segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16691: Agenda cultural (512): SIC: Programa Perdidos e Achados, em 29 de outubro passado: onde estavam os repórteres da guerra colonial, onde estavam os nossos fotocines?


Fotograma do vídeo "Os repórteres da guerra colonial", que passou no passado dia 29 de outubro na SIC, no programa "Perdidos e Achados". (Reproduzido com a devida vénia.)


1. No passado 29 de outubro passou na SIC o programa "Perdidos e Achados", para a produção do qual o nosso blogue também deu alguns contributos (*)

SIC | Programa Perdidos e Achados > "Os Repórteres da Guerra Colonial"

29.10.2016 | 22h19


Vídeo 16' 53'', aqui disponível

Sinopse

O Perdidos e Achados dão a conhecer os jornalistas e militares que relataram e retrataram a guerra colonial. Deixaram fotografias, filmes e crónicas, que ajudam hoje a compreender o que se passou em Angola, Moçambique e na Guiné entre 1961 e 1974. Reencontrámos quem esteve na guerra para contar o que via, e questionar o que se passava, mesmo que muitas das notícias fossem sujeitas à censura do regime.

Como aconteceu com as peças que Fernando Correia enviava a partir de Angola. Aquele que hoje é um reconhecido jornalista desportivo, chegou a ser repórter de guerra, mas mudou de área jornalística para não pactuar com a mentira.

Fomos também ao encontro daqueles que filmavam as tradicionais mensagens de Natal dos soldados e encontrámos o repórter de guerra que esteve durante 13 anos, tantos quanto durou  o conflito.


2. Comentários dos nossos camaradas Alcídio Marinho e José Colaço (*)

(i) Alcídio Marinho

Quando a nossa Companhia  foi formada, 24 de setembro de 1962 (em Chaves),  foi chamada de Companhia de Caçadores Independente nº 412, aliás como a 411 e  mais outras três Companhias, pela simples razão de que tinham pessoal de  todas as especialidades; carpinteiros, pedreiros, alfaiate, cozinheiros, etc., e até fotocine. 

Era o 1.º Cabo Fotocine, Virgílio Albino Casaca Barradas, natural de Lisboa, que tinha a especialidade de fotocine, mas material foto e cine, só o que era dele, pois na vida civil era fotógrafo. Na Guiné serviu apenas como  atirador como os outros. Infelizmente ele já faleceu há alguns anos com um tumor no pâncreas. Mas a curiosidade maior é a sua viúva (D. Antónia) e suas  filhas, genros e netos que continuam a honrar-nos, todos os anos, com a sua  presença nos nossos almoços comemorativos.


(ii) José Colaço

Também a CCAÇ 557 tinha um 1.º Cabo Fotocine que apareceu lá no Cachil passados aí uns 3 meses,  já depois de concluída a Operação Tridente, mas de material para exercer a especialidade nada e durante a comissão também não o recebeu, ainda hoje me interrogo para que servia aquela especialidade sem material para exercer "publicidade enganosa".

Mas, como eu tinha uma máquina fotográfica, fomos grandes amigos até conseguimos fazer um pequeno estúdio de revelação dentro do posto rádio onde eu, por inerência da especialidade, cumpria 12 horas seguidas de serviço.

O capitão, como ele não era atirador,  também não o escalava nas saídas para o mato.
Não veio connosco, ficou a trabalhar na Foto Serra, em Bissau, e por lá faleceu ainda novo, mais ou menos entre os 50 e 60 anos de idade.  


 (iii) Editor LG:

Fomos nós que chamámos a atenção da produtora Madalena Perdigão para o nosso poste P7734, de  6 de fevereiro de 2011 (**).

E mais uma vez lá passaram pelos nossos ecrãs as imagens da equipa da ORTF, a televisão francesa, que filmou as cenas dramáticas, já no final,  da Op Ostra Amarga... Infelizmente, não havia lá nenhum fotocine português... E, o que é mais revoltante, é sabermos hoje, pela boca de antigo fotocine Joaquim Pessoa, que se encenavam operações, se não erro, na ilha de Bubaque, no arquipélago de Bijagós, para "mostrar" ao Zé Povinho, na RTP, o único canal de televisão que tínhamos, como é que os bravos soldados portugueses faziam a guerra na portuguesíssima Guiné...

O que é que os pobres fotocines podiam fazer, senão alinhar na farsa, amouchar como nós amouchávamos quando apanhávamos uma emboscada, um sinal de resto que só revelava inteligência emocional, serenidade, realismo, bom senso... e bravura! (***),

Obrigado ao Alcídio Marinho e ao José Colaço pelas preciosas informações sobre os camaradas fotocines das suas companhias...  No meu tempo (1969/71), não tenham ideia de haver fotocines nas CCS dos batalhões. Aliás, pode-se confirmar pela composição orgânica dos batalhões. Já existiriam então os Destacamentos de Fotografia e Cinema (DFC), dependentes do QG, suponho.

Em 2008 foi criado um blogue, de vida efémera, chamado “Fotocines”, por alguém que esteve, em Luanda, no Destacamento de Fotografia e Cinema (DFC) nº 3011 (1972/74)… Até à data publicaram-se 3 postes… Tratava-se de um “espaço criado para reunir todos os Foto-Cines que prestaram serviço militar obrigatório no Exército Português, tendo sido distribuídos na altura por Destacamentos Foto-Cines em Angola, Guiné e Moçambique, para além dos premiados que conseguiram passar toda a sua comissão de serviço nos SCE-Serviços Cartográficos do Exército que agregava toda a comunidade Fotocine debaixo da égide do saudoso major Baptista Rosa [Niza, 1925- Lisboa, 1982], e por onde passaram parte dos expoentes do cinema feito em Portugal.”
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de setembro de 2016 Guiné 63/74 - P16542: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (38): Ajuda para reportagem da SIC, antigos militares fotocines que tenham gravado as mensagens de Natal da RTP... precisam-se! (Madalena Durão, produtora)

(**) Vd. postes de

8 de novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2250: Vídeos da guerra (3): Bastidores da Op Ostra Amarga ou Op Paris Match (Bula, 18Out1969) (Virgínio Briote / Luís Graça)


10 de dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7415: (Ex)citações (118): A propósito do vídeo da ORTF sobre a Op Ostra Amarga: "As imagens que vi, foram uma espécie de murro no estômago e cimentaram a admiração que nutro por todos aqueles que sentiram o silêncio bem no meio do capim" (Miguel Sentieiro)



domingo, 6 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16690: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (19): Quando homens e armas estavam "à carga", sendo necessário levantar um auto, no caso de desaparecerem... A história do condutor auto, do EREC 2350, que não voltou de férias em 1969... (Fernando Gouveia, ex-alf mil, Rec e Inf, Cmd Agr 2957 Bafatá, 1968/70)



Guiné > Zona Leste > Bafatá > Esquadrão de Reconhecimento 2640 (1969/71) > Uma autometralhadora Fox, em reparação na oficina do Esquadrão... Este tipo de viaturas blindadas adaptava-se mal às difíceis condições do terreno na Guiné... Não me lembro de ter visto muitas a andar pelos seus próprios meios nos sítios por onde andei... Imagino a trabalheira que terá sido trazê-las até aqui. Na  foto, o 1º cabo Mauel Mata


Guiné > Zona Leste > Bafatá > Esquadrão de Reconhecimento 2640 (1969/71)  >  Na foto, o nosso camarada Manuel Mata de pé, em cima de uma viatura autometralhadora Daimler. Ao fundo, o famoso cartaz, visível dos ares: "Aqui mora a cavalaria!"...


Lisboa > O N/M Uíge, que transportou o Esq Rec Fox 2640, mais o Pel Rec Fox 2175 até Bissau, em 15 de novembro de 1969. Mas nem todos compareceram: um oficial desertou... O EREC 2640 foi render o EREC 2350. em Bafatá.

Fotos (e legendas): © Manuel Mata (2006). Todos ops direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue ;Luís Greaça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Fernando Gouveia, com data de 5 do corrente:


[Foto à esquerda, Fernando Gouveia foi alf mil rec e inf, Cmd Agr 2957 Bafatá, 1968/70: é arquiteto da CM Porto, reformado; e membro da nossa Tabanca Grande desde 9/4/2009]

Carlos:

Os dois casos de desertores que considerei no inquérito não sei muito bem se realmente o são ou não, face ao que tem sido dito e repetido no blogue.

Se consideras que realmente o são, talvez seja assunto interessante para "alimentar o voraz blogue".

O primeiro caso é o descrito no poste P4637 (*), sobre um elemento pertencente ao EREC 2350, ao nosso lado em Bafatá, que,  vindo de férias,  não mais voltou. Como digo nesse texto,  talvez a sua decisão tivesse a ver com a morte de dois camaradas, calcinados, dentro de uma FOX, uns tempos antes, lá para os lados de Piche.

O outro caso, referido no meu livro "Na Kontra Ka Kontra", a páginas 139,  foi-me contado, como autêntico, pelo próprio, de que não sei o nome, durante um almoço na "Tabanca dos Melros".

Ficará ao teu critério fazer um poste com essa matéria, e da forma que entenderes.

Um grande abraço,
Fernando Gouveia


Cortesia de Carlos Coutinho
2. Quando homens e armas estavam "à carga", sendo necessário  levantar um auto, no caso de desaparecerem... A história condutor auto do Erec 2350, que não  voltou de férias... 

por Fernando Gouveia

Hoje em dia, nos escritórios, quer do Estado, quer privados, é comum ver aquelas etiquetas autocolantes com código de barras, colocadas em todo o mobiliário e objectos de trabalho, a querer dizer que têm dono, que estão "à carga".

Há quarenta anos ainda não era assim nas empresas ou nas repartições públicas, mas na tropa já se processava esse zelo, como todos muito bem sabem. Tudo estava "à carga".

Vou contar, de forma simples, o que aconteceu, com o material "à carga" no Esquadrão de Rec Fox 2350 (Bafatá, 1967/69),  instalado ao lado do Comando de Agrupamento de Bafatá [, nº 2957, Bafatá, 1968/70], em 1969.

Os três alferes (às vezes 4 ou 5) do Agrupamento iam comer ao Esquadrão, daí que eu tenha assistido a todas as fases desta estória caricata.

Em determinada altura um condutor duma autometralhadora Fox veio de férias à Metrópole e não voltou, desertou. (Não me lembro se já tinha acontecido aquela emboscada em que um rocket IN perfurou a blindagem duma Fox e carbonizou os seus dois ocupantes.)

Correu o respectivo auto de deserção. Já depois do auto concluído, alguém se lembrou que esse condutor tinha uma pistola distribuída. Todos os responsáveis directos entraram em pânico. Havia que resolver a situação.

Os alferes do Esquadrão, Rodrigues, Sena, Grosso e Amaral,  depois de discutirem vários dias como resolver esse berbicacho decidiram que se daria baixa da pistola no próximo ataque IN a Piche ("Dien Bien Piche",  como também era conhecido dada a quantidade de ataques lá verificada, e por similitude com Dien Bien Phu, no Vietname), onde tinham um destacamento.

Ao fim de pouco tempo o ataque deu-se e,  para os nossos cavaleiros,  o assunto parecia ter sido resolvido em beleza.

Puro engano, alguém descobriu que o desertor possuía um armário fechado e, lá dentro, entre outros pertences, que aliás também deveriam ter sido discriminados no auto, estava, a agora, famigerada pistola.

Muito nos divertimos, os alferes do Agrupamento, com esta última situação criada. Era ver os alferes do Esquadrão a não quererem, cada um, nas suas mãos a dita pistola. Parecia que queimava.

Passados quarenta anos, não recordo como resolveram este último problema, mas das duas uma, ou alguém se presenteou com uma pistola que já não estava "à carga",  ou então tiveram que esperar por um novo ataque a Piche e fazer um novo auto do achamento de uma pistola. (**)
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Guiné 63/74 - P16689: Blogpoesia (479): "Quero lá saber..."; "Minhas trouxas..." e "Melodia dum piano e duma orquestra...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. O nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) vai-nos enviando ao longo da semana belíssimos poemas da sua autoria, dos quais publicamos estes, ao acaso, com prazer:


Quero lá saber…

Se chove ou neva, quero lá saber.
O que importa é viver.
Ser-se feliz… o mais que se puder.

Uma hora triste
É nuvem que passa.
Depois virá a alegria
Ao nascer do sol.

Vejam as flores
Como são alegres.
Vivem do perfume
Que nos inebria
E lhes aviva as cores.

Ouve o passarinho
Como canta belo,
Mesmo na gaiola.
Como é bom viver.

Como é linda e fresca
Aquela cascata de água
A jorrar da serra.

E a seara verde a bailar ao vento
A crescer ao sol.
Esperando o oiro loiro
Que a há-de adornar….

Quero lá saber se lá fora chove.

Ouvindo Susan Boyle

Berlim, 2 de Novembro de 2016
JLMG

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Minhas trouxas…

Empilhei as minhas trouxas e parti ao mundo.
Não quero ficar no mesmo sítio onde nasci.
Quero abrangê-lo.
Outras gentes. Outras culturas.
Além das serras, além dos mares.

O espaço donde vem o sol.
E aquele onde se põe.

Ver as cores da Natureza,
Conforme as terras
E os seus odores.
Contemplar flores 
E as cores que têm.

Os frutos e seus sabores.

O falar das gentes, na própria fonte.

Ver os rastos dos tempos passados.
Por esse mundo.

Sentir a experiência única
De me ver de longe.

Regressar cansado,
Mas enriquecido,
Ao meu tugúrio.

Só assim, eu serei feliz…

Berlim, 4 de Novembro de 2016
10h21m
JLMG

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Melodia dum piano e duma orquestra...

Deixo-me embalar pela doce melodia do concerto.
Oiço um piano que me encanta.
Abstraio das agruras deste mundo.

Chego aos cumes da divindade.
Minha alma plana leve
Sobre a brisa verde da primavera.

Escorrem as vertentes em torrentes 
Abundantes.
Me inundam de alegria.

É a hora exacta em que me oiço e alcanço,
Aqui na terra,
A paz suave da eternidade...

ouvindo Beethoven com Hélène Grimaud e uma orquestra, concerto nº 4

Berlim, 5 de Novembro de 2016
9h38m
JLMG
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16670: Blogpoesia (478): Neste Dia de Finados - "Campo Santo", da autoria de Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1546

Guiné 63/74 - P16688: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XIV Parte: Cap VII: Guerra I: O PAIGC passa a alcunhar-nos de "Lassas" (as abelhas que só são agressivas, quando as chateiam)



Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) >  Os Lassas cambando um rio


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Os Lassas na abertura da estrada Cufar-Cobumba.

Fotos (e legendas): © Mário Fitas   (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



[Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. Foto à abaixo à esquerda, março de 2016, Oitavos, Guincho, Cascais]




Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XIII Parte > Cap VII - Guerra 1:  Os "lassas", alcunha que lhes é dada pelo PAIGC... (pp. 46-48)

por Mário Vicente 

 Sinopse:


(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),

(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra"):

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix)  início da atividdae, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta  CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN.



Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XIV Parte > VII - Guerra 1:   Os "lassas", alcunha que lhes é dada pelo PAIGC... (pp. 46-48)
  
 
Vagabundo estava extenuado, precisava beber qualquer coisa e dormir um pouco para atenuar o cansaço físico e psíquico em que se encontrava. Foi ao abrigo, deixou arma e cartucheiras e pegando num cobertor, rumou ao bar, bebeu uma garrafa de água e levou uma cerveja que foi bebendo até à parte nova do aquartelamento em construção. Esticou a manta no chão, debaixo de um cajueiro junto ao futuro abrigo da sua secção e quase de imediato adormeceu. Deve ter acontecido o mesmo com toda a gente porque duas horas e tal passadas quando acordou, o silêncio era total. Cufar parecia terra fantas­ma abandonada. Levantou-se e desceu até ao abrigo de novo, para aí deixar o cobertor. Encontrou o Orlando limpando a sua arma e a dele. Vagabundo ajudou um pouco na tarefa, mas a cabeça ainda continuava muito oca, pelo que disse ao soldado:
– Olha! Vou tomar um banho. Acaba com isso e vai até à messe para bebermos qualquer coisa!

Pegou na toalha e dirigiu-se para os chuveiros. Meteu-se vestido debaixo de água e assim foi retirando a lama que ainda enchia o camuflado. Lavou as botas de lona e só depois se despiu e tomou o seu duche quente. O calor fazia a água quase ferver, nos bidões dos chuveiros. Sim, porque esse luxo tinham aqueles desgraçados, água sempre quentinha. Calçou as botas mesmo molhadas, enrolou a toalha ao corpo e dirigiu-se para o abrigo onde vestiu uns cal­ções e uma camisa de caqui. Orlando esperava pelo furriel, os dois encaminharam-se para o improvisado bar. Quando subi­am os degraus da velha fábrica de descasque de arroz, ouviram um tiro mesmo nas suas costas. Viraram-se rapidamente, mas não viram ninguém. O tiro partira de certeza, do abrigo em frente! Correram para lá. A meio do caminho, surgiu do abrigo o Barreirense. Muito pálido, abrindo os braços qual Cristo crucifi­cado, começou a gritar:
– Estou morto! estou morto!
– É pá, o que é que foi que aconteceu?– perguntou-lhe Orlando.
– Estou morto! Estou morto!

Era única e simplesmente o que saía da sua boca. Pegaram nele, sentaram-no nos degraus e a malta começou a rodeá-lo querendo saber o que estava acontecendo, mas o amigo Barreirense, nada mais dizia para além de que estava morto. Vagabundo, mirando bem o lívido soldado, não vislumbrou qualquer sinal de feri­mento ou coisa parecida. O furriel pegou-lhe no braço, abanou-o com rigidez e gritou-lhe:
– Porra! Barreirense,  que merda é esta? Se nem ferido estás, como podes estar morto?! ..
Escorrendo suor por todos os poros, o soldado olhou para Vaga­bundo e, num sussurro, que foi aumentando, começou:
– Estou vivo? Eu estou vivo, meu furriel?
– Sim! Pelo menos respiras e falas. O que é que tens, homem?

Quase meia companhia rodeava já o soldado Barreirense. Entre­tanto já alguém tinha trazido um copo de água que Barreirense bebeu, babando-se todo. Após ingerir parte da água, virou-se novamente para o furriel, e então contou:
–Ai que eu ia-me matando, meu furriel!... Estava lim­pando a arma e quando fui mirar o cano, ainda não tinha acerta­do o olho, a G3 disparou sem eu saber como!

Teve sorte o Barreirense, pois limpar uma arma sem verificar primeiro se havia algum projéctil dentro da câmara, é noventa por cento de hipótese de acidente.

Agora já toda a gente ria, incluindo o próprio, com a sua figura de Cristo andante, gritando que estava morto.
–Vá, vamos lá beber uma cerveja à conta da tua morte! – disse o furriel puxan­do o soldado pelo braço.
– Meu furriel, eu não bebo cerveja que não gosto, mas bebo um copo de vinho, e eu é que pago já que estou vivo!
– Não, eu é que convidei – ripostou  Vagabundo.

Era interessante este rapaz, Barreirense de alcunha. Latoeiro de profissão, percorria todo o Alentejo arranjando alguidares, pa­nelas rotas, pondo pingos ou fundos. Por vezes lá falava das ter­ras do concelho de Elvas e costumava brincar com Vagabundo dizendo:
– O meu furriel é malandro, tem a escola toda, aprendeu na Colónia! ...

Mais tarde o Barreirense tomou-se o vaqueiro da companhia, cuidadoso lá seguia, G3 às costas com o seu gado para junto da lagoa, onde o pasto era farto.

À noite, já refeitos e já com etílicas vaporizações de whisky e cerveja, a malta festejou então a vitória em Cufar Nalu. Chico Zé, António Pedro, Jata, Vagabundo e o Artilheiro, um homem da guitarra, cantaram os seus fadinhos de Coimbra. Chico Zé adorava:
“Do Penedo até à Lapa
Foi Coimbra os meus amores.”


Conheciam-se-lhe alguns fados mas este de Coimbra, devia ser secreto. Enfim, todos teriam os seus e algum seria sempre secreto.
Em termos operacionais a CCAÇ  não parava: patrulha­mentos, golpes de mão, controle da população a sul... Ainda se saboreava a vitória de Cufar Nalu e já na semana seguinte se volta a desbravar caminho, ao colaborar na desobstrução da estrada de Bedanda, escoltando uma coluna auto para o efeito. Até às dez da manhã já se tinham retirado mais de trinta abatises, e tudo árvores de grande porte. Enquanto continua a desobstrução da estrada, agora a escolta é feita por outra compa­nhia, a Companhia recebe a missão de se deslocar para a região de Cabolol que deveria reconhecer. Foi aqui em Cabolol, conti­nuação do corredor de Guilege por onde o PAIGC fazia o seu abastecimento para o interior, que a CCAÇ. se comportou heroi­camente, mas também onde levou nos cornos até dizer chega. Se a oportunidade não nos faltar, havemos de contar algumas histórias tristes e outras alegres também, desta merda de Ca­bolol.

Seguindo a missão recebida, a CCAÇ. dirige-se para a tabanca de Cabolol Balanta, encontrando-a deserta. Como norma qualquer povoação que fosse encontrada deserta era destruída. Quando se procedia à destruição, a CCAÇ foi atacada, mas a pronta reacção e envolvimento da malta, moralmente bem e já com um entrosamento razoável, pôs o IN em fuga. 

Daqui rumou para Cabolol Lande onde, da mesma forma a povoação se encontrava deserta. Novamente atacados quando se efectuava o ritual da destruição, IN posto em fuga, Carlos cheirou-lhe a "bate e foge" para diversão, pelo que ordenou pela rádio para redobrada atenção, pois os grupos que nos perseguiam e chateavam podiam estar unicamente a fazer diversão. Atingiu no alvo. Quando preparávamos a retirada, da mata ao lado, foi do bom e do bonito: até armas pesadas e RPG2 metia. Lá se pediu o apoio da força Aérea e só depois da intervenção dos velhotes T6, é que se conseguiu calar a banda, contra atacar e desalojar o IN. A operação foi interrompida, dado o número de abatises ser enorme e a impossibilidade da desobstrução em tempo útil.

Por informações recebidas, a CCAÇ 763 será conhecida no PAIGC com a alcunha de “Lassas”. Pelo que se veio a saber, “lassa” será uma espécie de abelha existente na Guiné que,  não sendo molestada, não provoca problemas, mas se for atacada é terri­velmente perigosa,  ficando enraivecida. 

Esta alcunha resultaria, portanto, da actuação da Companhia, pois quando chegava a uma tabanca, em que a população estivesse e não fugisse, não haveria problemas, pois falava-se com essa gente e tentava-se resol­ver os problemas que houvesse. Se, caso contrário,  a população fugisse e abandonasse as suas moranças, as mesmas eram literal­mente destruídas. Pelo que ficou a partir deste momento a CCAÇ crismada como "Lassas".

Continua-se a patrulhar Cufar Nalu e agora Boche Mende também. Faz-se nomadização e temos informações que o IN está a obrigar as populações a dirigirem-se para a região de Cabolol, mais a norte. Solicita-se uma equipa administrativa de Catió para proceder ao recenseamento das tabancas controla­das. Este recenseamento é útil pois, através dele, conseguimos a identificação de alguns cooperantes e guerrilheiros pertencentes ao ex-bando de Cufar Nalu. É imperioso não largarmos este controlo, já que sabemos haver gente infiltrada na população. Em Iusse, o chefe de tabanca desaparece, fuga ou rapto? Na mesma tabanca Suza na Mone, dado como desertor do PAIGC, é abatido ao fugir à aproximação de um grupo de combate que fazia a tentativa da sua recuperação. Num golpe de mão a Fantone, é feita prisioneira Dite na Baque, a mulher chefe do Partido. O PAIGC sabe que não facilitamos e isso é muito importante.

Nesta altura o moral é de tal ordem que nos deslocamos às tabancas controladas de jeep com apenas dois ou três ele­mentos e vamos a Catió sem descer das viaturas e sem seguran­ça. É necessário todavia, não entrar em euforia, a guerrilha não é para brincar e deve ter-se mais cuidado para não haver surpre­sas.

(Continua)
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Nota do editor:

Últimos postes da série > 22 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16512: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XIII Parte: Cap VII: Guerra I: 15 de maio de 1965, op Razia: a mata de Cufar Nalu agora é nossa!... Viva a merda da guerra!...

Guiné 63/74 - P16687: Parabéns a você (1157): Jorge Cabral, ex-Alf Mil Art, CMDT do Pel Caç Nat 63 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16676: Parabéns a você (1156): António Martins de Matos, Tenente-General PilAv Ref, ex-Tenente PilAv da BA 12 (Guiné, 1972/74)

sábado, 5 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16686: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (18): Mais um caso "atípico", o de David [Ferreira de Jesus] Costa, ex-sold at art, CART 1660, Mansoa, 1967/68 (Virgínio Briote)


Capa do livro Desertor ou patriota : a extraordinária aventura de um soldado raso / David Costa. - 1ª ed. - Vila Nova de Gaia : Ausência, 2004. - 157, [2] p. : il. ; 21 cm. - (Passado recente ; 3). - ISBN 989-553-078-1 [Preço, 12 €]


1. É uma história do "arco da velha", rocambolesca, trágico-cómica, absurda, kafkiana, impiedosa... de um homem, um camarada nosso, que bebeu o cálice da amargura, na sequência de uma leviandade que lhe custou a liberdade, a honra e anos de vida.... Que lhe poderia ter custado, inclusive, a vida!


Desertor, sim, técnica e juridicamente falando... Mais um desertor "atípico", usado e abusado pelo PAIGC [e aqui, o português e médico, Mário Pádua, também não fica bem, na fotografia... ou será que na guerra revolucionária vale tudo ?!... O PAIGC tem obviamente todo o interesse em instrumentalizar, politizar, aproveitar, para efeitos de propaganda, a "infeliz" deserção do David Gomes...

Em boa verdade,  o pobre do David Costa desertou e não desertou... Foi apanhado pelo PAIGC fora do seu aquartelamento, por estar desorientado, emcionalnamente perturbado, à beira do "burnout", da exaustão física e emocional...  Não se entregou ao PAIGC, fez o "número" que lhe convinha quando foi feito prisioneiro... E manteve esse "número" por uns tempos. Passou a ser considerado, lisongeado, ganhou inclusive a liberdade... E aqui brincou com o fogo, mais uma vez...

A "carta à mulher"  que é dura de roer... Será possível que um homem, com a craveira intelectual, humana e profissional, do dr. Mário Pádua, lhe tenha feito "essa maldade" ? Um guineense ou um caboverdiano do PAIGC podia fazê-lo... Mas um português sabia que o David tão cedo não poderia juntar-se livremente à mulher e aos filhos... O David, meu caro dr. Mário Pádua,  não era um intelectual, um antifascista, um homem politizado, informado, consciente!... Era, tão apenas, na época, um pobre diabo de um soldado raso... [, Enfim, não sei se esta história está mal contada,  ou mesmo se a  versão dos acontecimentos não pode estar  enviesada pela distância temporal: o livro é publiavdo em 2004, quase 40 anos depois dos factos ocorridos]...

É uma história ao mesmo tempo exemplar... que merece ser revista, revisitada, relida, meditada... O David Costa, David Ferreira de Jesus Costa, de seu nome completo, ex-sold at art, CART 1660 (Mansoa, 1967/68), redime-se, do seu passado de "déserteur malgré-lui" [, desertor, por mero acaso, ou à força],  escrevendo um livro de memórias, que já foi aqui objeto de recensão crítica, primeiro pelo  por Virgínio Briote (*) e, mais tarde,  por Mário Beja Santos (**).

Por ser a primeira,  e a mais antiga, vamos reproduzir aqui a "nota de leitura" que o o nosso querido editor, hoje jubilado , V. Briote, escreveu em 2008, acrescido de alguns comentários de um camarada do David Costa, o ex-1º cabo Jorge Lobo, feitos na altura ou em 2010, no poste do Beja Santos (**).



Desertor ou Patriota, de David Costa: da brincadeira ao pesadelo... 

por Virgínio  Briote



A extraordinária aventura de um soldado raso


David Costa nasceu na freguesia de Fânzeres, concelho de Gondomar, a 12 de dezembro de 1945. Incorporado em julho de 1966, casado à pressa para ver se se livrava da mobilização, nem com um filho recém-nascido e outro a caminho escapou. Como ele diz a certa altura, só os cegos e os paralíticos podiam ter alguma esperança.

Tudo começou em Fevereiro de 1967. No cais da Rocha Conde de Óbidos ouviu a prelecção habitual:
– Soldados de Portugal! É grande a vossa honra, pois a Pátria chama-vos a defender aquelas terras tão orgulhosamente portuguesas.

Embarcou no Uíge num daqueles dias frios para cinco dias depois respirar o ar quente de Bissau. Nem deu tempo para dar uma volta pela cidade. Encaixotados nas viaturas, lá rumaram, ele e os camaradas, a caminho de Mansoa.

Um tipo cheio de sorte. Ainda em Lisboa deram-lhe a notícia:
– O teu serviço vai ser trabalhar na secretaria, incorporado na CART 1660.

Em Mansoa encontrou-se com os velhinhos do BCAÇ 1912, que não deixaram passar a oportunidade de praxar a periquitada:
– A vossa chegada não tarda vai ser condignamente festejada...Não vai faltar molho! – E, de facto, assim aconteceu.

Numa daquelas noites, a gozar o cinema ao ar livre, aí vai aço, tugas de um raio! “Corríamos inseguros à procura de qualquer coisa que nos abrigasse”, remata o infeliz amanuense condutor que, afinal, estava a ver que também sobrava alguma coisa para ele.


Uma brincadeira de mau gosto, que lhe saiu cara


Mas nessa noite como em outras que se seguiram estava longe de adivinhar o que, dezenas de anos depois, chamou “a extraordinária aventura que eu vivi”. Foi no fatídico dia 17 de maio de 1967 que começou a odisseia do David. Brincalhão, cheio de arte e manha, era o encarregado do transporte do correio, o que o levava a Bissau sempre que havia avião.

“Tudo não passou de uma simples brincadeira com uma carta mal fechada, da qual caíra uma foto de uma linda rapariga. Com essa fotografia, destinada ao Floriano, resolvi fazer umas graças, exibindo-a como troféu de grande conquistador que eu era. Brincadeira de mau gosto, certamente, imperdoável também, com certeza, mas que me saiu tão cara!...”

Condenado pelos camaradas que lhe viraram as costas, resolveu ir dar uma volta pela povoação. Foi andando, diz ele, a matutar, acabrunhado, andando até dar por ela que era noite e já estava fora de Mansoa e sem sequer vislumbrar qualquer referência. Em pânico, desorientado, meteu-se pelo mato, andou para trás e para a frente e para os lados possivelmente, até que pela madrugada viu um holofote a girar. Era um destacamento das NT que ele não fazia ideia qual fosse.

Entra, não entra, arrisca a entrar por baixo do arame farpado, a desaparecer pelo chão, quando lhe vem à cabeça a ideia de poder ser visto à distância por alguma sentinela que, certamente, não o identificaria e, o mais certo, pensou para ele, "fura-me todo".

Escapa-se do aquartelamento (ao longo de toda a história vê-se que conjuga o verbo escapar de trás para a frente) e decidiu internar-se no mato ao encontro, não sabia ainda, de uma pequena coluna da guerrilha. Estava ele a dizer “Tem calma David!”, quando uns vultos estacam à frente dele. Curvados, observam-lhe a cara, murmuram entre eles, até que um se chega à frente de um David a tremer por todos os lados.
–  Que andas aqui a fazer fora do quartel?
– Fugi, ontem à noite –  saiu-lhe pela boca, sem pensar, diz ele.

Apanhado pelo PAIGC, levado para o Morés e, depois, para o Senegal. Começa assim a odisseia do soldado raso David Costa. Levado pelo comandante Alexandre Dias Correia e mais seis elementos bem armados e equipados com fato camuflado, dirige-se à mata de Morés. Sempre bem tratado pela guerrilha e pela população, conhece José Landim, que se apresenta como chefe militar da base de Morés.

Depois foi a viagem por trilhos, bolanhas e ribeiros, em direcção ao Senegal. No trajecto ainda conheceu em Iracunda, bem perto do Olossato, o Aristides Pereira, futuro Presidente da República de Cabo Verde que, contente pela deserção do soldado, o abraçou e tratou com muita simpatia. Foi aí que assistiu a uma sessão política, que o deixou boquiaberto. Acarinhado por todos, rumou novamente em direcção à linha de fronteira, conduzido pelo comandante Alexandre Correia e pelos seus homens. Dois ou três dias depois chegaram.

Antes de embarcar numa camioneta que o aguardava, chorou abraçado ao comandante, que à despedida lhe disse:
– Vai em paz e que Deus te acompanhe. Obrigado por seres dos nossos…

Em Ziguinchor teve honras de ser recebido por Luís Cabral e pelo Mário Pádua, um médico português que desertara do Exército Português em Angola e tratava agora dos feridos e doentes do PAIGC. Levaram-no a um alfaiate, tirou medidas para um fato, comprou camisas e sapatos, fumou Craven-A e Rothelmans, parecia-lhe tudo surreal, diz ele.

Numa noite, após jantar com Luís Cabral, duas senhoras e o Mário Pádua, este entrou-lhe no quarto e perguntou-lhe a quem queria dar notícias. Que pergunta! O David não parava de pensar na sua jovem mulher. Então, o Pádua passou-lhe para as mãos uma carta escrita e uma folha de papel de avião em branco com o respectivo envelope.

“Quando me deixou só, comecei a ler aquela folha e fiquei muito desanimado. À medida que a ia lendo, ia perdendo a vontade de continuar. Não entendia nada de política, mas qualquer um perceberia que aquela carta era uma condenação. Eu ia dizer à minha mulher para não se preocupar comigo. Que estava muitíssimo bem e não me faltava nada. Que tivesse confiança, pois mais tarde ou mais cedo iria ter comigo, onde quer que eu estivesse. E pelo meio destas mensagens cheias de esperança dizia-se que quem tinha a culpa de tudo era Salazar…Que Salazar e Tomás eram doidos e o Cardeal Cerejeira também. Mesmo ignorante, logo percebi que jamais voltaria a Portugal sem problemas gravíssimos…”, escreve o David no seu livro.

Fez o que lhe sugeriram, copiou com a sua letra a folha que o Pádua lhe entregara. Depois o David continua a contar as atribulações que diz ter passado. Deram-lhe uma espécie de dinheiro de bolso e deixavam-no passear sozinho. Dias depois, diz ter escrito uma carta para a mulher,  contando a sua própria versão e pedindo que fizesse a entrega da carta no QG, no Porto.

A aventura no Senegal continua em Dakar para onde foi levado e conhece na sede do PAIGC um tal José Augusto, natural de Braga, ex-apontador de morteiro de uma unidade militar portuguesa, que desertara em tempos e que vivia no Senegal com a mulher e a avó.


Da Gâmbia até Bissau: o início de outro pesadelo, 
incluo a célebre chapada de Spínola


A odisseia do David no Senegal acaba num convento em Dakar, levado por um padre que o encontrara desanimado numa igreja. Não falta nesta história uma freira, jovem e bonita… Foi, aliás, através das freiras que obteve um passaporte e foi levado para Bathurst, Gâmbia, de onde depois de ter enviado um telegrama ao Comando Chefe das FA em Bissau, regressou numa avioneta civil à Guiné.

Bom, depois começou outra história. Prisão, interrogatórios, julgamento, condenação por deserção, chapada de Spínola... 

Ironia ou não, o David regressou em 20 de junho de 1971 no mesmo navio que, em fevereiro de 1967, o transportara para a Guiné...Passou à disponibilidade em 29 de agosto de 1971.



2. Seleção de comentários


Jorge Lobo  [ex-1º cabo at art, CART 1660 (Mansoa, 1967/68), nosso grã-tabanqueiro desde  10/1/2011]

[24 de novembro de 2010 às 14:56 
Jorge Lobo


Fui colega do David Costa,   na CART 1660,  em Mansoa,  e assisti ao vivo e a cores ao incidente que levou o rapaz a desertar do quartel e bem assim, acompanhei o caso até ao meu embarque para a metrópole, tendo mesmo o escoltado e assistido ao vivo ao seu julgamento no tribunal militar de Bissau.

Tudo se começou na caserna. O 1º cabo enfermeiro Chantre vinha-se queixando não ter recebido duas cartas de datas diferentes ambas com foto da namorada. Quem por norma trazia o correio era o David Costa mas, naquele dia  (trágico para o David) não tinha sido ele a ir a Bissau trazer o correio onde mais uma vez, a namorada enviava ao Chantre uma 3ª foto sua dentro da carta.

Desta vez então, o Chantre recebeu a carta e feliz com a foto,  mostrava-a aos colegas de caserna.
Porém, uns dias antes, o David...tinha mostrado a um dos colegas uma foto igualzinha à que o Chantre acabava de receber e mostrava a esse mesmo colega que já tinha visto a outra foto nas mãos do David.

Daí até se descobrir que tinha sido o David quem violou as cartas com as fotos anteriores, foi um pequeno passo. Ao ver-se descoberto, o David desapareceu do quartel e,  a partir daí, só ele mesmo sabe o que se passou.

Depois dele ter regressado, três meses depois do início da sua odisseia, contou-nos lá em Mansoa a versão da sua aventura de forma diferente a uns e a outros dos colegas.(Isto já em prisão, claro.)

Sinceramente,  eu passei a desacreditá-lo e mais desacredito hoje em dia, depois de ler em diversos blogs da internet, versões diferentes, segundo parece deixadas por si ou com o seu conhecimento.

Há coisas que não coincidem. Nuns lados ele diz que passou por uns locais e noutros porém fala em outros bem diferentes... Num lado diz que dormitava quando foi capturado pelo IN, e noutras ele diz ter-se esbarrado de frente com os guerrilheiros do PAIGC.

Tambem me parece estranho como é que ele foi parar a Morés, quando ele tinha dito que,  ao sair de Mansoa.  tinha entrado na estrada de Bissorã,  a qual o levaria a um destino bem diferente de Morés.
Estas e outras contradições tornaram o seu livro pouco credível.


Jorge  Lobo [.23 de novembro de 2010 às 21:36 ]

Caro David Costa, sou o 1º cabo  Lobo,  da CArt 1660,  e presenciei toda a cena da carta com a fotografia da namorada do Chantre, isto na caserna da CArt 1660,  em Mansoa.

Sabia vagamente o que te aconteceu mas não com todos esses pormenores. Em Bissau quando de cabo de dia antes da partida para a Metrópole, cheguei a levar-te as refeições ao presidio.

Desejo do coração que tenhas já esquecido a pior parte dessa tua odisseia e que sejas muito feliz na companhia dos teus.

David Costa [6 de dezembro de 2014 às 14:21]

Sou o David Costa e lembro-me perfeitamente de ti,  cabo Lobo, recebi com agrado tuas palavras e envio te um grande abraco com muitas saudades e o desejo de um dia te encontrar. Abraço David

Jorge  Lobo [ 30 de setembro de 2016 às 15:10 ]

Só hoje li a tua mensagem,  amigo David! Também espero um dia destes encontrarmo-nos algures para bater um papo e matar saudades daqueles tempos longínquos da guerra na Guiné. 

Admiro o teu sacrifício ao teres passado mais do dobro do tempo que o pessoal da CArt 1660 passou na Guiné. Ainda hoje recordo com mágoa as palavras daquele coronel,  juiz do tribunal militar, quando ele dizia que foste condenado a 2 anos, um mês e ...um dia de prisão. quando uma semana depois a nossa companhia regressava à metrópole. 

Muita coisa aconteceu na minha e na tua vida nesse entretanto,  entre 11 de novembro de 1968 até à altura em que tu regressaste depois dessa tua odisseia digna de um qualquer Alexandre o Grande....

 Um grande abraço e,  se me quiseres contatar,  podes faze-lo através do meu facebook  Jorge Pereira,  https://www.facebook.com/jorge.lobo.77715 

E depois combinaremos algo. Até breve, amigo. Jorge Lobo, 1º cabo, 1º pelotão da CART  1660. (****)

_________________

Notas do editor:

(*) Vd, poste de 28 de outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3371: Bibliografia de uma guerra (35): Desertor ou Patriota, de David Costa: da brincadeira ao pesadelo... (V. Briote)


sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16685: In Memoriam (270): Vasco Pires (1948-2016): missa do 7º dia, amanhã, 5, sábado, às 19h00, na igreja matriz de Arcos de Anadia, Anadia



Brasil , Bahía, Porto Seguro > Novembro de 2013 > O Vasco Pires com o seu amigo e camarada, Arménio Cardoso, da CART 6252/72, Os Indiferentes (Gadamael, 1972-74)

Foto (e legenda): © Vasco Pires (2013). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

(...) "Na semana passada recebi a honrosa visita do meu amigo e nosso camarada Arménio Cardoso - CART 6252/72, que também bebeu das 'águas escuras e amargas' do Rio Sapo. Lembrando quantos dos nossos por lá ficaram e outros tantos voltaram mutilados no corpo e/ou na a<lma, tivemos pois que concluir que somos todos privilegiados sobreviventes.

Há tempos ouvi o depoimento de um membro da E Company, 506 Infantry Regiment (United States), do tão mediatizado Band of Brothers, dizia ele que muitas décadas depois, nas frias noites do rigoroso inverno aqmericano, quando ia para a cama, falava para a esposa:
- Ainda bem que não estou em Bastogne!

Eu também, sem fazer comparações, claro, no fim desses dias em que a vida parece "Madrasta", penso:
- Ainda bem que não estou em Gadamael." (...)






Vasco Pires (1948-2016): notícia necrológica








BI de cidadão nacional do Vasco Pires

1. Celebra-se amanhã, na Anadia, dia 5,  sábado, pelas 19h00, missa  do 7º dia em honra da memória do nosso querido camarada Vasco Pires (Vilarinho do Bairro, Anadia, 15/6/1948 - Porto Seguro, Baía, 31/10/2016). (*)

O Vasco, que vivia no Brasil desde 1972, deixa 3 filhos, Mónica, Vasco e Catarina Pires. Tinha ainda a irmã, Isabel, a residir em São Paulo.

O elemento de contacto é o seu afilhado, Pedro Araújo, natural de Anadia, que nos deu a triste notícia e que já nos agradeceu também as "elogiosas palavras a respeito do Vasco" (**)... E acrescenta: "Foi ele que me enviou sempre os links para os postes que enviava para o blog da Tabanca Grande".

Páginas do Facebook dos familiares mais próximos:

Mónica Pires,  filha (deixou de ser atualizada desde 25/11/2015);

Isabel Pires, irmã.

Pelo que sabemos o Vasco terá morrido, de morte súbita,  em casa, em Porto Seguro, Bahía, de complicações respiratórias, e na sequência de uma gripe. O corpo foi cremado em Porto Seguro e as cinzas enviadas para São Paulo. 

À família enlutada, aos amigos e aos camaradas mais próximos, vai o nosso abraço solidário. 

O editor LG


2. Convidam-se os nossos leitores a visitar a sua série "Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires)", de que se publicaram, 16  postes, o último dos quais há 2 anos (****). 

Era  membro da nossa Tabanca Grande desde  27/9/2012 (*****). Era um querido camarada da diáspora lusitana, como ele próprio se nos apresentou:

(...) "Prezado Luís Graça: fico muito grato pela cordial acolhida, bem como pelo convite. Sou um desses milhões da multicentenária diáspora Lusitana. Em 1972 saí de Portugal, e por aí ando até esta data. Há talvez um ano, tive o primeiro contacto com o blog; quero te parabenizar como a toda a equipe pelo extraordinário trabalho, bem como pelo alto nível da edição do blog, em assuntos tão polémicos e carregados de emoção, com décadas de distância." (...)

Era seu editor, sempre dedicado e delicado, o Carlos Vinhal a quem o Vasco tratava por "padrinho".

______________





Postes anteriores:

18 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13623: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (15): Autorretrato de um soldado

11 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13600: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (14): Sou só o Comandante

15 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12047: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (13): A minha singela homenagem aos pais de todos nós

11 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11929: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (12): Fotos do Cap Op Esp Fernando Assunção Silva em confraternização com oficiais e sargentos sob o seu comando

21 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11858: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (11): Terra firme e o pântano - Dois grandes líderes, Cap Op Esp Fernando Assunção Silva e ex-Cap Art.ª António Carlos Morais Silva

25 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11627: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (10): Perguntas sem resposta

23 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11302: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (9): INGORÉ... ou os inusitados caminhos da memória

16 de março de 2013 &amp;gt; Guiné 63/74 - P11262: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (8): Terei estado no "bem-bom de São Domingos"?

9 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11223: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (7): Fotos de um líder, do Cap Op Esp Fernando Assunção Silva

3 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11185: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (6): ...onde também tem lealdade, dedicação e competência

24 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11148: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (5): "Alfero di canhão"

31 de janeiro de  2013 > Guiné 63/74 - P11033: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (4): Quem vem lá?

14 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10941: Fantasmas do fundo do baú (Vasco Pires) (3): A morte, em 24/1/1971, do cap inf op esp Fernando Assunção Silva, 1º comandante da CCAÇ 2796, e meu amigo~

16 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10535: Fantasmas do fundo do baú (Vasco Pires) (2): Como fui parar a Gadamael, por acção do meu pai e reacção do 'Paizinho' ...

13 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10525: Fantasmas do fundo do baú (Vasco Pires) (1): Uma história do artilheiro de Gadamael, à beira da peluda, no 'bem-bom' de São Domingos...

(*****) Vd. poste de 27 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10443: Tabanca Grande (362): Vasco Pires, ex-Alf Mil, CMDT do 23.º Pel Art.ª (Gadamael, 1970/72)

Guiné 63/74 - P16684: Inquérito 'on line' (81): a avaliar pelo total de respostas (n=91), só uma minoria (15%) refere a existência de casos de deserção (n=15) na sua unidade (companhia ou equivalente)... Menos de metade do que terá ocorrido na metróple (=34)... Impossível saber se há casos repetidos... A nossa estimativa, grosseira, é de 500 casos de deserção em toda a guerra: 2/3 na metrópole, 1/3 no TO da Guiné


Universidade de Coimbra > Centro de Documentação 25 de Abril > "Guerra, Deserção e Exílio | Exposição virtual" > Jormais e revistas > Capa do boletim "Guerra à Guerra", nº 1,  maio de 1972,  do CDP - Comité de Desertores Portugiueses, Suécia. Tinha 16 páginas, impresso a offset, era escrito todo em inglês (com exceção de dois parágrafos, em português...) e custava 2 coroas suecas ou 2 francos franceses... Não se escondia as dificuldades que esperavam os jovens desertores e refratários portugueses, em países como a França, a Holanda ou a Suécia: a língua, a burocracia, o controlo policial, as dificuldades de alojamento, a demora na regularização da situção legal (às veses quase um ano), a busca de trabalho, etc. O país "mais acolhedor" ainda era a Suécia que, no entanto, não dava "asilo político" aos desertores e refratários.. As oportunidades de permanência eram melhores. Havia 3 seções do CDP, em Malmo-Lund, Estocolmo e Uppsala... Esta primeira edição do boletim era da responsabilidada seção de Malmo-Lund. Não aparece nenhum nome português associado a este coletivo. Pelo conteúdo e pelo grafismo, o boletim parece seguir uam orientação maoista. A posição do CDP face é deserção era clássica:(i) a deserção afeta moral e materialmente as forças armadas, principal esteio de apoio da burguesia que explora a classe trabalhadora em Portugal e nas colónias; (ii) os jovens portugueses não devem recusar fazer o  serviço militar, o seu treino é muito importante para o combate revolucionário a travar em Portugal (e não no exílio); (iii)  os jovens devem aguentar-se o mais tempo possível em Portugal; (iii) uma vez mobilizados para a guerra colonial, devem então desertar levando com eles as suas armas...  Nada mais simples, para...um sueco!


 (Reproduzido com a devida vénia...)

(...) "Por ocasião do Colóquio O (AS)SALTO DA MEMÓRIA : Histórias, narrativas e silenciamentos da deserção e do exílio, realizado em Lisboa, na FCSH-UNL, no dia 27 de Outubro de 2016, o Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra, oferece uma exposição virtual de documentos, selecionados a partir de vários dos seus fundos e coleções." (...) Há livros e outros documentos, hoje já raros (como este que se reproduz acima), que inclusive podem ser descarregados pelo visitante em pdf.


A. INQUÉRITO 'ON LINE':

"NA MINHA UNIDADE (COMPANHIA OU EQUIVALENTE) NÃO HÁ CASOS DE DESERÇÃO"




1. Nenhum caso, na metrópole > 46 (50%)


2. Nenhum caso , no TO da Guiné > 58 (63%)


3. Um caso, na metrópole  > 17 (18%)


4. Dois casos, na metrópole  > 4 (4%)


5. Três ou mais casos , na metrópole  > 3 (3%)


6. Um caso, no TO da Guiné  > 13 (14%)


7. Dois casos, no TO da Guiné  > 1 (1%)


8. Três ou mais, no TO da Guiné 0 (%)


Total de votos apurados >  91



A sondagem fechou na 5ª feira, dias 3, às 15h34.


B. Comentário do editor


Não sei se um dia ainda chegaremos a saber qual foi o número exato de refratários e desertores da guerra colonial (ou do ultramar, como se queira).

Era bom que os nossos jovens historiadores, que felizmente não fizeram a guerra, nem viveram as paixões dessa época, pudessem dar um contributo decisivo para o esclarecimento deste assunto, durante muto tempo tabu na sociedade portuguesa.

Há dias fomos confrontados com um número (8 mil desertores), avançado por dois jovens historiadores ligados ao Centro de Documentação 25 de Abril /(CD25A), o Miguel Cardina e a Susana Martins (*).


Mas voltando aos desertores da guerra colonial...

Há quem tenha a veleidade de encerrar a história por capítulos. É uma conceção errónea da investigação científica. A história é um domínio fortemente marcado pela conflitualidade teórico-ideológica. Continuaremos a assistir à utilização dos números sobre a guerra como “arma de arremesso” por diferentes sectores da sociedade portuguesa, e nomeadamente na leitura e interpretação da guerra colonial, da decolonização e do 25 de abril.

.Há ainda muitos contos por contar e  muitas contas por ajustar… Por outro lado,  "não há almoços grátis": sem financiamento não há investigação, mas quem financia  nem sempre o faz por puro amor da ciência (e neste caso da verdade  histórica). Resta-nos a confiança na ética e na autonomia dos investigadores e no controlo da qualidade feita pelos seus pares.

De alguim modo indiferentes a isso, o nosso blogue vai carreando, também,  alguns materiais que podem ajudar à compreensão (mais do que à quantificação) de fenómenos como a "adesão" e a “resistência” à guerra… E nesse sentido que abrimos, de há muito, as nossas páginas ao debate (sereno) sobre os combatentes, os refractários e os desertores. Somos um blogue de combatentes, de veteranos da guerra da Guiné. E a Guiné um bom local de observação.

O inquérito “on line” que decorreu durante uma semana, e que encerrou ontem, dá-nos mais algumas pistas para reflexão. Como sempre o temos dito, este não é um instrumento científico, é apenas uma forma de potenciar a participação dos nossos leitores no debate de temas que nos dizem respeito e que nos interessam. 

Os resultados que obtemos podem estar “enviesados”, por terem respondido ao inquérito leitores que não foram combatentes na Guiné, etc. Por outro lado, estamos sempre a fazer apelo à memória… E presumimos a boa fé dos nossos respondentes...De qualquer modo, , o conceito de "desertor" não é pacífico.. Enfim, demasiadas fontes de potencial enviesamento dos dados que não podemos controlar neste tipo de inquirição que, por razões técnicas, só admite uma pergunta...

Feitas estas ressaltavas, o inquérito sobre os “desertores”, não chegou a ter as desejáveis 100 respostas. Ficou perto, mas aquém. No total, tivemos 91 respondentes. O que é, em estatística, um "número grande", mas está longe de ser uma "boa amostra"...

É aquilo a que se chama uma mera amostra de conveniência. A metodologia não nos permite tirar conclusões generalizáveis… Estamos a falar de um milhão de homens em armas, durante um período, longo, que vai de 1961 a 1975, em toda a guerra colonial (cerca de 800 mil metropolitanos  + 200 mil africanos).

Há a perceção, por parte da historiografia militar e dos ex-combatentes, de  que o caso o número de desertores será sempre muito baixo (menos de 1% ou até .menos de 0,5 %), comparativamente com o dos refratários (que seriam da ordem dos 20%, ou sejam, 200 mil).(**)

Por cada  5 homens em armas,  haveria 1 refratário (, o que é um proproção brutal, mas deve ser tido em conta o contexto dos anos, marcados pela emigração em massa, que ultrapassou toda ca capacidade de controlo do regime então em vigor, o Estado Novo)...

Quanto aos desertortes é mais difícíl estimar uma  proporção.. A aceitar (memso com reservas) os 8 mil desertores, seria menos de 1 desertor (0,8)  por cada 100 homens em armas... Na prática, podemos arredondar:  1 homem por companhia (150/160  homens)... Na Guiné, ou melhor nas unidades que passaram pela Guiné, e usando esta proporção,. poderíamos ter entre 750 e 1500 desertores... Há quem continue a pensar que é muito, face ao conhecimento empírico que teve da situação, cá e lá...

Vejamos agora os nossos resultados... Admitindo que as respostas ao nosso inquérito, no nosso blogue, são dadas de boa fé, temos um fenómeno curioso: os nossos camaradas referem o dobro de casos de deserção na metrópole relativamente ao que se terá passado no TO da Guiné. Todos reconhecemos que era “mais fácil” desertar, apesar de tudo,  antes do embarque para a Guiné do que depois, no terreno (veja-se o caso da CCAÇ 2402). E nalguns casos, aproveitava-se as férias na metrópole para desertar (os 2 casos da CCAÇ 3498)…

24 respondentes referem casos de deserção na metrópole, passados na sua unidade (companhia ou equivalente)... Tudo somado daria no mínimo  34 casos; 17 assinalaram  um caso; 4 assinalaram dois casos; e 3 assinalaram 3 ou mais casos.

Quanto à deserções no TO da Guiné, durante a comissão, há apenas 14 respondentes que assinalam 15 casos.

No total (considerando a metrópole e o teatro de operações) temos, assim,   meia centena de casos.

Admitindo que cada respondente representa uma companhia (150/160 homens, em números redondos; nalguns casos, um pelotão, de morteiros, de caçadores nativos, de artilharia, etc.), teríamos cerca de 10% do de total dos homens que passaram pelo TO Guiné (que terão sido pelo menos uns 150 mil,  contando com os militares do recrutamento local mas excluindo as  milícias).

Se em 10% dos efetivos (15 mil) temos cerca de 50 casos de deserção (na metrópole e no TO da Guiné), extrapolando para a população (150 mil), teríamos 500 casos...

Esta estimativa é mais conservadora do que a dos historiadores do CD25A, mas não deve andar longe da verdade... Cerca de dois terços dos nossos respondentes  diz que não houve nenhum caso de deserção no TO da Guiné, na sua companhia. Cerca de metade diz que não houve nenhum, caso de deserção na metrópole.

É um estimativa grosseira,,, mas convém arriscar, até  para incentivar a pesquisa (metodologicamente mais controlada e rigorosa) deste problema...

Atreveríamo-nos a fazer a pôr a seguinte hipótese de investigação: poderá ter havido 150 deserções no T0 da Guiné, entre 1961 e 1974,  e as restanttes (350) poderão ter ocorrido na metrópole...

Pode haver. naturalmente, casos repetidos. E na metrópole os números poderão ser menos fiáveis... De qualquer modo, estes resultados parecem verosímeis. Quem passou pela Guiné, entre 1961 e 1974, sabe que os casos de deserção  foram esporádicos e até atípicos. O típico desertor estava longe de ser um indiíduo "politizado", "objetor de consciência", etc. (vd. casos de 1970: base naval de Ganturé, e CCS/BCAÇ 2893)...

E não houve deserções em massa, com raras exceções (por exemplo, o do ten comando graduado João Januário Lopes, da 1ª Companhia de Comandos Africanos, em Conacri, em 22 de novembro de 1970, na sequência da Op Mar Verde, ao todo cerca 26 homens, mesmo que haja dúvidas sobre as circunstâncias em que esta história ocorreu).

É sabido que organizações clandestinas que lutavam contra a guerra colonial, como o Partido Comunista, não incentivavam a deserção dos seus militantes (que de resto não seriam muitos, na época), embora pudessem e devessem  apoiar casos individuais ou coletivos (***)

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