Brunhoso - Horta de Lamas
1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá,
1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia",
com data de 12 Julho de 2020:
VIAGEM
A música parece vir do Além.
Seria esta música que eu gostaria de ouvir se estivesse vivo depois de morrer.
Neste tempo de pandemia, entre confinado e desconfiado, é ela que me me leva a conviver, a recordar com saudade e melancolia, a comunidade das mulheres e dos homens que amei e já partiram. A música derrama-se com suavidade sobre o silêncio que me cerca e traz consigo um tempo que foi morrendo. Vem-me à memória uma caminhada que fiz há dias na aldeia
Passei pelo sítio dos Olmos, tão verdes , tão frondosos, morreram há muitos anos, agora há lá freixos e choupos, passei pelo largo da Lameira, cruzamento de caminhos e sigo em direcção a Lamas por um caminho sombreado de sobreiros, carrasqueiras e carvalheiras. Em Lamas avisto uma horta bem plantada e bem cuidada, como esta somente irei encontrar mais duas. As outras hortas estão cheias de fenanco, silvas e, arbustos, entre elas está a horta que foi duns avós, depois dos meus pais, onde cavei, lavrei, reguei, apanhei batatas, muitos vegetais, comi melões e nabos, ginjas, amoras de silva.
Toquei a burra , nas voltas da nora, ainda antes de ir à escola, por vezes parava já cansado de tantas voltas, a burra parava também, e de longe, na parte de baixo da horta, ouvia o meu avô chamar-me malvado, porque a água se acabava na "augueira".
A água das poças e charcos de Lamas e Vale-do-Meio que regava "por pé" cerca de trinta hortas destes dois sítios corre agora com abundância pelo caminho que de Vale-de-Meio desce para Lamas que encharca o caminho de Vale-do Meio e prossegue entre as hortas de Lamas. Aprendi a viver com tudo e a viver em todos os ambientes, gostaria de ter a experiência de vida de viver algum tempo no deserto mas o tempo de vida e as comodidades de 50 anos de cidade já me condicionam. Tornei-me um pequeno-burguês, com carro, com sofá, com horários, hábitos e outras comodidades. Sou um cidadão bem comportado, vigiado pelos meus iguais e outros, ainda antes do Covid 19.
Lameiro de Vale-de-Cabo
Os habitantes da aldeia agora reduzidos a um quinto de tempos passados, cultivam alguns quintais e pequenas hortas à volta do povo. Cultivar para vender deixou de ser rentável há muitos anos. Continuo, passo pelos lameiros (prados) de Vale-de Cabo, são dois, um deles era dos meus pais, é de sobrinhos meus, gostava de ir para lá com as vacas, tinha luz, visibilidade, avistava-se a aldeia, ficava no planalto, ao lado era o Urzal, com terras de cereal a perder de vista, com algumas vinhas na Tapada perto, dos meus tios, onde roubei algumas uvas. Já não há vinhas, nem searas douradas ao vento, no seu lugar alguns donos das terras plantaram oliveiras e amendoeiras.
Sobreiros das Rodelas
Subo um pouco mais o planalto, chego às Rodelas e avisto a paisagem típica transmontana, para lá do Sabor, escondido no vale e algumas franjas de Castro Vicente, atrás do cabeço de Santo Cristo. O caminho entre as Rodelas e as Avessadas é frondoso, com sobreiros com muita rama, grandes e fortes, de ambos os lados. Sinto um grande prazer em caminhar à sombra destas árvores gigantes, que ganharam direito de cidadania , pela riqueza que têm dado à terra..Viro para casa por um caminho paralelo e em parte igual, com muitas terras de "adil" e bastante oliveiras também. Nas Avessadas havia algumas vinhas, entre elas a dos meus avós maternos, onde fui ainda à vindima, quando era garoto da escola. Só já resta uma vinha mais nova, cereais também não há, há oliveiras e amendoeiras, a cobrir parte da área Desço os Lameirôes, volto aos Olmos e entro na aldeia com a igreja à vista, a grande casa, a Casa de Deus, agora mais deserta, como as casas e os terrenos e eu que gostos de cânticos, sem saber cantar, recordo o canto compassado, arrastado por vozes pesadas, gastas, graves, dos homens grandes (mais velhos) da aldeia, num latim antigo, em tempo de Quaresma, fechados na Igreja, perto do portão grande. por onde saiam as procissões. ainda saem. Há muitos anos que não se ouve esse cântico, os que o cantavam já morreram todos, com as suas mortes a terra foi definhando e morrendo, para mim essa música parecia vir do Além.
Texto, fotos e legendas: © Francisco Baptista
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Nota do editor
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