segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20599: Notas de leitura (1259): "Memórias Boas da Minha Guerra", por José Ferreira - Recordar, recolher, semear alegrias e solidariedades: Um incansável ex-combatente que ata e desata entre o passado e o presente (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
Testemunhar é um assunto sério. Pode-se falar de cabriolices, encontros com sardinhadas, recordações de figuras patuscas, peripécias de erotismo juvenil e muito mais, em dado momento chega a hora da veneração e a veneração é o encontro e o reencontro, em nome do que se experimentou naquele conjunto que agora convive periodicamente, diminuindo os efetivos de ano para ano, imensuravelmente.
Tomo estes testemunhos como porta-estandartes ou lampiões alumiados que se recusam a diferenciar a noite do dia, estão acesos em nome de uma causa que se chama o dever de memória, e nesse dever de memória cabe o homem por inteiro, é o que José Ferreira faz falando de todas as suas experiências de vida, dos cruzamentos que se teceram, de tal modo que em dado momento chegamos ao teatro de operações e ele não se cansa, impante, de falar de uma flâmula que enobrece a história da CART 1689, a mesma que lançou as bases do tenebroso octógono de Gandembel.

Um abraço do
Mário

Recordar, recolher, semear alegrias e solidariedades:
Um incansável ex-combatente que ata e desata entre o passado e o presente

Beja Santos

O José Ferreira teve a gentileza de me enviar o terceiro volume das "Memórias Boas da Minha Guerra", matéria publicada no blogue que, curiosamente, ganha outra expressão na dimensão do livro. O epicentro da trama é a sua unidade, a CART 1689 e depois o rodopio dos locais percorridos, não faltaram Catió nem Gandembel, e muito menos Cabedú, Dunane e Canquelifá. Dei comigo a pensar noutro peregrino em Dunane, Cristóvão de Aguiar, o seu livro "O Braço Tatuado" aqui aconteceu o desfecho dramático que ele primorosamente narrou.

Estes relatos obedecem à lei do Caleidoscópio, remexemos as pedras e recriam-se novas visões do muito semelhante que qualquer outro combatente experimentou: amores de ocasião ou paixões furibundas; a homenagem aos enfermeiros, gente desveladíssima que atendia desafortunados da saúde nos postos e que eram conhecidos por doutores; salta-se imprevistamente para a adolescência do José Ferreira, dos seus convívios e encontros por sucessivas décadas, até porque esses encontros podem ter acontecido na Guiné ou em Cabinda ou em Crestuma, pelo menos; há páginas de muita ternura, como aquele rapaz do “sorriso parvo” e da sua Jacinta; há as peripécias dos festejos, das caçadas, entre a guerra e os seus preparativos, o caso da tasca da Rua dos Polacos, na Serra do Pilar; há o orgulho dessa mesma CART 1689 ter sido distinguida com a “Flâmula de Ouro do CTIG”; lembra-se o Capitão João Bacar Djaló, um bravo precocemente desaparecido… Para alguém que já dobrou os 75 anos, mesmo que recolha, como bom aedo, as histórias dos outros, há que reconhecer que mantém uma memória prodigiosa.

Tudo se vai contando sem qualquer rigor pelo calendário nem pelos teatros de operações, contam-se aspetos facetos passados no Sul e depois caminha-se para o Norte, e em dado momento, depois de muita reinação, depois de muita recordação de infância, aliás textos tocantes, entramos numa vibração de guerra, que destoa do cenário geral em que decorrem estas narrativas onde primam a amizade, a boa camaradagem e o humor. É o que se passa naquela tarde de 10 de junho de 1967, a Norte de Banjara, no Oio, para ali houve forte tiroteio, o Simões entra em estado de choque quando descobre que afinara à pontaria sobre uma mulher idosa, ainda hoje é uma chaga aberta na vida do Simões. Segue-se a Operação Inquietar II, em julho de 1967, estavam há escassos setenta dias na Guiné, e capturaram armas, muitas delas tiveram que as abandonar num regresso que foi um suplício onde não faltou o horror da sede. Estamos a falar de uma CART que ajudou a fabricar Gandembel, aquele octógono que era uma pedra no sapato para o PAIGC, em plena terra de ninguém, junto ao corredor de Guilege.

José Ferreira sabe ultrapassar as atmosferas fúnebres, isto a propósito do último almoço-convívio da CART 1689. Assinalam a data da partida para a guerra. Estiveram onze anos sem se reencontrarem, os convívios, de um modo geral, decorrem no Norte, de onde quase todos são provenientes. O número de participantes diminui, a idade não perdoa. Em 2016, houve missa na Igreja da Falperra, passaram pelo Sameiro e pelo Bom Jesus e o banquete foi para os lados da Povoa do Lanhoso. A memória de alguns já não funciona muito bem, deturpam-se e inventam-se histórias e há mesmo casos de amnésia. Houve discursos. Alguém que estava silencioso e que foi interpelado pelo autor, respondeu: “Olha, desta vez estou para aqui a observar a malta e verifico que o nosso fim está próximo. Lembras-te de quantos homens tinha a nossa companhia? 153! Sabes quantos militares estão aqui? 19! A maioria são familiares e a gente nem repara. Cada vez vêm mais familiares a acompanhar-nos, e sabes porquê? Porque nos vêm trazer e amparar. Andam a dar-nos as últimas alegrias”. Há discussões entre nortistas e sulistas.

E o rol de memórias culmina com uma ida de José Ferreira ao Porto, vê gente indigente, um desses que ele viu a comer magro tinha uma tatuagem que dizia “Amor à Pátria, Guiné, 1967-1969”. É a amargura pelo abandono, pelo puro esquecimento, o abjeto esquecimento de uma Pátria madrasta que renega facilmente todos os compromissos do passado, incluindo a veneração e o direito à dignidade de quem a dita Pátria mandou combater e trata como fantasmas.

E há um outro aspeto fundamental destas memórias de José Ferreira que aqui exalto: ele é um exemplo acabado do dever de memória, implica-nos sub-repticiamente na obrigação de tudo contar para que nada se perca, para que não se venha dizer que quem andou com as armas na mão prefere ser ignorado, talvez com o receio de que a História nem lhe confira o direito a uma singela nota de rodapé.
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20589: Notas de leitura (1258): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (42) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20598: Fotos à procura de... uma legenda (123): O caçador e empresário de cinema Manuel Joaquim dos Prazeres, o "nho Manel Djoquim" (1901-1977) andaria no mato... com uma pistola-metralhadora FBP m/948 ou m/961 ?


Foto nº 3 > Guiné > s/d > s/l > Uma das armas que o Manel Djoquim usava para caçar ... Uma carabina de caça, uma caçadeira, adaptada, com carregador de 10 munições. (Detalhe de foto inserida no livro "Manel Djoquim, o homem do cinema", de Lucinda Aranha (2018), pp. 80-81.



Foto nº 2 > Guiné > s/d > s/l > Uma das armas que o Manel Djoquim usava para caçar...crocodilhos e onças. De novo a carabina de caça,  caçadeira, adaptada, com carregador de 10 munições [Vd. foto nº 3].



Foto nº 1 > Guiné > s/l > s/d  > É provável que o Manel Djoquim, sobretudo depois do início da guerra, passasse a usar, também, para defesa pessoal, esta pistola metralhora que parece ser uma FBP m/948. Mas a Lucinda Aranha nunca lhe ouviu falar em armas de guerra. O pai, de resto, não fez o serviço militar. Mas percorreu toda a Guiné, de lés a lés, antes e durante a guerra, pelo menos até 1970/71...

Fotos (e legendas): © Lucinda Aranha (2014) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



I. Diversos comentários ao poste P20558 (*) e mensagens chegadas por email, relacionadas com o tema:

(i) Valdemar Queiroz:

1ª. fotografia (*): O Sr. Manuel Joaquim está com uma espingarda metralhadora e, se era utilizada como caçadeira, matava a caça de rajada. (...)

24 de janeiro de 2020 às 02:25

(ii) Tabanca Grande

Caros leitores, vamos lá descobrir que arma era esta... Está identificada e descrita no livro, na página 71...

A mecânica, os carros, a caça e, mais tarde, a fotografia são paixões que o acompanham na Guiné... Caça onças e crocodilos... cujas peles depois vendia...(Hoje, seguramente, teria outra consciência ecológica e conservacionista, como o nosso camarada Patrício Ribeiro, que vive na Guiné ha mais de 4 décadaas...).

24 de janeiro de 2020 às 07:09



(iii) G.Tavares:

A arma parece-me ser uma pistola metralhadora FBP.

24 de janeiro de 2020 às 09:31



(iv) Luís Graça

Ou será uma carabina de caça adaptada pelo Manuel Joaquim... Marca e calibre ? Estava na moda, na época. Estamos a falar do pós-guerra, anos 50, antes do início da guerra colonial.

24 de janeiro de 2020 às 12:03


(v) Valdemar Queiroz:

Rectifico: A arma é uma pistola-metralhadora FBP 9 mm, de coronha recolhida.

 24 de janeiro de 2020 às 12:56

(vi) Antº Rosinha:

Naqueles tempos uma das actividades com mais sucesso em África era ser mecânico de automóveis, (camiões, tractores, máquinas), ser mecânico, ou ter uma oficina com mecânicos, ou ser muito "habilidoso" com maquinismos.

As viaturas exigiam uma manutenção tão cara, que o mais difícil não era dinheiro para a aquisição da máquina, o mais difícil era a sua manutenção.

Isto tudo também devido ao tipo de estradas, picadas, que nem é preciso explicar.

O Manuel Joaquim tinha uma oficina e era apaixonado por carros, estava nas suas sete quintas.

Dizia-se: uma camionete velha, uma caçadeira, uma linda mulata...é o paraíso na terra.

Foi uma pena ter vindo a guerra e todas as grandes ambições, e vejamos no que deu, acabou-se o paraíso na terra.

24 de janeiro de 2020 às 13:00


(vii) Tabanca Grande

Rosinha, mais à frente falaremos da "grande ansiedade" com que era esperado o Manel Djoquim, nas terras do interior da Guiné... 


Ele, era de facto, o homem dos "sete ofícios", tendo mãos milagrosas para tudo o que era "mecânica": geradores, automóveis, camionetas, motores, armas... Às vezes estava no Sul e chamavam-no, do Norte, algum administrador ou chefe de posto, para ele vir depressa consertar... o gerador!...

Os administradores retribuíam-lhe depois estes "pequenos grandes favores" com hospitalidade e apoio (logística, publicidade, cipaios...) à realização das sessões de cinema... Não admira por isso que fosse recebido em festa por todo o lado, da administração às populações: "A la Manel Djoquim i na bim" [Vem aí o Manuel Joaquim!].

24 de janeiro de 2020 às 14:48

(viii) Tabanca Grande


Valdemar e G. Tavares:

A FBP era uma arma de guerra, uma pistola-metralhadora... Vulgarizou-se com a guerra de África / guerra do ultramar / guerra colonial.. Não me parece que, nos anos 50, pudesse andar nas mãos de civis... Pelo pelo menos, antes dos acontecimentos de 1961,em Angola...

Além disso, na sua 1ª versão [FBP m/948], só fazia tiro de rajada...

Diz a Wikipédia:

(...) FBP é uma pistola-metralhadora projectada no final da década de 1940 por Gonçalves Cardoso, Major de Artilharia do Exército Português, combinando as funcionalidades da MP40 alemã e da M3 americana. O resultado foi uma arma de confiança e com baixos custos de produção. (...)







Guiné, Região do Oio, Olossato, 1963. CART 527 (1963/65).
Fur mil António Medina, equipadode pistola metralhadora FBP,
m/948 ou m/963.  É natural de Cabo Verde,  ilha de Santo Antão.
Vive nos EUA.

A arma acabou por ser produzida pela Fábrica de Braço de Prata (FBP) em Lisboa, com cuja sigla foi baptizada.

A arma foi utilizada em combate pelas Forças Armadas Portuguesas durante a Guerra do Ultramar. A sua utilização nesta guerra levou à verificação que a sua capacidade de fazer apenas tiro automático levava a um grande desperdício de munições [, FBP m/948]. Como tal, em 1961 foi introduzida uma versão aperfeiçoada com capacidade acrescida de tiro semiautomático [FBP m/963]. (...)

4 de janeiro de 2020 às 16:00

(ix) Valdemar Queiroz

Luís: A caríssima Lucinda Aranha incluiu, no seu livro 'O Homem do Cinema', fotografias cá da minha pessoa (ena, até já apareço em livros) em Contuboel e fez o especial favor de me o enviar, autografado. O meu neto Zee (mar, em neerlandês)farta-se de mostrar o livro com a foto do avô 'a ver filmes na selva'.


FBP m/948. Origem: Portugal. Fonte: Wikipedia (com a devida vénia...)

Quanto à arma da 1ª. foto [acima], é sem duvidas uma FBP m/48 ou m/63, igualzinha à que aparece na imagem do P5690 (**). 

A arma transformada, referida no pag. 71 do livro, deve ser uma adaptação, com um carregador de 10 balas, numa carabina de caça.


Este nosso blogue Tabanca Grande e Camaradas da Guiné é também feito de todos estes extraordinários episódios passados na Guiné que nós conhecemos quando lá estivemos, infelizmente, na guerra.

Não façamos deste blogue apenas de noticiários dos sempre agradáveis e saudosos Encontros/Almoçaradas da rapaziada, ou de arrepiantes noticias de necrologia dos nossos queridos camaradas falecidos.(...)

24 de janeiro de 2020 às 18:14



(x) Tabanca Grande

Ok, ótimo, a Lucinda é impecável...

Pedi-lhe para esclarecer a marca, o modelo, o calibre, o ano da carabina. 


Na pág 71, ela diz que o pai "andava sempre armado", tendo : 

(a) uma "Flaubert" [?], "uma carabina para atirar ao alvo"; 

e (b) uma caçadeira,calibre 12, automática, com um carregador de cinco cartuchos, mas em que ele modificou "todo o sistema (os carregadores, as molas)", ficando com a possibilidade de dar "10 tiros seguidos"... (pág. 71).

Não percebo nada de armas de caça... Mas, nas pp. 80/81, aparecem mais fotos com estas armas [, vd. acima, fotos nº 3 e 2]...


24 de janeiro de 2020 às 19:47



(xi) Alcídio Marinho

A arma que se vê em cima do para-lamas, parece ser uma Thompson, arma usada no tempo de Al Capone, que podia utilizar carregador ou tambor.


(xii) Valdemar Queiroz

A nossa pistola-metralhadora FBP e a americana Thompson m3 são primas direitas.

Julgo que a nossa foi projectada/fabricada com uma 'autorização' da Thompson.

A nossa tem o punho em madeira e a entrada do carregador ligeiramente diferente, a Thompson é toda feita em ferro.


A famosa m3, cacibre 45, de 1942  (USA).
Criador: George Hyde. Não oconfundir
com a Thompson...
Fonte: Cortesia de Wikipedia.
Julgo que a esta Thompson não era adaptado o tambor/carregador.

E não sabemos como o Sr. Manuel Joaquim adquiriu a nossa, por ser arma de guerra, ou então a Thompson, por ser de algum gangster americano.

(xiii) Lucinda Aranha

25 jan 2020, 20h50

Luís,

Vejo que efectivamente gostaste do livro pelo empenho que tens demonstrado, o que muito te agradeço. 

Quando escrevi o livro, tive a preocupação de não ferir susceptibilidades, tendo-me as minhas irmãs pedido para que os nomes fossem alterados; segui o mesmo critério para algumas das outras personagens que aparecem no livro de modo a não ferir descendentes. (...)

Sobre as dúvidas a propósito das armas do meu pai, o que sei é que nunca ouvi falar que tivesse uma metralhadora mas as armas que referi no livro, entre elas a dita Flaubert, que adaptou. 


Várias fontes me falaram destas armas, sendo a mais fidedigna e importante o genro do Esteves [, da Casa Esteves, Bissau] , o sr. Pereira, pelas relações de grande convívio e amizade. Aliás, assim que puder, já combinei encontrar-me de novo com ele para tentar esclarecer as dúvidas que tens posto a propósito do Esteves e do meu pai. 

Não percebo nada de armas mas o meu pai era um espírito muito inventivo e não me espantaria que a vossa metralhadora fosse a dita Flaubert com a cartucheira adaptada e, eventualmente, que o braço mais comprido seja uma pega. 

Nas pp 80/81 do livro, lá está a dita de novo, embora reconheça que não tem nenhuma pega. 

Quanto a toda a parafernália de que ele se fazia acompanhar, disse-me uma outra fonte, o sr. Faxina, que se encontrava, pelo menos até há alguns anos, no quintal do Tita Orelha. Creio que este senhor já morreu, mas há um filho, que talvez seja tabanqueiro, com quem nunca consegui falar. Eventualmente, seria ele quem melhor te podia esclarecer. 

Gostei muito do poste sobre o zepelim. Quanto à data exacta da ida do meu pai para Cabo Verde. não consegui apurá-la com toda a exactidão, 1922 é a minha proposta. 

A concretizar-se o encontro da Lourinhã, teremos muito para falar. (...)

Quanto à venda do livro, pode-se sempre encomendar na FNAC, mas tenho em meu poder vários livros e gostava de os vender. Basta que os interessados me contactem para o meu mail [ lucinda.aranha@gmail.com ], que eu enviarei o(s) livro(s) pretendido(s) pelos CTT
 contra reembolso ao preço de 12,50 euros (já com os portes incluídos).

PS- Há efectivamente uma relação entre "No Reino das Orelhas de Burro" e "O Homem do Cinema",  embora este último não seja um prolongamento do anterior. 


Quando escrevi "No Reino...",  já pensava escrever um livro sobre o meu pai mas ainda não tinha os contactos indispensáveis para o poder fazer. "No Reino..." é um caderno de agravos ( se me é permitida a terminologia da revolução francesa) em defesa dos direitos dos animais. Tenho muito gosto em te oferecer um exemplar assim como do "Melhor do que Cão é Ser Cavaleiro", uma espécie de romance da cavalaria escrito por duas das minhas cockers. (...)



Guiné > s/ l> s/d >

O  "Manel Djqouim" com uma pistola-metralhadora
FBP, Thompson ou M3 ?... Detalhe.
Foto: Cortesia de Lucinda Aranha
(xiv) Elísio Esteves de Oliveira [nosso leitor e camarada, nascido em Angola, ex-oficial miliciano de infantaria, CTIG, 1963-1965]

sábado, 25/01, 23:06


Boa noite, Luís,

Cá está de volta o chato picuinhas - mas na foto que acompanha o post Guiné 61/74 - P20588: Manuscrito(s) (Luís Graça) (177): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte II (*), a arma que nho Djoquim empunha não é uma caçadeira, mas sim uma portuguesíssima {pistola metralhadora] FBP m/948... 


Topa o encaixe para a baioneta sob o cano, o carregador e a corcova entre o carregador e o resguardo do gatilho.

Um Alfa Bravo e um bom ano,
Esteves







(xv) Lucinda Aranha

26 de janeiro de 2020, 19h50:


(...) Como te disse, quer o falar de novo com o Pereira [, o genro do Esteves, de Bissau.] que me deu as informações mais detalhadas e mais fiáveis sobre a vida do meu pai na Guiné e sobre o Esteves, inclusive sobre as armas. 


Gostava também de falar ao Parente cujo irmão mais velho chegou a caçar com o meu pai mas não acredito que ele possa responder às vossas dúvidas. Falei com o meu cunhado que combateu na Guiné e ele também acha que pode ser uma pistola metralhadora. O irmão, que esteve na marinha, também na Guiné, põe a hipótese de ser uma pistola metralhadora FBP de 9mm ( feita em Braço de Prata).

Volto a dizer que nunca ouvimos lá por casa falar em G3 ou metralhadoras. Será que com a guerra colonial comprou alguma dessas armas para se defender? Para se exibir? Ele nunca fez o serviço militar, mas era farrompeiro a propósito das suas caçadas.

De qualquer modo, acho que ninguém caça com semelhantes armas.

Ontem,andei à procura de outras fotos com armas mas não encontrei o mail que mandei à editora. Esta semana vou procurar os originais e logo te envio mais fotos. Talvez fosse melhor esperares por estes elementos que, quem sabe, poderão ajudar a esclarecer dúvidas. (...) (***)

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Guiné 61/74 - P20597: Parabéns a você (1749): Mário Serra de Oliveira, ex-1.º Cabo Escriturário da BA 12 (Guiné, 1967/68)

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20593: Parabéns a você (1748); Fernando Macedo, ex-1.º Cabo Apont Art.ª do 5.º Pel Art (Guiné, 1971/72)

domingo, 26 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20596: Blogues da nossa blogosfera (119): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (34): Palavras e poesia


Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.

MÃOS DE HOJE QUE FORAM DE SEMPRE

ADÃO CRUZ

 © ADÃO CRUZ



Na noite que já não é noite de madrugadas
perpassa em doce silêncio por entre os dedos dormentes
uma brisa dolente
esquecendo as mãos na paz adormecida.
Por entre os frágeis dedos da quietude e do silêncio
vagueia agora em suave melancolia
o magro regato da secura da vida
arrastando em seu leito rugoso
a triste canção de um tempo sem cor nem movimento.
O lento gesto do abrir destas mãos de tantos anos vividas cai agora em pesado silêncio por entre as malhas da sombra
no impiedoso vazio das mãos cheias de nada.
Foi-se embora a madrugada das manhãs perdidas
no tempo em que o sol sorria entre os sonhos
e as mãos cantavam a força da vida
com ondas do mar por entre os dedos frementes.
No penoso abrir e fechar de mãos
deste plangente gesto do fim do dia
feito canção de tão gélido silêncio
apenas a saudade se aninha em negro fundo
para morrer sozinha.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20550: Blogues da nossa blogosfera (117): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (33): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P20595: Blogpoesia (657): "O chão da minha aldeia", "Suavidade benfazeja..." e "O talento brota do chão", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


O chão da minha aldeia

Sabia de cor os caminhos da minha aldeia.
Era negro o chão.
Ficava verde quando o cobria o sol.
Tinha campos e montes onde esvoaçava o passaredo.
Sobre as eiras aloiravam espigas.
Depois de secas, não escapava uma.
Era um mar de neve, a escorrer da mó.
Abençoadas broas que saíam do forno de lenha.
Era um regalo para a semana inteira.

Aquele riacho manso a serpentear perdido pelas fonduras da aldeia.
Dava de beber ao gado, regava as terras e servia de mar a quem não tinha praia.

E aquele folguedo sadio enquanto se vindimava o vinho...
Era uma romaria que galvanizava a aldeia!

Bar dos Motocas, arredores de Berlim, 21 de Janeiro de 2020
15h19m
Jlmg

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Suavidade benfazeja...

Ó suavidade benfazeja que inundais as nossas almas.
Fazeis ver com claridade a escuridão da vida.
Seus enigmas.
Suas chamadas divergentes.
Que nos afastam da luz.
Nos sujam a consciência e roubam a perfeição.

Ó suavidade etérea das boas obras.
Que nos aproxima e une à perfeição.
Manto leve e transparente onde se abrigam nossas tendências positivas.
Doce enleio que nos eleva sobre as núvens mais enegrecidas.

Envolvei-nos como a um bébé.
Até que consigamos caminhar em segurança por nosso pé.
Que à vossa luz, nossa mente se ilumine e atinja os cumes da verdade...

Ouvindo Adágios
Berlim, 22 de Janeiro de 2020
10h17m
Jlmg

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O talento brota do chão

O talento brota do chão
Não precisa de amanho.
Floreados não tem.
Cristalino, brota do chão.
Não precisa de cálculos.
Nasce das mãos.
Laçadas e laços.
Desfazendo meadas.
Na forma mais simples.
À vista do olhar.
É arte a escorrer.
Pinceladas, rabiscos.
Jogos de cores.
Esfacela-se a pedra.
Linhas de rosto.
Adoçam-se as formas,
Em busca da alma.
Buscam-se os sons e os sonhos
que esvoaçam nas pautas.
Cobre-se o quadro com traços de giz.
Calcula-se a órbita da lua e da terra.
Sputniks à frente.
Sem nada lá dentro.
Arrisca-se a Lassie.
Depois, Gagarine.
Poisa-se na lua.
Com saltos de ave.
Fazem-se as malas e se volta a casa.
Viagem à lua.
Já fui e voltei...

Berlim, 23 de Janeiro de 2020
13h17m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20572: Blogpoesia (656): "Ociosidade intelectual", "Desafio de viver" e "Cair da tarde", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20594: Agenda cultural (725): Odivelas, sábado, 8 de fevereiro de 2020: 5º Encontro Regional para uma Intervenção Integrada pelo Fim da Mutilação Genital Feminina (José Martins)



1. Informação que nos foi fornecida pelo nosso colaborador permanente, José Martins, que reside em Odivelas [ex-fur mil trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/7o; tem mais de 400 referências no nosso blogue): 


Odivelas recebe o 5.º Encontro Regional para uma Intervenção Integrada pelo Fim da Mutilação Genital Feminina

Data: Dia 08 de fevereiro 

Local:  Auditório da Escola Braamcamp Freire.

Guiné 61/74 - P20593: Parabéns a você (1748); Fernando Macedo, ex-1.º Cabo Apont Art.ª do 5.º Pel Art (Guiné, 1971/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 25 de janeiro de  2020 > Guiné 61/74 - P20590: Parabéns a você (1747): João Alberto Coelho, ex-Alf Mil Op Esp do BART 6522 (Guiné, 1972/74)

sábado, 25 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20592: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XXXIV: Raul Ernesto Mesquita Costa Passos Ramos, maj art (Quelimane, Moçambique, 1931 - Pelundo / Jolmete, Guiné, 1970)






1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais, oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975, na guerra do ultramar ou guerra colonial (em África e na Ásia). (*)

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva [, foto atual à esquerda], membro da nossa Tabanca Grande [, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972 ]

2. Sobre a tragédia do Chão Manjaco (em que foram barbaramente assassinados pelo PAIGC, em Jolmete, em 20 de abril de 1970, três oficiais superiores, um alferes miliciano, dois condutores de jipe e um tradutor, nativos, todos desarmados), temos dezenas de referências no nosso blogue. Ver em especial:

Três majores
Major Magalhães Osório
Major Passos Ramos
Major Pereira da Silva
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Guiné 61/74 - P20591: Os nossos seres, saberes e lazeres (374): A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
A viagem de 1977 encetou uma relação afetiva, criou um lugar pleno de vínculos, rapidamente ir a Bruxelas significava trabalho aprazível e aventura. Ao princípio, eu estava confinado aos guias, entrava no Turismo para saber das exposições e espetáculos. Depois a sociedade digital alterou o acesso às informações, fizeram-se amizades. E convém ter sempre sorte, esta aqui nunca me abandonou.
Uma vez, aqui desembarquei ao princípio da tarde, deixei a trouxa numa albergaria e às dez para as seis encaminhei-me para a bilheteira da Ópera de Bruxelas, dentro de minutos começava "Tristão e Isolda", de Richard Wagner. A senhora lamentava-se, espetáculo esgotadíssimo, eu choraminguei, inadmissível, vir com o propósito de ir à Ópera, ainda por cima com dois cantores fabulosos, sair de mãos vazias. A senhora suspirava, havia uma hipótese que não recomendava, lá junto ao teto havia uns lugarejos com uma vista a pique, o som magnífico, mas era preciso ter cuidado com as vertigens, custava dez euros.
Paguei imediatamente, subi as escadas a correr, foram seis horas de delírio, o pior é que à meia-noite estava tudo fechado, era uma fome abrasadora, tudo se resolveu numa lojeca que vendia bananas e bolachas. Deitei-me com o estômago minimamente aconchegado, aquela récita tinha sido o maior manjar que Bruxelas me podia ter oferecido.
A sorte favorece os audazes.

Um abraço do
Mário


A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (2)

Beja Santos

O arrebatamento por Bruxelas data da primeira visita, em 1977. Guardei durante anos o caderno dos contactos estabelecidos, o nome de quem me recebeu na então Direção-Geral de Informação e me estabeleceu a série de contactos que se prolongaram durante oito dias úteis, de manhã até ao fim da tarde. Era um caderno onde se resumiam todas as visitas, os nomes das pessoas com quem contactava, a síntese das atividades, tudo o que importava ponderar para uma futura institucionalização da política dos consumidores. O caderno dessa viagem desapareceu, a maior parte dos nomes esvaiu-se, só se guarda referência das pessoas com quem durante anos sucessivos se manteve o contacto profissional. O que assalta à mente, de chofre, foi a impressão do Berlaymont, cheguei cedo, e antes de avançar para a receção mirei o edifício de diferentes ângulos, era impressionante, nunca vira tal estrutura metálica, tinha-se a sensação que o edifício estava pronto a levantar voo. Mais tarde, o edifício da Comissão Europeia encerrou para obras ciclópicas, arrancaram-lhe todo o amianto, deve ter ficado mais caro do que se o tivessem construído de novo, mas a maioria das vozes recusou a sua demolição, era o edifício-ícone que simbolizava o sonho criador de uma Europa de paz, como veio a acontecer. Depois de um encontro agradável mas formal, e com a promessa de que nos havíamos de rever na véspera do meu regresso a Lisboa, saí para a rua, tinha uma hora de avanço para o primeiro encontro, percorri uma avenida com o nome de rua, metia uma certa impressão naquela mistura caótica de novo com velho, embrenhei-me em ruas laterais, voltei, no fim de cada quarteirão a olhar para o fundo e depois em sentido contrário, na direção do Parque Real. Se é verdade que a Rue de la Loi não tem beleza nenhuma, guardo saudades de a ter percorrido nos alvores da manhã, por vezes altamente preocupado com discussões ou debates em que iria participar, aqui ou acolá, naquele tempo ainda não se podia falar num bairro europeu, era tudo disperso, passava-se ali o dia enterrado, e ao fim do dia esperava-nos um trânsito tumultuoso. Conheci a Rue de la Loi com sol e neve, chuva inclemente e dias primaveris. Ficou na minha vida como uma recordação inesquecível.

Edifício Berlaymont atual.

Rue de la Loi no poente e sem chuva.

A Igreja de Nossa Senhora da Capela, onde está sepultado Pieter Bruegel, o Velho, que habitava neste bairro castiço de Marolles, tem imponência exterior, gosto muito daquela altaneira torre sineira que aponta na direção da Rue Claes, ao fundo está a Feira da Ladra de Bruxelas, minha paragem obrigatória. Não conheci esta Place du Jeu de Balle na primeira visita, quando regressava, nos dias úteis, ao fim da tarde, percorria as ruas do centro histórico em todas as direções, a primeira grande descoberta foram as livrarias de livros usados, uma delas, perto da Ópera, estava aberta até às dez da noite, ali me entretive antes de regressar ao meu pequeno hotel.

Église Notre Dame de la Chapelle, Marolles.

Era na Rue Royale que a Organização Europeia de Consumidores tinha a sua sede. Fui muito bem recebido e, imagine-se, encontrei lá Teresa Santa Clara Gomes, que ali fazia voluntariado. Acredite o leitor ou não, aquela igreja ao fundo sempre a conheci fechada. Em 1996, numa das minhas deambulações, entrei numa loja de tapetes orientais, havia para ali promoções a sério, comprei um tapete nepalês que transportei ao ombro, pesadíssimo, hoje é impensável, nem entrava no avião. Não vou deter-me nas compras que fiz ao longo destas décadas. Numa visita de trabalho à Organização Europeia das Famílias, no Bairro d’Ixelles, na Rue Dublin, encontrei uma loja em liquidações, fui atraído por uma porcelana de Meissen, a senhora pediu-me um balúrdio, agradeci, depois a senhora entrou em confidências, estava semiarruinada com um filho toxicodependente, olhei para um quadro que tenho hoje à entrada da minha casa, um grande quadro a giz com uma floresta emaranhada e uma luz ao fundo numa casinha de campo, uma moldura talhada à mão, uma beleza. Comprei ao preço de chuva, vi-me na rua com cerca de dez quilos de madeira, um volume enorme. Ainda hoje estou para saber como entrei num avião da TAP com este volume descomunal.

Rue Royale.

Em 1987, estava eu já em estreita colaboração com a Confederação Europeia dos Sindicatos, organizou-se em Veneza uma conferência sobre normalização. Para minha surpresa, havia interpretação para português, já nessa altura coisa rara. Foi aí que começou a minha amizade com Nelly Alter, fazia interpretação em sete línguas. Sempre que estava em Bruxelas e passava por lá, exigia que a visitasse, a contrapartida eram livros em português, de preferência romances acabadinhos de sair. Vivia então na Avenue Georges Petre, na Comuna de Saint-Josse. Quando perguntei à Nelly como lá chegar, ela respondeu que devia sair na Place Madou. Fui inúmeras vezes jantar com a minha amiga, e quando tive oportunidade de fazer fins de semana, sempre que ela podia, damos belíssimos passeios. A Nelly vive em Namur, de vez em quando bato-lhe à porta, recebe-me com uma alegria esfusiante.

Place Madou.

Nas propostas turísticas para aquele primeiro fim de semana, a escritora Fernando Botelho sugerira-me a Casa de Erasmo, cheguei lá de autocarro, é um edifício encantador e depois da visita passeei e entrei numa espantosa beguina, as beguinas eram casas que recebiam viúvas ou senhoras com algumas posses, desde a Idade Média, com as suas casinhas e uma vida coletiva a preceito. Muitas vezes as beguinas eram enriquecidas com doações, ficaram autênticos museus. Espero voltar ao assunto, a partir de então andei sempre à procura de beguinas por onde quer que passeasse.

La Maison d’Érasme, Anderlecht, Bruxelas.

De autocarro, segui de Anderlecht, que é já na periferia de Bruxelas para uma visita que acalentava desde que organizara o eventual programa de lazer: o Museu Victor Horta, na Rue Americaine, na Comuna de Saint-Gilles. Devoto que sou da Arte Nova, Victor Horta é um dos arquitetos que mais admiro, Horta não se limitava a desenhar edifícios, concebia as artes decorativas desde a iluminação ao mobiliário, cuidava de todos os pormenores das escadarias, por exemplo. Passei aqui uma tarde admirável. Com a dispersão dos passeios, imagine-se, só lá voltei de novo, décadas depois, e continuei muito impressionado.

Musée Victor Horta.

Esta rua, sem beleza nenhuma, alberga um edifício da Comissão onde diariamente se realizam inúmeras reuniões, é possível olhar para um painel e encontrar todos os temas desde agricultura e pescas, passando pela ajuda humanitária até transportes e comunicações. Aqui vim muitas vezes, quer como funcionário público quer como militante associativo. Nunca esqueci uma reunião convocada pelos Serviços da Comissão, tinha a ver com a revisão da legislação da publicidade enganosa. Ia a reunião a meio e apareceu uma senhora que se identificou como representante da Grécia, tinha vindo para uma reunião sobre cosméticos, mas tinham-lhe pedido para aparecer por ali, tomar notas do que se dizia para transmitir aos competentes serviços. Disse isto com uma candura enorme, sorriu para toda a gente, não lhe ouvimos uma palavra mais…

Rue Froissart.

O Boulevard Anspach é um dos eixos principais do centro da cidade, terá sido majestoso até ao fim da II Guerra Mundial, depois a grande burguesia abandonou o centro, quem aqui reside são essencialmente imigrantes. Desde a primeira visita passou a ser um itinerário obrigatório por causa dos alfarrabistas, havia lá muitos até ao fim do século. Desapareceu um café onde se bebia um saborosíssimo chocolate, é do domínio público que os belgas estão na primeira linha da chocolataria.

Boulevard Anspach.

É só para saberem que passei aqui muito tempo e que gostaria de continuar a visitar este local onde é possível encontrar desde binóculos a caixas de costura, álbuns de viagens, livros e tudo quanto a imaginação oferece. Uma vez comprei aqui um álbum com fotografias de alguém que entrou em Vilar Formoso e visitou Lisboa em 1952, estava lá uma fotografia do Rossio que é uma joia. Gostava que este álbum ficasse numa instituição certa, mas não sei qual.

Place du Jeu de Balle, uma das Feiras da Ladra da minha vida.

Despeço-me com uma confissão. Não é a primeira, nem a segunda, nem a terceira vez que entro neste museu, este é o quadro que visito em primeiro lugar, é de uma beleza intemporal, não encontro palavras. Parece ser uma paisagem mediterrânica e a primeira vez que o olhei andei à procura do Ícaro, lá está ele em grande mergulho, perante a indiferença de quem está a arar a terra e do pastor que contempla os céus. Aquele veleiro parece uma caravela portuguesa e os tons turquesa do mar são surpreendentes. Só depois de estar aqui quase em oração é que vou visitar outros génios das Belas-Artes. Este é um dos quadros da minha vida.

La Chute d’Icare, de Bruegel, o Velho, Museu de Belas-Artes e História, Bruxelas.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20570: Os nossos seres, saberes e lazeres (373): A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20590: Parabéns a você (1747): João Alberto Coelho, ex-Alf Mil Op Esp do BART 6522 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20585: Parabéns a você (1746): Augusto Silva Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3306 (Guiné, 1971/73); Francisco Godinho, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2753 (Guiné, 1970/72) e José Albino, ex-Fur Mil Art do Pel Mort 2117 e BAC 1 (Guiné, 1969/71)