segunda-feira, 25 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18776: Notas de leitura (1078): História das Missões Católicas na Guiné, por Henrique Pinto Rema; Editorial Franciscana, Braga, 1982 (6) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,
Caminhamos para o termo desta resenha sobre a atividade missionária na Guiné, até à independência. Não conheço obra mais completa que a do padre Henrique Pinto Rema. Fico recetivo a toda e qualquer ajuda que me possam dar relativamente à islamização da região, o seu quadro evolutivo e a orgânica atual na Guiné-Bissau do trabalho do padre Pinto Rema resulta claro que uma parte substancial do insucesso missionário decorreu da inexistência de uma colonização efetiva que desse suporte àquele grupo minoritário de religiosos sempre confrontado com a inclemência do clima, o desconhecimento das línguas nativas, os muitos casos de hostilidade à missionação e o profundo isolamento a que eram votados os missionários.
Recordo que na Guiné do período da luta armada aventava-se que a religião católica se situasse entre os 3 a 5%. Esta percentagem, como é de todos sabido, tem vindo a crescer significativamente, há hoje muita tolerância religiosa na Guiné e respeito mútuo. Se assim não fosse, não teria havido aquele poderoso movimento em prol da paz, no tempo do conflito de 1998-1999, em que todos os credos religiosos apoiaram o movimento cívico-político para o fim da guerra e a reconciliação nacional.

Um abraço do
Mário


História das Missões Católicas na Guiné, por Henrique Pinto Rema (6)

Beja Santos

Em “História das Missões Católicas na Guiné”, Editorial Franciscana, Braga, 1982, o padre Henrique Pinto Rema oferece-nos uma visão integrada não só das missões franciscanas mas como de toda a missionação durante o período colonial. Como se referiu anteriormente, o período do liberalismo e da I República foram extremamente nefastos para a obra missionária. No capítulo “A segunda missão franciscana da Guiné Portuguesa”, tendo como balizas 1932 a 1973, o investigador analisa a missão franciscana no Vicariato Geral da Guiné, entre 1932 e 1940, refere o papel dos franciscanos na missão decorrente do Acordo Missionário (1941-1955). Deixaremos para o próximo e último texto a atividade franciscana na Prefeitura Apostólica, entre 1955 e 1973.

As “missões laicas” criadas em 1913 pela República, não deram os resultados esperados e não substituíram efetivamente as “missões religiosas”. Estas conseguiram sobreviver à primeira tempestade republicana e obtiveram um reconhecimento legal em 1919. O bispo de Cabo Verde levou às autoridades civis o problema da missionação da Guiné. Mas só no tempo do ministro João Belo, em 1926, se regulamentará a atividade missionária. A segunda missão franciscana chega à Guiné em Fevereiro de 1932. Serão mais tarde chamados, já em 1947, os missionários do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras, de Milão. A Santa Sé elevará, em 1955, a missão à categoria de Prefeitura Apostólica. E em Maio desse ano chegarão os primeiros franciscanos italianos da província de Santo António de Veneza. E com a independência, depois de 1974 será criada a diocese da Guiné-Bissau.

Temos, pois em análise, os franciscanos no Vicariato Geral da Guiné, ao longo da década de 1930. O autor recorda que em 1929 havia somente um missionário na Guiné, a situação religiosa na região piorara de dia para dia, o Vigário-Geral foi morto em Bolama pouco antes do 28 de Maio de 1926. Tomam-se diligências ao nível mais alto: o Núncio Apostólico insiste com o provincial dos franciscanos para um reforço missionário na Guiné. Eugénio Pacelli, futuro Papa Pio XII, escreve em 1930 ao superior da ordem dos frades menores: “A Santa Sé considera improrrogável a necessidade de missionários na Guiné”. Em 1930, o Padre João Augusto de Sousa, do clero do Funchal, chegou à paróquia de S. José de Bolama. Em 1931, o cónego António Miranda de Magalhães, das missões ultramarinas, encarrega-se da paróquia de Bolama e assumirá pouco depois o cargo de Vigário-Geral. A presença missionária é verificável em Bolama, Bissau, Cacheu e Geba/Bafatá. Vale a pena destacar um trecho da Provisão de D. José Alves de Martins, bispo de Cabo Verde e da Guiné Portuguesa, com data de Outubro de 1926: “Mercê talvez do seu clima, do espírito belicoso das suas tribos, da influência islamática há séculos exercida entre eles, a verdade é que não conseguirá nunca radicar-se a influência cristã de um modo decisivo, nem antes do século XIX, quando a acção missionária era quase exclusivamente exercida pelas ordens religiosas, nem depois da grande crise religiosa que se deu em Portugal na primeira metade do século XIX, quando tal acção ficou a cargo do clero formado no Seminário Diocesano de Cabo Verde e dos missionários formados no antigo colégio das missões ultramarinas (…) resolvemos nós, de acordo com o excelentíssimo governador daquela colónia dotá-la com três missões centrais em Bolama, Cacheu, Bafatá ou Gabu”.
Segue-se o reconhecimento das dificuldades, acabaram por só ser criadas duas missões centrais em Bolama e Cacheu, sem prejuízo de haver paróquias missionárias em Bissau, Geba e Buba. E define-se o essencial do programa da ação missionária: o ensino obrigatório da doutrina cristã; o cumprimento das instruções pastorais; o ensino da língua portuguesa.

Temos assim cinco missionários franciscanos chegados a Bolama em 1932. Em Agosto desse ano, o padre Pedro Araújo escreve ao Núncio Apostólico, envia-lhe um estudo religioso geral da colónia, e não ilude as realidades: “Se cristão mesmo há nesta colónia eles são-no apenas pelo batismo” e identifica duas coisas que seriamente embaraçam o missionário: a heterogeneidade das tribos, cada qual com a sua língua, os seus costumes e características étnicas, o que impossibilita ao missionário de contactar todas as raças; e o imperativo do plano missionário franciscano passar pela fundação de uma missão central em meio indígena, seria aqui que se abriria uma escola de professor-catequistas. A missão central ficará sediada em Bula. Por essa época chegarão à Guiné algumas Irmãs Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas. O governador Carvalho Viegas irá manifestar-se muito crítico quanto à escolha da missão central em Bula, preferia o território dos Felupes.

O padre Pinto Rema lembra qual o dispositivo missionário na Guiné nessa década de 1930: 2 padres do clero diocesano, 2 padres das missões ultramarinas, 9 padres franciscanos, dois irmãos franciscanos e 14 irmãs da Congregação dos Franciscanos Hospitaleiros Portugueses.

O estado geral dos edifícios religiosos deixa muito a desejar. A igreja de Geba estava em ruínas, mas havia fé na população nativa, ofereceram pedras, madeira e demais material para a construção de uma nova igreja, que ficou concluída em 1934. É neste contexto de reedificações que é lançado o projeto de uma igreja na cidade de Bissau, a catedral será inaugurada em 1950.

Em 1940, o Vicariato-Geral da Guiné ficou independente da diocese de Cabo Verde, nomeou-se em 1941 o primeiro prefeito apostólico. E dá-se então uma nova organização das missões da Guiné. O autor refere as publicações periódicas correspondentes ao período em análise, algumas de curtíssima duração e até só de uma edição: Boletim Oficial, Pró Guiné, o Comércio da Guiné, 5 de Outubro, o Arauto. Aparece um número apreciável de estabelecimentos, o autor dá destaque ao colégio católico de Bissau e refere um projeto que se tornou emblemático na Guiné: o Asilo de Bor.

No próximo texto, derradeiro desta série, passa-se em revista a atividade franciscana na Prefeitura Apostólica, entre 1955 e 1973.

(Continua)
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Nota do editor

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Último poste da série de 22 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18766: Notas de leitura (1077): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (40) (Mário Beja Santos)

domingo, 24 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18775: Blogues da nossa blogosfera (95): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (14): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.

HOMENS DE ENTULHO

ADÃO CRUZ

© ADÂO CRUZ


Para além de nós há o mundo
e durante muito tempo ignoramos o mundo
esquecemos as valas comuns que toquei ao de leve
muito ao de leve
não fosse os mortos magoar.
Nas margens verdes do Dniepre
regadas de lágrimas
onde cresceram flores sobre o chão de Babi-yar
umas de sal e água no mar quente de Bissau
bordando a lodo o cais de Pidjiguiti
outras de sangue esguichado das cabeças
à tona de água em último respiro
outras de terra ensopada em rios de morte
no ventre de um Wiriyamu fuzilado
na penugem de Chinteya
nas balas de Vaina
no esventrar de Zostina
nos gestos de um vulcão de raiva
em cada taça de vingança
que nem a morte amansa
nos túmulos da Palestina.
Sangue de Cristo
In Nomine Patris
mártires sem martirológio
corpos fecundos
erguei bem alto os ossos descarnados
que a morte é de acordar
e semear flores na aposta de outros mundos
erguei os rostos mirrados dos famintos da Terra
dos homens-entulho da grande vala comum
cavada no peito dos Humilhados e Ofendidos
pelos homens sem rosto
rasgada no ventre dos Condenados da Terra
pelos homens sem alma.
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Nota do editor

último poste da série de 27 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18684: Blogues da nossa blogosfera (94): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (13): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P18774: Blogpoesia (572): "Festa das ventanias", "Lagoa de Melides" e "Pérolas na vidraça", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Festa das ventanias

Vinha de tempos imemoriais.
Todos os anos, pelo São Pedro,
Arribavam de todo o mundo
Os ventos intemporais.
Como migrações.
Era a peregrinação universal das intempéries, com seus matizes.
Do oriente, os mais ferozes.
Habituados às asperezas asiáticas,
Desde o Evereste aos Himalaias.
O que valia era a distância.
Quando ali chegavam, vinham brandos. Ninguém suponha o que eles seriam na sua origem.
Chegavam à praça rodopiando em arcos leves. Descreviam formas vistosas de iluminuras.
Como serão as ninfas orientais.
Contrastavam com os do ocidente ameríndio, enigmático e imprevisível, das florestas amazónicas, com volutas voluptuosas das planícies verdes.
Vinham arfantes da travessia longa do oceano.
Se instalavam pacíficos pelas bancadas como se turistas.
Os do norte vinham trementes nas suas vestes longas. Insuficientes. Tiniam de frio. Aspiravam calor.
Para recuperar quem eram. O seu vigor.
Os do sul cheiravam a África. Eram agrestes como as vertentes do Killinmanjaro.
Exalavam perfumes inebriantes do equador.
Insinuantes como as dunas desérticas que atravessaram.
Só depois da primeira noite cada vento, já recomposto, mostrava quem era.
A seguir, era a festa da convivência.
Durava um mês.
Onde a fraternidade universal era a rainha…

Mafra, 23 de Junho de 2018
7h14m
Jlmg

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Lagoa de Melides

Abriram-lhe a porta...
Vi-a fugir.
Abriram-lhe a porta.
Pôs-se a correr.
Parecia uma louca.
Afogou-se no mar.
Escrava da terra.
Espelho do céu.
Queria ser livre.
Bem se enganou.
O mar a engoliu,
Sem faca nem garfo.
Ficou só o leito,
Ao vento e ao sol,
Até que a terra o vista de verde
E o dê a pastar.

Bar Castelão, 22 de Junho de 2018
9h57m
Jlmg

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Pérolas na vidraça

Escorrem-me pérolas na vidraça que dá para a Mata.
São da chuva intemperã.
Escorraçou o sol e pintou de cinza o tempo.
Um bombo de festa nas suas mãos.
Nunca sabe onde vai parar.
Ainda, ontem, radioso, reinou toda a manhã.
Fui ver o mar a brilhar de verde.
Me regalei sentado na minha cadeira à sombra, absorvendo a brisa.
Afinal, quem manda nesta república?
O rei não é…

Mafra, 21 de Junho de 2018
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18748: Blogpoesia (571): "Catedral do Universo", "Corrimão da escada" "Com sentimento..." e "Parece que já não há mais...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P18773: Manuscrito(s) (Luís Graça) (142); Autobiografia: no tempo em que havia um santo para cada estação, do são Sebastião ao são João... e os soldados partiam para a Índia



Foto e texto: © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné]



No tempo em que havia um santo para cada estação,
do são Sebastião ao são João… e os soldados partiam para a Índia


por Luís Graça



Domingo à tarde…
Sempre detestaste os domingos à tarde:
ou chovia ou fazia vento
e um cão uivava
na vinha vindimada pelo Senhor,
sobretudo nada acontecia,
de assinalável, 

no domingo à tarde,
e até o tempo parava
no relógio da torre da igreja da tua aldeia. 



Mesmo que a vida tivesse um sentido,
e tu escutasses a boa nova do padre Escudeiro,
no largo do convento,
às vezes soalheiro,
a vida ia no sentido inexorável
dos ponteiros do relógio,
dextrorsum,
aprenderás mais tarde, na escola,
ou, por outras palavras,
do berço à cova,
donde ninguém escapava
,
os novos sucedendo-se aos velhos na fila da morte.
E quem acabava, sua cova tapava.
 



Mentes: pelo menos, havia a bola,
as pequenas alegrias da bola, de trapos,
as paixões da bola,
os cromos do Sporting e do Benfica, e a escola,
(não, nesse tempo não se dizia escolinha!),
o bibe azul às riscas,
mais a sacola
onde levavas o caderno,  de caligrafia,
a tabuada, a caneta de aparo,
o pau de giz, a ardósia,
o pão seco com marmelada,
ou com toucinho fresco, ou salgado,
que era o presunto dos pobres,
e o livro de leitura da 3ª classe
com os meninos, na capa,
da Mocidade Portuguesa,
cantando e rindo,
e, como tu, às vezes,

chorando, suspirando e sonhando. 



Havia o jogo dos cinco cantinhos,
e o da cabra-cega,
mais o berlinde,
o arco e o balão,
o abafa, as caricas,  o pião,
a alegria (e às vezes o medo)
da hora do recreio.
Foi lá que aprendeste
que a vida tem horas
e dias e semanas e anos (…) 



E, com sorte,
haveria o bife ao domingo,
o polvo na maré-baixa,
o bacalhau com grão-de-bico à sexta-feira,
no tempo da quaresma,
se a gente lá chegasse,
ao domingo,
à maré-baixa,
à quaresma. (…)



Ah!, e as feiras!,
não te esqueças de referir as feiras,
havia as feiras e os mercados,
no Rossio, junto ao rio,
a merda dos bois e das vacas no terreiro,
e os pobres dos ciganos
sem eira bem beira,
de que tinhas medo que te pelavas,
mais as labaredas do inferno,
as fogueiras de são João,
a queima das alcachofras,
um tostãozinho para os santos populares,
as bichas de rabear,
o calvário e as suas treze estações,
a rua da Misericórdia,
a rua Grande,
a rua do Castelo,
havia três ruas, não mais, na tua aldeia,
e chegavam… 



A
h!, havia ainda a banda filarmónica,
o ti-nó-ni dos carros dos bombeiros,
a sirene do quartel dos bombeiros
que marcava as doze horas de domingo.
E o sino da igreja da tua aldeia
que tocava a finados
quando morria algum cristão.
E o são Sebastião, no inverno,
em janeiro no frio de rachar,
havia santos para cada estação,
o são João, no verão,
no 24 de junho,
o dia em que os camponeses da tua aldeia
iam à praia molhar os tornozelos,
os homens, de ceroulas arregaçadas,
as calças de cotim, remendadas,
os mais velhos de barrete preto,
e elas, de saias compridas, de flanela,
que não podiam mostrar a barriga da perna,
os matulões pegando nos putos a berrar e a espernear
e batizando-os na água salgada,
do grande oceano,
para que as carnes enrijassem,
e os meninos medrassem,
e lá voltassem pró ano,
todos os anos até ao dia das sortes,
e fossem grandes homens,
fortes e valentes,
marinheiros,  aventureiros,
soldados façanhudos
ou simples cavadores de enxada,
como os seus pais e os seus avós o tinham sido,
que os bisavós e os tetravós,
esses, já ninguém sabia quem eram,
nem de onde teriam vindo,
nem se chorava por eles,
porque
na época do trinta e um,
poucos moços, velhos nenhum
.


Ah, os camponeses e os seus burros
que ainda não estavam em extinção,
nem uns nem outros,
iam aos magotes
até à praia da Areia Branca,
no feriado do são João,
entre brincadeiras e dichotes,
levavam a trouxa e a merenda,
os tremoços e as pevides,
as peras, as ameixas e os abrunhos,
os melões e as melancias,
o pão de trigo do moleiro cozido em forno a lenha,
a broa de milho com sardinha,
as azeitonas mal curadas,
bebiam vinho pelo garrafão de palha,
comiam o arroz de cabidela,
de galo ou de coelho,
misturado com a areia e o vento e as lágrimas de sal, 

e as saudades dos mortos 
e dos perdidos pelos mares 
e pelos quintos do inferno do império...
Comiam o arroz, escuro, de cabidela,
em cima de mantas grossas,
feitas de trapos,
berrantes, multicolores,
e usavam canivetes multiusos
que tanto serviam para limpar a cera dos ouvidos
ou o lixo das unhas,
como para cortar grandes nacos de pão,
ou apanhar lapas e ouriços do mar...

Sangravam de saúde, 
pelo são João,
os camponeses da tua aldeia,
muita saúde, pouca vida,
que Deus não dava tudo,
no tempo em que beber vinho
era dar de comer a um milhão de portugueses
. (…) 



Na Praia da Areia Branca, pelo são João, lembras-te?,
o teu querido ti Silvano,
carpinteiro e cavaleiro,
utilizando-te como escudo
em luta contra as forças de Neptuno.
Foi num 24 de junho
(ou terá sido no dia de são Bartolomeu,
a 24 de agosto?)
de mil novecentos cinquenta e tal,
que passaste a ter medo do mar
e prometeste a ti mesmo
(vã promessa de menino!)
nunca vir a ser marinheiro,
que na água de mares,
não procures cabelos para te agarrares
.




Havia ainda a festa de são Sebastião,
Sabastião, dizia o povo, come tudo, come tudo,
o pobre de Cristo,
coitadinho do soldadinho,
do tamanho de um menino,
com ar de quem não tinha nenhum jeitinho para santo, 

nem muito menos para herói e mártir,
o corpo trespassado pelas setas dos maus,
havia os carros de pão,
as promessas, os leilões, as rezas,
os exorcismos, os amuletos,
os unguentos, as benzeduras da ti’ Adelina, 

(tua vizinha da rua do Clube,
que irá morrer nas Américas)
contra o mau olhado, 

as bruxas, os losibomens, o diabo,
cruzes, canhoto!,
o sarampo,  o sarampelo, a varíola,  a varicela,
a cólera, a raiva,  
a peste, a fome, a guerra, 
e o bispo da nossa terra, libera nos, Domine,
a tuberculose,  o tifo, a rubéola,
a febre amarela, a tosse convulsa, a diferia,
a disenteria, as sezões, e os males de amores,
e ainda estava para vir o ébola, a sida, o dengue
e os quatro cavaleiros do apocalipse. (...)



Havia, por fim, os soldados que partiam para a Índia,
e as mães da rua do Castelo
comprida, do cemitério ao largo das Aravessas,
que, desgrenhadas, rasgando saias e arrancando cabelos,
gritavam
para que a Virgem Maria velasse por eles,
os seus meninos,
e os trouxesse de volta, sãos e salvos,
no veleiro de torna-viagem. (...)

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Excertos:

In: Luís Graça - Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde, 2005, c. 50 pp. (inédito)

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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18491: Manuscrito(s) (Luís Graça) (141): Soneto para ti, Joana, ao km 40 da tua autoestrada da vida

Guiné 61/74 - P18772: Parabéns a você (1460): António Branco, ex-1.º Cabo Reab Material da CCAÇ 16 (Guiné, 1972/74) e Vasco Joaquim, ex-1.º Cabo Escriturário do BCAÇ 2912 (Guiné, 1970/72)


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Nota do editor

Último poste da série de 23 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18768: Parabéns a você (1459): João Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 5 (Guiné, 1973/74)

sábado, 23 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18771: Efemérides (286): Comemoração do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, promovida pelo Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes, em colaboração com a União de Freguesias de Matosinhos e Leça da Palmeira

Realizou-se em Matosinhos - Leça da Palmeira, a cerimónia de comemoração do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, promovida pelo Núcleo, em colaboração com a União de Freguesias de Matosinhos e Leça da Palmeira. 

Pelas 10H00 iniciou-se a comemoração com a concentração dos participantes em frente ao edifício da Junta, sendo de seguida içada a Bandeira Nacional pelo representante do Presidente da União de Freguesias de Matosinhos e Leça da Palmeira, Sr. Fernando Monteiro. 

Ao mesmo tempo que o Grupo Coral do Núcleo entoava o Hino Nacional, o clarim dos Bombeiros de Matosinhos-Leça da Palmeira, solicitado para o efeito, fez os toques adequados àquela cerimónia. 

Pelas 10H30 realizou-se uma missa presidida pelo Rev. Padre Francisco Andrade, na Igreja de Leça da Palmeira, por intenção de Portugal e de sufrágio pelos que tombaram pela Pátria e que teve como destaque o toque executado pelo clarim dos Bombeiros de Matosinhos-Leça da Palmeira. 




Pelas 11H30 foi dada continuidade à cerimónia no cemitério local - Talhão Militar da Liga, onde se encontravam posicionados o grupo coral, o porta-guião e uma Guarda de Honra composta por sócios combatentes. 

Procedeu-se de seguida por um sócio combatente à chamada dos combatentes leceiros mortos na Guerra do Ultramar seguida da deposição de duas coroas de flores no Talhão pelo representante do Presidente da União de Freguesias e pelo Presidente do Núcleo, Tenente-Coronel Armando Costa. 

A cerimónia continuou com o Toque de Homenagem aos Mortos e foi guardado um minuto de silêncio com cântico de um salmo pelo Grupo Coral, terminando a cerimónia com uma evocação religiosa pelo Rev. Padre Francisco Andrade. 

As alocuções alusivas ao ato ocorreram de seguida pelo Presidente do Núcleo e pelo representante do Presidente da União de Freguesias. As palavras ditas realçaram a importância de homenagear a memória de todos aqueles que, ao longo da nossa História, tombaram no campo da honra, nomeadamente na Guerra do Ultramar. 

Para terminar, o Grupo Coral cantou o Hino da Liga dos Combatentes na presença de dezenas de sócios, seus familiares, combatentes e público em geral que estiveram presentes nesta comemoração.








Fotos e texto: Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18761: Efemérides (285): O "Dia da Consciência", 17/6/2018... Agradecimento a todos (João Crisóstomo)

Guiné 61/74 - P18770: Os nossos seres, saberes e lazeres (273): De Aix-en-Provence até Marselha (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 18 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
Muito havia a ver em Arles, a UNESCO consagra a arte romana e o românico provençal, mas há a modernidade que aqui se entrelaça, a memória de Van Gogh que por aqui andou, de Picasso que ofereceu uma soberba coleção e há a fotografia, o acervo do Museu Réattu é impressionante.
O viandante aqui acampou alguns dias, Avignon era perto, foi-se de comboio de manhã e regressou-se à noite, às vezes sente-se um amargor de tudo aquilo que não se vê porque o tempo não é elástico, nem se pôs os pés na Camarga, havia uma vontade imensa de visitar o teatro antigo de Orange e apanhar um banho de Picasso em Les Baux-de-Provence, fica para a próxima, é para isso que servem as viagens, para deixar saudades e apetite desbragado para regressar, tal a imensidão de belezas que não se podem abraçar em tão poucos dias.

Um abraço do
Mário


De Aix-en-Provence até Marselha (5)

Beja Santos

O viandante entrou lampeiro neste reduto da Roma das Gálias, Arles, outrora uma encruzilhada comercial da maior importância, o Ródano passa na sua berma, bem caudaloso. Dos tempos medievos pouco resta, há esta porta fortificada, suficientemente impressionante para não se ficar aqui especado, sem se saber muito bem o que o miolo da cidade nos reserva, mesmo sabendo que os testemunhos do período romano são de um valor enorme, bem como o românico provençal.


O viandante já entrou na capital romana e refúgio de Van Gogh, pertenceu ao Condado da Provença-Barcelona, veio depois a Casa Anjou, a partir do século XIII a cidade entrou numa doce obscuridade, mas há marcas de valor estético, na arquitetura e na decoração, o turismo foi imperativo para a manutenção de um casco histórico de incontestável interesse, acresce que Arles se orgulha de ter um poderosíssimo centro internacional de fotografia e um museu romano em instalações modernas que é de uma enorme beleza. O viandante vai por ali fora, em demanda do monumento romano número 1, o anfiteatro.


O anfiteatro foi e é o símbolo da cidade. É semelhante ao anfiteatro de Nîmes, tanto nas suas dimensões (eixo longitudinal 136 metros, eixo transversal 108), como no que se refere à parede exterior. Tem duas ordens de arcadas e 60 eixos, que emolduram o exterior do edifício de forma oval. O anfiteatro continha 34 filas de assentos distribuídos por 4 ordens que permitiam a ocupação de mais de 20 mil lugares.


Esta construção foi provavelmente edificada durante as duas últimas décadas do século I, é uma construção idêntica não só à de Nîmes como ao Coliseu de Roma. O anfiteatro foi alterado na Idade Média para defesa da cidade. Três torres são disso testemunho. Entre as casas de habitação existentes no seu interior podiam ver-se, até ao século XIX, duas igrejas.


Quando as escavações puseram a descoberto as arenas, restabeleceu-se uma ligação à antiga tradição das lutas de gladiadores com as famosas corridas de toiros de Arles. O viandante está esmagado pelas possantes galerias, sente-se minorca diante desta grandeza do tempo dos imperadores flávios, e mais, vai encontrando indícios da continuidade da arquitetura antiga, a cultura grega na época helenística marca aqui presença.


Antes de partir para as Termas de Constantino, o viandante sentiu-se atraído por este caudaloso Ródano que vem lá dos confins da Suíça e vai todo buliçoso espraiar-se perto de Marselha, les Bouches du Rhône, um nome que aparece associado a uma importante região vinícola, ali produz-se bom vinho, exportado para todo o mundo.


O viandante sabia de antemão a fartura de sítios e monumentos que o esperavam em Arles, já se falou do anfiteatro, do teatro antigo, dos criptopórticos, da Igreja de S. Trófimo e do seu esplendoroso claustro, deu-se uma olhadela pela necrópole antiga e medieval, a peregrinação prossegue pelas termas de Constantino. As termas eram um ponto marcante da vida urbana na época romana, eram um marco de civilização para a fruição da higiene e um ponto de encontro. As termas de Constantino datam do século IV. O que aqui se vê dá a dimensão do que foi este edifício, os visitantes podem percorrer os locais do banho quente, tépido e frio, balneário e tudo mais.


O viandante não resistiu a ver esta parede adossada a construção mais moderna, é prática comum o aproveitamento do antigo, aqui resulta muito bem, impressiona o casamento entre Roma e a Idade Média, até chegar às beneficiações que a contemporaneidade permite. É bom de ver!


As termas romanas tinham características comuns. Os salões dos banhos, abobadados e fechados, alternavam com dependências abertas para o exterior. Os banhos eram aquecidos através de ar quente que circulava sob o pavimento apoiado em pilares.


A digressão termina na Fundação Vincent Van Gogh em Arles, veja-se a beleza da fachada, é uma casa de agenda carregada, desde exposições a programas de educação artística, há conferências, acolhimento de artistas, faz-se intercâmbio de obras de Van Gogh, vêm da Fundação em Amesterdão, à data, a obra de referência era L’entrée dans une carrière, datada de 1889.




Amanhã o viandante parte para Avignon, mas regressará a Arles, há museus a visitar, o Museu Réattu, um primor de pintura e fotografia e o museu de arte antiga, um reservatório colossal de arte romana. O palácio dos Papas, acreditem, é de uma monumentalidade esmagadora.

(Continua)
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 Nota do editor

Último poste da série de 16 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18745: Os nossos seres, saberes e lazeres (272): De Aix-en-Provence até Marselha (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18769: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 57 e 58: futeboladas... e férias na metrópole, em junho de 1973... o pai, biológico, vem despedir-se dele ao aeroporto de Pedras Rubras, no Porto, com a tia e a avó...Queixas em relação ao SPM: a correspondência que não chega ao seu destino...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > As nossas "futeboladas"...

Foto (e legendagem): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*):

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

2. Sinopse dos postes anteriores:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vi) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(viii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(ix) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(x) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xi) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xii) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xiii) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xiv) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xv) começa a colaborar no jornal da unidade (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xvi) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. capº 34º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xvii) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;

(xviii) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xix) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas;

(xx) em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.

(xxi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas;

(xxii) o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela;

(xxiii) vai haver uma estrada alcatroada de Fulacunda a Gampará; e Fulacunda passa a ter artilharia (obus 14); e o autor faz 23 anos em 19 de maio de 1973; a 21, sai para Bissau, para ir de férias à Metrópole; um grupo de 10 camaradas alugam uma avioneta, civil, que fica por um conto e oitocentos escudos [equivalente hoje a 375,20 €];

(xxiv) considerações sobre o clima, as chuvas; em 19/5/1973, faz 23 anos... e vem de férias à Metrópole, com regresso marcado para o início de julho de 1973: regista com agrado o facto de o pai, biológico, ter trazido a sua tia e a sua avó ao aeroporto de Pedras Rubras para se despedirem dele. 


3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 57 e 58


[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


57.º Capítulo  > A FERRADELA NO CU


Foi muito estranho para mim ser precisamente no dia do meu 23.º aniversário que me refiro ao Plácido. No entanto, antes quero que saibam que foi nesse dia que pela primeira vez soube de alguém que mordeu outro, num jogo de futebol.

“Houve hoje uma zaragata entre dois camaradas meus que foi castiça. Num jogo de futebol um rasteirou o outro e o rasteirado deu-lhe uma ferradela no cu. Imagina só, alguns de nós, até se estão a transformara em cães”.


Voltando ao Plácido: foi um furriel e, embora eu não tenha essa referência, penso que era o furriel de transmissões.

Embora apenas de forma subtil, no meu romance “DESERTOR 6520”existe uma grande influência do Plácido. Eis a minha primeira referência a esse senhor. Exactamente, esse senhor.

“Lembra-me para eu te contar umas coisas acerca do furriel Plácido, pois eu acho-lhe uma piada imensa, dado que ele é uma das figuras mais interessantes da companhia.

Diz ele que não anda aqui para ajudar o exército e por tal faz de conta que as ordens não são para ele. Cumpre algumas porque quer pois ninguém manda nele.

Acho que foi a primeira vez que ouvi estas coisas e que me fez pensar. Se faço aqui estas observações é só para mais tarde poder recordar através destas palavras o excelente camarada que é o Furriel Plácido”.


Acho que estava a começar a conhecer as pessoas. Talvez mais adiante encontre por aqui o Silva de Almada que agora vive nas Caldas da Rainha e… olhem, até dia 3 de Julho vou de férias.


58.º Capítulo  > TAP,  THE INTERCONTINENTAL AIRLINE OF PORTUGAL


Foi numa carta com este logótipo que escrevi as primeiras palavras no meu regresso à Guiné.

“Quero que saibas que o meu pai trouxe a minha tia e a minha avó ao aeroporto de Pedras Rubras para se despedirem de mim confesso que gostei da atitude dele mas custou-me despedir-me novamente da minha avó. Também vieram despedir-se de mim ao aeroporto os pais do Zé Leal foi muito comovente. Tive pena que tu não viesses”.

Foi a partir da minha vinda de férias e porque senti que as pessoas na metrópole, embora o negassem, pouco se preocupavam connosco, Excepto, claro, os familiares, deixei de me referir ao que comigo ou com os meus camaradas acontecia. Nos aerogramas e cartas escritos nos dias seguintes, apenas falo de amor, de literatura, de poesia ou música. Também escrevo anedotas, participo em concursos e até jogos e quebra-cabeças envio, via correio, para a namorada.

Noto, pelo que leio, que nessa altura o correio não chegava como era normal e muito do que enviávamos pura e simplesmente não chegava ao destino. Ainda possuo um mapa da correspondência enviada e recebida. Alguns amigos queixam-se do mesmo e até pequenas encomendas desaparecem, mormente cassetes de áudio que eu passara a enviar de vez em quando, mesmo sabendo que em casa da Amélia não havia luz eléctrica. Ela haveria de me ouvir em casa de alguém que tivesse um leitor. O certo é que a Maior parte delas não chegaram às suas mãos.

Cito o que disse no dia 23:

“Isto é uma cambada de sornas os tipos do SPM” (Serviço Postal Militar).

(Continuação)
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Guiné 61/74 - P18768: Parabéns a você (1459): João Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 5 (Guiné, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 22 de Junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18764: Parabéns a você (1458): Coronel Art Ref António José Pereira da Costa, ex-Alf Art da CART 1692; Cap Art, CMDT das CARTs 3494 e 3567 (Guiné, 1968/69 e 1972/74)

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18767: FAP (109): Testemunho sobre a minha ejecção na Guiné em 04OUT1973 (Alberto Roxo Cruz / Mário Santos)

FIAT G-91 R4 em voo


1. Mensagem do nosso camarada Mário Santos (ex-1.º Cabo Especialista MMA da BA 12, Bissalanca, 1967/69), com data de 6 de Junho de 2018:

Caro camarada Carlos.
Envio-te para publicação no blogue, este artigo descrito na primeira pessoa pelo meu amigo ex-Capitão Pil./Av. Alberto Roxo Cruz, do qual obtive prévia autorização para publicar.

Este é mais um dramático evento ocorrido nos dias da GUINÉ pelo Capitão Pil./Av. Alberto Roxo Cruz no decorrer da sua segunda comissão em Bissalanca em 04 Outubro de 1973.
Meu contemporâneo aquando da primeira estadia na BA12 em 1969 onde as acções se passaram dentro da normalidade de guerra, emparceirou depois entre 1972/74 com o nosso camarada tabanqueiro TGen. António Martins Matos que lhe deu cobertura após a ejecção do Fiat G-91 R4 n.° 5409 ocorrida em Outubro de 73.

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Este foi um acidente vivido já nos dias do Strela pelo Cap.Piloto/Aviador Alberto Roxo Cruz que se ejectou no Fiat G-91 5409 e felizmente sobreviveu para hoje nos poder contar como foi. A descrição contém opiniões e relata factos que não poderão obviamente ser comprovados, pela distancia temporal e também porque muita documentação relativa ao acidente foi destruída. 

Mário Santos

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Testemunho sobre a minha ejecção na Guiné em 04OUT1973

Alberto Cruz

Este acidente ocorreu a cerca de 50km Nordeste de Bissau, na zona do Tancroal.

Eu fazia parte, como asa, de uma formação de dois Fiat G91 R4.

Estávamos a desenvolver uma acção de bombardeamento, seguida de metralhamento, numa área onde tinha sido referenciada, por informações, a existência de um Grupo de atiradores de Míssil Strela. Creio que posteriormente estava prevista uma acção de pára-quedistas ou outras forças terrestres transportadas por helicópteros Alouette III.

Após termos executado dois passes de bombardeamento com bombas de 50 e 200 kg, iniciamos, um de cada vez, um passe de metralhamento de ângulos grandes (MAG).

Quando iniciei o disparo das metralhadoras, senti um grande estrondo no avião e a perda total de controlo do mesmo, assim como uma enorme quantidade de luzes acesas e a piscar.
Não era possível identificar qual a origem da "avaria", pois as vibrações eram tão violentas que me faziam bater com o capacete na "canopy" do avião. Ainda tentei desligar os "Yaw dampers", mas logo vi que não era essa a origem do problema.

Como me encontrava em ângulo de picada de 60º, decidi ejectar-me, pois entretanto as vibrações passaram à sensação de espiral descontrolada e tão violenta que perdi a capacidade de fixar a visão. Só via umas manchas verdes e cinzentas, que deduzo serem o solo e o céu que se apresentava nublado com alto-estratos.

A ejecção deve ter acontecido com cerca de 450 nós, que estava perto do limite do cabo de disparo do pára-quedas de abertura (470 nós).
Ainda arranjei tempo para decidir ejectar-me com a alavanca superior, por permitir melhor posição e menos danos da coluna.

Após esse accionamento, só me recordo de uma explosão muito forte, e perdi os sentidos. No entanto, fiquei num estado de semiconsciência, e que permiti interrogar-me como isto me tinha acontecido; “vi” a minha vida a correr em “flashes” rapidíssimos.

Segundo os dados da cadeira a ejecção, até à abertura do pára-quedas decorre um período de 1 a 2 segundos. Eu tive a sensação de terem passado mais de 5 minutos…

Acordei muito lentamente, e um sentido de cada vez, ainda com o pára-quedas em desaceleração. O primeiro sentido a recuperar foi a visão com a explosão do avião, bastante perto. Nessa altura ainda não ouvia nem sentia.

 BA 12, 1973 - Cap Alberto Cruz

De repente, começo a ouvir um silvo que provinha do pára-quedas. Seguidamente, sinto uma corrente de ar enorme na cabeça e vejo meu corpo pendurado, mas sem me conseguir mexer.

De seguida, reparo que tenho sangue a cair-me nas luvas e nos braços.
Mais tarde é que vi que o sangue provinha de uma perfuração do lábio inferior por embate do meu estimado Breitling, que ainda mantenho.
Aí, apercebi-me que tinha perdido o capacete, que estava com o francalete bem justo, assim como a máscara e a viseira colocadas. Quem quiser, que experimente retirar o capacete da cabeça nestas circunstâncias. Nós tentamos essa experiência e ninguém conseguiu!

A cadeira naquela época ainda era a primeira versão da Martin Baker, que tinha uma aceleração de cerca de 39/45 G's no disparo da cadeira. Logo aí sofri a primeira compressão da coluna. Seguidamente, a velocidade a que o pára-quedas abriu foi tal, que senti um grande esticão.
Após um grande formigueiro em todo o corpo, recuperei os movimentos. O tempo de queda foi de cerca de 15 a 20 segundos, mas naquelas condições é difícil medir o tempo. No entanto, ainda me permitiu desfrutar do maravilhoso silêncio do voo de pára-quedas. A chegada ao solo não foi directa; fiquei pendurado numa árvore a cerca de 5 metros do solo. Fui deixando o pára-quedas deslizar até que a cerca de 2 metros ele se desprendeu e caí desamparado no solo; mais uma compressão na coluna.

As dores lombares e num joelho, bem com a perda de visão de um olho, foram as sequelas de que logo me apercebi. Mais tarde, confirmou-se que tinha ficado mais baixo 2cm e que tinha fractura ligeira da vértebra D5, lesão no joelho com derrame do líquido sinovial e lesão traumática no olho esquerdo durante a ejecção, possivelmente pelo “arrancamento” do capacete.

Ainda me consegui deslocar para uma clareira, com a intenção de me sinalizar. No entanto, dos “very-light” que levava só restaram os que me tinham sido entregues pelo Cap. Pedroso de Almeida, quando fez o “desquite”. Bem-haja!

Quando comecei a pensar, apercebi-me que tinha o fato de voo do meu amigo Cap. Pinto Ferreira, ainda com o nome dele na “etiqueta” de identificação. A primeira coisa que fiz, foi enterra-la e disfarçar esse local com vegetação.
Começo a olhar para o ar, e vejo o meu chefe de parelha, o então Cor. Tir. Lemos Ferreira, Comandante da Zona Aérea Cabo Verde e Guiné a voar em círculos.
Pensei que me tivesse visto a aterrar, mas por eu já estar tão baixo, vim mais tarde a saber que apenas viu a explosão do avião, e por um segundo, o pára-quedas ser “engolido” pelas árvores.

Seguidamente, começo a ouvir vozes e alguns assobios, o que em África, devido ao silêncio que todos conhecem, tanto podiam estar perto como longe.
Imaginei que poderia ser “recolhido” pela população ou pelos guerrilheiros que tínhamos acabado de bombardear. Não iam de certeza levar-me um whisky com Perrier…

Comecei a criar um espaço onde poderia colocar o pára-quedas, para assinalar a minha posição, mas comecei a ter dores violentas nas costas; mesmo rolando no solo, de maneira a deitar o capim que tinha mais de dois metros de altura, não consegui espaço para estender o pára-quedas.
Entretanto, comecei a sair do estado de choque e comecei a “engendrar” a conversa que teria se fosse capturado. Estabeleci um plano, e fiquei a aguardar que me fossem recuperar. Ainda notei que o meu chefe de formação abandonou o local (deve ter aterrado “seco”), e apareceu outro Fiat a sobrevoar a zona, que mais tarde vim a saber ter sido o Ten. A. Matos. Pensei cá para mim: estou safo, estava perto da Base e ainda não eram 15:00 horas.

Passaram cerca de 40 minutos, que a mim me pareceram horas, e começo a ouvir o “santo” ruído de um Heli e em “stereo”; eram dois, mas um, eu nunca o vi.
Levantei-me com muito custo e preparei os “flares” para me sinalizar.
A clareira onde me encontrava estava rodeada de árvores, e apenas num pequeno ângulo, é que tinha visão horizontal.

Como os Helis não tinham informação precisa da minha posição andaram ainda uns tempos à procura, e eu que só tinha dois “flares”, resolvi accionar um, quando ouvi um Heli mais perto.
Passado um tempo, que não consigo calcular, vi pela primeira vez um Heli; quando ele passou pela abertura das árvores, disparei o “flare” que me restava mesmo apontando ao Heli, pois era a maneira mais certa de não o atingir…

Fui visto! O piloto do Heli tenta uma aproximação já na clareira, mas o capim, com 2 metros, teima em não baixar com o vórtice do rotor principal. Nesta altura, em que o piloto tenta baixar o máximo possível, eu noto que o rotor de cauda se aproxima perigosamente de uns troncos secos e grossos que emergiam do capim já “abatido”.

Entretanto, eu que já estava em pé novamente, mas com muita dificuldade, reparo que o Heli é um Heli-canhão. E agora? O Heli-canhão descolou de Bissalanca, voou, no máximo meia hora, deve estar com muito peso e eu embora magro, vou provocar “overload”. Ainda pensei que íamos lá ficar à espera de um Heli sem canhão.
Mais tarde, fiquei a saber que tinham descolado dois heli-canhão para me dar protecção e me localizar. Como a zona era muito problemática, tomaram a decisão de me recuperar mesmo com o canhão.

Como o Heli não conseguia aterrar, aproximou-se de mim e fui içado à mão, ficando com o estribo de entrada entre as pernas e agarrado à estrutura vertical onde fecham as portas.
Descolámos, mas passado pouco tempo, começo a escorregar, prevendo que me ia estatelar no solo. O mecânico, atirador do canhão, ao ver a “cena”, largou tudo e enquanto me agarrava pelo pescoço, ia gritando para o piloto aterrar o mais depressa possível, que eu estava a cair. O piloto quase que fez um “quick stop” e eu aterrei primeiro do que o Heli; saltei para dentro dele, batendo com a cabeça não sei onde, e tombei desmaiado sobre a caixa das munições do canhão.

Chegamos a Bissalanca, e eu, já acordado, noto que alguém estava à minha espera com um copo numa bandeja. Como sabiam que eu gostava, na altura, de me refrescar com água Perrier um dedo de whisky, tentei sair em pé da viatura que me transportou do Heli para o Grupo Operacional, armado em herói; claro está que se não me agarrassem rapidamente, lá ia mais outra queda.
Bebi o copo de um golo.

Já na enfermaria da Base, começo a sentir a cabeça à roda e um enjoo terrível. Pensei que me estava a acontecer alguma coisa pós-choque, mas não era mais do que a “doença” provocada pelo “refresco” que os malandros dos meus amigos adulteraram. O “refresco” da Perrier com um dedo de whisky era afinal whisky com um dedo de Perrier. Ainda hoje não sei quem foi o artista.

Fui para o Hospital Militar, regressei à enfermaria, e fui evacuado para a “Metrópole” no primeiro avião militar.

Regressei à Guiné nos primeiros dias de Fevereiro de 1974, e por coincidência (?), a primeira missão operacional teve lugar no mesmo local onde me tinha ejectado. Ao fazer o passe de metralhadoras, o dedo parecia que não queria accionar o gatilho; respeitei esta hesitação do dedo e não premi o gatilho.
Na missão seguinte, tudo se normalizou, após uma consciente reflexão sobre a lei das probabilidades…
A minha ejecção já foi na segunda comissão.

Eu era um dos dois únicos pilotos que tinham sido nomeados para uma segunda comissão, em Fiat, para a Guiné; o outro foi o então Ten. Cor. Vasquez, como Comandante do Grupo Operacional.
Apenas alguns dias após o 25 de Abril, convivemos com os guerrilheiros que combatíamos em 1969 nas antiaéreas, onde eu fui protagonista e tendo feito parte das missões mais complicadas, que incluíram uma tentativa (gorada) de, com a acção dos pára-quedistas, os “apanharmos à mão”.
O ataque às antiaéreas na zona do Quitafine a Sudoeste de Bissau, perto do rio Cacine e a fronteira com a Guiné-Conakri, eram missões que tínhamos que fazer para que os guerrilheiros não nos conquistassem esse território, pois as forças terrestres já lá não tinham acesso…

Foram conversas interessantíssimas, e pelas quais vim a saber que eles para não serem afastados pelas bombas que rebentavam dentro do "caracol" (local onde eram colocadas as antiaéreas), eram atados às armas. Normalmente usavam as ZPU-4 de 14,5mm ou as duplas de 12,7mm.
Nessa época ainda não tinham chegado à Guiné os Grupos de mísseis.
No entanto, em 1972 (?) já havia conhecimento de que estavam a ser treinadas as equipas dos mísseis na URSS.

Eu vim a saber disso, porque sendo adjunto do Comandante de Grupo, na segunda comissão, ao arrumar uns arquivos, encontrei documentação de 1972 (?) com informação detalhada dos EUA sobre os mísseis Strela, bem como um completo estudo do seu envelope de acção. Também referiam ter informações fidedignas que o aparecimento dos mísseis SAM-7 estaria para breve no Teatro de Operações da Guiné e só mais tarde em Moçambique.
Na Guiné, nessa altura, já ninguém era apanhado de surpresa…
Mas mesmo assim, e como o outro elemento da parelha sobrevoava a zona em altitude, não viu a saída do míssil, eu fiquei convencido que se tinha aberto o painel das metralhadoras do lado esquerdo, pois na inspecção antes do voo notei que já apresentava alguma folga.

Isto deu origem a uma consulta à Força Aérea Alemã, que informou que apenas tinham conhecimento de um caso desses, a baixa velocidade, e que isso foi fatal para o piloto. A grande velocidade, o avião destruía-se em voo, não dando a mínima hipótese ao piloto.
Mesmo assim, devido a essa dúvida, foram inspeccionados todos os Fiat's e descobriu-se que a maior parte apresentavam fadiga de material na fixação das metralhadoras. Isso obrigou à respectiva reparação em todos os aviões. A causa dessa fadiga e de algumas fracturas terá que ficar confidencial… por enquanto!

Mais tarde, e já após o 25 de Abril, chegou uma informação proveniente do PAIGC, de que o meu avião (5409) tinha sido abatido por um grupo residente nessa área, e que até encontraram o meu capacete. As razões porque fui “abatido” dentro do "envelope" do míssil terão também que ficar pela confidencialidade…
No entanto, continuo convencido que não fui abatido pelo Strela, mas que tive uma violenta falha estrutural. Mas como me pareceu que era mais conveniente, para os então “poderes constituídos”, tratar o acidente como “abate”, em vez de falha estrutural, eu fui-me calando…

Alberto Cruz
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18742: FAP (108): Memórias sobre "Alguns dos Falcões que passaram por Monte Real em 1964/65" (Mário Santos, ex-1.º Cabo Especialista MMA da BA 12)

Guiné 61/74 - P18766: Notas de leitura (1077): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (40) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2018:

Queridos amigos,
Para se fazer entendimento da insistência nestes relatórios sobre as observações por vezes cáusticas do gerente de Bissau acerca da agricultura guineense dever-se-á ter em conta os crescentes interesses do BNU na mesma. Detém o controle da Sociedade Comercial Ultramarina, daí a atenção dada às produções e às cotações das matérias-primas. Era visível a quebra no arroz, em vez de referir o tumulto da guerra dá a saber que os jovens agricultores, em número expressivo, estão nas milícias; a borracha tornara-se desinteressante; os serviços lançavam experiências, mas o gerente insiste que falta formação e que é uma grande apatia; a balança comercial é por demais deficitária, o BNU tem uma vida risonha com aqueles milhares de militares e a massa monetária a circular. A guerra existe mas parece que não é necessário falar nela, o que se deixa de produzir é importado, ponto final.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (40)

Beja Santos

Na segunda parte do relatório de 1965, o gerente vê-se na necessidade de se enfronhar num longuíssimo comentário à situação das colheitas. Esquecendo-se das apreciações já enunciadas em documentos anteriores, insiste em verberações quanto à estrutura agrícola, como se a administração em Lisboa tivesse os olhos vendados:
“A estrutura agrária das explorações agrícolas da Província é incipiente, para não dizer nula. Entre as populações autóctones não existe a empresa agrícola do tipo familiar; a agricultura pratica-se pelos métodos mais rotineiros que se possam conceber; o agricultor autóctone não mostra desejo de um pequeno esforço para, com o mesmo trabalho, e sementeiras feitas a tempo, obter melhores produções”.

São recriminações em série, acusa a fala de elites entre as populações agrícolas, deplora a falta de instrução e sensibilidade para aceitação de técnicas proveitosas, aponta a apatia que reina muitos setores e escrutina experiências e avança o porquê dos insucessos, assim descritos:
“Nos trabalhos que os serviços respectivos fizeram em regime de concentração o resultado foi alcançado. Citemos como exemplo os casos de Bolama e Ualada. Forneceram-se melhores sementes, ofereceram-se adubos para instruir e mentaliza, mas a acção é dispersa como convém para que, com um pequeno dispêndio e fracos recursos humanos, se obtivessem os melhores resultados. No entanto, as populações não correspondem ao esforço desenvolvido”.

Então, insinua a questão de fundo, a guerra que está por trás:
“A situação criada à Província levou o agricultor a concentrar-se nos grandes centros comerciais ou em tabancas onde encontra protecção. Por motivos de defesa houve necessidade de chamar para as milícias largas centenas de homens jovens, que deixaram de agricultar pois o salário mensal lhes basta, de onde resultou o afrouxamento da cultura do solo que todos os anos faziam para seu sustento”.
Seguem-se enormes parágrafos sobre a divulgação agrícola, a mecanização das culturas, o ensino rural, a formação acelerada da aprendizagem dos jovens, o cooperativismo, e feita a litania procede a uma descrição das culturas.

Quanto ao arroz, a produção baixou não por falta de terrenos para cultivo mas antes à escassez de agricultores, daí a importação deste alimento indispensável. Refere o que se está a fazer em Empada, na região de Ualada:
“O Plano Intercalar de Fomento propunha a defesa, enxugo e recuperação de quatro mil hectares de terrenos destinados a novas bolanhas. Os trabalhos de maior vulto localizaram-se em Empada onde as populações não tinham feito em anos anteriores sementeiras de arroz. De colaboração com os serviços militares pretendem-se reinstalar em Ualada, e recuperar para o trabalho, populações que se acolheram naquele posto administrativo. As populações colaboraram no estabelecimento de ouriques para defesa das bolanhas, das águas salgadas e no último momento decidiram-se a cultivar arroz. Segundo informação dos serviços, sabe-se que, já em 1966, as populações de Empada estão em vias de autoabastecimento. O reflexo que este empreendimento terá nas populações foragidas será motivo para se continuar a trabalhar. Na região de Bissau trabalhou-se em Bor e Antula. Em Bor, de colaboração com as autoridades locais, construiu-se um dique para fecho de um rio que permitirá o cultivo imediato de algumas dezenas de hectares e forneceram-se bombas para escoamento. Na região de Antula tentou-se também o fecho de um rio construindo com estacaria e terra uma pequena barragem, mas o trabalho não resultou por existência, a baixa profundidade, de laterite que impedia o enterramento das estacas. A produção promete ser melhor que as colhidas normalmente”.

Quanto à borracha, observa que não houve cultura dos plantadores da Guiné, e dá mais informações sobre o que se está a passar com a experimentação do caju. Assim, a Brigada da Guiné da Missão de Estudos Agronómicos do Ultramar dera sequência aos estudos preliminares programados, tinham sido plantados cerca de 77 hectares em povoações do concelho de Bissau, e tece o seguinte juízo:
“O lento ritmo de plantação, a par com os baixos preços praticados, não autorizam a esperar que, em futuro próximo, a industrialização do caju ou a sua exportação em larga escala venham a transformar-se nas realidades há tanto desejadas. O caju poderá vir a assumir no futuro um papel de primeiro plano no desenvolvimento agrícola e industrial da Guiné".

Referindo-se ao coconote e óleo de palma, afirma desconhecerem-se as áreas ocupadas pelos palmares naturais, com exceção dos Bijagós. Seguem-se longas considerações sobre a mancarra, onde houvera a substituição de sementes por variedades mais resistentes, dera-se formação à população, tinham sido distribuídos adubos e os resultados obtidos eram manifestamente satisfatórios, pois a produção dos campos adubados tinha sido muito mais elevada que a de outros agricultados por métodos antiquados. Punha-se o problema dos preços do amendoim guineense, os industriais poderia obter preços mais vantajosos em países como o Senegal ou a Nigéria, daí a necessidade de fomentar novas culturas.


Dedica algumas reflexões à mandioca dizendo que faz parte da agricultura de subsistência, usada quando escasseio o arroz. No fundo, não havia grande tradição da mandioca nos hábitos alimentares e com as crescentes importações de arroz a sua cultura estava cada vez mais desinteressante, no entanto havia toda a vantagem em produzir mandioca para exportação.

O relatório expende depois algumas considerações sobre trabalhos em curso, houvera asfaltagem completa do cais do Pidjiquiti, tinham sido recuperados 10 mil metros quadrados da bolanha marginal do rio Geba com vista à expansão das instalações portuárias. Calculava-se que estariam concluídas em Março de 1966 as obras de aterro do futuro cais da Bolola. E procede a uma síntese dos profissionais de saúde existentes na Guiné:

“a) Há um médico para cerca de 20.400 habitantes. Mas este valor não é suficientemente característico e enviesa as conclusões. Com efeito, só a área da delegacia de Bissau detém 20 médicos beneficiando as restantes nove delegacias de apenas 8 médicos. Nas áreas das delegacias de Mansoa e de Bafatá, por exemplo, há um médico para 91.000 e 81.000 respectivamente. Nota-se que, do total de 28 médicos, 12 são milicianos que, cumulativamente com a prestação do serviço militar, assistem às populações.

b) Em média, cada conjunto de 3400 habitantes é servido pelo enfermeiro. Embora menos acentuadas, as desigualdades na cobertura regional são ainda elevadas: nas áreas das delegacias de Catió e Mansoa existe um enfermeiro para cerca de 15.000 habitantes.

c) São também manifestamente escassos os efectivos de pessoal paramédico e não trabalha na Província actualmente uma única assistente comercial. Observe-se finalmente que das 46 pessoas empregadas em serviços paramédicos 32 pertencem à Missão de Combate às Tripanossomíases”.

Já estamos no relatório de exercício de 1966, os comentários vêm de Lisboa, são lisonjeiros. O comércio com o exterior regista aumento devido à importação de elevadas partidas de arroz, acentuou-se o défice da balança comercial com a queda do volume das exportações. A praça de Bissau desenvolve-se próspera devido ao maior poder de compra dos militares.

“Vem a propósito referir que o incremento da importação e o maior recurso ao crédito, sem dificuldades de solvência, constituem factores particularmente favoráveis aos negócios da filial ao longo de todo o exercício”.
E termina-se com um apelo à prudência:  
“Afigura-se oportuno recomendar a essa gerência a necessidade de se manter vigilante no tocante à distribuição de crédito, subordinando a sua acção neste campo à disciplina da política de objectiva prudência até agora seguida. Parece-nos, contudo, que a actual situação da praça se mostra favorável ao desenvolvimento da concessão de crédito a curto prazo, nomeadamente de operações de desconto puramente comerciais, desde que reúnam as necessárias garantias e sejam de montantes compatíveis com a capacidade de solvência dos intervenientes”.

(Continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 15 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18743: Notas de leitura (1075): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (39) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 18 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18752: Notas de leitura (1076): História das Missões Católicas na Guiné, por Henrique Pinto Rema; Editorial Franciscana, Braga, 1982 (5) (Mário Beja Santos)