sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16519: Manuscrito(s) (Luís Graça) (97): O 'prisioneiro' Malan Mané... a quem cedo, talvez demasiado cedo, deram um arma e uma bandeira e um hino


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Interrogatório a um prisioneiro, o guerrilheiro Malan Mané. Quem preside ao interrogatório é o slf mil at art Torcato Mendonça. A foto é do alf mil Cardoso, e chegou-nos à mão através do ex-fur mil Carlos Marques dos Santos, de Coimbra. "Pela disposição dos presentes é fácil imaginar a brutalidade do interrogatório. O militar das patilhas sou eu, na escrita, Torcato Mendonça".

Foto: © Carlos Marques dos Santos (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


O 'prisioneiro' Malan Mané

por Luís Graça (*)


Guiné. 
Bambadinca. 
3 de Setembro de 1969.


Malan Mané 
(**)
terás vinte anos, vinte luas ? 
Menos de vinte ? 
Talvez sejas da idade dos nossos soldados mais novos,
temos alguns com dezasseis ou dezassete. 
Não tenho qualquer jeito para adivinhar idades,
muito menos dos africanos. 
Mas tu próprio não saberias responder-me: 
aqui ninguém tem 
certidão de nascimento, 
cédula pessoal, 
bilhete de identidade
Os nossos, esses, sim,
têm (ou vão ter) caderneta militar...
Para a tropa, do recrutamento local, 
é-se escolhido a olhómetro: 
etnia,
altura, 
peso, 
massa muscular… 
A idade não conta,
é o régulo de Badora, quem põe e dispõe,
o poderoso Mamadu Bonco Sanhá,
tenente de 2ª linha...
Experiência de combate,
quase todos a têm, 
os fulas desta região,
de Badora e de Cossé…


Malan Mané: 
mandinga do regulado do Cuor, 
a norte de Bambadinca, para lá do Rio Geba,
podias ter sido nosso soldado, 
temos dois mandingas 
na nossa companhia,  a CCAÇ 12,
Malan Nanqui e Ussumane Sissé… 
Mas há mais outros dois Malan,
de etnia fula: 
Malan Baldé e Malan Jau…


Malan Mané: 

com que então
eras o roqueteiro do bigrupo de Mamadu Indjai, 
o terrível, 
o famigerado comandante de guerrilha,
também ele de etnia mandinga 
(ou talvez biafada ?)...
Não me sabes ou não me queres responder,
não importa,
à pergunta sobre o teu chefe.


Olhando,  para ti de alto a baixo,
sem sobranceria, com empatia,
vejo que vestes um dolmen, velho, 
de cor já irreconhecível, 
calças rotas no joelho…
Estás descalço…,
perdeste as chanatas ? 
Por outro lado, estás com ar deprimido, 
talvez mesmo aterrorizado,
não consigo ler as emoções do teu rosto impassível.
Tal como os nossos fulas, usas um amuleto,
contra a bala do tuga
e os demónios da floresta.
Tens razão, djubi, 
cair, vivo, nas mãos dos tugas 
pode ser pior desgraça 
do que morrer em combate, 
aos vinte anos, vinte luas
 – deves ter pensado tu muitas vezes no mato. 
Ou se calhar nunca pensaste nisso. 
Na guerra quem pensa na morte, 
morre mesmo,
dizem que dá azar.
Aliás, na guerra, não convém pensar muito.
É uma pergunta que tu não entendes 
ou a que não queres responder. 
Pelo menos, em público, 
neste cenário de circo, 
enjaulado como um animal selvagem, 
rodeado de homens, brancos e pretos... 
Os páras do BCP 12 / COP 7, esses, 
não tiveram grande dificuldade em desatar-te a língua:
bastou-lhes encostar a faca de mato à tua barriga. 
Foste apanhado com o teu RPG-2,
boquiaberto, 
aparvalhado,
com o helicanhão por cima da tua cabeça,  
numa clareira da mata do Rio Biesse, 
na região de Camará, 
lá para os lados de Candamã, 
quando o céu desabou em cima de ti.


Estás agora às ordens do comando do sector L1,
de mãos algemadas, 
metido numa espécie de gaiola de jardim zoológico. 
Espetáculo degradante, 
para mim, para alguns de nós
que nos consideramos uns gajos decentes…
A Convenção de Genebra
sobre os prisioneiros de guerra 
não se aplica aqui:
oficialmente o meu país não está em guerra,
com ninguém do planeta, 
com nenhum outro estado soberano. 
Oficialmente não há, 
nem pode haver, 
prisioneiros de guerra 
no meu país, 
do Minho a Timor, passando pela Guiné.
Oficialmente tu, Malan Mané,  não és
nem podes ser prisioneiro de guerra
nem tratado como tal.


Malan Mané,  és bandido, 
homem do mato,
fora da lei e da ordem,
turra. 
Fazes-me lembrar o moçambicano Gungunhana, 
passeado em gaiola por Lisboa, 
em 1896, 
como troféu de caça do Mouzinho de Albuquerque. 
Estás aqui mesmo ao lado 
das instalações do rancho, 
o refeitório dos praças,
entre a escola e o posto administrativo.


Há um correpio de gente que vem ver o turra (sic),
capturado pelos páras, 
na Op Nada Consta, em 18 de agosto de 1969, 
no subsector de Mansambo. 
Participámos na operação,
mas a nós, 
mais ao Pelotão de Caçadores Nativos 53
e aos camaradas de Mansambo 
os velhinhos da CART 2339,
coube-nos fazer o papel da tropa-macaca.
montando o cerco à alcateia de lobos
que aterroriza o chão fula,
desde o início da estação das chuvas.
O lobo alfa é o teu comandante, Mamadu Indjai: 
conseguiu escapar-nos, 
embora gravemente ferido.


Repara na plateia de mirones:
básicos, 
cozinheiros, 
padeiros, 
pintores, 
carpinteiros, 
fiéis de depósito de géneros, 
faxinas de bar, 
maqueiros, 
corneteiros, 
mecânicos, 
desempanadores, 
condutores auto, 
malta das daimlers,
escriturários, 
amanuenses, 
contabilistas, 
quarteleiros, 
sapadores, 
ajudantes de capelania, 
sacristães,
operadores de transmissões, 
radiolegrafistas, 
cabos cripto, 
municiadores e apontadores de metralhadora Browning, 
cipaios,
crianças e bajudas, 
caçadores e suas presas, 
todo o mundo tem hoje espetáculo de borla. 
Até os jagudis.
Até o chefe de posto.
Até a senhora professora.


Também ela é alvo
de curiosidade mórbida,
a única mulher branca que ainda reside,
com a sua mãe, 
dentro do perímetro do aquartelamento.
Espreita à janela da escola,
deve estar a olhar para ti 
como o bicho do mato 
que lhe apareceu nos pesadelos noturnos. 
Ou talvez não. 
Nunca lhe soube a idade nem o nome. 
Vejo-a agora de relance
e pergunto-me como terá reagido ela 
ao ataque ao aquartelamento em 28 de maio de 1969. 
Se calhar portou-se com mais dignidade 
do que alguns dos militares 
que deveriam saber defender a sua unidade
e este pedaço de terra verde e rubra
onde flutua a bandeira portuguesa.


Malan Mané, 
desculpa-me este devaneio,
este aparte:
não deves ter visto muitos brancos
na tua vida,
talvez o médico cubano do Fiofioli
e poucos mais...
Intriga-me a situação desta estranha personagem,
uma mulher branca, 
mestre escola, 
de meia idade,
ainda longe  da reforma, 
que insiste em viver aqui, 
no cú do mundo,
numa terra inóspita, 
em Bambadinca,
a "cova do lagarto",
como se diz na  língua mandinga. 
Não sei donde veio nem por que veio,
a senhora professora,
em tempo de guerra,
dizem-me que é caboverdiana,
o chefe de posto é de Cabo Verde, 
como manda a tradição. 
Desde, pelo menos, os tempos de Honório Pereira Barreto, 
dono de escravos,
tenente-coronel de Artilharia de segunda linha, 
governador de Bissau, 
de Cacheu 
e da província da Guiné, 
herói nacional,
comendador da Ordem de Cristo, 
cavaleiro da ordem da Torre e Espada.


Na realidade, a Guiné é (ou foi) 
uma subcolónia, 
uma colónia de Cabo Verde,
um arquipélago, como os Bijagós,
que tu não conheces
nem aonde irás algum dia. 
Missionários e missionárias, 
oriundos da Europa, 
nem sequer os há aqui. 
Já os houve, italianos,
mas foram expulsos,
também eram turras...
Samba Silate, deves ter ouvido falar,
tabanca balanta
em que o pessoal foi para o mato,
a tropa cercou Samba Silate,
missionário turra foi preso…
Comerciantes tugas, só dois, 
que eu conheça,
perfeitamente cafrealizados, 
como se dizia no vocabulário colonial e racista 
dos europeus do séc. XIX 
que demandavam estas paragens inóspitas.


Os dois comerciantes tugas 

vivem fora do perímetro do quartel. 
Um deles tem um bando de filhos, 
de mãe negra, mandinga como tu, 
de sangue azul, 
filha e neta de régulo...
Já me convidou, a mim e outros camaradas,
para lá ir comer 
o seu famoso chabéu de galinha
e beber uns bons uísques. 
Fala dos filhos com ternura, 
uma das raparigas está a estudar na Metrópole. 
Contou-nos a sua história:
veio da Murtosa, salvo erro, 
muito jovem ainda, 
aos dezassete anos. 
Compra mancarra, vende arroz. 
Procura cultivar boas relações com a tropa, 
mas eu acho-o demasiado afável.


Malan Mané: 
uns mandam-te uns piropos, 
outros dão-te um cigarro, 
e outros ainda oferecem-te  garrafas de cerveja, 
que tu recusas, delicadamente, 
como bom muçulmano que deves ser. 
Não entendes as provocações que te dirigem:
 Então, pá, quantos tugas 
já mataste com o teu RPG 2 ?


Há ordens, do comando do batalhão, 
os "homens grandes" dos tugas, 
para te tratar bem. 
Afinal tens-te mostrado colaborante
E, depois de uns meses na ilha das Galinhas,
irás tornar-te um bom guinéu
e um melhor português. 
E, para começar,
nada como um bom prato de bianda, 
arroz com mafé,
filetes de cavala,
comida gourmet.
Comes com dignidade,
a mão servindo de faca e garfo. 
No mato a vida é dura:
uma refeição por dia, 
um maço de cigarros russos por mês, 
farda e botas novas só para os chefes,
bajudas, manga di sabe, 
também só para os chefes,
o Mamadu Indjai, o Mário Mendes...
Todos iguais, diz o camarada Cabral, 
mas uns mais iguais do que outros, 
Malan Mané...


Tinhas começado a aprender o português 
há pouco tempo, 
na escola do mato,
lá no Fiofioli, 
foi isso que eu percebi.
Sabes algumas letras do alfabeto latino,
o suficiente para alinhar as cinco letrinhas do teu nome:
M-A-L-A-N.
Não sei se chegaste a aprender o Alcorão,
nas tabuinhas de algum cherno,
à noite, à volta da fogueira... 
Com a guerra, 
a tua gente, a tua tabanca, desintegrou-se. 
Muitos mandingas foram no mato, 
com os balantas e os biafadas. 
Só falas o crioulo e o teu dialeto mandinga 
O crioulo é a língua tanto do colonizador
como dos inimigos que o combatem.
Ninguém se entende nesta Babel, Malan, 
sem o crioulo,
que é uma genial criação dos homens, 
de diferentes grupos étnicos, 
que querem comunicar entre si,
brancos e pretos.
O exército dos tugas não faz, porém, qualquer esforço 
para nos ensinar o crioulo.
Mas o teu Amílcar Cabral
quer que tu aprendas o português.


Malan,  falas pouco, a custo. 

As tuas respostas às minhas perguntas são lacónicas, 
arrancadas a ferro 
e misturadas com um leve sorriso resignado. 
Eu bem procuro, em vão, 
transmitir-te sinais de simpatia e de compaixão.
Afinal, Malan, tu és um homem, não és um bicho.
Se bem percebi, 
foste no mato ainda djubi, 
talvez em 1962...
Se sim, não podes ter vinte anos, vinte luas... 
Não deves ter conhecido outra vida. 
Chefe da tabanca levara menino e mulher 
para o Morès 
com medo de avião dos tugas...
Foi a história que te contaram…
Mas no Morés ganhaste ainda mais medo dos aviões.
Mal cresceste,
deram-te uma semi-automática Simonov,
uma arma bem melhor que a nossa velha Mauser 
que está distribuída ao pessoal das tabancas, fulas, 
em autodefesa. 
Começaste como milícia, traduz o Abibo:
fazias segurança à tabanca 
e ao pessoal que ia lavrar a bolanha. 
Mais tarde, és promovido a combatente 
como municiador do RPG-2. 
Passarias depois a apontador,
substituindo o teu camarada que morreu. 
Há um ano atrás 
foste ferido por estilhaço de obus, 
no Xime, 
quando atacavas barco em Ponta Varela.


Não sabias quem era o novo homem grande de Bissau.

– E home grandi di bó ? – perguntei-te eu.
 Amílcar Cabral! – respondeste-me, de pronto, 
não sem uma certa expressão de orgulho 
(ou foi impressão minha,
se calhar foi impressão minha). 
Não, nunca o tinhas visto no mato,
só o conhecias de nome e de retrato,
no livro de leitura da 2ª classe. 
Comissário político falava dele 
e da "luta di partido africano".


O intérprete é o Abibo Jau, 
o bom gigante,  epilético, da CCAÇ 12, 
com o seu metro e noventa e tal de altura 
e os seus mais de 100 quilos de peso. 
Não sei quem lhe descobriu o seu talento 
para intérprete e... torcionário. 
É visível o medo que o Abibo te inspira,
pobre Malan Mané. 
Um fula e um mandinga, frente a frente, 
velhos ajustes de contas 
com a memória coletiva e a história de cada grupo 
a virem provavelmente ao de cima.
Malan,
fulas e mandingas já foram os donos destas terras,
cada um no seu tempo. 
Foram  os vencedores,
orgulhosos, 
de lutas contra os animistas,
os povos ribeirinhos.
Teixeira Pinto vingou os aristocráticos mandingas, 
ao subjugar os nómadas, místicos e guerreiros fulas. 
Em contrapartida, deixou a estes 
os papéis subalternos, 
mais sujos, 
da pacificação
e do aparelho de repressão... administrativo-militar. 
Os pobres dos fulas tornam-se os maus da fita, 
aos olhos dos outros povos da Guiné. 
Amílcar Cabral, dizem,  odeia-os.
Os mandingas e os balantas odeiam-os.
Aqui, pelo menos na zona leste, 
os mandingas e os balantas têm um ódio de estimação 
aos fulas. 
Um ódio que é recíproco. 
Não sei se concordas
mas sabes, Malan, 
o poder sempre soube dividir 
(e aterrorizar) para reinar.


Malan, olhando para ti, 
vejo que  és um bocado franzino e frágil, 
embora de estatura normal. 
És uma criança crescida na guerra... 
Não adianta, 
procuro tranquilizar-te,
mas vejo que já vêm  buscar-te
para mais interrogatórios. 
O interrogador  da CCS
é um famigerado sargento, chico
conhecido pelo seu cavalo marinho...  
Alguém tem de fazer o trabalho sujo, 
diz-me , a meu lado,
um homem das informações e operações,
E daqui vais para a PIDE de Bafatá, Malan.



Explorando o teu cansaço físico e psicológico, 
e talvez sob tortura ou ameaças
(que eu, a essa parte, não assisti...), 
acabarás por dar com a língua nos dentes, 
pobre Malan
arrancam-te mais algumas informações preciosas, 
comprometendo a segurança dos teus companheiros.
Para nós, CCAÇ 12,
e para as unidades de quadrícula,
vão ser mais dias infernais, 
de operações no mato. 


Confesso que foi minha primeira grande deceção 
em relação aos guerrilheiros do PAIGC. 
Ingenuamente, julgava-os 
da estatura  humanal, moral e até intelectual
de um 'Che' Guevara ou de um Amílcar Cabral.
Que pateta, que ingénuo, sou eu!, 
apanhado como um cão nesta maldita guerra!
Acreditava, romanticamente,
antes de embarcar,
que a escola de guerrilha do PAIGC 
tenha formado já grandes combatentes e comandantes. 
Mas tu, Malan Mané, não és muito diferente 
dos meus soldados e de mim próprio: 
fomos todos apanhados na rede como cães vadios, 
somos todos vítimas da História, 
nascemos no sítio e na data errados… 
Se eu fosse guinéu, 
muito provavelmente estaria a combater, 
com ou sem convicção, 
num dos dois lados da barricada.
Como tu, como os meus soldados,
sem convição,
e muito menos sem grande hipóteses 
de escolha.


Malan Mané:
se hoje ainda fores vivo, 
o que me parece de todo improvável,
terás 60 e tal anos. 
Há muito que ultrapassaste a esperança média de vida, 
à nascença, 
estimada para os homens 
da tua terra e da tua geração. 
Se alguém te descobrir, 
lá para os lados do Enxalé,
na tua enxerga de moribundo, 
ou nalguma outra tabanca do antigo regulado do Cuor, 
peço que te mandem um abraço meu,
de tuga para turra,
de soldado para soldado, 
de homem para homem.


A última vez que te vi, 
ias preso por uma corda, 
à guarda do Iero Jaló.
Foste gravemente ferido por um dilagrama nosso, 
um estúpido dilagrama nosso,
no assalto a um das tuas 'barracas',
como vocês chamavam aos vossos acampamentos,
perto da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês. 
Lembro-me muito bem,
foi na madrugada do dia 7 de setembro de 1969,
foi o meu batismo de fogo. 
O Iero Jaló morreu,
morreu a meu lado. 
Tu, também a meu lado, ficaste gravemente ferido 
e foste evacuado para Bissau. 
Mesmo que tenhas sobrevivido 
(e o Torcato Mendonça disse-me que sim,
que te viu dois meses depois, 
em Bissau,  no hospital militar)...
mesmo que tenhas chegado a ver a independência 
da tua terra, por que tanto lutaste, 
não sei o que te terá acontecido depois. 
Não sei como é que o teu partido,  
organizado à boa maneira marxista-leninista, 
terá lidado com o teu  caso e outros casos 
de colaboracionismo...
de antigos militantes e combatentes, 
feitos prisioneiros dos tugas,
e que, na prisão, deram à língua. 
Fraqueza humana ?
Colaboracionismo ? 
Delação ? 
Traição ?
Crime de lesa-pátria ?


Malan Mané, um homem não nasce herói,

um homem não feito para matar e morrer,
um homem não foi feito para ser 
aprisionado e torturado,
mas pode ter dignidade,
e eu posso testemunhar que tu 
tentaste resistir, 
tentaste ludibriar-nos. 
Não demos com o acampamento à primeira, 
em 25 de agosto de 1969. 
Tu alegaste que o capim estava muito alto 
e que te perderas. 
O tanas! 
Tu conhecias aquilo de cor e salteado, 
de olhos vendados,
tinhas lá estado há três meses atrás. 
Enfim, resististe enquanto pudeste, 
meu pobre diabo,
par dares tempo aos teus camaradas
para se porem na alheta. 
Arriscaste a vida, brincaste com o fogo...
Só lá voltaríamos, à toca do lobo, 
para um golpe de mão, 
no dia 7 de setembro,
o primeiro dia do resto da tua vida:
chamámos-lhe a Operação Pato Rufia.


Os espíritos da floresta 
(bons ou maus, quem saberá distingui-los ?) 
não te perdoaram. 
Se tu morreste, 
de morte natural, 
em consequência dos teus ferimentos de guerra, 
ou de morte matada, 
mais tarde,
sob as balas das Kalash raivosas dos vencedores,
dentro da lógica infernal dos movimentos revolucionários 
que acabam sempre por devorar os seus filhos, 
espero ao menos 
que o teu fantasma continue a vaguear, 
agora mais tranquilo, 
e definitivamente livre,
pela orla da bolanha do Poindon, 
com o teu RPG-2 ao ombro, 
ou a tua velha Simonov a tiracolo, 
transformadas em peças de museu,
ou brinquedos de madeira,
que nunca tiveste quando criança,
guardando desta vez os bons espíritos da terra, 
da bolanha, 
da floresta-galeria do Fiofioli,
e do selvagem e majestoso rio Corubal,
o único verdadeiro rio da Guiné, 
como nos dizia o teu homem grande,
Amílcar Cabral.
Para que eles, os bons irãs,
iluminem o presente e o futuro 
daquela terra 
onde um dia nasceste,
e foste djubi 
e puseram-te o nome de Malan Mané, 
e a quem cedo, 
talvez demasiado cedo, 
deram uma arma e uma bandeira e um hino. 


PS – Olha, ao Abibo Jau, da CCAÇ 12, 
não lhe perdoaram,
os teus antigos camaradas do PAIGC:
crivaram-no de balas
contra o poilão de Madina Colhido, em 1975.
E o teu antigo comandante, Mamadu Indjai,
já antes havia sido executado sumariamente,
no Boé, em 1973, por alta traição,
por ter as mãos sujas de sangue 
do pai da Pátria...
Tu terás tido melhor sorte, Malan Mané ?
Oxalá / Inshallah / Enxalé!

Versão original: 3/9/1969 | Última versão: 21/9/2016

______________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 15 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16491: Manuscrito(s) (Luís Graça) (96): Em Bambadinca, à noite, íamos ao nimas e sonhávamos com gajas boas...

(**) Sobre o Malan Mané, vd,  os postes:

28 de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7048: A minha CCAÇ 12 (7): Op Pato Rufia, 7 de Setembro de 1969: golpe de mão a um acampamento IN, perto da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, morte do Sold Iero Jaló, e ferimentos graves no prisioneiro-guia Malan Mané e no 1º Cabo António Braga Rodrigues Mateus (Luís Graça)

14 de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6984: (Ex)citações (97): Tinha 22 anos e ainda sonhava... quando levei o prisioneiro Malan Mané a jantar comigo no café do Sr. Regala, em Galomaro (Jorge Félix, ex-Alf Mil Pil Heli AL III, BA 12, Bissalanca, 1968/70)

8 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6953: Estórias avulsas (94): A captura do incaracterístico guerrilheiro Malan Mané, no decurso da Op Nada Consta (Salvador Nogueira)

7 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6948: A minha CCAÇ 12 (6): Agosto de 1969: As desventuras de Malan Mané e de Mamadu Indjai... (Luís Graça).

26 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2683: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (9): O Jorge Félix e o Prisioneiro

15 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - P753: O Nosso Livro de Visitas: Torcato Mendonça, ex-Alf Mil da CART 2339 - O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o

(...) O [Carlos] Marques dos Santos deu-me a conhecer este blogue. Há muito que a guerra acabou para mim, só que quase diariamente ela aparece…! Não resisti, fui à Net e tenho navegado pelo blogue.

Fui alferes miliciano na CART 2339 [Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69](1). Li certos eventos que os vivi: por exemplo, o Malan Mané (...)  estava vivo em Novembro de 1969 e recebia tratamento no Hospital Militar de Bissau. Abracei-o, causando espanto ao fuzo que o guardava. Só que eu estive na mata com o Malan Mané, soube que foi ferido (... Eu usava como arma, quando se justificava, o dilagrama)... (...)

Guiné 63/74 - P16518: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (9): "Rã Teimosa", a última Operação da CART 2520


Desembarque de tropas no Xime: a nossa conhecida LDG 105 (NRP Bombarda)[1]


1. Em mensagem do dia 19 de Setembro de 2016, o nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art da CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) enviou-nos esta memória sobre a última operação em que participou sua Unidade.


Recordações da CART 2520

9 - "Rã Teimosa", a última Operação da CART 2520

Ordens são ordens e são para cumprir, custe o que custar.

Como era normal, estas chegaram do BCAÇ 2852 sediado em Bambadinca. Estava planeada uma operação para o dia 16 de Maio de 1970, para a zona do Xime. Isto a escassos dias da CART 2520 sair desta zona operacional. Dentro de duas semanas a nossa Companhia partiria rumo a Quinhamel.
A ideia não caiu muito bem no seio das nossas tropas, nomeadamente entre os furriéis e logo se pensou pressionar o Capitão [mil António dos Santos] Maltez, através dos nossos alferes,  para nos "baldarmos" a esta operação.

Estava a fazer um ano que a CART 2520 tinha estabelecido a sua base no Xime. Foi muito elevada a nossa actividade operacional no mato, assim como muitas seguranças às embarcações que navegavam no rio Geba. Também se fizeram inúmeras colunas de serviço a Bambadinca e esporadicamente a Bafatá. As baixas tinham sido duas, jamais regressariam ao seio dos seus familiares. Por doença também foram vários os que já nos tinham deixado. Por baixa psicológica só no meu pelotão foram dois os elementos que não voltaram, sendo um deles o Furriel Alvarez, um mês depois de chegarmos ao Xime já estava evacuado para Bissau.

Chegada então a hora do início da operação e ainda de madrugada, lá vamos nós a caminho do mato com as devidas precauções e também com alguma ansiedade à mistura.

Assim que o sol começou a iluminar a mata, creio que na zona da Ponta Varela,  houve indicações para que ninguém saísse debaixo da copa das árvores e permanecesse no máximo silêncio possível para não denunciarmos a nossa presença.

Várias foram as vezes que fomos sobrevoados pelo DO que possivelmente seria comandado pelo Major [op /inf  Herberto Alfredo do Amaral] Sampaio,  do Gabinete de Operações de Bambadinca. Por diversas ocasiões junto ao rádio transmissor da nossa Companhia ouvi o operador lá do alto chamar por nós. Nesse dia o nosso emissor receptor "esteve avariado".

A operação decorreu sem incidentes e sem nenhum contacto com o inimigo.

De regresso à nossa base, recordei o dia anterior, quando entrámos no gabinete do nosso Capitão Maltez e as palavras que este nos dirigiu:
- Como já sabem, esta noite vamos sair para uma operação, mas o Alferes Lapa vai explicar-vos como vai ser - e abalou porta fora.

Esta seria a última operação da CART 2520 no Xime, a qual teve o nome de "Operação Rã Teimosa". Mas nós com a ousadia que tivemos em expor as nossas convicções contra todas as regras estabelecidas, através do Alferes Lapa, fomos mais teimosos que esta rã e nem os nossos soldados souberam o que se passou na tarde do dia anterior no gabinete do Capitão Maltez.

Entretanto chegou CART 2715 / BART 2917 que nos viria render. A CART 2520 saiu em duas fases, a primeira no dia 31 de Maio e a última a 9 de Junho de 1970.

Assim se iniciou uma segunda etapa da nossa Companhia em terras da Guiné, que foi bem mais tranquila, como que uma espécie de um merecido prémio.

E aqui vai um grande abraço para todos os elementos desta Tabanca Grande, em especial para o amigo Luís Graça e camaradas da CCAÇ 12 (CCAÇ 2590).

José Nascimento



No Bar de Sargentos


Com o Furriel Joaquim [João dos Santos] Pina,  do 1º Gr Comb da CCAÇ 12, algarvio como eu, antes de uma Operação

Texto, fotos e legendas : © José Nascimento (2016). Todos os direitos reservados


2. Comentário do editor:

Eis as oito linhas que foram dedicadas à "Op Rã Teimosa", na História da Unidade: BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70, cap II, p. 152:





Recorde-se que o BCAÇ 2852 também acabou nesse mês de maio a sua comissão de serviço. Em 29 e 31 de maio de 1970, chegava o BART 2917, começando a sobreposição. Em 8/6/1970, o BCAÇ 2852 deixou o setor L1, partindo para Bissau onde aguardou transporte para a metrópole.

Três dias antes da Op Rã Teimosa,  em 14 de maio, às 17h00, o IN tinha atacado, com canhão s/r, LGFog e armas automáticas, em Ponta Varela (XIME 7B5-45), na margem esquerda do Rio Geba,  o barco (civil) "Bihe", causando  1 morto, 1 ferido grave, 3 desaparecidos, todos civis, e danos materiais.
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Notas do editor:

[1] - Sobre a LDG Bombarda vd. postes de Manuel Lema Santos de:

22 de Dezembro de 2016 > Reserva Naval nas LDG - Lanchas de Desembarque Grandes (5)
e
24 de Dezembro de 2016 > Ainda a LDG “Bombarda” - LDG 201

Último poste da série de 17 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15870: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (8): Quem não se lembra do antigo ditado que diz: "em tempo de guerra não se limpam armas"

Guiné 63/74 - P16517: Notas de leitura (882): “Cabo Verde e Guiné-Bissau, As Relações entre a Sociedade Civil e o Estado”, por Ricardino Jacinto Dumas Teixeira, Editora UFPE, Recife, 2015 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,
Este sociólogo guineense, professor no Brasil, com pergaminhos da sociologia política de há muito que estuda o papel da sociedade civil na Guiné-Bissau e decidiu para tema do seu doutoramento estudar as relações entre a sociedade civil e o Estado entre os dois países, tendo como balizas o arranque do multipartidarismo e até 2008. Dá-nos um quadro das conceções teóricas que modelam a transição de políticas autoritárias para liberais, analisa os pontos de convergência e divergência gerados pela história na afirmação dos dois Estados, procede a trabalho de campo junto das célula da sociedade civil, confirma a identidade de duas culturas e um processo de desenvolvimento em que há inúmeras aspirações afins, desde o combate ao desemprego e à pobreza até à incessante procura de independência face ao apetites dos partidos políticos.
De leitura obrigatória, para quem queira conhecer estas duas sociedades civis em movimento.

Um abraço do
Mário


Cabo Verde e Guiné-Bissau: Sociedade Civil e Estado

Beja Santos

“Cabo Verde e Guiné-Bissau, As Relações entre a Sociedade Civil e o Estado”, por Ricardino Jacinto Dumas Teixeira, Editora UFPE, Recife, 2015, é o produto de uma tese de doutoramento de um professor universitário guineense que ganhou o seu título na Universidade Federal de Pernambuco. A sua investigação emerge na trajetória distinta e num relacionamento comum entre dois países que têm um denso cruzamento histórico. Por força de uma conceção ideológica montada por Amílcar Cabral, o termo unidade utilizado exaustivamente na luta armada pela libertação nacional apelava para dois países que devido a uma história comum deviam caminhar de braço dado, da guerrilha à fusão do Estado. Esse sonho desmantelou-se em 1980, os dois países mantiveram-se numa linha de partido-Estado até que o mundo deixou de ser bipolar, o comunismo afundou-se e as correntes liberais pareciam tomar conta de tudo. Da década de 1980 para a década de 1990 a estes países africanos acenou-se com a democracia multipartidária e a economia de mercado. Com as transformações políticas sociais e económicas, entrou-se numa era de democracia representativa e participativa, com grandes altos e baixos. É nessa fase que se dá um processo político distinto entre Cabo Verde, insular, sociedade crioula, com elevada diáspora, onde o sentimento de cabo-verdianidade é poderoso e a Guiné onde se acena com o fantasma militar, onde se manifestou o caudilhismo, a guerra civil e a permanente instabilidade política. As sociedades civis dos dois países têm recortes distintos mas também posições afins. Tratando-se de uma investigação doutoral, Ricardino Teixeira inicia a sua investigação com quadro apurado de contornos teóricos-metodológicos e a análise comparada das relações entre a sociedade civil e o Estado tendo como referência o processo democrático em construção nos dois países entre 1994 e 2008, no fundo o investigador procura o grande ecrã da ciência política para enquadrar a democracia representativa, o triunfo nos princípios liberais e como a sociedade civil e o Estado se vão confrontar na vida quotidiana.

O segundo capítulo desvela os dois países em termos de história e organização, de sociedade e cultura. Cabo Verde foi descoberto, povoado por brancos e populações da Senegâmbia, a Guiné teve vida pré-colonial, a ocupação portuguesa foi radicalmente diferente da criação de uma sociedade crioula, encontraram-se na miscigenação e no comércio negreiro, em Cabo Verde expandiu-se o catolicismo, uma forma de organização agrária decalcada de modelos europeus, todas as localidades possuem nomes portugueses; a Guiné caraterizou-se por uma presença no Litoral, montaram-se praças e presídios, pagava-se aos régulos uma tributação para ocupar território e quando se avançou para uma ocupação efetiva contou-se sobretudo com o cabo-verdiano, culto e disciplinado, motivado para os negócios, na segunda metade do século XIX lançaram-se na criação de colónias agrícolas, nomeadamente no Sul. Ricardino Teixeira recorda a resistência oferecida pelas etnias guineenses contra a presença portuguesa, sublevações permanentes, só com o capitão João Teixeira Pinto, a partir de 1913, com campanhas de pacificação, um hábil aproveitamento de tropas auxiliares conjuntamente com mercenários de outras regiões é que se conseguiu a capitulação dos revoltosos, entrou-se numa fase de interiorização da presença colonial a despeito de as comunidades rurais terem mantido um elevado grau de autonomia.

Como é óbvio, Ricardino Teixeira vai traçar os aspetos relevantes da tese da unidade Guiné-Cabo Verde forjada por Amílcar Cabral. A primeira mão-de-obra militar foi oferecida por jovens guineenses que terão um papel determinante nas sublevações a partir de 1962, no Sul da Guiné, esses homens estarão à frente das forças sublevadas em toda a região Sul, no Oio e no Corubal, partir de 1963. Mobiliza-se o apoio popular guineense e os quadros cabo-verdianos vão se espalhar pelas zonas de luta, Conacri, Dakar e Ziguinchor. Iludiram-se contenciosos seculares entre guineenses e cabo-verdianos, Amílcar Cabral será assassinado fruto dessas discórdias. O golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 clarifica a profunda dissensão e o fim da fórmula de unidade Guiné-Cabo Verde. Perante dois países tão distintos, no ADN, na espiritualidade, no conceito identitário, Ricardino Teixeira vai investigar as relações entre a sociedade civil e o Estado, num momento em que se enveredou pelo reconhecimento e se legitimou a democracia representativa e participativa.

Foi este o trabalho de campo que ele desenvolveu, junto de organizações cabo-verdianas e guineenses. No final, não subsistem dúvidas que há pontos de aproximação, embora, em muitíssimos casos, o quadro de aspirações é radicalmente distinto. Cabo Verde entrou no multipartidarismo sem dramas nem golpes militares, o PAICV deu lugar ao Movimento para a Democracia, aceitaram-se as regras do jogo. Os inquéritos destacam inúmeras contradições no que é a fragilidade da sociedade civil, o seu grau de dependência dos humores dos poderes do dia e, inevitavelmente, da cooperação e dos apoios da diáspora. As perceções do Estado na Guiné-Bissau recordam os abusos de poder, o poder real na mão dos militares, a pulverização partidária e a ascensão da etnia Balanta, a especificidade dos grupos de mandjuandades, uma mobilização de solidariedade e cultura. A perceção da sociedade civil em Cabo Verde tem outros matizes, basta pensar nas manifestações culturais da Tabanka, do Batuko e do Funana, tem demorado a que as organizações da sociedade civil se dissociem dos interesses partidários em contenda, o PAICV e o MpD.

E afinidades? É o combate à pobreza, a procura da satisfação das necessidades elementares da população, o uso do microcrédito num esforço de criar empresas que contrariem a elevada percentagem de desemprego; há a promoção dos valores ambientais, as lutas pela igualdade de género, a valorização da expressão musical, os direitos humanos, a procura de participação de jovens e mulheres nas decisões políticas.

E assim chegamos às relações entre a sociedade civil e o Estado, os inquiridos não se cansam de relevar a falta de recursos, a pressão dos partidos políticos, as sequelas do partido-Estado, o desapontamento face ao oportunismo político dos partidos no uso da sociedade civil. O autor sumula estas queixas dizendo “observa-se em todas as colocações que a defesa da democracia e criação de novos espaços públicos, voltados para a revitalização das organizações da sociedade civil é colocada como uma falta na relação com o Estado”. Vários inquiridos na Guiné-Bissau lembram que este relacionamento estará sempre profundamente inquinado enquanto não houver reforma do Estado. Já nas considerações finais, o autor lembra que há aproximações entre as organizações de massas e grupos de base dos dois países no que tange ao aumento de desigualdades, às questões de género, ao desemprego, aos riscos ambientais e ao imperativo de que as organizações e grupos da sociedade civil devem permanecer equidistantes dos partidos. O investigador deixa diferentes questões em aberto que cabe aos outros responder, como é o caso das necessidades locais e como elas são perspetivadas pelas agências de financiamento e pelos grandes centros de cooperação internacional.

Temos aqui uma estimulante base de trabalho para conhecer na atualidade o grau de mobilização nas relações entre a sociedade civil e o Estado nos dois países, geograficamente próximos e com identidades tão distintas.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16503: Notas de leitura (881): “Memórias de um Esquecido”, por José Cerqueira Leiras, edição de autor, 2003 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P16516: Parabéns a você (1138): Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16 (Guiné, 1964/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 21 de Setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16507: Parabéns a você (1137): Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Artilharia Reformado (Guiné, 1963/65; 1968/70 e 1972/73); Maria Teresa Almeida, Amiga Grã-Tabanqueira da Liga dos Combatentes e Raul Albino, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2402 (Guiné, 1968/70)

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16515: Convívios (770): Encontro do pessoal da CCAÇ 2797 e Pel Canh S/R 2199 (Cufar, 1970/72), dia 8 de Outubro de 2016, no Porto (Luís de Sousa)

1. O nosso Camarada Luís de Sousa (ex-Soldado TRMS da CCAÇ 2797, Cufar, 1970-72), enviou-nos uma mensagem datada de hoje, 22 de Setembro de 2016, anunciando o próximo encontro do pessoal da sua Companhia e do Pel Canh SR 2199:

Boa tarde caro Vinhal,
Como vem sendo hábito por esta altura, realiza-se o convívio anual da CCaç 2797 e do Pelotão de Canhões S/R 2199 que passaram por Cufar entre 1970/72.

Desta vez será no Porto no dia 8 de outubro, sábado (aliás é sempre ao sábado, o que me leva a pensar que será uma singela homenagem à Sábado, a bajuda com o mais formoso bum-bum de Cufar, à data).

A concentração será no Jardim de Arca de Água, por volta das 10 horas da manhã, e vai haver bianda para todos no antigo Quartel de Transmissões à hora habitual.

A organização é do Domingos Oliveira Cardoso com contacto: 960 206 897.

Obrigado e saudações.
Luís de Sousa
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de Setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16513: Convívios (769): XV Encontro dos ex-militares do HM 241 dos anos de 1966 a 1972, dia 8 de Outubro de 2016 em Espinho (Manuel Freitas)

Guiné 63/74 - P16514: Tabanca Grande (496): José Luís da Silva Gonçalves, ex-Soldado Radiotelegrafista da 2.ª CCAV/BCAV 8320/73 (Olossato, 1974), 729.º Grã-Tabanqueiro

1. Mensagem do nosso camarada e novo amigo tertuliano, José Luís da Silva Gonçalves (ex-Soldado Radiotelegrafista da 2.ª CCAV/BCAV 8320/73, Olossato, 1974), com data de 12 de Setembro de 2016:

Boa tarde.

Como disse na minha comunicação anterior, quando confirmei as afirmações do Nelson Cerveira[1], sobre os acontecimentos decorridos aquando a nossa partida da Guiné-Bissau em Outubro de 74, encontrei o Blogue por acidente, e quis logo inscrever-me nele. Não sei se fiquei inscrito mas pelo menos tenho recebido os vossos mails.

Prometi que mandaria imagens desse embarque no Niassa e vou tentar enviá-las em anexo assim como as minhas actual e na altura.

Pertenci à 2.ª Companhia do BCAV 8320/73 e era Operador Rádiotelegrafista.

Não sei o que é preciso mais para poder colaborar, mas de qualquer forma aqui deixo as minhas saudações, para todos os ex combatentes da Guiné-Bissau.

José Luís da Silva Gonçalves

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Nota do editor:

[1] - Meus caros, Acidentalmente, quando procurava os brasões, do BCAV8320/73, vim dar com este blogue, e aproveito para confirmar as declarações do Nelson Cerveira, na sua narrativa, sobre o 25 de Abril de 74 e o nosso embarque no Niassa, de regresso. Tenho algumas fotos desse embarque das lanchas para o navio, que se me ensinarem como se faz terei todo o gosto em enviar. Eu era operador rádio telegrafista na 2ª companhia que esteve estacionada no Olossato. Saudações para todos e disponham sempre.

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Centro de Transmissões do Olossato



A bordo das LDG que nos levaram até ao Niassa - Dia de muito nevoeiro

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2. Comentário do editor de serviço:

Caro José Luís
Estás apresentado à tertúlia.
Foste dos felizardos que foram para a Guiné já em tempo de paz. A vossa missão foi praticamente entregar parte do espólio do Império, destino há muito traçado a um Portugal, cujo regime já apodrecido, fazia prever. Diga-se o que se disser, o modo como se procedeu à descolonização não foi o melhor, mas manter ou acabar a guerra competiria ao poder político. Como este não não resolveu a situação, foram os militares que tiveram de tomar em ombros essa missão.
Cumpriu-se o destino, mas de modo atabalhoado, com todos os inconvenientes para ambos os lados.

Regressaste em Outubro já de um país independente, a Guiné-Bissau, com a missão cumprida e sem baixas como se queria.

Gostava que nos contasses pormenores desses tempo, lá no Oio, por onde também passei nos idos anos de 1970/71/72, e também já em Bissau enquanto faziam todos os preparativos para a retirada final. Como era o clima em relação às nossas tropas, tanto da parte dos civis como dos militares do PAIGC, e qual a perspectiva dos nossos camaradas guineenses para os tempos de paz que se avizinhavam?
Tens muito para nos contar.

Como não podia deixar de ser, ao terminar, deixo-te um abraço de boas-vindas em nome da tertúlia e dos editores.

Ao teu dispor o camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16502: Tabanca Grande (495): Jorge Ferreira, ex-alf mil, 3ª CCAÇ (Bolama, Nova Lamego e Buruntuma, 1961/63), nosso grã-tabanqueiro nº 728...

Guiné 63/74 - P16513: Convívios (769): XV Encontro dos ex-militares do HM 241 dos anos de 1966 a 1972, dia 8 de Outubro de 2016 em Espinho (Manuel Freitas)

1. Em mensagem do dia 2 de Setembro de 2016, o nosso camarada Manuel Freitas (ex-1.º Cabo Escriturário do HM 241, Bissau, 1968/70), dá notícia do próximo Encontro Anual do Pessoal daquele Hospital.

Bom dia Luís Graça,
Pedia-te o favor, a exemplo dos anos anteriores, que publicasses no blogue este anuncio.
Obrigado pela atenção.

Um abraço
Manuel Freitas





DIA 08 OUTUBRO DE 2016
ESPINHO 

XV Convívio dos ex-militares do HM 241 dos anos de 1966 a 1972


Contacto: Manuel Freitas - tlm. 964 498 832 
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16479: Convívios (768): XXII Encontro do pessoal da 1.ª CART/BART 6521/72 (Pelundo e Jemberem, 1972/74), a levar a efeito no próximo dia 25 de Setembro de 2016 em Seia (António Faneco, ex-1.º Cabo)

Guiné 63/74 - P16512: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XIII Parte: Cap VII: Guerra I: 15 de maio de 1965, op Razia: a mata de Cufar Nalu agora é nossa!... Viva a merda da guerra!...


Lisboa > 1970 > O nosso camarada João Sacoto (ex-Alf Mil da CCAÇ 617/BCAÇ 619,Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66), com o João Bacar Jaló, cap comando graduado,  comandante da 1ª CCmds Africanos. João Sacôto, que foi comandante da TAP; agora reformado, é membro da nossa Tabanca Grande desde 20/11/2011.

Foto: © João Sacôto  (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



[Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. Foto à abaixo à esquerda, março de 2016, Oitavos, Guincho, Cascais]




Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XIII Parte > Cap VII - Guerra 1: 15 de maio de 1965, op Razia: a mata de Cufar Nalu agora é nossa!... Viva a merda da guerra!... (pp. 43-46)

por Mário Vicente 

 Sinopse:


(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),

(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra"):

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix)  início da atividdae, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia).



Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > VII - Guerra 1:  15 de maio de 1965, op Razia: a mata de Cufar Nalu agora é nossa!... Viva a merda da guerra!... (pp. 43-46)

15 de Maio [de 1965]. Há que efectuar a denominada "[op] Razia”. Reforçada com a milícia do João Bacar Jaló em cooperação com as CCAÇ 728 e CCAÇ 764, a CCAÇ 763 [, emblema à direita,] lança-se na operação que tem como objectivo a conquista e destruição do mítico acampamento do PAIGC na mata de Cufar Nalu.

Não seria obra fácil! Forças especiais tinham passado por Cufar Nalu  [, a norte de Cufar, vd. carta de Bedanda] e nada tinham encontrado. Só que o aquartelamento de Cufar continuava a ser flagelado várias vezes ao dia. As teorias de Nino insufladas aos seus homens, tínhamos pleno conhecimento, eram teorizadas em ideias dos grandes pensadores revolucionários do marxismo, e que apenas uma ínfima parte ou quase a totalidade dos soldados Portugueses não tinha conhecimento, porque para ali foram mandados para cumprir um dever. Na mentalidade do guerrilheiro já existia toda uma endoutrinação revolucionária baseada no marxismo, contra o imperialismo e seus apoiantes.

Enquanto o soldado português cumpria um dever perante a Pátria, mas sujeito a diversas pressões de índole psíquica individual e externa, o guerrilheiro do PAIGC em qualquer lugar que a morte o surpreendesse, seria um grito que procuraria ser ouvido por outro revolucionário que empunharia a sua arma. Eram estas as condições, desconhecidas pela maioria. Sem politica, a CCAÇ 763 ia entrar na mata de Cufar Nalu.

Ocupando posições, a CCAÇ 764 do lado norte na estrada para Bedanda a nascente barrando o caminho de Boche Mende fica a CCAÇ 728, na orla a sul da mata a CCAÇ. 763, inicia a batida tendo como eixo o caminho que conduz à ex-tabanca de Cufar Nalu, com o 3º. Grupo de Combate em primeiro escalão, seguido do 2º. Grupo intercalando com o grupo de Comando e o João Bacar Jaló com o seu pessoal e o 1º. Grupo cobrindo a retaguarda, a CCAÇ [763] começa a progressão lenta e atentamente. 

Passados uns momentos pára tudo e ouvem-se vozes na mata vindo em direcção ao Grupo de Combate que seguia em primeiro escalão. Aos segundos de silêncio sucedem-se dois a três minutos de forte tiroteio. A CCAÇ 763 tinha sido desflorada para a guerra. No contacto com o IN é abatido um guerrilheiro e capturada uma pistola metralhadora de 9mm M25 com carregador e munições de origem checa. 

A partir deste momento o contacto é contínuo. O crepitar das armas dentro da mata é ensurdecedor, é difícil contactar com o pessoal mas devagar vamos progredindo. Vagabundo sofre aqui uma grande desilusão, a sua secção homens escolhidos a dedo para acompanharem o Ranger, alguns podem já ser despachados: o Tirante, herói do arame farpado, vendedor de jornais e briguento de profissão sendo o terror do aquartelamento, atira com a G3 fora e tenta esconder-se debaixo dos camaradas; o Velhinho refractário, não se consegue mexer e parece uma bola de sebo ao lume a escorrer gordura; o Matacanha apesar da escola do Forte da Graça em Elvas, só tinha habilidade para a faca; o Maçarico coitado derivado ao tamanho, apenas poderia ser aproveitado para mula de carga. Os restantes são dos bons e só há que ter em atenção o homem da bazuca, pois assim que começa a fogachada tem de se segurar até acalmar, não vá atirar com o cano pró lado e ser herói fugindo para a frente, ou ser cobarde fugindo para trás, tudo era possível nos primeiros tiros. 

Depois desta primeira experiência, ficará determinado que o Velhinho vai para a cozinha descascar batatas, bela troca! Veio o Orlando, Vagabundo ganhou aqui um ou o melhor soldado da sua secção; o Matacanha passou a ajudante do padeiro para amassar a farinha, e o Tirante coitado, ficará a aguardar o regresso à Metrópole para no Júlio de Matos dele tentarem fazer qualquer coisa, pois nunca mais deixou de estar embriagado, e, agora com o focinho sempre partido pois toda a gente lhe malha, de herói passou a bombo da festa.


Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1961) (Escala de1/50 mil) > Posição relativa de I Cufar, Cufar Nalu, Rio Cumbijã, Boche Mende e Bedanda

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)


Deixemos as tristezas e voltemos à malta que aos poucos vai progredindo na mata em contacto contínuo. Tendo como referência o estreito carreiro, pois já nos apercebemos pelos envolvimentos e forma de nos flagelar que nos querem retirar dessa orientação que não há dúvidas nos levará ao local desejado. Progredindo em contacto permanente, a meio da tarde certificamo-nos, estarmos muito próximo do acampamento pelo que se pede o apoio da artilharia e da Força Aérea com as coordenadas precisas.

Agora sim, com os rebentamentos das granadas dos obuses e os roquetes dos T6 parece estarmos no dia do juízo final, ecoando por toda a mata mais parece tornado descarregando sobre a selva. Os elementos estão em guerra com a Natureza. Verificamos que o efeito prático da artilharia e dos T6 será mais psicológico do que físico, pois agora já se apercebe a situação do acampamento, protegido por altos poilões, árvores enormíssimas cujas copas dificultam a penetração das granadas e que rebentam por cima. O acesso ao acampamento é extremamente difícil! A vegetação de natureza espinhosa e densa, dificulta extremamente a progressão e o pequeno carreiro, tornou-se agora num enfiamento apenas arbustivo que deve ir dar a algo nada agradável.

A noite começa a aproximar-se e aqui ela cai rapidamente, o assalto ao acampamento no anoitecer pode ser um suicídio. Há ordens de tomar posições para pernoitar e se efectuar o assalto de madrugada. A CCAÇ dispõe-se em meia lua em frente do acampamento. Vagabundo distribui o seu pessoal para a pernoita e como o Maçarico ainda não está bem entrosado, manda-o preparar um abrigo para os dois por detrás de uma enorme mafumeira, árvore com três a quatro metros de diâmetro. Pobre do Maçarico! Olhando para o monstro da árvore chama a atenção para Vagabundo:
– Mas. meu furriel, esta árvore está bichosa!

Nem uma granada de obus rebentava aquela fortaleza. Coitado, por causa disto lá era gozado de quando em vez com “a árvore bichosa”.

Durante a noite ouvem-se sons de movimentação no acampamento e vozes sussurrantes. Será que estarão a preparar a defesa até às últimas consequências? Errado! Pela madrugada as bazucas em força, fazem um chuveiro de granadas. A CCAÇ  apoiada pela milícia do João Bacar lança um ataque cerrado ao acampamento que se encontrava deserto, pois durante a noite os guerrilheiros tinham abandonado as suas posições. Montada a segurança, não fosse numa variação sermos surpreendidos com algum ataque IN, procedeu-se à busca e destruição de instalações e abrigos alguns cobertos de chapas de zinco que possivelmente seriam da fábrica de descasque de arroz.

[Foto à esquerda: João Bacar Jaló, cap comando graduado, c. 1970]


Para além do guerrilheiro abatido no carreiro, presume-se que tenham havido mais baixas por parte do PAIGC, dadas as poças de sangue e material ensanguentado encontrado nos abrigos e espaldares. Verificamos que de facto para além de extraordinariamente bem camuflado não seria um acampamento mas sim uma fortaleza. Ficou sempre no ar, a forma como se teriam retirado os guerrilheiros, sem serem detectados pelas forças em acção. 

Um Grupo de Combate reforçado da 4ª CCAÇ, companhia de nativos de Bedanda, pernoitou no ex-acampamento, para evitar a sua reocupação. Mas não voltará a existir mais nada, por agora a mata de Cufar Nalu fica da CCAÇ 763 e o dia 15 de Maio será o dia oficial da Companhia.

Pelas mesas dos cafés de Bissau, os homens de Cufar foram cantados com grande espanto, pois havia pouco tempo os comandos de Brá tinham percorrido toda a mata e nada tinham encontrado. 

Está começada a guerra. Agora taco a taco, vamo-nos perseguir uns aos outros, ferindo ou matando conforme cada um puder. Viva a “Merda da Guerra”! Quem chegar em condições ao seu pedaço de terra, que tenha a coragem de contar tudo o que aqui se passa e sofre!... Vagabundo durante anos pensou muito nos outros de tal maneira que se esqueceu de si. Não sabe para onde vai nem o que faz, só sabe que nada sabe.

Abandonam o conquistado (abandonado) acampamento, seguindo o trilho por onde se teria inteligentemente escapulido a malta do PAIGC, num zig-zag de carreiro que mais parecia labirinto, onde por vezes as curvas em redondo voltam ao mesmo sítio, técnica de visualização à distância, sentindo-se a perfeita arte da guerrilha.

Chegamos à orla da mata, mesmo juntinho ao rio Manterunga [, afluente do Rio Cumbijã], precisamente onde o IN fazia a sua carreira de tiro para o nosso aquartelamento. Metemos pela bolanha e rumamos a casa. Cansados, suados, com a fome e sede já a apertar, agora que o sol já alto queimava e do cantil já não escorria gota de água, Vagabundo, seguindo o conselho do tenente Obstetra, o nosso amigo médico, meteu a mão ao bolso, sacou o frasquinho de whisky e levando-o à boca, bochechou, deitando fora o líquido que deixou a boca grossa, mas atenuou o sentir da sede. Há coisas que parecem loucas, mas dão resultado e o furriel mais uma vez confirmou sentindo a pressão do desejo da água mais aliviado. O pensamento, mais uma vez desprendeu-se e voou, deixando de sentir o esforço das pernas a tirarem os pés da lama num “ploff, ploff” de água e lama saltando pela lingueta das botas de lona.
Gostaria tanto que as coisas fossem diferentes!... Não se sentia bem ali e recordava a mulher que o faz sentir perdido.

N
ão pára de raciocinar se poderia ter feito mais alguma coisa!?...Eis-me aqui em confusão deguerra com a convicção que é muito fácil ser corajoso, quando não se tem nada a perder, mas não posso arrastá-la comigo nesta lama… Também não quero morrer e não a ver. Nada faz sentido ao estar longe e não estar com ela! Não quero acordar e não saber se a voltarei a ver!... Estou farto de saudades dela e tão pouco sei se ela me recorda. Totalmente dilacerado, quero que ela me una de novo! Psíquica situação esta adoração por essa mulher. É doce sentir nos lábios o acre sabor dos seus beijos que nunca tive…

Como pode um homem ter tanto medo da rejeição daquilo que mais deseja, ficando inerte, imolando-se mentalmente só com medo de ter pela frente a hipótese do não?!... Cobardia? Defesa de não ter força para a rejeição? Será?... A dúvida do que é, onde está! Mais grave: que símbolo sou eu no seu eu!?...

Contornando a mata de Cufar Novo, agora levantando poeira leve e fina dos arrastantes pés, pisando terra de capim queimado, a cabeça da coluna está próxima do arame farpado e da entrada Porta de Armas virada para a pista, antigo portão da quinta do sr. Camacho.

Os que ficaram estão concentrados à entrada. Cerqueira com o seu grupo em primeiro escalão conforme saíram são os primeiros a chegar, esperam e não entram. Carlos, Paolo e João serão os primeiros a fazê-lo. Nesse momento a malta do Almeida vira as G3 para o ar e saem rajadas de vitória gravando nos céus de que o dia 15 de Maio será para todo o sempre um símbolo para terras de Cufar e da CCAÇ 763.

Timidamente primeiro, depois em forte salva, olhos humedecidos, os que tinham ficado aplaudem os seus companheiros e trocam-se sem palavras apertados e solidários abraços. A mata de Cufar Nalu era nossa.

(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16362: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XII Parte: Cap VII: Guerra I: O nosso primeiro prisioneiro, o Calaboço

Guiné 63/74 - P16511: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (35): A honra não tem preço

Um pátio da Tabanca dos Melros
Foto: © Jorge Portojo


1. Em mensagem do dia 18 de Setembro de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta história ouvida por si na Tabanca dos Melros, e aqui contada com o seu inconfundível estilo literário, para integrar mais uma das boas memórias da sua guerra:


Memórias boas da minha guerra

34 - A honra não tem preço

Ao segundo Sábado de cada mês, há um almoço convívio de ex-combatentes, na Quinta Choupal dos Melros. O primeiro convívio efectuou-se em Dezembro de 2009. A ideia deste evento ficou registada com a criação do nome da “Tabanca dos Melros”. Está situada num local lindíssimo, composto por vários pátios, telheiros e salões, aproveitados de uma grande casa de lavoura, enriquecido de alfaias, móveis antigos, quadros, bustos e outras obras de arte. É dono desta propriedade e do bom gosto do seu recheio, o “Melro” Gil, ex-Cmdt Piloto Aviador.

 
Convívio à sombra da ramada, como se diz no norte

Quem me levou lá foi o Jorge Portojo, que é a alma desse agradável convívio. É ali que tenho passado horas e horas de sã camaradagem com ex-combatentes, cuja vivência da guerra do ultramar é o grande elo comum.
Ali, se ouvem histórias, se brinca com elas e se discutem alguns pormenores mais ou menos assertivos. Porém, o bom ambiente reina e prevalece acima de qualquer discórdia. Confesso que nos dá muito prazer usufruir deste óptimo relacionamento e, ao mesmo tempo, poder contribuir para a sua continuidade.
Foi lá que, há dias, “apanhei” esta história, testemunhada (vivida?) por um dos presentes.

O que a seguir vou contar terá acontecido em finais de 1972, princípios de 1973, num destacamento próximo de Cacheu, no noroeste da Guiné.

Um pelotão com pouco tempo de Guiné foi incumbido de ocupar aquele destacamento. De um dia para o outro, o Alferes Bastos, conhecido também por Alferes Bolinhas, devido à estrutura física ligeiramente arredondada, tornou-se a pessoa mais importante daquela zona. Tinha “casa de comando”, os faxinas que entendesse e a vassalagem dos seus militares e dos indígenas.

Andava ainda a adaptar-se a essas mordomias naquele reino de calmaria, quando se vê visitado por Hamed Jalu, Chefe de Tabanca, acompanhado de Jeni, uma das suas filhas.
- Alfero, a mim bem cumpre nha honra di paga pa bô mil quinhento peso.

Espantado, o Alferes respondeu:
- A mim… não… não deve nada. Mil e quinhentos pesos?! Porquê?

O Chefe de Tabanca esclareceu então que esse dinheiro lhe havia sido emprestado, para um pequeno investimento na Tabanca. E como não tinha conseguido pagar a dívida ao anterior Comandante, vinha entregar a sua filha como pagamento da dívida.
O Alferes ainda ripostou:
- Não vou ficar com a sua filha. Leve-a e depois, quando puder, vem pagar.

O Chefe da Tabanca reagiu logo:
- Não, alfero. É probrema di honra. Bô cá pude nega. Honra cá tem preço. E foi embora. 

A Jeni não veio viver para o aquartelamento mas ficou por perto, ao dispor do Alferes.

Inicialmente, o Alferes não sentia muita vontade em servir-se da rapariga. Ainda sentia bem perto de si as carícias e os aromas das despedidas amorosas do Continente. Porém, à medida que o tempo passava, ia caindo na realidade e embrenhava-se cada vez mais nesse novo ambiente. Aliás, começou a desfrutar do bom e das mordomias existentes ao seu dispor. Daí, a estar na cama com a Jeni foi um pequeno passo.

Quando isso aconteceu, ele ficou deslumbrado. Parecia que nunca tinha sentido tanto prazer. É certo que ele já andava “esfomeado”, porém, quando se apercebeu de todas as curvas firmes daquele corpo seco e fresco, quando sentiu as suas carícias e a sua pele macia, ficou irremediavelmente preso à “bajuda”.

Passaram-se uns meses e o Alferes já não via outra coisa que não fosse cumprir religiosamente as suas visitas prolongadas à Jeni.

Os seus militares não se atreviam a fitar aquela miúda, a bajuda do Alferes Bastos. Ninguém sonhava que aquela conquista se devia a um compromisso de honra, que nada tinha a ver com as capacidades de conquistador, do aparente garanhão. O certo é que ele próprio, envaidecido, gostava que o admirassem como conquistador. Era só vê-lo “inchado” e aperaltado a caminho da Jeni. Apenas, o Furriel Matosinhos, um verdadeiro atleta, digno de pisar as arenas do Olimpo, não se conformava. Sorrateiramente, lá se ia aproximando da Jeni. Chegou ao ponto de a “apanhar”, de imprevisto, nua, a ensaboar as coxas e sua “mama firme”. Porém, perante as várias insistências, ela ameaçou-o de que iria falar dessa perseguição ao Alferes.

Mulheres guineenses

Tudo corria às mil maravilhas até que um dia chegou um rapaz que veio pagar a dívida-resgate da Jeni. Desembrulhou uns papéis e mostrou os 1.500 pesos:
- A mim bem paga bô e tomá Jeni pa bai sê muié de mim.

O Alferes não lhe ligou grande importância e, para o despachar, atirou:
- Ela, agora vale 2.000 pesos. Tu não tens dinheiro para pagar.

O rapaz saiu a barafustar baixinho. O Alferes ficou a pensar na próxima visita dele.

Após o jantar, como de costume, o Alferes pôs-se a caminho e foi para a tabanca, para estar com a Jeni. Porém, a Jeni já lá não estava. No dia seguinte aconteceu o mesmo.
Ao terceiro dia, o rapaz voltou. Sem mais delongas, desembrulhou os papéis e mostrou os 2.000 pesos. Entregou-os, sem dizer uma palavra.

No dia seguinte, o Alferes Bastos foi falar ao Chefe de Tabanca. Cumprimentaram-se, mas a Jeni não se aproximou, nem o rapaz que fora fazer o pagamento. Pensando numa saída airosa, o Bastos sacou do bolso 500 pesos e estendeu-os para o Chefe Hamed Jalu, ao mesmo tempo que dizia:
- Toma lá estes 500 pesos que consegui ganhar com a venda da Jeni.

O Chefe Hamed não se mexeu. Apenas se esticou mais, apoiado na sua bengala, levantou bem a cabeça e, olhos nos olhos com o Alferes, respondeu:
- Não, alfero, não. Honra ca tem preço!

Silva da Cart 1689

(NOTA: Em crioulo, “ca” significa “não”)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16488: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (34): A “santidade” do Santos