domingo, 25 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22404: In Memoriam (400): O Otelo Saraiva de Carvalho (1936-2021) que eu conheci... Ou "As armas e as mãos - Carta ao Otelo amigo" (José Belo, cap inf ref, Lapónia, Suécia)


José Belo,  ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); cap inf, participou na equipa de segurança pessoal do Otelo Saraiva de Carvalho, na campanha para as eleições presidenciais de 7 de junho de 1976; membro da Tabanca Grande  desde 8/3/2009, com mais de 200 referências no blogue; jurista, vive na Suécia há mais de 4 décadas.


1. Mensagem de Joseph Belo, a quem dei hoje de manhã, em primeira mão, a notícia da morte do Otelo Saraiva de Carvalho (*), seu amigo e camarada de armas;

Data - 25 jul 2021 13:44
Assunto - As armas e as mãos… Carta ao Otelo amigo.

Envio-te um texto em parte extraído de artigo meu publicado pelo Diário de Lisboa, de 11 de julho de 1984. Era um de dois dos artigos que este jornal publicou em que eu criticava abertamente as FP-25 de Abril, o pseudo-envolvimento do Otelo nas mesmas, e o não menos abusivo uso do “25 de Abril” na denominação das mesmas. Abraço, J. Belo.


As armas e as mãos… Carta ao Otelo amigo
 
por José Belo

Não encontrei ninguém que conseguisse comunicar tão espontâneos e intensos sentimentos de camaradagem, calor humano, sincera simpatia, não esquecendo também a tão pessoal “ingenuidade” em graus “quase sempre”…desculpáveis.

Por curto, mas importante período, conseguiste não só simbolizar, mas também interpretar, todos os anseios, esperanças, e porque não, o pequeno grão de romantismo anárquico que existe dentro de quase todos os portugueses.

O povo sentiu em ti, então “estrela” atirada para as ribaltas por camaradas que confiavam, alguém que o “ouvia”, e principalmente o apoiava sem condições.

Não é por acaso que a frase “Otelo-Na Presidência um amigo” foi a que melhor simbolizou a tua primeira candidatura num período em que, para muitos, os sonhos ainda se tocavam com as pontas dos dedos.

Não quiseste ser o “Caudilho”.

Quantas oportunidades, quantas situações de força, quantas vagas de fundo populares (assustadoramente expontâneas!) pararão te empurravam?

Numa das tuas “ingenuidades”, talvez a maior, pretendias com o teu cargo, e com os que te apoiavam nas forças armadas, ser o braço que neutralizaria todas as tentativas da forças que procuravam limitar a natural organização de base das massas populares no seu caminhar para uma sociedade socialista.

Essa atitude custaria caro, não só a ti, como principalmente aos trabalhadores. Melhor que ninguém, nesses meses em que quase te forçaram a assumir o poder, simbolizaste a feliz frase da tal “vila morena” ...O Povo é quem mais ordena!

Eu, camarada de profissão, familiar e sincero amigo, sem nunca perder o juízo crítico quando olhava o “político”, acompanhei-te em momentos de força, de poder, de comando, mas também em outras de profundas e inexplicáveis contradições frente a multidões enquadradas nos mais díspares partidos políticos.

Os resultados?

Responsável pela equipa da tua segurança pessoal, tive a oportunidade de ouvir as tuas conversas com pescadores algarvios, com as operárias conserveiras, com camponeses alentejanos (dilacerados entre o “coração e o dever!), com as gentes de Peniche, com os operários do Barreiro em expontâneos gritos de “unidade”, com os pequenos agricultores do Norte, com jovens padres de paróquias perdidas nas serranias, com os “humildes” da Madeira.

Os resultados?

Acompanhei-te na incrível recepção do Porto, em Braga, em Matosinhos, na Régua ,nos banhos de multidões na Cova da Piedade, Setúbal e Lisboa, onde o Parque Eduardo VII foi bem pequeno para albergar os manifestantes.

Os resultados?

Também, é certo, assisti à parasitagem que, à sombra da tua popularidade, alguns pequenos grupos políticos de representatividade duvidosa exerciam.

Que ridículos foram alguns deles, neurotizados por o povo não corresponder ao seu “povo das tertúlias“ mas que de imediato se julgavam com oportunidades de o… reeducar!

Terá, mais uma vez ,a tua proverbial “ingenuidade” te empurrado para uma candidatura manipulada por agências imperialistas internacionais?

Terão jogado inteligentemente com a previsível desmobilização e desilusão, que viriam a surgir perante a incapacidade organizativa, e política, de transformar os surpreendentes resultados em algo de operante, activo, concreto?

Terá sido literalmente o “matar dois patos com o mesmo tiro”? Tu próprio, somado ao Octávio Pato, então candidato do PCP

Mas houve momentos em que tu mesmo acreditastete que algo poderia surgir da incrível vaga de fundo que ias conseguindo levantar por esse país fora.

Recordo fim de tarde quente alentejana quando a caravana eleitoral abandonava Castro Verde em apoteose. Tu quase monologavas sentado no banco traseiro do automóvel, entre um José Afonso que dormitava exausto, e eu, sem respostas lógicas para tamanho carinho e expontâneo entusiasmo popular.

Neste eufórico momento de festa falavas de Allende, de um Chile então tão próximo, do golpe militar contra um Presidente eleito.

Porquê, então, esse fatalismo de identificações?

Por consciência das limitações?

Por não acreditares na figura que simbolizavas, que tão bem… representavas?

Por teres consciência que os que te rodeavam,tanto em pseudo “vanguardas” como em militares “progressistas”, te acabariam por “encurralar “ obrigando-te a assumir posições, ou pior, assumindo-as eles próprios, com as quais não te identificavas?

Pairava ainda no horizonte a incrível multidão de trabalhadores que na Évora de antes de Novembro gritara repetidamente ”Força! Força camarada Otelo!"

Ecos de palavras de ordem dedicadas a outro militar político. Não seria então a consciência do “incómodo” que ainda simbolizas? De libertação, de grito popular, de espontaneidade de Abril?

Muitos te temeram no mito do COPCON. Muitos te invejaram na estrela de Abril. Muitos procuraram utilizar-te na sincera estima que o povo te nutre.

Como alguns não te perdoam, ou esquecem, o teu individualismo anárquico assumindo posições suspeitas… por ilógicas!

Com os teus erros profundos, com as tuas traições aos que esperavam de ti ver reflectidas as suas ambições pessoais ou políticas, serás mesmo assim um membro por direito próprio da nossa História a quem o futuro julgará com raciocínios espiados pelos tempos.

Conheci o “Otelo Amigo” que tudo sacrificou por acreditar no Povo. O mesmo Povo que na sua sabedoria expontânea guarda por ele um especial carinho, desculpando-o de... quase tudo!

E, tristemente, alguns dos Camaradas militares que te irão tecer elogios fúnebres, politicamente corretos..., serão os mesmos que te invejavam e atraiçoavam em 74/75.


Laplande/Suécia 25 de Julho 2021
J.Belo


Citação: (1984), "Diário de Lisboa", nº 21504, Ano 64, Quarta, 11 de Julho de 1984, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_1603 (2021-7-25)
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 25 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22402: In Memoriam (399): Coronel Otelo Saraiva de Carvalho (1936 - 2021), autor do Plano de Operações do 25 de Abril de 1974 e que cumpriu uma comissão de serviço na Guiné entre 1970 e 1973

Guiné 61/74 - P22403: Blogues da nossa blogosfera (160): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (69): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


MEU AMIGO DOSTOIEVSKY

ADÃO CRUZ
© ADÃO CRUZ


Meu amigo Dostoievsky
nada temos a ver
aparentemente
um com o outro
a não ser o nosso encontro
pelos meus dezoito anos.
Apetece-me chorar ao recordar as noites
em que à luz de um foco olho de boi
debaixo dos lençóis
- para que minha mãe não visse -
eu invadia os teus livros
numa das maiores
e mais deliciosas aventuras da minha vida.
Ainda hoje me são familiares
o rosto de Sónia e a figura de Raskolnikov
luz mítica e mística dos que têm coisas em comum
orientando-se na direcção do símbolo
e do mundo sem forma.
Da mesma forma que te marcaram Balzac
Schiller
Victor Hugo e Goethe
tu imprimiste em mim a sensação
que te fez desmaiar
perante a beleza de Seniavina
na casa dos Wielgorsky
e eu não sou homossexual
meu caro Dostoievsky.
Perante a beleza
eu não sei ao certo onde pára o sexo
se no esperma de Úrano derramado no mar
se na poesia da Morte em Veneza.
Não é a realidade física que interessa ao simbólico
mas o significado do sexo na imaginação.
A dualidade do ser funde-se
na tensão interna de quem ama
e a união sexual não é mais
do que o apaziguamento da tensão interior.
Nunca te concebi humano
sobretudo depois dessa manhã
de rosto de pedra e gelo
em que viveste o mais trágico minuto da tua vida.
Um vento glacial varreu-me a fronte
ao ouvir o teu nome na chamada para a morte:
-Akcharumov!
-Shaposhnikov!
-Dostoievsky!
Hoje
depois de ter amado tanto
aceito a tua epilepsia
como o estigma mais marcante
da pureza da condição humana
e passei a considerar-te meu irmão
para o resto da vida.
Por isso me senti prisioneiro
quando entrei na fortaleza de S. Pedro e S. Paulo
por isso chorei na Praça Semenovsky
onde viveste uma vida inteira
em dois minutos de morte.
Era como se fosse eu o condenado!
Também chorei quando reencontraste Suslova
apenas
pelo que sofreste ao ver que o amor não se repete.
A noite e o vazio
estão na origem cosmológica do mundo
e o amor é uma criança que cresce...
e deixa de ser criança.
Amor e morte
quando descobertos
acordam e fogem.
Para escrever bem é preciso sofrer
disseste um dia ao jovem Merejkovsky
quando a vida confundia as chamas do teu inferno
com relâmpagos de visionário.
Sofrer pode ser apenas sorrir...
frente a toda a utopia palpável
não paranóica nem delirante.
Foi a mim que o disseste
meu caro amigo
foi a mim que o disseste
na tarde cinzenta da tua morte
na hora da hemorragia que te vitimou.
Até hoje ainda não te agradeci.
Perdoa não ter acompanhado o teu féretro
mas nessa altura eu não existia...
ou será que te acompanho ainda hoje
neste pesado caminho do fim?

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22382: Blogues da nossa blogosfera (159): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (68): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P22402: In Memoriam (399): Coronel Otelo Saraiva de Carvalho (1936 - 2021), autor do Plano de Operações do 25 de Abril de 1974 e que cumpriu uma comissão de serviço na Guiné entre 1970 e 1973

IN MEMORIAM

Coronel Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho
Lourenço Marques, 31/08/1936 - Lisboa, 25/07/2021


BIOGRAFIA

Militar, político e estratega do 25 de Abril

Otelo Saraiva de Carvalho nasce em Lourenço Marques, a 31 de Agosto de 1936.
Cumpre comissões de serviço em Angola, entre 1961 e 1963, e na Guiné, entre 1970 e 1973.

Esteve presente na génese do Movimento dos Capitães, tendo desempenhado o papel de responsável pelas operações no golpe militar de 25 de Abril desde o posto de comando que se situava na Pontinha, em Lisboa. 

No período revolucionário foi comandante-adjunto do Comando Operacional do Continente (COPCON), passando a ser comandante efectivo em Março de 1975, mas assumindo a responsabilidade desde o início da presidência da República de Costa Gomes. 

Foi também nomeado comandante da Região Militar de Lisboa (RML) a 13 de Julho de 1974. Durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC) integrou ainda o Conselho da Revolução, formando, juntamente com Francisco Costa Gomes e Vasco Gonçalves o triunvirato mais célebre de 1975 – o Directório – que mereceu uma capa da revista Time. Foi afastado de todos os cargos após os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, tendo inclusive sido preso.

Candidato às eleições presidenciais de 1976 e de 1980, acabou derrotado em ambas. Nesse mesmo ano criou o partido Força de Unidade Popular (FUP). Em 1985 é acusado de liderar as FP-25, o que lhe valeu cinco anos de prisão, tendo sido amnistiado em 1996. No decorrer do processo das FP-25, foi despromovido de brigadeiro a tenente-coronel.


Com a devida vénia a Memórias da Revolução

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Em 6 de Maio de 2011, na nossa série Notas de Leitura, Mário Beja Santos fazia esta recensão ao livro "Alvorada em Abril", de Otelo Saraiva de Carvalho:

Guiné 63/74 - P8230: Notas de leitura (236): Alvorada em Abril, de Otelo Saraiva de Carvalho (Mário Beja Santos)

Otelo Saraiva de Carvalho e a Guiné


Beja Santos

"Alvorada em Abril" é o título das memórias de uma figura lendária do 25 de Abril em torno da história portuguesa dos anos 50 aos anos 70, culminando com a concepção e execução do derrube do regime chefiado por Tomás e Caetano. Temos nestas memórias o que para ele foi determinante, no seu percurso pessoal e no seu modo de interpretar os acontecimentos contemporâneos, a génese e o triunfo do Movimento dos Capitães e como este desaguou no 25 de Abril ("Alvorada em Abril", Editorial Notícias, 4.ª Edição, 1998). A sua terceira e última comissão foi na Guiné, pelo que tem todo o sentido fazer o registo das suas lembranças e observações.

Ele parte para a Guiné em Setembro de 1970 e logo recorda que se encontrava em Nova Lamego, em 22 de Novembro, quando soube da invasão da Guiné-Conacri. A notícia deixou-o estupefacto, ele que trabalhava em Bissau de nada sabia e acrescenta que posteriormente veio a saber que o assunto já era discutido pelas mulheres dos oficiais nos cabeleireiros da Baixa de Bissau antes de se ter realizado. Nessa noite, enquanto decorria a operação, houvera vigília em Bissau, Spínola aguardava ansioso das notícias da missão rodeado dos seus leais colaboradores, tenente-coronel Robin de Andrade, major Firmino Miguel e major Jorge Pereira da Costa. E adianta: 

"Ainda hoje desconheço quais seriam, exactamente, os objectivos da missão, mas parece não restarem dúvidas de que, entre eles, estariam os assassínios de Amílcar Cabral e de Sékou Touré, o silenciamento da Rádio Conacri, a destruição de sede do PAIGC, a destruição de aviões na base aérea local e a libertação de prisioneiros de guerra portugueses retidos nas prisões da cidade".

Dá-nos em água-forte um retrato de Spínola que culmina com uma apreciação corrosiva:

  "Medularmente vaidoso e autoritário, sempre o reconheci totalmente incapaz de se atribuir o mínimo erro ou de debitar a mais suave autocrítica. Sendo detentor da razão e da verdade absolutas, era com displicência e sem remorso que liquidava o bode expiatório escolhido para arcar com as responsabilidades de qualquer falhanço pessoal... demagogo em extremo nunca entendi com clareza se as qualidades que nele admirava era autênticas e humanas ou se cultivadas com esforço a fim de construir artificialmente uma personagem".

Descreve o seu trabalho no QG e alude mesmo o nome de oficiais milicianos, da extrema-direita, que mais tarde acompanharão Spínola na aventura do MDLP.  Colocado na Subsecção de Operações Psicológicas, assistiu ao exibicionismo propagandístico é à construção de imagem que Spínola quis criar em Portugal e internacionalmente, o que ele procurava era sugerir um extraordinário surto de progresso na Guiné com a sua governação e minimizar os êxitos no combate do PAIGC. 

Narra peripécias com jornalistas internacionais, certames de propaganda, a realização de Congressos do Povo. Refere os efectivos militares, do lado português e os do PAIGC, as argumentações de aliciamento, de um lado e do outro. 

A narrativa não é cronológica, dá saltos, vai até ao futuro repentinamente, conta histórias passadas, de supetão. Está-se a falar da propaganda do PAIGC, seguem-se referência ao seu programa político, destaca-se a figura de Rafael Barbosa como agitador, que foi preso em Março de 1962, tendo permanecido encerrado num cubículo durante quase 8 anos, onde foi espancado e torturado. Em Agosto de 1969, Spínola ordenou que fosse libertado. Tempos mais tarde, Rafael Barbosa manifestará publicamente o seu arrependimento por ter aderido à luta armada. Em 1977, será julgado em Bissau pelo PAIGC pelo crime de traição ao partido e ao povo e ser-lhe-á comutada para 15 anos de prisão a pena de prisão perpétua a que fora inicialmente condenado.

Já em 1973, o autor descreve a chegada dos mísseis terra-ar Strela e depois depõe sobre o controverso "I Congresso dos Combatentes do Ultramar". Para Otelo, os organizadores eram antigos oficiais milicianos com ideologia de extrema-direita que garantiam publicamente ao regime a entrega devotada dos oficiais das Forças Armadas à nobre missão de, através da continuidade da guerra colonial, assegurar a perenidade da Pátria. 

Os oficiais do quadro ter-se-ão apercebido da essência da manobra e reagiram. Almeida Bruno terá sido quem mais actividade desenvolveu, promovendo uma resposta concertada. Para os oficiais na Guiné já não subsistiam dúvidas que o Governo procurava tirar dividendos da "entusiástica adesão dos patrióticos combatentes do Ultramar"

E escreve: 

"Enquanto em Lisboa Ramalho Eanes, Hugo dos Santos, Vasco Lourenço e outros encabeçavam um vasto movimento de protesto, eram recolhidas na Guiné 400 assinaturas de oficiais do QP com a mesma intenção, subscrito em primeiro lugar por oficiais possuidores das mais elevadas condecorações”

O autor inscreve estes acontecimentos num processo mais vasto de descontentamento das Forças Armadas que veio a ser ateado pelo Decreto-Lei n.º 353/73, nova peça da bola de neve que irá conduzir à queda do regime.

Passando para outro campo de considerações, Otelo de Saraiva de Carvalho fala dos acontecimentos de Guileje, em Maio de 1973, quando o major Coutinho e Lima mandou evacuar o aquartelamento, para tal escrevendo: 

"Para o major Coutinho e Lima o motivo era suficientemente forte: incontável número de flagelações da artilharia inimiga tinha destruído quase por completo as instalações aquartelamento e o moral do pessoal. Apesar dos pedidos insistentes e aflitivos, o apoio aéreo não fora concedido, no receio de que a acção fosse um chamariz para o abate de mais alguns aviões. Ao ter notícia da evacuação, Spínola não viu outra alternativa senão ordenar a prisão de Coutinho e Lima e mandar instaurar-lhe um auto de corpo de delito por crime essencialmente militar de cobardia: abandono de praça militar ao inimigo"

É neste contexto que surge Manuel Monge, graduado em major, foi sobre os seus ombros que caiu a responsabilidade de aguentar a tragédia de Gadamael.

Estamos praticamente no final na sua narrativa referente à Guiné. Marcelo Caetano decidira, em 1972, apoiar a nomeação de Américo Tomás para novo mandato. Spínola considerava que gozava de alguns apoios muito influentes do panorama político e financeiro português (Azeredo Perdigão, Jorge de Melo, Manuel Vinhas, António Champalimaud). Em Agosto de 1973, Spínola regressa a Portugal, é promovido a general de 4 estrelas e nomeado vice-chefe do EMGFA. Spínola mudara, observa o autor. Fizera um longo, longo percurso, fora administrador e colaborador do boletim da Legião Portuguesa, no início da carreira; baseado na sua experiência guineense, sentia-se agora apto a defender o federalismo para contornar uma guerra não susceptível de ter solução militar.

Em Setembro de 1973, Otelo Saraiva de Carvalho participa pela última vez numa reunião do Movimento de Capitães, em Bissau. E escreve: 

"Exactamente três meses depois da minha chegada a Bissau seguirei para a metrópole em fim comissão. Recebo a incumbência de, em Lisboa, de me integrar no Movimento e ser o porta-voz das preocupações que assaltam os camaradas no TO da Guiné"

Preocupações que ele desenha num quadro de tintas carregadas: é previsível que o PAIGC irá proclamar a independência do território. Nas reuniões do Movimento dos Capitães em embrião já se debate o que irá mudar com essa independência reconhecida pela ONU. E escreve: 

”O Governo Central não proporcionará às Forças Armadas no TO da Guiné qualquer apoio, provocando a sua derrota calculada para as transformar em bode expiatório da perda da colónia como acontecera antes com o Estado da Índia, e canalizar todo o esforço militar para a defesa de Angola.”

E tece o seu comentário sobre o que se estaria a passar na mente de Marcelo Caetano: 

”Em entrevista concedida por Marcelo Caetano no Brasil, em 1977, a um jornalista português, o antigo Presidente do Conselho confirma que tencionava na verdade provocar a queda da Guiné através de uma derrota militar para, salvando a face do regime, reforçar a todo o custo a defesa de Angola por tempo ilimitado. Não posso acreditar que Spínola não estivesse perfeitamente consciente de todo este drama. Considero, pelo contrário, que essa seria a razão fundamental que o teria levado a não regressar para concluir o sexto ano do seu mandato. Ele não poderia nunca, após mais de cinco anos de intensa actividade desenvolvida na Guiné e que era para si motivo de orgulho e honraria, transformar-se no comandante-chefe de umas Forças Armadas enxovalhadas e derrotadas em consequência da ineficácia do regime.”

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Nota dos editores:

À família, camaradas de armas e amigos do Coronel Otelo Saraiva de Carvalho (que tem cerca de duia e meia de referências no nosso blogue), os editores e a tertúlia deste Blogue, apresentam as suas mais sentidas condolências.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22375: In Memoriam (398): José Martins Rosado Piça (1933-2021), 1º srgt inf ref (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71), nosso grã-tabanqueiro nº 660... Mais do que "o nosso primeiro", um grande amigo e melhor camarada

sábado, 24 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22401: Fauna & flora (16): Répteis da Guiné-Bissau que é preciso conhecer e proteger: 2 crocodilos, o crocodilo-do-Nilo (Lagarto) e o Lagarto preto; e duas linguanas (a de água e de mato)

República da Guiné-Bissau, Direcção Geral dos Serviços Florestais e Caça, Deparatmento da Fauna e Protecção da Natureza, s/l, 34 pp. s/d (Disponível em formato pdf, aqui, no sítipio do IBAP , https://ibapgbissau.org/Documentos/Estudos/Animais%20da%20Guine-Bissau.pdf)


Animais protegidos no lei, na Guiné-Bissu_ estão incluidos o Crocodilo-do Nilo (Lagarto) e o Crocodilo 


1. A propósito dos répeis, referidos no poste P22399 (*), aqui vai informação adicional (**):

 

Fi8cha técncia: Crocodilo-do-Nilo (Lagarto)  (Crocodylus nolotcus) (pág. 28)


 

Lagarto preto (Osteolaemus tetraspis) (pág. 28)



Ficha sobre a Linguana-de-água (Varana niloticus) (pág.29)


Ficha sobre a Linguana-de-mato (Varana exanthematicus) (pág. 29)


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Notas do editor:


(*) Vd. poste de  24 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22399: Fotos à procura de... uma legenda (146): Uma vez por todas, não havia nem há "jacarés" na Guiné-Bissau, mas "crocodilos" (e outros répteis)

Guiné 61/74 - P22400: Os nossos seres, saberes e lazeres (461): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Recebe-se um aviso do Google que há para ali um excesso de imagens, é uma sobrecarga que gera lentidão no funcionamento do computador. Para não cometer barbaridades no esvaziamento desse paquiderme de imagens, põe-se tudo no ecrã e descobre-se, com uma ponta de amargura, que se andou por ali e aqui mais próximo a desfrutar em interiores e exteriores, e que não se deu conta do recado, tornar essas imagens conviventes, a palavra é estafada mas sintetiza a motivação que as levou a tirar e guardar: partilhá-las, foram coisas de que se gostou, podem interessar a A, B ou C, dar ideias para uma visita ou itinerância. Por pura cabulice, deixei cristalizar estas imagens até chegar a advertência de que delas tenho de me desfazer, pois não será de qualquer modo, reparto-as em sede própria, se me deram satisfação a registar pode muito bem acontecer que venham a ser bem acolhidas e até dêem ideias para que de outras câmaras haja outros envios para o nosso extremoso blogue.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (8)

Mário Beja Santos

Parte-se para um evento, leva-se a devida carga de curiosidade, casos há em que previamente se estuda o que se vai ver, é regular a vontade de partilhar o que se olhou e viu, aquilo que ganhou sentido e merece alguma cogitação. Será porventura o caso destas imagens em que houve, digo-o sinceramente, a determinação de as pôr em ordem e mostrá-las aqui, o diabo tece-as, entrepõem-se outros misteres, perde-se o rumo ao que se guarda na câmara, e acontece o dia em que se abre no ecrã do computador este caleidoscópio, sente-se inicialmente um amargo de boca, ora, mais vale a emenda do que o soneto, toca de cerzir ajuntamos de imagens, há evidentemente uma lógica, e de algo que se passou de Castanheira de Pera para Figueiró dos Vinhos e daqui para Tomar se dá conta do que surpreendeu e que cada um, dentro do possível, desfrute ou ganhe apetência para ir ao encontro do que estas imagens fazem sonhar.

A Casa da Criança em Castanheira de Pera, torrão natal de Bissaya Barreto, médico filantropo que criou todo este projeto – são 25 casas da criança, todas elas com muita proximidade – e responsável por uma visita que é quase obrigatória em Coimbra – o Portugal dos Pequeninos. O médico fez muito pelas crianças e a vivacidade destes azulejos falam por si. Acontece que viera a Castanheira de Pera com alguns amigos que pretendiam conhecer o que fora o mundo têxtil da região, bem desapontados daqui saíram, o que podia ter sido um valioso património industrial vai caindo aos bocados. Era inevitável irmos ao centro histórico da vila, viu-se o jardim, que guarda pergaminhos, mostrei uma magnólia como não conheço outra igual, e todos à uma foram espreitar os azulejos, houve elogio unânime. E bem merecido, digo entre parênteses. Passou-se por outro programa e as imagens ficaram. Só que…


Painel de azulejos na Casa da Criança de Castanheira de Pera. As Casas da Criança são coloridas, com muitos mosaicos, com linhas redondas, envolvidas em espaços verdes e induzem um ambiente de vivacidade e alegria.

Mais tarde, havendo notícia de uma exposição do belo edifício do Museu e Centro de Artes de Figueiró dos Vinhos, para ali se foi num princípio de tarde, era irresistível tirar imagem da Casa da Criança, com toda a sua garridice, posso supor que nenhuma criança hesita em ali entrar. Quanto à exposição, Figueiró dos Vinhos tem alguns trunfos a dar sobre aquilo que se chama a escola naturalista, um dos sumo-sacerdotes desta corrente artística viveu ali a escassos metros, numa moradia chamada O Casulo, felizmente bem cuidada, era a casa de José Malhoa que adorava o sol de Figueiró, que interpelava velhinhas na rua, pintou até mesmo no dia em que partiu para as estrelinhas, adorava a região. Aqui também viveu Simões de Almeida, o sénior e o sobrinho, é possível contemplar belas esculturas de ambos, mas há exposições em que aparecem outros naturalistas como Silva Porto ou Henrique Pinto. Por ali se cirandou vendo obras algumas delas de grande envergadura, houve ideia de fazer delas registo, novas andanças da roda do destino, esqueceu-se que estava na câmara, mais vale tarde do que nunca, fica feito o convite para vir a Figueiró e visitar este Centro de Artes, mesmo O Casulo, e no altar-mor da Igreja há um batismo de Cristo assinado por José Malhoa. E aproveito para lembrar que em Figueiró ajudei a organizar um convívio da CCAÇ 2402, a pedido do saudoso Raul Albino, a autarquia foi recetiva ao meu pedido, recebeu toda a comitiva no Salão Nobre e cedeu as viaturas a seguir ao almoço para um belo passeio em todo o concelho. E fica a sugestão para outros encontros de unidades militares, comer satisfatoriamente e abraçar camaradas para sempre é uma dádiva irrecusável, mas se houver um bom passeio, ainda melhor, mais fica para a recordação.

Casa da Criança de Figueiró dos Vinhos
Museu Centro de Artes de Figueiró dos Vinhos, imagem de uma exposição
Há uns anos, a minha extremosa neta pediu-me para a levar a um aquaparque, mas não queria visita de médico. Encontrei a solução ali para os lados de Minde, perto das grutas de Mira d’Aire, alugam-se umas casas de madeira e o aquaparque é estonteante. Coube-me em exclusivo o ofício de andar a escorregar na água por toda aquela tubagem, com queda na piscina, a neta a insistir que queria mais, cheguei ao fim da tarde que não podia com uma gata pelo rabo, mas vê-la tão contente, aqueles olhos azuis a relampejar de alegria, fez-me esquecer a canseira. Ora, perguntará quem tem a paciência de seguir estas linhas, o que tem a ver esta conversa com a última imagem que se apresenta, o Castelo de Almourol? Na minha cabeça tem, viu-se de terra firme o castelo Templário no dia em que se chegou para a jornada de banhos aquáticos em circuito fechado, e no regresso visitou-se a Casa-Museu de Roque Gameiro, esse insigne aguarelista que assina o que o leitor está a ver, e, vamos lá, é de uma rara beleza.


Ficaria mal comigo mesmo se não vos dissesse que estas imagens, de uma exposição que já vos falei, não fossem aqui exibidas. É sempre a exultação da pedra, em pequeno a minha mãe levou-me à Avenida da Liberdade, estavam a refazer a calçada portuguesa com aqueles desenhos rendilhados do basalto embrechado no calcário, o que me impressionava era o trabalhador a sopesar a pedra, a ver se estava conforme, a martelá-la a jeito, afagando o conjunto de vez em quando, como se estivesse num ateliê com um pincel a observar a tela, e a intervir aqui e ali. Daí a importância que atribuo a esta imagem, e depois aquela seteira onde pudemos mirar o que é viver em paz, sem os calafrios de uma investida muçulmana, e por fim mais uma imagem da pedra nessa obra soberba que é o Aqueduto de Pegões, a água levada para o interior do Convento de Cristo, para mim são três imagens impressivas, a preto e branco, e tenho enormes saudades da minha infância, em que tudo era a preto e branco, e até recordo os fotógrafos à la minuta, de que guardo recordações de passeios pelas feiras ou jardins.

Imagem fotográfica extraída da exposição Os Sítios da Pedra, Complexo Cultural da Levada, Tomar, outubro/dezembro de 2020
Imagem fotográfica extraída da exposição Os Sítios da Pedra, Complexo Cultural da Levada, Tomar, outubro/dezembro de 2020
Imagem fotográfica extraída da exposição Os Sítios da Pedra, Complexo Cultural da Levada, Tomar, outubro/dezembro de 2020

E vamos continuar com mais itinerâncias, agora vamos passar para um jardim muito especial, na rua da Escola Politécnica, o Jardim Botânico. Imagine-se, fora uma tarde de surpresas, e ficara tudo cristalizado na câmara, que desperdício para quem aprecia património vegetal.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22380: Os nossos seres, saberes e lazeres (460): A pedra, a fábrica, o rio, a presença da História e da Arte em Tomar (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22399: Fotos à procura de... uma legenda (153): Uma vez por todas, não havia nem há "jacarés" na Guiné-Bissau, mas "crocodilos" (e outros répteis)


Guiné > Região de Tombali > Cameconde > CART 6552/72 (1973/74) > O Manuel Ribeiro com um pequeno "jacaré", apanhado na bolanha de Cassomo (, em rigor, trata-se de outro réptil já que não há jacarés na Guiné, nem em toda a África, apenas no Novo Mundo e na China). (*)

Foto (e legenda): © Manuel Domingos Ribeiro (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário do Cherno Baldé ao poste P22393 (*):

Caros amigos,

O animal (réptil) que o Manuel Ribeiro mostra numa das fotos, não é Jacaré, mas também não é um Crocodilo. Eu explico:

Na Guiné e países vizinhos da região, existem algumas espécies menos conhecidas de répteis da familia dos crocodilos / Jacarés, mas que são muito mais pequenos que estes e que nunca ultrapassam 1,5 mts de comprimento. 

Alguns são anfíbios, com uma coloração muito parecida dos Jacarés, meio esverdeada no dorso e nas patas e amarelado na parte de baixo e que tem como habitat as bolanhas. Estes répteis da bolanha são mais leves e ágeis, e podem ser encontradas em cima de ramos de árvores na orla das bolanhas. Na lingua fula são designados por Heleldi (plural), Heleldu (singular).

Em contrapartida, os Crocodilos, normalmente, vivem nos rios ou braços de mar e raramente se aventuram em bolanhas, salvo em épocas de grandes cheias que podem assim juntar as águas dos rios e das bolanhas.

E ainda, há outros (seus primos) que vivem um pouco mais afastados das bolanhas, podendo ser encontradas mesmo na floresta, com uma cor única, sujos de lama e, em regra, adquirem a cor da terra onde habitam, podendo ser de cor preta, cinzenta ou avermelhada, conforme o local, pois vivem em buracos que escavam no solo (toma a designaçao de Kurôh, em fula).

Antes da islamização, estes répteis eram caçados e faziam parte da dieta alimentar das diferentes etnias da região, mas com o advento das religiões monoteistas, passaram a ser consideradas impuros e, em consequência, ilícitos para o consumo dos crentes. Não obstante, o hábito antigo de consumo das suas carnes ainda se mantém entre os mais novos que frequentam as bolanhas e campos de trabalho em plantações de caju e outros cereais no mato, não estando sujeitos, nessas ocasiões, ao escrutinio dos mais velhos.

Cordialmente,

Cherno Baldé

2. Comentário do Valdemar Queiroz ao poste P22393 (*):

(...) Quanto ao réptil, faz-me lembrar um lagartão que aparecia nos regos feitos pela corrente das águas da chuva e me pregou um grande susto...e complicado : imagina estar a largar o preso para o rego e de repente aparecer dum restolho um lagartão e eu desatar a fugir com as calças a dificultar e qual preso pra que vos quero.(...)

3. Resposta do Cherno Baldé ao comentário anterior:

Caro Valdemar,

Esse "Lagartão" que tu viste, deve ser um dos tais répteis a que me referia no meu comentário. Este deve ser o do interior e que costuma surpreender, dissimulado nos arbustos, com uma saída abrupta e com passos pesados.

Quando éramos crianças, tentávamos apanhá-los com os nossos cães, mas conseguiam defender-se abanando suas caudas. (...)




Fonte: Mercado livre  Selos da Guiné-Bissau, com a devida vénia


4. Comentário de LG:

De todos os répteis recenseados na Guiné-Bissau (cerca de 8 dezenas), , conseguimos identificar, através de pesquisa da Internet, e no nosso blogue, da família Crocodylidae pelo menos 3 espécies de crocodilos:

  • Crocodilo do Nilo (Crocodylus niloticus) (conhecido naGB como "lagarto"; é "animnal protegido");
  • Crocodilo de focinho delgado (Crocodylus catraphactus)
  • Crocodilo-anão (Osteolaemus testrapis) (também conhecido pro lagarto preto, na GB; é "animal protegido"),

Os crocodilos pertencem à à classe Reptilia, ordem Crocodylia, família Crocodylidae (Cuvier, 1807). Outra família são os Alligatoridae: aligatores ou jacarés (que não existem na Guiné-Bissau...). E ainda a família Gavialidae (os gaviais).

No total existem 24 espécies vivas da ordem Crocodylia, a mais numerosa são a dos crocodilos propriamente ditos, Crocodylidae: 14 espécies. O crocodilo do Nilo é o que pode representar maior perigo para o ser humano, medindo, os machos, entre 3,5 e 5 metros de comprinento (e pesando, em média, entre 250 e 500 kg.).

Os jacarés só existem no Novo Mundo e na China. Distinguem-se dos crocodilos por terem: (i) uma cabeça mais curta e mais larga; e (ii) focinhos mais avantajados. Os crocodilos vivem no Novo e no Velho Mundo (exceto da Europa).E os gaviais só existem na Índia e no Nepal e estão em perigo crítico.
 
Ver também base de dados do répteis (The reptile database).

Mas há mais répteis na Guiné-Bissau (vd. selos da Guiné-Bissau)... Por exemplo:

  • Varano do Nilo  (Varanus niloticus) (também conhecido por largato do Nilo, podendo atingir 1,5 / 2 m de comprimento; na GB é conhecido pot linguana-de.água)
  • Linguana-de-mato (Varanus exanthematicus) (vive nas savanas);
  • Agama comum (Agama agama) (, pequeno lagarto, que pode medir até 30 cm., que encontrávamos na Guiné, geralmente em grupo, quer nossos nos aquartelamentos quer a atravessr as picadas)
Gostava de saber o nome científico dos répteis acima referidos pelo Cherno Baldé e pelo Valdemar Queiroz... mas não sei. É capaz de haver mais lagartos, entre este mais pequeno, o Agama comum e o Varano do Nilo (que não me lembro ter visto...). Bambadinca, em mandinga, queria dizer justamente "a cova do lagarto" (ou seeja, do crocodilo)... Há  uma equipa de futebol a disputar o campeonato nacional, os Lagartos Futebol Clube de Bambadincam criada em 2002...

O Cherno Baldé rovavelmente estava a referir-se aos varanos ou linguanas... Em fula, no plural, Heleldi (linguanas-de- água) e Kurôh (linguanas-do-mat0). 



Fonte: Estratégia e Plano de Acção Nacional para a Biodiversidade, Projecto GBS/97/G31/1G/9, Programa de Nações Unidas para Ministério de Desenvolvimento Rural e Agricultura Desenvolvimento e Ministério dos Recursos Naturais e Ambiente, República da Guiné-Bissau, 161 pp.(Disponível aqui, em, formato pdf: http://extwprlegs1.fao.org/docs/pdf/gbs157123.pdf)
 

´

Guiné > Região de Tombali > Catió > Ganjola > c. 1967/69 > Um crocodilo apanhado por militares no rio de Ganjola. O zebro parece ser dos fuzileiros. Amigos e camaradas, não confundam crocodilo e jacaré. Na Guiné não há, nem havia no nosso tempo, jacararés... (**)

Foto: © Alcides Silva (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Cacheu > Susana > CCAV 3366 (Susana, 1971/73) > Na tabanca de Susana, o Armando Costa, segurando... um crocodilo do Rio Cacheu (***)


Foto (e legenda): © Armando Costa (2016). Todos os direitos reservados .[Edição e legendagem complementar  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné- Bissau > Biombo > 1968 > O crocodilo da Praia do Biombo (****)


Foto: © Patrício Ribeiro (2009). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Zona Leste > Regiºoa de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > Mato Cão > Novembro de 1971 > O ten cor Polidoro Monteiro, último comandante do BART 2917, o alf  mil Médico Vilar e o alf mil Paulo Santiago, 'vendo a dentadura do crocodilo'...  Foto tirada possivelmente "em inícios de Dezembro de 1971 no Mato Cão", após ocupação da zona com vista à construção de um destacamento (com a missão de proteger a navegação no Geba Estreito). As condições eram péssimas, diz o Paulo. "Atrás do Comandante, nota-se um mosquiteiro. Não havia valas, unicamente uns buracos individuais,com a dimensão dos colchões". (*****)...

Foto (e legenda): © Paulo Santiago (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné-Bissau > Região do Oio > Bissorã > Nhenque > 2020 > "Pequeno crocodilo",  capturado na bolanha (******).

Foto (e legenda): © Carlos Fortunato (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné-Bissau > Região do Cacheu > São Domingos > Novembro de 2015 > Um de  dois crocodilos "assassinos" capturados no rio Cacheu.Depois destes 2 meninos, um com 3,50 e o outro 5 metros, terem comido 3 pessoas na última época das chuvas, no rio de S. Domingos, não é... que também os comeram... nas últimas duas semanas ?! (*******)



Guiné-Bissau > Região do Cacheu > São Domingos > Novembro de 2015 > Um de  dois crocodilos "assassinos" capturados no rio Cacheu.Depois destes 2 meninos, um com 3,50 e o outro 5 metros, terem comido 3 pessoas na última época das chuvas, no rio de S. Domingos, não é... que também os comeram... nas últimas duas semanas ?! (*******)

Fotos (e legenda): © Patrício Ribeiro (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


5. Desafio aos nossos leitores:

Não somos especialistas em zoologia, muito menos em herpetologia (a parte da zoologia que estuda os répteis e os anfíbios).... mas aqui fica mais um pequeno contributo para um melhor conhecimento da fauna da Guiné-Bissau... Têm a palavra os nossos leitores, sobretudo os mais entendidos (********).

Uma coisa sabemos: não havia (nem há hoje) jacarés na Guiné-Bissau...

Sabemos que o crocodilo (e  em especial o Crocodylus niloticus) era abundante no nosso tempo... Mas raramente visível.  Nós não nos dávamos conta dele, a não ser quando algum desgraçado caía ao rio... Sabemos que o PAIGC exportava pele de cocrodilo, para "endireitar" as contas...  E ainda hoje causa alarme o seu aparecimento próximo de zonas habitadas (incluindo Bissau). Teoricamente, são espécies protegidas...

De qualquer modo, o nosso obrigado aos autores dos comentários e fotos acima reproduzidos: Manuel Domingos Ribeiro, Cherno Baldé, Valdemar Queiroz, Alcides Silva, Armando Costa, Paulo Santiago, Carlos Fortunato, Patrício Ribeiro.



(***) Vd. poste 20 de fevereiro de  2016 > Guiné 63/74 - P15771: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (34): É crocodilo ou jacaré ? Caros leitores, corrijam as legendas, se for caso disso...

(****) Vd. poste 6 de janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3705: As Boas Festas da Nossa Tabanca Grande (13): O jacaré da praia do Biombo (Patrício Ribeiro)

(*****) Vd. poste de 26 de junho de 2006 > Guiné 63/74 - P914: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (1): Bissau


(*******) Vd. poste de 30 de novembro de  2015 > Guiné 63/74 - P15424: (In)citações (79): Comer crocodilo que comeu homem, é canibalismo? Felupes de São Domingos dizem que 'crocobife' é bom... (Patrício Ribeiro, Bissau)

(********) Último poste da série > 7 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22346: Fotos à procura de...uma legenda (145): Que estrada seria esta? Brá-Safim-Landim-Bula ou Brá-Safim-Nhacra-Mansoa? (João Rodrigue Lobo / Virgílio Teixeira / José Carvalho / Valdemar Queiroz)

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22398: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte IX: Afonso Fino Bento de Sousa, ten inf (Leiria, 1892 - França, CEP, 1918)


Afonso Fino Bento de Sousa (1892 - 1918)

Nome: Afonso Fino Bento de Sousa

Posto: Tenente de Infantaria

Naturalidade:  Leiria

Data de nascimento: 17 de Julho de 1892

Incorporação:  1911, na Escola de Guerra (nº 331 do Corpo de Alunos)

Unidade: Comboio Automóvel, Regimento de Infantaria n.º 22

Condecorações: Promoção a Capitão por Distinção (a título póstumo em Maio de 1920)

Oficial da Ordem Militar da Torre e Espada (a título póstumo em Setembro de 1927)

TO da morte em combate:  França (CEP)

Data de Embarque: 27 de Maio de 1917

Data da morte: 9 de Abril de 1918

Sepultura:  França, Cemitério de Richebourg l'Avoué

Circunstâncias da morte: Ferido mortalmente no combate de 9 de Abril de 1918 foi inicialmente dado como desaparecido e posteriormente identificado e sepultado no cemitério militar de Laventie.

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António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem

1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 13 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22369: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte VIII: Henrique de Melo Geraldes, ten inf (Covilhã, 1889 - França, CEP, 1918)

Guiné 61/74 - P22397: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (62): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
É no meio daquela vadiagem entorpecedora , e num quadro de um certo desalento da malta do Xime, que o Comando de Bambadinca resolve apontar os faróis para operações que lhes pudessem levantar o moral. Pela primeira e única vez, mandam-me esboçar uma operação para avaliar o que se passa na Ponta do Inglês, nada de andanças por outros lados, pretendia-se saber no local se efetivamente havia população e grupo militar vigilante, este revelava-se ativo, chegara à desfaçatez de bazucar uma embarcação civil que se incendiou no Geba, fora o número de flagelações sobre o Xime, isto enquanto começavam a ver os resultados do alcatroamento da estrada que vinha do Xime e prometia chegar a Bambadinca, as máquinas da Tecnil já trabalhavam entre Bambadinca, Undunduma e Amedalai. Não posso esconder o orgulho que me deu a conceção de uma operação por itinerários ditos impensáveis, e para um cabal esclarecimento do leitor aqui se reproduz um detalhe da carta para se ver por onde fomos e como retirámos deixando aquela força do PAIGC numa completa desorientação. Levar morteiros 81 no negrume da noite dentro de arrozais, entrando frontalmente num grande acampamento de quem trabalhava os arrozais do Poidom foi obra, ainda fomos recebidos pelos valentes tiros, mas os morteiros 81 impuseram-se e o nosso regresso foi um belo passeio.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (62): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Ma femme adorée, mon inoubliable Annette, mil agradecimentos pela dedicação que estás a pôr nas férias por que tanto anseio. E ouvi-te longamente ao telefone, redigiste num certo estado de dúvida os preparativos e a execução da Operação Rinoceronte Temível. Pensando demoradamente no que vivi neste curto período em que participei num conjunto de operações, sem deixar de vadiar do Bambadincazinho para os Nhabijões, de Amedalai para Bricama, estadeando naquele poiso infecto da ponte do rio de Undunduma, sou levado a julgar que a fadiga me estava a consumir, o que vai levar o médico a propor em abril o meu regresso a Bissau para tratamento hospitalar. Eu procurava manter a normalidade preocupando-me com a logística, com as aulas de ginástica, com os problemas da comida a tempo e horas para os soldados desarranchados, eram todos africanos os que estavam nestas condições, proibi que os soldados andassem com o seu saco de arroz às costas ou a fazer fogueiras quando um dia, na Ponte de Undunduma, vi um cunhete de granadas de bazuca a menos de um metro de uma fogueira. É um período em que escrevo desalmadamente, recebi correio muito edificante, Ruy Cinatti enviou-me por esse tempo uma brochura com o seu conto Ossobó, que já publicara em 1936. Encontrei uma citação num aerograma que enviei à minha irmã, e que mais tarde me ofereceu com toda a correspondência que agora está em teu poder, escuta esta pequena passagem:
“Pousado num ramo de acácia, Ossobó canta e alisa as penas do peito com o bico humedecido… Por momentos, qualquer coisa o atrai lá abaixo, no chão, e rápido desce, pousando sobre a macia cama de folhas secas, ali acomodadas há tanto tempo… Um raio de sol conseguiu atravessar, antes dos outros, a ramaria alta das amoreiras, e espelha a água depositada no limbo das folhas. Com os pés mergulhados, Ossobó alonga o pescoço e sorve com o bico uma das pequenas gotas transparentes… Amanhece dentro da floresta. Um denso nevoeiro a subir do chão e da torrente ainda envolve o espaço. Tudo reanima do torpor da noite. As sensitivas intumescem, abrem devagar as suas folhas, e as flores do pau-lírio lançam baforadas de perfume… Os bicos-de-lacre pararam de brincar e olham inquietos qualquer coisa que se move e que em filas tortuosas vem a subir pelas pedras roliças das margens. Eles lembram-se das cobras traiçoeiras que, em noites escuras, os vêm surpreender no sono, mas o periquito depressa os pacifica… Ossobó olha os vapores que se escondem cada vez mais nos cipós entrelaçados. Por causa deles é que o sol manda daquela maneira os seus raios, e a toalha de água que se despenha das rochas parece uma placa dourada de metal… Ossobó desdenha dos avisos dos celestes. Não é ele quem canta melhor no obó? O próprio periquito lhe dissera que os homens lhe chamavam o rouxinol da ilha. Despreocupada, perscruta por entre as folhas e depois saltita atraído pelo vermelho do inseto que zumbe mais em baixo”. Paro aqui, minha adorada Annette, é uma cobra negra com as estrias vermelhas na cabeça e com dois dentes curvos saindo da bocarra que avança para Ossobó e o irá engolir, é esta a tragédia dos incautos.

Fui chamado ao major de operações, os ventos não sopram de feição na região do Xime, houve para ali flagelações, ardera a tabanca do Enxalé e em Ponta Varela um grupo do PAIGC destruíra uma embarcação civil, o comandante da companhia estava sinistrado, tínhamos que contribuir para lamber as feridas e levantar o ânimo ao pessoal. E deixou-me estupefacto quando recebi ordens para planear uma operação para muito breve, envolvendo gente do Xime, milícias de Finete e de Amedalai e do meu contingente. Perguntei-lhe qual o objetivo, qual a natureza da missão, veio pronta a resposta, percorrer a região até à Ponta do Inglês e procurar esclarecer de uma vez por todas que ali havia gente. Na maior das discrições, meti-me na sala de operações onde um furriel foi questionado sobre tudo quanto dispúnhamos de informações. Dois dias depois, apresentei um esboço, major e comandante aprovaram, apareceu um DO e percorremos a região do Xime e não havia dúvidas sobre a grande quantidade de trilhos à volta do Poidom, via-se perfeitamente que aqueles arrozais eram cultivados. A última reunião com o Comando é na manhã do dia 7, sou informado das condições atmosféricas, a noite do dia seguinte não terá lua, beneficiarei do negrume total, a deslocação será feita dentro dos arrozais, olham-me inquieto quando informo que vou levar morteiros 81 e deixo para o que acontecer o caminho da retirada, na certeza certa de que não passarei pelos caminhos convencionais que já registaram emboscadas sanguinolentas.

Como pudeste observar, inopinadamente informo os meus homens que sairemos ao princípio da tarde, defino o armamento que vai, indispensável transportar em dois cantis, nem uma palavra sobre o destino. Alguém já se pôs a caminho para informar o comandante das milícias de Amedalai de que preciso de todos os seus homens, dará um grupo de combate que sairá de Bambadinca e até ali me acompanhará. E chega um grupo de combate de Mansambo que ficará no Xime no tempo das nossas andanças até à Ponta do Inglês. Respondendo a uma pergunta que tu me puseste, esqueci-me de te dizer a tempo e horas que veio o sargento Cascalheira e o furriel Ocante substituir o Casanova e o Pina. Contratam-se carregadores em Amedalai e no Xime, aqui falo com os oficiais da unidade e defino o que vamos fazer. Como há um obus, preparo em papel manteiga, em duas folhas iguais, uma que fica em meu poder, sabendo o Cascalheira em caso de um sinistro que me atinja deve passar a ser ele a utilizar, introduzimos locais assinalados com letras, através do rádio, se acaso fôssemos flagelados e estivéssemos no ponto C eu pediria fogo para o ponto D, os guerrilheiros ficariam naturalmente intimidados e confusos quanto à nossa localização. Tudo decorreu exatamente como tu podes ler no relatório de operação. Quando, no dia seguinte, ao fim da tarde, na sala de operações informei o comando do dispositivo do PAIGC na Ponta do Inglês, percebi perfeitamente que eles não ficaram felizes. Houve um mau presságio, um pequeno desastre que afetou um 1.º cabo que à saída do quartel disparou um tiro que lhe despedaçou um dedo. Houve de facto uma reação daquele grupo do PAIGC, dispararam umas morteiradas à toa, a apalpar terreno, a ver se reagíamos, isto enquanto flanqueávamos o Corubal já na retirada. Pedimos ao obus do Xime ajuda, lançaram fogo para o local onde previsivelmente eles estariam. E tudo se silenciou. No dia seguinte fiz o relatório que tu tens em teu poder, pedi louvores para o 1º cabo Queirós e para um destemido soldado da Companhia do Xime, Isaías Remoaldo Tendeiro. Entrego o relatório ao comandante, todo pimpão, olhou-me com circunspeção e ditou-me a sentença: “Estamos satisfeitos, mas muito preocupados com as informações que nos trouxe. Fica proibido de dizer seja a quem for que vamos agora continuar com duas operações na região, a Jaqueta Lisa e o Colete Encarnado. E está na altura de V. pensar que vamos voltar à região do Cuor, o nosso major já escolheu um título, em sua homenagem, Tigre Vadio. Depois falamos, vá à sua vida, tem muito que fazer”
.

É assim, minha adorada Annette, que vais ouvir falar de operações em março e abril, e depois dou baixa ao Hospital de Bissau, não era sem tempo.

(continua)

Para se entender melhor a Operação Rinoceronte Temível atenda-se ao que está escrito neste extrato da carta. Saiu-se de madrugada do Xime, contornou-se Ponta Varela e seguiu-se o itinerário considerado impensável: entrou-se na bolanha do Poidom, seguiram-se as informações disponíveis das imagens aéreas, procurou-se entrar diretamente num acampamento do PAIGC, onde se previa haver depósitos de arroz. O que veio a acontecer, no lusco-fusco a coluna de cerca de 200 homens foi detetada, pôs-se a funcionar dois morteiros 81, foi um alarido completamente inesperado, entrou-se numa rede de estradas, depósitos de arroz e camaratas de quem ali trabalhava. Arrasou-se o que foi possível, e para ludibriar quem nos podia emboscar, viemos sempre junto ao Corubal, voltámos a contornar Ponta Varela, infletiu-se para o rio Geba, o PAIGC gostava de emboscar em Madina Colhido, nesse dia tiverem deceção, passámos ao largo, entrámos manhã alta no Xime, cansados e eu particularmente feliz, sem uma beliscadura, deixando aquele grupo do PAIGC na dúvida da nossa progressão, confusos pelo estrondear daqueles morteiros, de uso improvável em lamaçal. Pois assim aconteceu.
Peço a Deus que, quando estiver a fechar os olhos na vez derradeira, volte o meu espírito para todos aqueles que eu amei do fundo da minha alma, pedirei sentidamente perdão pelos meus pecados e possa ter acesso a esta imagem que tantas vezes tive a sorte de contemplar em Mato de Cão, que ela aflua a quem parte deste mundo para me recordar o privilégio da força combativa dos meus soldados, a fidelidade daquela gente que me votou um respeito incondicional e de quem guardo uma irmandade até ao fim dos tempos.
Há muito mais de dez anos fotografei este escombro, bem me arranhei nos arbustos afiados do tarrafo para aqui chegar, enlameado até aos tornozelos, mas era impossível daqui sair sem esta recordação do exato local quase diariamente percorrido, exigindo manhas no percurso para não haver minas nem emboscadas. O que felizmente aconteceu. Este é o ponto de Mato de Cão de vigilância obrigatória para que a navegabilidade do Geba não pudesse ser posta em causa, como nunca foi.
Da minha viagem em 2010, para me despedir dos meus bravos soldados, era indispensável fazer um dos itinerários mais belos do mundo, a estrada do Xime até à Ponta do Inglês, fi-lo em estado de êxtase na motoreta de Lânsana Sori, que ziguezagueou entre poças de lama esverdeada, sempre a ouvir o fluxo trepidante do Corubal, e pouco antes de chegarmos ao povoado digo-lhe para contemplar a foz do rio no exato ponto onde as embarcações traziam os abastecimentos para o destacamento da Ponta do Inglês, quando se deixou de usar a estrada, tal o caudal de minas. E daqui se vê longe Tombali, aqui fiquei especado a pensar em tanto sofrimento que aqui houve, com tal natureza pródiga à volta.
Desse povoado e desse destacamento, que era um embaraço para as culturas do arroz do PAIGC na Ponta Luís Dias, no alegado chão libertado de Tabacutá, Mina, Fiofioli e Galo Corubal, de onde pacificamente o PAIGC fazia trânsito pelas pirogas entre as duas margens, restam escassos vestígios, esta era a casa de comércio, logo abandonada no início da guerra e que os contingentes militares nunca usaram por ser um alvo plenamente a descoberto. Será que o tempo inclemente tudo derruiu?
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22376: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (61): A funda que arremessa para o fundo da memória