sexta-feira, 5 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21044: Escritos do António Lúcio Vieira (6): Rua da memória

António Lúcio Vieira (1943-2020)
António Lúcio Vieira (1943-2020), foi Fur Mil Cav na CCAV 788 / BCAV 790. 
Natural de Alcanena; viveu em Torres Novas. 
Jornalista, poeta, dramaturgo, encenador; autor, entre outros, do livro "25 poemas de dores e amores", vencedor da primeira edição do Prémio Literário Médio Tejo Edições, 2017. 
Faleceu ontem.

Deixamos este poema de sua autoria que nos foi enviado pelo seu amigo e nosso camarada Carlos Pinheiro.


"rua da memória"

não eram ainda os dias iluminados
da quinta das altas faias
dos mistérios das grutas
nos Olhos d’Água
dos poeirentos trilhos de aventura
nas terras dos Arneiros

o meu mundo era então apenas
nos tímidos dias de acordar
a singular rua onde nasci
e onde o sossego das horas
ecoava entorpecente pelas tardes

o meu pai montava altivo
uma Norton vermelha
de másculo motor
em cujo dorso voei aventuras
e de onde se libertavam odores
que ainda não esqueci

ao fim da tarde escancarava-se
rangente a larga porta da rua
com postigo de vidraças
e a moto vermelha entrava

levada pela mão cruzava a sala grande
seguia pelo corredor
até se deter em discreto canto
na imensa sala da lareira
junto à varanda das flores
por onde se filtrava a luz da tarde

não havia outro local onde guardá-la
e aquele espaço de forno e lareira
chão de soalho e cimento
era afinal quase meia casa

na salinha de costura
a avó Antónia suspendia o passajar
que a hora do jantar era já breve
e deslizava até à rústica bancada
junto ao forno onde no Natal
nasciam as negras broas com sabor a festas

lá fora a pequena rua
calçada de seixo castanho
ia então escurecendo
quando os restos de luz desmaiada
escorriam agonizantes
no alpendre da ti’Ludovina

um pouco abaixo
a noite chegava mais tarde
quando o sol se derramava
por detrás da vivenda com jardim
debruçada sobre os longos degraus

pequena quase envergonhada e discreta
a minha casa escondia-se no patamar
entre os dois lances da larga escadaria
e toda a encantada rua era calçada
em seixos que brilhavam com a chuva
arredondados polidos e castanhos

subia-se por ela ao Outeiro
e por ali se descia rumo à ladeira da fonte
ou à praça à Parreira à Varandinha
e ao miradouro à boca das Ladeiras

ao fundo dos degraus junto à padaria
e frente ao ladino alfaiate
no pequeno e fundo rés-do-chão
da “menina” Henriqueta
longe ainda dos tempos da escola
rasguei deslumbrado horizontes
e parti à descoberta das primeiras letras
que não mais me dariam tréguas

numa estreita serventia sem saída
logo acima dos degraus de cima
recolhia o meu avô António em acanhado e escuro palheiro
com cheiro a esterco a fava seca e a feno
a burra branca malhada que
resignada e pachorrenta me levava à horta e à fazenda
para as bandas do Peral

nas tardes de colher o sol
e soltar no regato barcos de papel
precursores das mil viagens
de um incurável vadiar

era porém pelos santos de verão
que a rua despertava e gritava vida
a Inês juntava braçados de alecrim
no cimo da rua incandescia-se a fogueira
onde se queimavam risos e alcachofras

noite dentro pulava-se o braseiro
a gaita de beiços do Fura-Palha
enchia de modas aquele recanto do Outeiro
vinha gente de outras ruas
debicar broas e fritos
e beber os prazeres da noite

espargiam-se os corpos
de fumos e de aromas
dos arbustos do campo
e a música e o perfume silvestre
ungiam a rua invadiam as casas
e seguiam pelas travessas tortuosas
ao encontro das sombras nas esquinas

já só as paredes recordam
a velha escola da menina ”Requeta”
e os fatos por medida do mestre Louro

mudaram-se as pessoas
secou a hera na parede do Polaco
e ninguém por lá agora lembra
a burra malhada do avô António

no patamar de seixo
as paredes do número onze
que em distante Janeiro me viram chegar
tombaram vencidas
num monte de escombros
restou-lhe de pé um rosto amarelo
e uma outra porta de postigos
debruada com vasos de flores

do saudoso tempo
partiram os rostos e as vozes
e daquele povo que a rua acolheu
já ninguém lá mora
sem dó levaram os seixos
brilhantes em dias de chuva
e vieram automóveis
violar a castidade da minha rua

é assim
tudo envelhece e se transforma
olham-se agora outros rostos
e até as ruas como a minha
sofrem incúrias e vexames
que as ruas têm alma e corpo
e adoecem e morrem
quando os homens querem

a minha rua de brincar
que o menino infante sonhava assim para sempre
não é agora mais que um espaço
maculado e raso de saudades
o resto de um passado
do pequeno sonhador
que bem cedo perdeu a inocência

a minha Rua da Cova
bem podia chamar-se agora
sei lá rua do Berço ou rua dos Sonhos
da Utopia da Saudade talvez da Inocência
ou apenas Rua da Memória

António Lúcio Vieira
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20405: Escritos do António Lúcio Vieira (5): Alvorar

Guiné 61/74 - P21043: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (5): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
Romance é romance e nestas coisas de ter a faca e o queijo na mão, de poder aproveitar a experiência de conhecer uma cidade, e haver mesmo uma faísca de verosimilhança quanto àquele encontro que provocou outros encontros, e deu origem a um caderno cheio de garatujas que se relevou imprestável, pois toda a escrita ficou adiada até 2006, aí cantou outro galo, quando me comprometi com o Luís Graça a repor até ao mais ínfimo pormenor aqueles 26 meses de Guiné. E confesso que houve para ali uma alegria esfuziante, naquele fim de século, quando tudo levava a crer que a realidade superava a ficção e que daquele encontro frutificaria um romance encantado.
O que então não aconteceu passa a acontecer, o bordão da imaginação assegura certos devaneios para se voltar à Guiné e sentir o soar das nossas passadas, atravessando mares de capim, laterite que parece pó de talco que se entranha em todos os poros do corpo, é sempre bom momento para render homenagem a quem tão fielmente me acompanhou nas venturas e desventuras.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (5): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Cher Paulo Guilherme, estou encantada com o seu regresso previsto para daqui a uma semana, já me disse ter reservado bilhete, vem sexta-feira de manhã, ainda não sei se estou disponível nesse dia, provavelmente não, tenho na minha agenda marcação no Conselho Económico e Social Europeu, funciona na Rua Ravenstein, provavelmente só estarei disponível depois das 17 horas, vou esclarecer a situação, tenho muito gosto em que jante na Rua do Eclipse. Achei curioso, o relato que me fez da sua infância, ter escrito que a sua avó paterna era uma judia sefardita que se converteu. Até agora não veio a propósito, mas sou descendente de judeus. O meu apelido é Cantinaux porque os meus pais não tinham sido até perto da libertação de Bruxelas molestados, por uma razão muito simples. O meu pai, de nome Jacob, era membro da direção do Partido Comunista da Bélgica, fazia parte da resistência, saiu discretamente de Bruxelas no início de 1944. A minha mãe e os meus avós, pais dela, viviam na Avenida Georges Petre, imagine, com nomes falsos. Temendo uma denúncia de informadores leais ao Partido Rexista, quando eu nasci, em 16 de fevereiro, a minha mãe, não tinha eu ainda quinze dias, após uma conversa com uma amiga, aquela que vai ser a minha primeira mamã, Sara Poncelle, levou-me discretamente para o bairro típico de Marolles, o Paulo Guilherme conhece-o perfeitamente, sempre que cá está e não está mau tempo não perde a feira de velharias, que funciona todos os dias, mas é mais abundante aos sábados e domingos. Aí vivi, penso que vai ficar surpreendido, até ao fim da guerra, os comunistas belgas juntaram-se aos holandeses, o meu pai arriscou tudo. A minha mãe e os meus dois irmãos partiram para o fundo das Ardenas, a vida em Bruxelas era intolerável, um racionamento violento, houvera mau ano agrícola, em casa dos Cantinaux não me faltou nada.

Avenida Georges Petre, comuna de Saint-Josse, Bruxelas

Bairro de Marolles, Rua do Falcão, Bruxelas

Desfile alemão em frente ao Palácio Real, Bruxelas

Hitler cumprimentando Leon Degrelle, o seu aliado belga do Partido Rexista


Na verdade, só em 1948 é que voltei à vida familiar dos Altermann, não sei verdadeiramente explicar as razões que fundamentaram a decisão do meu pai de eu não ter o seu nome de família. Como sabe, a Bélgica depois da II Guerra Mundial viveu inúmeras tensões, Leopoldo III teve que abdicar no seu filho Balduíno, agudizaram-se as relações entre valões e flamengos. O antissemitismo não desapareceu, ficou atenuado, ainda pairava no ar o espetro das forças leais a Hitler e que comungavam das suas ideias raciais. O meu pai nunca desfaleceu com os seus princípios comunistas, mesmo quando o partido, tão prestigiado como força da resistência, se foi afundando eleitoralmente. Não sei se sabe que houve um abaixo-assinado, um pouco antes do Partido Comunista da Bélgica se dissolver, com o impressionante número de nomes relevantes de partidos de todos os quadrantes, intelectuais e artistas, e até empresários, que apelavam a que o Partido Comunista não desaparecesse da cena política devido aos serviços inultrapassáveis que prestara à Pátria. Jacob viveu amargamente todo este período, faleceu em 1984, vivendo sempre na maior das simplicidades, nunca assumindo qualquer jactância pelos seus atos de bravura.

Fiz o ensino liceal, frequentei depois a Universidade Livre de Bruxelas, atraída pela filologia germânica, o meu pai e os meus avós eram fluentes nesta língua, a minha mãe, de nome Juliette, nascida em Metz, comunicava comigo em francês e tinha primos que preferiam falar comigo em flamengo. É então que descubro esta faculdade para estudar línguas, juntei ao francês o flamengo e alemão, seguiu-se o inglês e depois atirei-me ao italiano, só muito mais tarde é que me apliquei no espanhol e no português.

Chega de o aborrecer com as minhas origens e a minha formação. Lembrei-me, já que me disse que gosta muito de passear na Floresta de Soignes, eu preferia sábado pela simples razão que domingo ao anoitecer parto para o Luxemburgo, tenho anotado um dia de trabalho de um comité farmacêutico qualquer todo o dia, depois regresso a Bruxelas. Podíamos ir a pé à comuna de Watermal-Boitsfort, arrumo aí o carro, entramos pelo parque Tournai-Solvay e passeamos até Rouge Cloître, há aí locais simpáticos para almoçar, aliás, contou-me que os seus amigos desta região lhe propõem estas caminhadas, fica tudo dependente do bom tempo, é uma simples proposta. Há outras sugestões, evidentemente, passear pelo Mercado do Midi é fascinante, ainda por cima já me disse que gosta muito de flores, é um espetáculo, passa pela carne, o peixe, os legumes e a fruta de todas as proveniências e depois temos o mundo floral, ouve-se o árabe, o espanhol e o português muitas vezes, há muitos estabelecimentos portugueses nesta região do Midi, não ignorará. Se preferir começar o dia assim, tenho aqui a lista de boas exposições, é só escolher. Se estiver mau tempo, terei muito gosto em o acompanhar a essas lojas de livros e discos em segunda mão e como me disse que ainda não visitou o Museu da Banda Desenhada, é outra hipótese.

Imagem antiga da Floresta de Soignes, o grande pulmão de Bruxelas

Loja de livros usados no Boulevard Lemonnier

Mercado do Midi, Bruxelas

Antes de me despedir, quero-lhe dizer que fiquei muito impressionada com a descrição da sua viagem no início de agosto de 1968, parece-me que num batelão, numa viagem de dez horas, como observou, correndo vários riscos de vida naquilo que chamou o Geba estreito, onde esses barcos podiam ser fortemente atacados. Li atentamente o que me mandou sobre a sua chegada a um local chamado Bambadinca, a missão que lhe deram, até o felicitaram, seria um local de férias desde que garantisse que naquele ponto do rio os barcos civis e militares nunca fossem atacados. Achei muito interessante a descrição que fez da viagem até ao destacamento de Finete, a sessão de cumprimentos com reverências, a sua aflição quando viu o estado miserável do que chamou sistema defensivo, tudo a cair e mantido num enorme desleixo; não esquecerei os pormenores da tal viagem desde que atravessou de canoa o rio e entrou por o estreito trilho onde a viatura não podia cometer nenhum deslize, senão caía dentro dos arrozais; e depois a chegada a Missirá onde o chefe local o recebeu de forma cerimoniosa e lhe entregou uma espada que o Paulo prontamente devolveu dizendo que os poderes dele eram invioláveis, a sua missão ali era defender aquele pequeno povo e impedir o avanço da guerrilha. Estamos em agosto de 1968. O Paulo arranca o seu romance com o nosso fortuito encontro. Há dias dei comigo a pensar num filme de que já vi duas versões, intitulado Breve Encontro, gostei mais da primeira versão, a de David Lean com Célia Johnson e Trevor Howard, ela recebeu Óscar, uma versão empolgante pelo arrebatamento emocional que nos provoca. A grande diferença entre eles e nós, permita-me o gracejo, eles eram casados e recuaram, foi uma separação dilacerante, lembrança que jamais se apagou; mas nós os dois somos livres de escrever o nosso livro aberto que aponta para o futuro, não devemos concessões a ninguém.
Continue de boa saúde, escreva mais coisas, é um prazer receber o seu correio, os seus telefonemas, gosto muito da companhia que me dá, e nunca deixe de pensar que tudo começou naquele fortuito encontro em que era preciso encontrar um ser de carne e osso para contar a sua experiência numa guerra, algures, num ponto diminuto dos trópicos. Bien à vous, Annette

Porto de Bambadinca por volta de 1914

O porto de Bambadinca nos tempos da guerra, imagem pertencente a Mourato de Oliveira, publicada no nosso blogue, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21019: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (4): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21042: In Memoriam (365): António Lúcio Vieira (1943-2020), ex-Fur Mil Cav da CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67) (Carlos Pinheiro)

IN MEMORIAM

António Lúcio Coutinho Vieira (1943-2020)
ex-Fur Mil Cav da CCAV 788/BCAV 790 
Bula e Ingoré, 1965/67


1. Em mensagem de hoje, 5 de Junho de 2020, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), traz-nos a triste notícia do falecimento do António Lúcio Vieira, membro da Tabanca Grande desde 2 de Agosto de 2019. [Tem oito referências no nosso blogue.]

Faleceu ontem, 04 de Junho de 2020, o nosso Camarigo e Grã-Tabanqueiro António Lúcio Coutinho Vieira. 

Foi para mim um dia muito difícil e não tive condições para alinhavar umas palavras em sua homenagem. Tenho imensos trabalhos que ele ao longo dos anos foi partilhando comigo, sendo que muitos deles são inéditos e nunca publicados. Apesar do dia ser triste, até porque não se sabe ainda quando é o funeral e em que condições, vasculhando os seus trabalhos, encontrei o único que ele escreveu sobre a Guiné, mas em conto que um dia terá compilado para aliviar os fígados e as preocupações da vida de um combatente. 
É um conto, anedótico, mas é interessante até porque revela mais uma vez a sua forma correcta de escrever bem. 

Se o Miguel ou o Carlos Vinhal, ou os dois, entenderem por bem publicar este conto em homenagem à memória do nosso amigo, acho que fazem uma boa acção. Se entenderem de outra forma, também compreenderei. Mas se assim for, envio, em alternativa, um poema sobre a sua, e minha, terra Alcanena.

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António Lúcio Vieira, síntese curricular, por Américo Brito

António Lúcio Coutinho Vieira
Poeta, Dramaturgo, Encenador, Investigador e Jornalista

Após os estudos académicos concluiu, anos mais tarde, um curso intensivo no Centro de Estudos Psicotécnicos, em Lisboa e, posteriormente, um outro de Relações Públicas.
Foi responsável, ao longo de treze anos, pelo departamento de Comunicação e Relações Públicas do CEP 4 ( ex-Rodoviária Nacional ).

Em paralelo com as funções profissionais, das quais nunca se afastou, desenvolveu, ao longo dos anos, uma vasta actividade, nas áreas da cultura e da comunicação, principalmente nos sectores do Teatro, do Jornalismo, do Audiovisual e da Rádio.
Ocupou o cargo de Vice-Presidente do Cineclube de Torres Novas, o de director-encenador no Centro de Juventude e, posteriormente, na Casa de Cultura da cidade, ambos na área do Teatro.
Fundou e dirigiu o Grupo de Jograis da USTN, o Grupo Cénico Claras, o TET-Teatro Experimental Torrejano e o Teatro Estúdio, nos quais, ao longo de vários anos, encenou textos de autores portugueses e estrangeiros, em cuja lista se incluem, para além do próprio autor, entre outros os nomes de Gil Vicente, Miguel Torga, Luís-Francisco Rebello, Carlos Selvagem, Jaime Salazar Sampaio, Luís de Sttau-Monteiro, Sófocles, Molière, Marivaux.

Das várias montagens que assinou, algumas em obras de sua autoria, destacam-se a estreia universal da farsa de Jerónimo Ribeiro, Auto do Físico (Séc. XVI), uma arrojada versão da Antígona, de Sófocles e a célebre farsa de Luís de Sttau Monteiro, "A Guerra Santa", que haveria de marcar politicamente, em Portugal, o Verão de 1977 e a farsa trágica, "Dulcinea ou a Última Aventura de D. Quixote", de Carlos Selvagem.
Adaptou obras teatrais, clássicas e contemporâneas e é autor de vários originais de teatro, alguns para o público infanto-juvenil.

Iniciou, na SPA-Sociedade Portuguesa de Autores, as 1ªs. Jornadas de Interpretação Teatral, onde pontuaram actores como Rogério Paulo e Canto e Castro, entre outros. A sua peça "Aldeiabrava" – 2.º lugar "exaequo", no concurso nacional promovido pela ATADT ( 1967 ) - viria a ser escolhida pela SPA, para representar o teatro português, numa mostra de livros portugueses em Moscovo.

Ao longo dos anos, vários títulos haviam de integrar a lista de obras dramatúrgicas do autor: "A Flor Mágica do Sábio Constelação" e "A Ilha das Maravilhas" – ambas destinadas ao público infanto-juvenil -, "O Vértice", "Aldeiabrava" (com prefácio de Luíz-Francisco Rebello). Ou a "Odisseia", "A 7.ª Guerra Mundial", "SOS - Sistema Optimizado de Saúde", ou o monólogo "Eu, Sofredor me Confesso", são alguns desses títulos.
Destinado a estudantes do ensino secundário surgiu, recentemente, uma colectânea de curtas peças, sob o título genérico de “Pequeno Teatro Académico”.
No prefácio à sua peça "Aldeiabrava", o então presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, teatrólogo e dramaturgo, Luiz-Francisco Rebello, amigo pessoal do autor, compara essa sua obra, nos aspectos temático e de conteúdo, a "O Exército na Cidade", de Jules Romains, a "Numancia", de Cervantes e a "Fuenteovejuna", de Lope de Vega.

É autor de vasto número de letras de canções e fados, principalmente de parceria com Paco Bandeira e com o maestro António Gavino e de vários temas da banda sonora da telenovela "Filhos do Vento" (RTP-1997). Para além de Paco Bandeira, gravaram igualmente os seus poemas, António Mourão, Vasco Rafael, Margarida Bessa, Maria Amélia Proença, os solistas das Orquestras Típicas, Scalabitana e de Rio Maior, entre outros.

No prefácio que dedicou ao seu livro de poemas "Re Cantos", outro velho amigo do autor, Pedro Barroso, deixa escrito que, lendo-se a sua poesia “sentimos o fulgor de uma enorme explosão de beleza pessoal; passa por ali o génio dos grandes” (...) “este livro fica aí para ler-se toda a vida como consultor e conselheiro. Como terapeuta das horas e breviário dos sentidos (...)”.

Já o Prof. António Matias Coelho, presidente da Associação Casa-Memória de Camões, em Constância e membro do júri que elegeria como vencedora a obra “25 Poemas de Dores e Amores”, diria a propósito deste seu último livro: “(…) Senti que lia um grande poeta. Esta é da melhor poesia que já li (…)”

Foi redactor principal no semanário "O Almonda", publicou reportagens na revista "Domingo Magazine", do diário "Correio da Manhã" e colaborou, ao longo dos anos, com vários jornais regionais.

É autor do script e da realização de curtas-metragens de cinema de ficção para a Equipa Fotograma e de vários documentários em vídeo. Foi director de estação e director de programas, em diversas estações regionais de rádio.

Vencedor de alguns festivais de canção de âmbito regional, obteve o 2.º lugar no Festival Nacional da Canção de Leiria ( 1987 ), possui prémios de rádio (programa Auditório – RCL ) e de teatro: "Aldeiabrava" viria a obter o 2.º lugar, "ex-aequo", no Concurso Nacional da ATADT (Portugal) vencendo o Festival de Teatro Português de Toronto (Canadá) em 1990.

António Lúcio Vieira foi distinguido, em 1997, com os diplomas de Mérito e de Louvor, pela Casa do Ribatejo, em Lisboa.
Em 2015 o Município de Alcanena atribuiu-lhe a Medalha de Ouro de Mérito Cultural.

É Prémio de Poesia “Médio Tejo Edições” ( 2017) para “25 Poemas de Dores e Amores”. 
É membro da SPA – Sociedade Portuguesa de Autores.

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SUBMARINO À VISTA

Por António Lúcio Vieira

Esta é uma estória realmente surreal. Até no desenrolar dos dramas mais pungentes emergem, com alguma frequência, pequenos oásis de balsâmica voluptuosidade, preciosas gotas de água, que se libertam das nuvens da vida e nos refrescam o escaldante quotidiano, pautado pelas dores que sempre resultam das tragédias. Também no seio dos conflitos armados desabrocham, por vezes, essas pequenas e decisivas pérolas, que nos ajudam a refazer o debilitado estado de espírito e nos criam uma reserva de revigorante resistência, aos sucessivos assaltos de uma sorte mais madrasta do que a madrasta da Cinderela. 
Chega. 

Nada melhor do que contarmos, sem mais delongas, o insólito episódio, ocorrido algures nas margens de um caudaloso rio africano e tendo como cenário um diminuto cais, junto às pré-históricas instalações de um pequeno destacamento militar, algures nas entranhas da Guiné, em meados da longínqua década de 1960. 

Manhã cedo – pouco passaria das sete e meia – de um dia já a aquecer e a prometer mais uma escaldante jornada, em tudo igual às que habitualmente pautavam aquele, quase esquecido, reduto de uma reduzida unidade de Engenharia. A capital não distava muitas léguas e o local, quase inacessível por terra, alcançado apenas por tosca e estreita estrada, era classificado, à época, como um reduto seguro, pouco susceptível de se apresentar como alvo de ataques inimigos. 

Atracada, uma tosca jangada, de motor assustadoramente periclitante – na ausência de uma mais sofisticada LDM da Marinha - aguardava a chegada de uma qualquer coluna de veículos em trânsito, que ali necessitasse efectuar a travessia do largo curso de água. Pelo espaço em redor, após um reconfortante pequeno-almoço, os rapazes desentorpeciam as pernas, puxavam umas fumaças nos cigarros americanos, trazidos de Bissau e preparavam-se para mais um dia monótono e arrastado, igual aos restantes dias da monótona e arrastada comissão de serviço. Uma pasmaceira, aquele restar por ali, entre as refeições, umas partidas de sueca, umas mornas e coladeiras na rádio, umas revistas com gajas nuas, as sessões de anedotas, os aerogramas para a Maria, algumas fotografias e, quando calhava, três ou quatro viaturas, para enfiar na jangada e transportar para a margem contrária. 

Perdiam-se os olhos na imensidão do rio, pela cinzenta mancha de bolanha, que quase cercava as pequenas barracas, forradas a chapa de zinco, que o destacamento habitava; pelo renque de árvores-bissilões, na sua maioria – que ornavam a estrada na margem norte do rio, a dezenas de metros de distância, do outro lado onde os combates se iam tornando, cada vez com maior intensidade, um acontecimento diário. Mais a sul, por entre os restos de neblina que se elevavam da bolanha, os olhos ainda distinguiam a enorme mancha verde-escura do tarrafo que, da margem virada a poente, se alongava até perder de vista, para as bandas do mar. Dois ou três, dos homens do destacamento, ocupavam-se entretanto, junto ao cais, na recolha das armadilhas, deixadas no rio na noite anterior. Havia sempre peixe que optava por não dormir e o que buscava o engodo, nos engenhos de rede, habitualmente dava para uma refeição à pequena guarnição do destacamento. 

De pé, encostado à tosca viga de palmeira-dendém, num dos cantos do alpendre, do polivalente refeitório-secretaria e sala de convívio, o alferes que comandava o destacamento observava, a espaços, a paisagem em redor, por vezes de binóculo em punho, com o olhar atento e perscrutador, que se exige à suprema responsabilidade dos lideres, a quem compete zelar pelas vidas dos homens sob o seu comando e dos haveres, que o estado português confiara à sua guarda. Pese embora o facto de, por aquelas bandas, jamais ter havido notícia de presença inimiga, o homem sabia que não podia baixar a guarda. Quando menos se espera… E recordava, amiúde, os episódios lidos e relidos, sobre guerras distantes ou passadas, nos quais se dava conta das surtidas traiçoeiras, dos audaciosos golpes furtivos e das mil e uma artimanhas, que o génio dos grandes cabos de guerra sempre souberam engendrar, para colher o inimigo de surpresa. E também da importância estratégica de destacadas zonas do globo, locais cirurgicamente nevrálgicos para o rumo dos conflitos. Assim, aquele perdido posto militar, encravado entre a bolanha e o largo rio, bem podia ser - quem sabe - o seu estratégico rochedo de Gibraltar, ou algo semelhante. Por isso o nosso alferes não baixava a guarda. Cônscio da importância de uma observação constante e minuciosa, o homem queimava as pestanas, observando metro por metro, litro por litro, as margens e o leito do rio, que na sua frente se abriam. Com ele, ficasse o inimigo a saber, não contassem para menosprezar os perigos, muito menos para se entregar ao desleixo da rotina, que a experiência lhe dizia ser sempre má conselheira. Um homem, enfim, ciente da sua responsabilidade e da transcendência da missão que até ali o levara; àquele pasmado e frustrante longe de tudo, perdido entre nenhures, onde, habitualmente, o mais emocionante, do arrastado quotidiano, era a passagem, no seio das colunas militares, de uma ou outra bajuda, à boleia. No seio, foi o que atrás se escreveu, porque nos ditos das moçoilas, rijinhos e ali ao léu, vulgarmente designados por “mama firmada”, já a rapaziada ia, despudoradamente, e sempre que o ensejo se proporcionava, aquecendo as manápulas, naquele tão cativante, quanto emotivo e patriótico, exercício de acção psicossocial. 

Estava-se nisto quando, binóculos virados a montante, algo lhe chamou a atenção, lá longe no caudal do rio, logo após a curva junto ao mangal. Havia ali qualquer coisa a navegar, lentamente, em total discrição, descendo sorrateiramente o rio, bem no meio da corrente. Deixou o local de vigia, no alpendre do barracão e aproximou-se da margem. Não, não havia dúvidas: vinha ali qualquer coisa estranha, com um navegar manhoso. Algo enfim, naquela manhã, descia, lenta e matreiramente, a corrente. Mal se vislumbrava o dorso escuro do enigmático objecto, mas bem se via que era algo grande, arredondado e estranhamente silencioso. Por entre a onda de espuma que a sua passagem levantava, erguia-se sobre ele, na vertical e a cerca de um metro acima da água, hirto e misterioso, um outro objecto, igualmente redondo e escuro, a fazer lembrar um vulgar tubo de canalização. “Diabo, se aquilo não parece um submarino…”, cogitava o intrigado graduado, de cenho franzido e sentidos alerta. Voltou a mirar o estranho objecto que sulcava as águas, bem no meio da corrente, a uns bons cem metros da margem. Numa daqueles clássicas decisões, bem expressas nos cânones da caserna, que mandam, em caso de dúvida, atirar primeiro antes de se perguntar “quem vem lá?”, o homem tomou de imediato uma decisão de radical efeito. 

E tudo ali então se precipitou. De binóculo em riste - em clara desvantagem ante o, bem mais potente e avantajado, “periscópio” inimigo - porém munido de corajoso ímpeto de destemido afrontamento, o alferes gritava a plenos pulmões: “Peguem nas armas! Vai ali um submarino!”, enquanto os homens, dispersos pelo recinto, de expressão aparvalhada, tentavam perceber a situação. Antes de desaparecer no interior das instalações, em busca da sua própria arma e de umas quantas granadas defensivas, ainda o espavorido oficial repetia à restante guarnição: “Porra, vão buscar as armas!” Atarantados, os rapazes corriam, desordenadamente, para o interior dos barracões, em busca das G3. Pelo caminho, um ou outro, de mente menos confusa, ia-se deitando a matutar que ideia seria aquela de enfrentar um submarino com umas reles espingardas automáticas, mais umas pobres granadas, que tanta falta faziam para as radicais pescarias do peixe mais graúdo. Mas pronto, o alferes é que tinha os livros; por aquelas bandas, ainda era quem mandava na guerra. 

Entrincheirado com a jangada, o destemido comandante da guarnição abria fogo de rajada sobre o “submersível inimigo”. Só podia ser inimigo, já que a pelintra marinha de guerra nacional ainda não conseguira orçamento para tais luxos. Porém, o PAIGC ainda menos. Era pois, seguramente, um vaso de guerra de leste, da União Soviética, que todos sabiam estar de panelinha com os movimentos guerrilheiros. “Fogo, fogo nele!”, gritava o homem, qual Rommel no deserto, qual Napoleão antes da debandada em Waterloo, qual Nuno Álvares em Aljubarrota ou, mais adequadamente, qual Mouzinho em Chaimite. As balas – apenas as dele, adiante-se – tracejavam as águas, levantavam cogumelos de espuma, enquanto por ali, deitados no chão, em posição de fogo, os homens se entreolhavam, de expressões idiotas, sem entender patavina da situação. “Aquilo é um submarino! É ou não é, malta?”, interrogava ele, aos brados, num esforço de autoconvencimento. “É, é, meu alferes! Vê-se bem…”, respondiam os homens, confusos e sem coragem para contrariar o agitado superior. “Fogo nele! Afundem os gajos!” Relutantes, os subalternos lá iam disparando uns tiros dispersos, que aquilo de estar ali ao desvario a atirar para o boneco, não lhes cabia lá muito na cachimónia. 

O intrépido alferes, entretanto, em pequenas corridas pela margem, na busca de melhores posições de tiro, não dava tréguas ao misterioso objecto navegante. Era uma cena patética, digna da mais talentosa opera-buffa, dos gloriosos tempos da commedia dell’arte. Nos fugazes segundos que mediariam, entre o gizar de uma estratégia de ataque, ao iminente, inevitável e definitivo afundamento do descomunal submersível, o homem imaginava-se nas capas dos jornais da longínqua capital do império, sob os holofotes da televisão e os microfones das rádios, nos gabinetes dos ministérios e chancelarias, nos jantares de gala em sua honra, no decorrer dos quais, uma vez mais, se enalteceria, nas vozes embargadas dos nossos mais lídimos representantes, o seu heróico feito. O homem já se via - mais do que numa qualquer e banal entrega de medalhosas distinções, no Terreiro do Paço - nos próprios salões do Palácio de Belém, altivo, impante, solene, distinto, em farda de gala, na presença das mais altas figuras da nação. E depois – oh, subida glória! – recebendo, das mãos do venerando Chefe de Estado, uma qualquer Comenda, das várias com que o patrono das ordens honoríficas habitualmente ornamenta o pescoço e o ego dos nossos mais distintos eleitos. Depois, como corolário, talvez o nome numa rua da sua vila natal, quiçá de vilas e cidades de norte a sul do país, e a inevitável promoção por distinção que, unanimemente, as altas chefias forenses não deixariam de lhe proporcionar. Que subida honra, que glória, que página, nos anais onde se canta a imortalidade dos heróis. Caramba! Não é todos os dias – nem, por ventura, em todas as guerras – que se abate, sem remissão, ou se aprisiona, um submarino inimigo, recheado de uma tripulação amedrontada e rendida à heroicidade de meia dúzia de bravos militares portugueses. De Engenharia. Ainda por cima, homens da Engenharia! Toda a pequena guarnição estava, pois, prestes a protagonizar um feito único nos anais da história militar lusíada. Uma epopeia que contariam aos filhos e netos, os quais, orgulhosos do apelido e do sangue herdados, haveriam de se rever nela por incontáveis gerações. “Atirem, não o deixem escapar!”, e os rapazes, mais para evitar reprimendas do que para confrontar a ameaça navegante, lá iam despejando carregadores, para aquele intruso flutuante que, oriundo por ventura dos confins soviéticos, ali lhes calhou em sorte, por certo numa missão de solidária “mãozinha” ao inimigo. 

Uma, duas rajadas. O arrojado alferes não descansava. Depois, granada na mão, cavilha arrancada com um gesto largo e decidido e o lançamento do engenho para bem longe, nas águas do rio. À boca pequena comentava-se: “O nosso alferes não ‘tá bom da cabeça”. Então “aquilo” estava a ir ali a mais de cem metros de distância… quem é que o alferes pensava que era: “campeão do lançamento do martelo, ou quê?” Entretanto, mesmo ali frente ao cais, com um repentino remoinhar das águas, o “vaso de guerra inimigo” inverteu o “leme” a estibordo e parecia querer rumar a montante, de onde havia pouco surgira. “Está com medo, rapazes: ele está com medo. Vai voltar para trás! Fogo, não o deixem fugir!” E as armas voltaram a troar, rasgando de novo a quietude da manhã. E que manhã! Ciente agora que o matreiro submersível tentava escapar, o homem lembrou-se que, no reduzido espaço que servia de paiol, repousava a um canto uma metralhadora ligeira. Lá estava, havia muito, para o que desse e viesse. “A Dreyse, tragam a Dreyse!”. Lesto, o cabo e um soldado ergueram-se, entreolharam-se por momentos e partiram numa corrida, desaparecendo no interior das instalações. Quando voltaram, de metralhadora em punho e uma braçada de carregadores a caírem dos braços, deixaram a arma nas mãos decididas do alferes e aprestaram-se para o municiar. Da ponta da jangada, já sobre as águas, a Dreyse iniciou então o ritmado e mortífero concerto. As balas sulcavam as águas e atingiam certeiramente a misteriosa “embarcação”, ante o eufórico frenesim que agitava o bravo oficial. Fosse por acção das balas, ou por capricho da corrente do rio, o manhoso “submarino” inverteu de novo a rota e voltou a navegar para jusante, rumando, tranquila e suavemente, para a foz. Ficava já fora do alcance do fogo lançado da margem e parecia ir perder-se para lá da curva frente ao bosque de palmeiras, na viagem que o levaria ao oceano. As armas calaram-se. Uma densa e negra nuvem formava-se agora, nos olhos e na mente do ofegante comandante do destacamento de Engenharia, aquartelado naquela perdida margem de rio. 

As honrarias, as comendas, os jantares e discursos e as ruas com o seu nome esfumavam-se assim, mais depressa do que o fumo que se evadira dos canos das armas. Oh, glória tão efémera e vã! Oh, história tão ingrata, que assim lhe iria olvidar o nome. Que dia aquele, de tanto fervor patriótico e de tanta alma guerreira, transformados, ingloriamente, na mais redundante e decepcionante manobra militar, alguma vez encetada em terras da Guiné. Os deuses, os tais do Olimpo, deviam mesmo estar loucos. Oh, com os reveses enchem, tanta vez, as guerras de infortúnio. Ia assim o homem cismando, tentando refazer-se dos amargos de boca, resultantes da frustrante acometida. Acalmara-se um pouco. Acendeu um cigarro e encaminhou-se, cabisbaixo e de cenho franzido, para o recato das instalações. Necessitava de um revigorante whisky, para encarrilar as ideias. 

No exterior, ainda aturdidos, os homens olhavam-se, acendiam igualmente cigarros e, entre o encarrilar de ideias e a sequente procura do revigorante whisky, quedaram-se, por momentos, a matutar, que raio de mosca teria mordido ao alferes, para desatar a ver submarinos e a despejar quilos de munições, num pobre e inofensivo tronco de bissilão que, inadvertidamente, entendeu entregar-se aos prazeres da navegação no dia errado, no rio errado e na hora errada. O perturbado alferes, esse entretanto e enquanto via esvaírem-se os sonhos de glória e imortalidade, de olhar lançado ao alto e pensamento embargado pela emoção, justificava a si próprio o desaire, citando – como, de resto fica bem em situações tão dramaticamente solenes, como aquela – as palavras do poeta: “malhas que o Império tece…” Perdão; tecia. 

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Em rodapé, aqui - como preito de homenagem ao avisado bom senso - se regista o alívio da restante guarnição, pelo facto de, na balburdia gerada pelo fragor da insólita “peleja”, o inefável e confuso alferes nunca se ter lembrado de, via rádio, pedir o apoio dos T6 da Força Aérea, ou dos patrulheiros da Marinha. Valeu esse lapso porque, para ridículo, já tinham de sobra para contar.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20879: In Memoriam (364): Dos sete militares chacinados pelo PAIGC no “Chão Manjaco”, mártires da sua fé na autodeterminação e na consagração do direito do Povo da Guiné- Bissau ao poder (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

Guiné 61/74 - P21041: Parabéns a você (1815): Manuel Traquina, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21034: Parabéns a você (1814): António Azevedo Rodrigues, ex-1.º Cabo do CMD AGR 2957 (Guiné, 1968/70)

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21040: Blogpoesia (679): 1.º Dia de praia Covid (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp)

Praia de Espinho - © David Guimarães


1. Em mensagem do dia 31 de Maio de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos este poema, um tanto nostálgico, nestes tempos de verão, e ainda de Covid,  em que o que é bom, é mesmo só para contemplação. Quase apetece dizer ao editor, "Já foste (fomos)".


1.º Dia de Praia Covid

Fui à praia ver qu’assunto,
Do muito que covid’izer.
Mas no mar não há defunto,
Na areia não vão morrer.

Nessa praia espreitei.
Tudo pareceu normal.
Tudo bom verifiquei.
Quase nada levo a mal.

O mar calmo e salgado
E muito sol a queimar.
Areal seco, molhado,
É tudo bom para amar.

Ama o belo humano,
O ossudo ou carnudo.
Olha que o melhor pano,
Por vezes engana tudo.

Ama muito carnes soltas,
Caídas ou levantadas,
E nunca dês muitas voltas,
Nessas coisas já passadas.

Olha que bela ela é,
Aquela de bom traseiro.
Com bons marmelos de pé,
Boa de corpo inteiro.

Pois é, mas só para olhar.
Por ti abaixo, vê bem.
Não penses nem vás tentar,
Roubar petisco a alguém.

Foste belo e charmoso,
Guerreiro, bom e valente.
Lavadinho bem cheiroso,
Mostravas sangue ardente.

Bom galã, tudo passou,
Seu papão, grande guloso.
Quem soube, saboreou,
Quem não, ficou invejoso.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21027: Blogpoesia (678): "O mugido das vacas", "Amarelo e bolorento" e "Vamos voltar a sorrir", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 – P21039: (Ex)citações (368): A fé na guerra. Tempo de leitura. (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas, 

Deixo-vos mais um pequeno texto do meu último livro, nono, editado pela Editora Colibri – “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74”

Deus, virtualmente presente
 A fé na guerra
Tempo de leitura

A inabalável fé que cada um de nós - cidadãos comuns de um cosmos desigual - suporta ao longo da vida, afigura-se como uma junção espiritual que nos transporta a um mundo virtual onde as barreiras do imaculado não ousam ferir princípios que catapultam o ser humano para uma bênção divina. O conceito de fé não deve de forma alguma ser suscetível de hediondas conceções que tornam o homem uma criatura mártir de preconceitos falsamente concebidos. 


A guerra, melhor, viver no terreno as agruras que o conflito teimava em não dar tréguas a um soldado sem medo, tinha também uma outra vertente que conduzia o combatente a venerar algo oculto que permitisse sentir um melhor estado emocional. Afinal, ninguém foge às escarpas que a vida nos contempla. O destino dita o confronto com realidades que jamais ousámos desenhar.  

Assim, partindo do princípio que a fé, embora na conceção dos laicos a convicção seja irreal, remete-nos ao sentimento nobre de um persuadido que olvidou por completo o parecer do mundo pagão e assumiu convictamente penetrar num universo onde a fé sempre pernoitou. 

Penso que cada um de nós perfilha uma ideologia religiosa, ou não, que nos transporta para infindáveis presenças espirituais que em momentos de extremas aflições nos conduz a evocar a palavra Deus. O ateu, que se afirma completamente adverso ao catolicismo, ou a uma outra religião, tem, a espaços, particulares momentos na vida que inadvertidamente o leva a momentos de reflexão, sendo comum vociferar o nome de Deus. Esta a minha conceção. Respeito, todavia, outras opiniões. Porém, existe em cada ser humano uma certeza: em ápices dolorosos lá vem a mítica frase “Deus me valha”. 

A minha experiência no conflito da guerrilha na Guiné, teve como singularidade testar o meu mundo espiritual. Sabia que em casa dos meus pais, Aldeia Nova de São Bento, uma urbe situada num Alentejo sempre desperto, e astuto, a minha saudosa mãe convivia no dia a dia com uma promessa feita a partir do momento em que embarquei para a Guiné que a acomodava em manter as suas “santinhas” velinhas interruptamente acesas, deixando a sua jura antever que a fé superava um sofrimento superior com o qual o seu querido filho se deparava numa guerra que não dava folgas. 

Com a distância do tempo a prevalecer, afirmo que essa candeia incandescente que a fé justamente ditou, elevou a minha autoestima, assumindo em momentos considerados chaves, de delicado apuro, atitudes que me catapultaram para latentes sinais de esperança. 

Aliás, esta iniciativa da minha querida mãe expandia-se certamente por uma imensa diversidade de lares situados algures no mais discreto lar deste cantinho à beira-mar plantado. A família, no seu todo, convivia com a barbaridade que a guerra no Ultramar impunha ao mais modesto cidadão português. A fé incutia na família um estado de espírito que gerava díspares situações que conduziam as mães, em particular, a orar a Deus e depararem-se com pagamentos de promessas. 

Naquela tarde o silêncio protelava-se com o avançar dos ponteiros do relógio. O calor apertava, era normal. Não havia ordens de saída, nem tão-pouco conhecimento de eventuais investidas ao mato. Prevalecia a serenidade. O pessoal dispersava-se no interior do arame farpado e passava o tempo a emborcar cervejas para contemplar os seus bebíveis desejos. Outros divertiam-se a jogar às cartas e havia também quem aproveitasse a ocasião para colocar a escrita em dia, enviando notícias para a metrópole, boas como era da praxe. Nada de insinuar potenciais desgraças entretanto conhecidas. 

A policia do Estado – antiga PIDE – era uma organização que se mantinha sempre atenta. Uma pequena frase a denunciar o flagelo era fatídica. Nada de riscos. O cuidado atempado recomendava-se. Pintava-se a prosa em tons líricos. O sítio onde nos depositaram era esplêndido e tiros, ou desgraças, estavam completamente alheios ao nosso bem estar. Mortos? Estropiados? Nem pensar, estávamos no paraíso. A mãe, o pai, os familiares e os amigos rejubilavam com as boas notícias recebidas do combatente. 

As leituras de livros em tempos de pausa, favoreciam os nossos laboriosos espíritos. Com uma pequena foto da namorada sobre a mesa de cabeceira, estiraçado numa cama onde os ferros apresentavam resquícios de uma ferrugem atroz que se sobrepunha a uma ténue cor de café com leite, e uma ventoinha que me deliciava o corpo, lia atentamente um livro intitulado “UM DEUS NA PALMA DA MÃO”. Um Deus, algures em alguma parte de um universo imaginado, que copiosamente teimava proteger a minha aureola humana e adornava os meus intuitos de uma luta constante pela sobrevivência. 

A briga, não titânica, travava-se, agora, entre as quatro paredes do meu afrodisíaco quarto. Esquecia-me, por momentos, do horrível som emitido pelas armas, dos rebentamentos das minas nas picadas, dos famigerados ataques noturnos aos quartéis, da imprevisibilidade do trilho no mato, ou da ansiedade extrema que a guerra impunha. 

Ao lado, um camarada entretinha-se numa leitura sobre os heróis da banda desenhada. O ator principal era, no final, o vencedor. A personagem, obviamente mítica, ultrapassava barreiras inimagináveis. Vencia obstáculos. Nada temia. Era virtualmente o autêntico vencedor do chamado conto de fadas. Nós, recatados ao infinito do conflito, mergulhávamos num universo onde a prudência ditava ordens. 

Neste eloquente vaguear pelo mundo do ilusório, nós, jovens forçados a integrar esquadrões enviados para os campos de batalha, concluíamos: a guerra é um cosmos devastado por múltiplos interesses e assumidos por gentes que jamais conheceram os contornos de uma peleja onde a dignidade humana acaba por resvalar para conflitos incontornáveis! 

Revia-me, como uma pequena peça que integrava a plenitude de um xadrez onde um simples peão se limitava a evocar a palavra de Deus. Avocava, fielmente, uma fé literalmente inacabada. Lembrava-me das orações da minha saudosa mãe; as suas idas constantes à igreja; às missas domingueiras; as suas devoções e da sua entrega ao Pai Todo Poderoso. 

Crenças que se estendiam aos ilustres soldados enviados para o Ultramar a fim de combaterem um inimigo com rosto e de ideais seguros. Homens joviais que deixavam no seu torrão sagrado um vínculo real para o seu chamamento a terras de além-mar. “Carne para canhão”, falava-se nas velhinhas ruas de uma recôndita urbe portuguesa, ou em redor de um balcão de uma velha taberna. “Deus o proteja”, asseverava uma venturosa senhora que conhecia a preceito o rapaz, agora feito militar, numa das lojas da aldeia. 

Restava a inequívoca verdade que a fé na guerra do ex-ultramar prevaleceu entre os homens que combateram no terreno com o IN. Por outro lado, ficará a inquestionável dúvida: será que a Pátria agradeceu a nossa entrega? Será que os nossos companheiros que fazem parte do rol dos falecidos, desaparecidos, estropiados bem como todos aqueles que ainda hoje se deparam com exequíveis sequelas de uma guerra que teimam em persegui-nos, são reconhecidos? O que resta de uma guerra atroz que implicou no rumo das nossas vidas? Responda quem de direito. 

Nós, piamente esperamos, como sempre. Que Deus os oiça e que ilumine as suas mentes.

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. também os postes: 

Guiné 61/74 - P21038: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (22): Fotos do álbum do José Lino Oliveira (ex-fur mil amanuense, CCS/BCAÇ 4612/74, Mansoa, Cumeré e Brá, 12jul74 - 15out74) - Parte IV: Brá, BENG 447, 14/10/1974: O último arriar da bandeira no CTIG, mas já sem a presença de representantes do PAIGC.








Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 >  14 de outubro de 1974 > O último arriar da bandeira no CTIG, mas já sem a presença de representantes do PAIGC.

Fotos (e legenda): © José Lino Oliveira (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Continuação da publicação do álbum fotográficos do José Lino [Padrão de] Oliveira [ex-fur mil amanuense, CCS/BCAÇ 4612/74, Mansoa, Cumeré e Brá, 12-7-1974 / 15-10-1974, a mesma unidade a que pertenceu o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro; membro da nossa Tabanca Grande desde 31/12/2012; vive em Paramos, Espinho] (*)

Parte IV - Brá > BENG 447 >    Fotografias nºs  6 a 13: o arriar da Bandeira no dia de embarque [no "Uíge"]. Por coincidência também foi o Magalhães Ribeiro a arriar a Bandeira.


2. Mensagem do Zé Lino (em reposta a uma observação do nosso editor sobre a qualidade desigual das fotos):

Date: terça, 2/06/2020 à(s) 16:45

Subject: Mansoa 1974

Boa tarde

As fotos de Mansoa (**) são de uma qualidade má pois foram reveladas em Bissau.


Eu tinha, e ainda tenho, a máquina fotográfica reflex Ashai-Pentax com a qual fiz  bastantes fotos em papel como em slides. O problema é encontrá-las. As de Brá são melhores pois foram reveladas cá, e não são de slides. Vou ter mais para enviar, só espero não demorar tanto tempo para as enviar.

Quanto ao camião... Como entregamos o aquartelamento de Mansoa, e o deixamos com tudo, pronto a habitar, viaturas inclusive, tive de alugar 12 camiões para o transporte das nossas tropas até Brá. O camião em causa não posso afirmar se era "nosso" ou não, pois deveriam estar estacionados fora. Lembro-me que todas as viaturas estavam guardadas por militares armados, pois estavam com as nossas malas.

Se precisares de algum esclarecimento sobre os últimos dias é só contactar.

Um grande abraço, José Lino

3. Esclarecimento que nos chega pro email, do José Luís da Silva Gonçalves, ex-Soldado Radiotelegrafista da 2.ª CCAV/BCAV 8320/73 (Olossato, 1974), 729.º Grã-Tabanqueiro (***):


(...) "O último navio a sair do Porto de Bissau foi o "Uíge", mas não foi nele que vieram a últimas tropas. Estas vieram no "Niassa" que, como se sabe,  nem chegou a entrar nas águas territoriais da nova Nação. Correndo o risco, de ser repetitivo,  devo dizer que o "Uíge" desatracou perto das 15 horas da tarde do dia 14 de Outubro de 1974, e os últimos militares começaram a marchar para o porto perto, das 23:30 horas, desse dia, já que quando tocasse a última badalada da noite desse dia, já as lanchas de desembarque vinham a navegar ao encontro do "Niassa".

(...) Eu sei que éramos 2 Batalhões, que encontrei alguns militares do outro batalhão, que moravam em Almada, tal como eu, mas não me lembro que batalhão era. O meu era o BCAV 8320/73, e curiosamente há uns meses atrasados encontrei um desses rapazes do outro Batalhão, mas ele não se recorda nem da companhia a que ele pertencia. Só se lembra de nos termos encontrado a bordo do navio, e dos outros camaradas, companheiros de viagem. (...)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de junho de  2020 > Guiné 61/74 - P21035: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (15): Fotos do álbum do José Lino Oliveira (ex-fur mil amanuense, CCS/BCAÇ 4612/74, Mansoa, Cumeré e Brá, 12jul74 - 15out74) - Parte III: a sucata da guerra, abandonada em Brá, no BENG 447...

(**) Vd. poste de 1 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21028: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (15): Fotos do álbum do José Lino Oliveira (ex-fur mil amanuense, CCS/BCAÇ 4612/74, Mansoa, Cumeré e Brá, 12jul74 - 15out74) - Parte II: O adeus a Mansoa: 9 de setembro de 1974: o fur mil op esp / ranger Eduardo Magalhães Ribeiro arria a bandeira verde-rubra, na presença dos representantes do MFA e do PAIGC

(***) Vd. poste de 22 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16514: Tabanca Grande (496): José Luís da Silva Gonçalves, ex-Soldado Radiotelegrafista da 2.ª CCAV/BCAV 8320/73 (Olossato, 1974), 729.º Grã-Tabanqueiro