As
intermitências do amor no país sem pátria
por Luís Graça
[in: Amor(es), guerra(s), lugar(es): vol. I: amor(es). Lisboa: edição de autor, 2015, pp. 46-54. Edição limitada a 6 exemplares e já esgotada]
Para a minha amiga M... , nascida em Angola, e que hoje celebra a vida, ao fazer mais uma aninho!... A sua história de vida inspirou-me este poema, há 10 anos atrás... Como muitos outros portugueses e outras portuguesas, é sociologicamente uma "retornada"... É uma "amiga de Alex" a quem desejo muita saúde e longa vida, agora no país que não era a sua pátria... Não posso deixar de pensar também, neste dia, no luso-angolano Luaty Beirão, poeta e músico, que vai morrer, de fome e sobretudo de sede de justiça e de liberdade... (LG)
Na
bicha das cinco da tarde,
no para arranca do trabalho casa trabalho,
para não para,
arranca não arranca, empanca,
a vida,
a vida tão cara,
tão avara,
tão complicada às vezes,
à tarde,
uma mulher só na cidade,
formiguinha no meio do grande formigueiro humano,
ouves o sax do velho Luís Morais,
evocando as cores das impossíveis ilhas tropicais,
às cinco da tarde,
na
RDP África,
Lura, essa voz magnífica,
amor ca tem,
o
amor que não há,
o amor que não chega,
nem
por e-mail,
toupeira,
nas autoestradas das linhas de montagem
onde para arranca empanca a vida,
em viagem,
ah! que pena,
já
não se escrevem mais cartas de amor,
diz o locutor de serviço,
com selo e lacre,
envelope fechado
e
carimbo do correio,
entregue
pelo moleque lá no musseque,
para certificar a data-hora dos nossos desencontros,
aqui e agora,
ou
lá no Puto
(ah!,
Portugal, Portugal!),
a propósito de alguém que se foi embora
e de
quem não fizeste o luto,
o namorado que irá morrer na guerra colonial.
Tiram-te a pele,
o tutano,
e, de permeio, o amor,
o
doce engano,
e não há coração que aguente
o para arranca da bicha do trabalho casa trabalho,
a gigantesca centopeia de homens e mulheres sós na cidade,
na segunda circular,
no
IC 19,
na mesa a toalha barata,
aos
quadrados,
a sopa fria,
os
fugazes amores de verão,
os suores da meia estação,
veste, despe o robe,
e no outono a depressão,
e se há inferno é no inverno,
a massa fria polar
da solidão,
a caixa do correio cheia
por causa dessa coisa do spam,
desesperando por esperar
um toque de telemóvel,
um
msn,
um
sinal,
a campainha,
a cama,
as
insónias,
os
lençóis desfeitos,
à tarde, demasiado tarde para amar
no Monte Abraão,
uma mulher no para arranca empanca da vida,
nos anéis circulares da cidade sitiada,
a cidade anaconda,
a paixão de quarentena
aos
cinquentas e tais,
o corpo exangue,
o desejo, surfando na onda,
a doença do amor, letal,
proibido amar,
diz o semáforo, vermelho,
e não é amor, é dor,
é saudade, diz a morna,
que o B.Leza é morabeza,
faria
cem anos
se ele ainda hoje fosse vivo,
lá no Mindelo piquinino,
às cinco da tarde a casa vazia,
os filhos que partiram
mas deixaram cá as fotos, emolduradas,
de quando eram bebés,
e
eram louros,
lindos de morrer,
ternurentos,
e eram filhos de sua mãe,
ah! as intermitências da liberdade vigiada,
o guarda-mor da saúde, totalitário,
mantendo tenso o cordão sanitário
que estrangula a vida,
a pele esticada,
o
tutano chupado,
a merda da vida, fodida,
que o aumento da esperança média de vida te traz,
sobre os carris dos quilómetros
do teu têgêvê sem futuro,
as contas por pagar,
a casa hipotecada à banca,
os anos que faltam para a reforma,
o risco de cancro da mama,
a carreira amorosa congelada como a feijoada,
o multibanco do coração cor de rosa fora de serviço,
os cheques que vencem
antes
de a paixão esfriar e morrer,
ao virar da esquina da última rua do quarteirão,
no para arranca empanca da casa trabalho casa,
e o
Ribeiro Sanches,
físico-mor
do reino no exílio,
a dizer-te que não há cura para os males de amor
e o
passado é um país estranho,
e, se a paixão é doença,
não
sei o que fazes aqui,
parada na maldita picada,
minada,
que te leva do trabalho para casa
e da casa para o trabalho,
e um dia para a casa mortuária
e o
forno crematório,
o ninho da cegonha abandonado,
a casa vazia,
a sopa fria no prato,
o trabalho sem pica,
a vida sem sal,
sem o teu chabéu da Guiné de comer e chorar por mais,
stress, the kiss of death
or spice of life,
cada meco a falar sozinho
para o boneco,
no bar do fast food,
emparedado,
no comboio do Cacém,
no autocarro da Carris,
na CRIL, na CREL,
no
carro comprado a prestações,
o último amante, romântico ma non
troppo,
morto em Israel,
os amigos de Alex cada um para seu canto,
e o baile, combinado, dos anos sessenta
que ficou para as calendas gregas,
quando
a crise acabar,
se
algum dia acabar e o FMI deixar,
as flores no cabelo,
o Make Love Not War,
o All You Need is Love,
Vietname nunca mais,
black power, blá-blá…
em plena guerra fria a quente,
o terror do nuclear ao sol poente.
E a tua velha senhora no fim da estação
da
linha de Sintra da vida,
em casa à tua espera,
o Alzheimer devastador,
o avião que não mais faz escala na tua África perdida,
na tua infância em Nova Lisboa, hoje Huambo,
a morena de Angola que leva o chocalho
na canela,
a
tua adolescência de Luanda e as suas ilhas,
a restinga do Mussulo,
o meu tarrafe do Geba,
as balas tracejantes,
o teu Huambo sem meninos à volta da fogueira,
o comboio para Benguela metralhado,
os erros meus,
as doces ilusões,
terríveis as deceções,
as tuas negras emoções,
os amanhãs que não cantam mais,
o mundo que a gente queria mudar de repente,
assim com um toque de varinha mágica,
a crise de valores,
a profusão de cores,
o pilão dos teus cheiros e sabores,
e a muamba que já não é mesma muamba,
nem muito menos o óleo de palma, o fungi,
a cachupa do nosso contentamento,
as
mornas, as coladeras
aos fins de semana,
nos
anos oitenta,
a
rebeca do Travadinha, bem gemidinha,
a
mãe preta,
o muzonguê frio no fim da rebita,
de manhã ao acordar,
para
mais um dia, sem pica,
para afivelar a máscara
e
desempenhar os papéis
que os outros esperam de nós,
l’enfer, c’est les autres,
o inferno são os outros
mas
começa em nós...
Não te adianta, amiga, chorar
sobre
o leite de coco derramado,
ou dizer que fizeste tudo errado,
o amor da tua vida,
o curso,
o
emprego,
os filhos,
o
império por um fio,
o
país de retorno que não era o teu,
o divórcio,
o século ao dobrar do milénio,
a
liberdade avençada, ameaçada,
porque esta é a tua história,
mesmo
indevida,
este é o teu tempo e o teu lugar,
e até pode ter um final feliz,
a
tua telenovela das cinco
no para arranca empanca da vida,
só depende da autora do guião
e do tempo de reflexão que antecede a ação,
deixa o carro na garagem,
compra
um passe social,
vai a pé ou de metro,
mas não trepes pelas paredes,
atira a matar,
não de kalash mas de ternura,
direitinho
ao coração
que diz que não aguenta mais uma paixão
aos
cinquenta…
e
tal,
querida amiga, afinal,
fomos feitos para amar
e
desamar
(que
não é o mesmo que odiar),
esperar e desesperar,
viver e morrer,
e
não há volta a dar,
se há uma antídoto para a morte,
é o amor,
escrevia
o Saramago, o mal amado,
e eu acho que ele tinha razão,
mas o meu livro de culinária existencial
diz para lhe acrescentares
uma pitada de humor quê bê,
ao amor
que
segue dentro de momentos...
Se conseguires rir-te do amor,
como
o teu negão do Martinho da Vila,
estás
salva.
Eu quero dar
eu quero dar
e receber
e receber
fazer, fazer
me refazer fazendo amor
sem machucar seu coração
sem me envolver.
Carpe diem, amiga,
compra um bom vinho tinto,
encorpado,
do
Douro ou do Alto Alentejo,
e põe um cêdê,
ouve a tua Mariza Monte
ou grita à janela do Monte Abraão
Amor I Love You,
porque gritar faz bem,
gritar à janela a plenos pulmões
liberta a tua energia negativa,
esses miasmas,
esses
iões,
manda
à merda esses cabrões.
e depois senta-te,
no
sofá,
desliga a droga da televisão
e põe a máscara da tua serenidade,
respira
fundo,
dá tempo de antena a ti própria,
lambe as tuas próprias feridas,
que a vida não se delega,
nem
se congela,
nem se põe entre parênteses.
Ou então pinta um grafito
nas
muralhas alexandrinas da tua cidade.
Vi um há dias:
– Amor ? Amor ? … Amor és tu!
Só podia ser de uma adolescente,
apaixonada, doente,
como
tu,
no teu caso, eu sugeria
uma
pequena emenda, subtil:
– Amor ? Amor ?... Amor sou eu!
E ninguém morre, louco,
de
amores intermitentes,
no píncaro do verão da nossa raiva,
aos
quarenta graus centígrados,
com
as febres palúdicas,
com
as velhas e malditas sezões da ex-África nossa,
nossa,
da humanidade,
mal
amada, perdida, reencontrada,
no para
arranca empanca do trabalho para casa
e da
casa para o trabalho:
dizem que a vida é bela
e que, afinal,
somos nós...
que
damos cabo dela.
PS – Querida amiga de Alex,
minha
querida amiga,
sem
pátria,
no
país sem retorno,
e
agora sem império,
não sabia o que te dizer
com
princípio, meio e fim,
mas se isto fosse um poema,
era
recado,
uma canção ligeiramente desesperada,
a deixar no voice mail,
e seria uma coisa assim,
sem palavras a mais:
vais ver que a dor passa,
que, com esse coração, ainda aguentas,
e que já não é pecado,
o amor aos cinquentas...
e tais.
Alfragide, 15/12/2005. Última, enésima, revisão, 24/10/2015
In: GRAÇA. L. -
Amor(es), guerra(s), lugar(es): vol. I: amor(es). Lisboa: edição de
autor, 2015., pp. 46-54.
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Nota do editor: