guerreira, tal como elas. Olho para a janela e parece feriado, Domingo à portuguesa, a minha vizinha do rés-do-chão está a ver “Portugal em festa”, a senhora adora partilhar os sons televisivos pela vizinhança.

Enquanto todos falam à mesa, apenas consigo olhar para a beleza do feijão do óleo de palma, a perfeição do funge e o lindo peixe seco e o molho envolvente a fluir no meu prato cheio de vida. A mesa está repleta de iguarias e por isso tenho que acabar de comer este para a próxima rodada. Quando dou por mim, estão a falar sobre História. O meu tio Jonas é professor numa escola secundária e tem muito gosto em lecionar e em partilhar com a família todos os acontecimentos ao longo da semana. Desde que sou pequena que Jonas faz questão de transmitir e fazer despertar a minha identidade cultural. Agora entendo-a perfeitamente. Conheço o império de Benim, o império Songhai, o império Monomotapa, o império do Congo. O meu tio é o meu herói, porque sempre que oiço a parte dos “Descobrimentos” na escola dá-me vontade de rir, mas ele ensinou-me que a vida é feita de perspetivas. Muitos jovens como eu, só sabem a história que é lecionada na escola, nunca saberão o que foi o pan-africanismo, no máximo saberão que estas pessoas não tinham alma e que pertenciam a correntes de dor e de servidão. Acordei de mais um prato delicioso, agora olho para o rosto negro do meu tio, olhos desenhados e lábios contornados, feições de guerreiro que me relembram os velhos contos da minha avó “jovens de corpos estéticos da cor do ébano, verdadeiros guerreiros do Deus da Terra”.

Desvia o olhar com um muxoxo e disse que estou com olhos de mvumbi ankengele, parei de olhar e comecei a rir. Começou a contar que enquanto transferia conhecimentos sobre o mundo a uma turma, o seu jovem aluno André, baralhado com a história sobre o reino de N’zinga disse: “O meu pai sempre me disse que África não tem História”. Olhamos uns para os outros e a mesa transformou-se numa explosão de gargalhadas, até a minha tia Ngundu começou a rir, o que é bastante raro. Todos afirmamos: “Como será possível alguém existir e afirmar tal coisa?”.

Sofia Yala Rodrigues


Imagem extraída do blogue Coisas da Vida, com a devida vénia

Depois sou atendido, conto a minha história, a rececionista toma conta do meu caso, estou mais ausente que presente, porque em minha casa é Sábado, vai haver funge aprimorado pela avó Ângela, batem à porta e entram mestiças, pretas e brancas ruidosas, nasceram ou viveram em Lucala, Vila Salazar, Malanje, são grandes amizades que deixou Angola nas minhas ancestrais, riem desbocadamente, as bocas avermelhadas pelo óleo de palma, é impossível seguir aquelas conversas, fala-se de missangas, malaguetas, obras em marfim, há fotografias que passam de mão em mão, entre exclamativas, risinhos de assombro. Este foi o meu diário de Ébano, que vim imprevistamente reencontrar à entrada de uma associação de estudantes, e rio-me para dentro, a nossa África tem história, aquele de que sou portador no sangue e mais aquela que são os laços estabelecidos lá no num ermo da margem direita do Geba, em que recebi o nome de família, numa terra que está adubada em sangue, em sofrimentos mil, e de onde verdadeiramente nunca saí. Percebo muito bem do que é que Sofia Yala Rodrigues faz mofa, daquele passado, presente e futuro em que ignora África, os seus odores, fragâncias, lianas nas florestas, palmares soberbos, pedaços de Éden, é nesse ambiente que se ergueram culturas, idiomas e se multiplicam artes que os ocidentais provincianos chamam por arte tribal.

Que privilégio ter um diário de ébano, comentei para mim, sonhador, quando saltei para o autocarro e me atirei para a chamada civilização superior.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de outubro de 2015 &gt; Guiné 63/74 - P15266: Notas de leitura (768): “Jarama", por Albino Barbosa (Mário Beja Santos)