quarta-feira, 4 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23226: 18º aniversário do nosso blogue (11): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em julho de 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - IV (e última) Parte: 31 de agosto de 1972: "Spínola: Infelizmente ainda tenho que dar tiros, mas a guerra não se ganha aos tiros"... Mas o pior será quando a guerra acabar, conclui o Avelino Rodrigues...





Citação: (1972), "Diário de Lisboa", nº 17849, Ano 52, Quinta, 31 de Agosto de 1972, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_5170 (2022-5-3)




























FIM



(Com a devida vénia ao autor, Avelino Rodrigues,
aos herdeiros do António Ruella Ramos, e à Fundação Mário Soares)

Fonte: Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares | Pasta: 06815.165.26103 | Título: Diário de Lisboa | Número: 17849 | Ano: 52 | Data: Quinta, 31 de Agosto de 1972 | Directores: Director: António Ruella Ramos | Observações: Inclui supl. "Suplemento Literário". Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos


Comentário do editor LG:

Registe-se: duzentos mil contos gastos em "infraestruturas de desenvolvimento" (educação, saúde e assistência, agricultura e florestas, veterinária, obras públicas...), em 1971, na Guiné, sendo goverador (e com-chefe) o gen António Spínola, representava, em valores de hoje, mais de 53,7 milhões de euros... Sem contar com as despesas de manutenção do exército e o custo da mão de obra dos militares que trocaram a G3 pela pá, a pica, a enxada, o martelo, o lápis, a caneta, a seringa...

A propósito d0 jornalism0 português na guerra colonial (tema do colóquio que se realizou em 28 de maio de 2015, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa), escreveu Humberto Silva na página da Apoiar, em 16 de julho de 2015:

(...) O jornalista Avelino Rodrigues recorda os seus tempos na Guiné. Lembrou que os jornalistas que ficavam deslumbrados com o espetáculo da guerra mas que mostravam apenas e sempre apenas o lado das tropas portuguesas. Em Bissau por exemplo respirava-se a guerra mas não se a sentia.

Na Guiné, Spínola usava os jornalistas especificamente para divulgar a sua visão alternativa da guerra e Avelino foi chamado à provínicia por ser de esquerda, quase como que para validar a visão de Spínola.

Foi por isso que as crónicas de Avelino Rodrigues foram dos primeiros trabalhos verdadeiramente jornalísticos sobre a guerra em Portugal. Só uma entrevista ao General Spínola não passou porque Marcello Caetano interveio e a sua censura negociou o conteúdo dessa entrevista. (...)


Percebe-se, neste quarto (e último) artigo da reportagem "Guiné: uma crónica imperfeita", que o conteúdo da entrevista com Spínola foi censurado. O jornalista apenas pôde publicar um excerto aqui e acolá. O "spinolismo" (que punha a política à frente das armas) começava a ser perturbador para o titubeante e fraco líder que sucedera a Salazar, temeroso das consequências que podiam desencadear uma franca e aberta divulgação e discussão da estratégia política do general para acabar com a guerra na Guiné, já longa de 9 anos, e cada vez mais "africanizada".

PS - O ten cor inf Herdade, acima citado, de seu nome completo Nívio José Ramos Herdade foi o primeiro comandante do BCAÇ 3833 (Pelundo, 1970/72), sendo depois subtituído pelo ten cor inf Bernardino Rodrigues dos Santos. Companhias de quadrícula: CCAÇ 3306 (Jolmete e Bachile), CCAÇ 3307 (Pelundo e ilha de Jete) e CCAÇ 3308 (Có, Bachile e Capó).
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terça-feira, 3 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23225: O Spínola que eu conheci (35): um militar de caracter reservado, com quem me cruzei várias vezes em Bissau no desmepenho das minhas funções na Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica (Ernestino Caniço)

                                 
Foto nº 1 > Spínola condecorando um alferes 'comando' africano... Em segundo plano, eu sou o portador da bandeja que contem a condecoração 



Foto nº 2 > O General Spínola cumprimentando um  desportista numa cerimónia de condecorações. Ao lado, o Coronel Pedro Cardoso cumprimentando um jovem da Mocidade Portuguesa


Foto nº 3 > O general Spínola cumprimentando a população 



Foto nº 4 > Manifestação de população muçulmana de apoio ao general Spínola


Foto (e legenda): © Ernestino Caniço (2022) . Todos os direitos reservados (Edição e legendag complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)




1. Mensagem de  Ernestino Caniço, (i) ex-Alf Mil Cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2208, MansabáMansoa; Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, Bissau, fev 1970/dez 1971; (ii( médico, a viver em Tomar; (iii) membro da Tabanca Grande desde 21/5/2011; (iv) tem 50 referências no nosso blogue.


Data . terça feira, 3 de maio de 2022, 17h37
Assunto - Força Africana


Caros amigos

Votos de ótima saúde.

Face ao tema epígrafado envio-vos 2 fotografias:

(i) General Spínola condecorando um oficial africano;

(ii) General Spínola e cor Pedro Cardoso  condecorando deportistas e elementos da Mocidade Portuguesa

O interesse das fotos fica ao vosso critério.

Um abraço,

Ernestino Caniço

PS - O editor LG junta mais duas fotos (Poste P15272, de 20/5/2015) (*) que mostram o gosto do general Spínola pelo contacto com a população, apesar do seu "caracter reservado".


2. Em mensagem, anterior, de 18/10/2015, 18:21, publicada no poste P15272 (*), o Ernestino Caniço já tinha escrito o seguinte apontamento sobre o gen António Spínola (**):

Caros amigos

Rebuscando na memória remota algo sobre o tema "com-chefes da Guiné", encontrei algumas lembranças e fotos.

Só conheci o General Spínola, cruzando-me com ele algumas vezes, pois não foi infrequente o meu acesso ao Palácio do Governo. Isto porque, enquanto alferes da Repartição de Ação Psicológica (ACAP) e em funções na Secção de Operações Psicológicas, me dirigia ao Palácio nas minhas atividades correntes.

Um outro motivo pelo qual frequentei o Palácio, foi a minha participação num grupo de trabalho sobre o problema demográfico de Bissau, que integrava dois economistas, sendo um representante da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o outro não me recordo, e eu próprio em representação da área militar.

O caráter reservado do sr. General não me permitiu ilacionar qualquer opinião consubstanciada.

Anexo algumas fotos sobre a temática.

Um abraço,
Ernesto Caniço

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de outubro de  2015 > Guiné 63/74 - P15272: Inquérito "on line" (11): Sobre o tema Com-Chefes da Guiné, encontrei algumas lembranças e fotos do General Spínola (Ernestino Caniço)

(**) Último poste da série > 24 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20273: O Spínola que eu conheci (34): um testemunho, de um ex-combatente, Ângelo Ribau Teixeira (Angola, 1962/64), que mostra não ter sido inspiração de circunstância o conceito de “Por uma Guiné Melhor” que o meu saudoso Comandante-Chefe materializou na Guiné anos mais tarde (1968) (Morais da Silva, cor art ref, cmdt da CCAÇ 2796, Gadamael, 1970/72)

Guiné 61/74 - P23224: A nossa guerra em números (16): A "força africana" em 1972: mais de 20 mil homens em armas, segundo o enviado especial do "Diário de Lisboa" ao CTIG



Guiné > s/l [Bambadinca ?] > s/d [c. 1971/73] > A Força Africana... O major inf Carlos Fabião, na altura (1971/73),  comandante do Comando Geral de Milícias, e o gen António Spínola, passando revista a uma formatura de novos milícias.(*)

In: Afonso, A., e Matos Gomes, C. - Guerra colonial: Angola,  Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d. , pp. 332 e 335. Autores das fotos: desconhecidos. (Reproduzidas com a devida vénia)


1. Estes dados  foram  retirados do trabalho do jornalista do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues,  enviado em julho de 1972, à Guiné, por convite (e com garantias) de Spínola . 

Merecem o devido destaque, salvaguardadas as necessárias reservas por não se tratar de uma fonte independente... Nomeadamente, os que respeitam aos efetivos do PAIGC  e à população sob o seu controlo. Não é por acaso que o jornalista deu ao conjunto desses quatro artigos de reportagem o título de "Guiné, uma crónica imperfeita" (**)


TERRITÓRIO:

(i)  "A superfície cresce e diminui todos os dias, consoante as marés, situando-se numa média de 32 mil quilómetros quadrados, com 193 quilómetros na extensão Norte-Sul e 330 de Leste a Oeste".

(ii) "A estas condições geográficas tão difíceis para um exército tradicional, vem juntar-se uma fronteira de 750 quilómetros, completamente aberta tanto no aspecto físico como no povoamento".


POPULAÇÃO:

(iii) "Bissau afirma controlar 487 448 habitantes (foram os que se deixaram recensear em 1970), mantendo-se outros 27 174 em 'zonas de duplo controle' ".

(iv) "No Senegal vivem 60 000 refugiados, e na Guiné 20 000, segundo informa o Comando-Chefe, apoiando-se em  dados da Comissão de Refugiados da ONU".

(v) "A ser assim, 89,5 por cento dos guinéus viveriam no interior do TO (teatro de operações) e 82 por cento do total estariam sob controle português."

(vi) "Numa população que em 1970 era de 594 622 habitantes, os balantas seriam em 1963 perto de 200 mil, isto é, cerca de metade dos guinéus [ erro de cálculo do jornalista, é um  terço e não metade] . Uma maioria trabalhadora e explorada que forneceu à guerrilha os seus primeiros combatentes. Um povo dividido, combatendo, com o PAIGC os fulas, dominadores e contra o PAIGC, ao lado de outros fulas da Força Africana".


PAIGC:

(vii) "Os dois mil combatentes que (...) actuam dentro das fronteiras, manobram a partir das 'zonas sob duplo controle' (...), situadas ao longo do corredor florestal e particularmente nas proximidades de Bissorã / Mansabá / Canjambari, confluência do Geba/Corubal, e sobretudo na zona ao sul do rio Buba, à volta de Catió".

(viii) "Outra zona 'quente' situa-se perto do Cacheu, junto ao rio do mesmo nome, alastrando pelas florestas  ao norte do Bachile e do Pelundo".

(ix)  "Calculam-.se em 7 000 os combatentes do PAIGC actuando a partir de 25 bases da fronteira senegalesa e de 8 da República da Guiné, incluindo aqueles que se encontram dentro do TO".

(x) "Militarmente,  as forças do PAIGC estão estruturas em 'corpos de exército' integrados por um comandante, um comissário político, dois chefes de destacamento e três unidades: um grupo de bazookas, ou lança granadas foguete; uma bateria de artilharia, ou de armas pesadas de infantaria, como morteiros ou canhões sem recuo; e quatro bi-grupos. Cada bi-grupo é constituído por dois agrupamentos de trinta e cinco homens (agora reduzidos a vinte e cinco)".


FORÇA AFRICANA:

(xi) "Compõem a  Força Africana perto de 5 mil soldados regulares, cerca de 6 mil milícias e mais de 6 mil auto-defesas, além de outros 5 mil homens enquadrados na guarnição normal".

(xii) "Os regulares negros estão enquadrados em companhias de comandos africanos (uma outra está a ser constituída) com oficiais nativos, destacamentos de fuzileiros (e mais um em constituição) com alguns quadros negros, e ainda doze companhias de caçadores instaladas no 'chão' das suas etnias e igualmente comandadas por alguns graduados nativos. São a grande tropa de elite da guerra da Guiné, capazes de aguentar uma operação  de quatro a cinco dias nas zonas mais 'quentes' do mato, e sempre com um arrojo e ferocidade de fazer tremer a selva",

(xiii) "O corpo de milícias (nove semanas de instrução) é constituído por elementos novos com farda e soldo. São uma espécie de militares em part-time, com a missão fundamental de defesa das populações que habitualmente protegem durante a noite e acompanham nos trabalhos do campo. São todos voluntários, mas só em circunstâncias especiais participam em operações".

(xiv) "As auto-defesas são constituídas por civis nativos, sem instrução militar". (***)





Guiné > s/l > PAIGC > Novembro de 1970 > Um bigrupo (em geral, constituído por 30/40 elementos). Na foto contam-se 27 guerrilheiros. Repare-se que na sua generalidade  usam sandálias de plástico (só um usa botas de lona) e há uma grande indisciplina no vestuário. Metade não usa boina ou barrete. Quanto ao armamento, vemos dois apontadores de RPG, e o resto empunha armas automáticas (Kalash, PPSH, Degtyarev...)

Imagem do fotógrafo norueguês Knut Andreasson (com a devida autorização do Nordic Africa Institute, Upsala, Suécia). A fotografia não traz legenda. E  alegadamente. terá sido tirada   em "região libertada" (sic).

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI)  (As fotografias tem numeração, mas não trazem legenda. 

Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9526: As novas milícias de Spínola & Fabião (1): excerto do depoimento, de 2002, do Cor Inf Carlos Fabião (1930-2006), no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida (Arquivo de História Social, ICS/UL - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa)

(**) Vd. poste de 2 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23222: 18º aniversário do nosso blogue (10): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - Parte III: 30 de agosto de 1972: uma formidável máquina de guerra africana contra o PAIGC

(***) Último poste da série > 15 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23079: A nossa guerra em números (15): Segundo o investigador Ricardo Ferraz, do Gabinete de Estratégia e Estudos do Ministério da Economia, a guerra colonial (1961/74) custou ao Estado Português, a preços de hoje, e na moeda atual, cerca de 21,8 mil milhões de euros

Guiné 61/74 - P23223: Parabéns a você (2060): Delfim Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux. Enfermeiro da CCAV 3366/BCAV 3846 (Susana e Varela, 1971/73)


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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23216: Parabéns a você (2059): Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705 (Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66)

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23222: 18º aniversário do nosso blogue (10): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em julho de 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - Parte III: 30 de agosto de 1972: uma formidável máquina de guerra, a Força Africana contra o PAIGC







Citação: (1972), "Diário de Lisboa", nº 17848, Ano 52, Quarta, 30 de Agosto de 1972, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_5496 (2022-5-2)






















(Com a devida vénia ao autor, Avelino Rodrigues,
aos herdeirtos do António Ruella Ramos, e à Fundação Mário Soares)

Fonte:

Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares |  Pasta: 06815.165.26102 | Título: Diário de Lisboa | Número: 17848 | Ano: 52  | Data: Quarta, 30 de Agosto de 1972 | Directores: Director: António Ruella Ramos | Observações: Inclui supl. "DL Mulher". | Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos.


Comentário do editor LG:

"Guiné, crónica imperfeita" (*)... Porquê ? Porque o enviado especial do "Diário de Lisboa", ao CTIG, o jornalista Avelino Rodrigues.  só pôde ouvir uma das partes em conflito, Spínola e as suas tropas... 

Mas, ao que parece, nos 9 dias em que por lá andou, na "Spinolândia", em julho de 1972, o jornalista  teve bastante liberdade para saber tudo (ou quase tudo) sobre aquela "guerra camuflada", como lhe chamou na primeira crónia  (em Bissau, eram pouco visíveis os sinais da guerra).

Aceitou o repto (e o convite) de Spínola para ir ver com os seus próprios olhos a realidade da guerra, incluindo a inversão da situação, político-militar, que o general estava a operar com sucesso.  Excetuando, ao que parece, o último artigo (com uma entrevista a Spínola que não agradou a Marcelo Caetano), a reportagem (os três primeiros artigos) passou, sem cortes da censura (agora rebatizada,  eufemisticamente,  como "exame prévio").

Este é um dos raros trabalhos jornalísticos sérios,  feitos na Guiné,  por jornalistas portugueses durante todo o conflito... E merece ser aqui  destacado, 50 anos depois, por ocasião do 18º aniversário do nosso blogue.(**)

Recorde-se que o "Diário de Lisboa", um diário lisboeta vespertino, publicado entre 7 de abril de 1921 e 30 de novembro de 1990, e de que  teve Joaquim Manso como  primeiro diretor,  foi considerado  uma grande escola de jornalismo e um das grandes referências do jornalismo português do séc. XX, com um papel cívico, intelectual e cultural ímpar.  

Para o regime de Salazar-Caetano e seus apoiantes, era conotado com  o "reviralho", a oposição democrática ao Estado Novo. 

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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores:

25 de abril de  2022 > Guiné 61/74 - P23198: 18º aniversário do nosso blogue (4): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em julho de 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - Parte I: 28 de agosto de 1972, Bissau, a "guerra camuflada"

26 de abril de  2022 > Guiné 61/74 - P23201: 18º aniversário do nosso blogue (6): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em julho de 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - Parte II: 29 de agosto de 1972: no mato com Spínola, "a simpatia como arma de guerra"

Guiné 61/74 - P23221: Humor de caserna (54): O anedotário da Spinolândia (V): fardamento para pessoal de Bissum, "by air mail" (António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 , Binar, Bula e Capunga, 1969/71)


Guiné > Região do Oio > Sector de Bissorã > Bissum-Naga > CCAV 2639 (1969/71) >  Grupo de Combate do António Ramalho: "Missão cumprida, Regresso de Bissum. O autora aparece aqui, de bigode e de óculos de sol".

Foto (e legenda): © António Ramalho (2018) . Todos os direitos reservados (Edição e legendag complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)



1. M
ensagem de António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), membro da Tabanca Grande nº 757 (com 32 referências no blogue),  natural da Vila de Fernando, Elvas, a viver em Vila Franca de Xira: 


Data - domingo, 1/05/2022, 23:15 

Assunto - O anedotário da Spinolândia!


Caro Luís, boa noite.

Espero que estejas bem assim como a família. 

Agradecido por referires mais uma vez aquelas passagens verídicas com o nosso General (*), pessoa das minhas simpatias, pela forma descontraída como nos aparecia, desprendida de preconceitos.

Quando estava em Bissum com o meu Gruo de Combate, "escolhido" porque não alinhámos em parvoíces, por isso fomos deslocados para aquele "resort"!

Avisado de que viria um meio aéreo com o Com-Chefe.  foi necessário enxotar as vacas para que a aterragem se fizesse em segurança, e assim aconteceu.

Ao reparar que o meu camuflado era mais adesivo do que tecido, quando o cumprimentei, reteve a imagem e perguntou a alguém... Quis saber quem eu era e porquê aquela indumentária tão fora do comum!...

À despedida, com todas as deferências e respeito a que estava obrigado, usando uma metáfora, compreendida pelo contexto em que estávamos.

– Meu general,  se eu tivesse que cobrir a pista de aterragem com adesivo, o capim viria atrás... assim acontece aos pelos do meu corpo!...

Não esboçou qualquer sorriso, nem lhe caiu o monóculo, vinha de óculos escuros!

O facto é que, passadas algumas horas, chegaram fardamentos a estrear, para todos, num meio aéreo.

Já lá vai meio século e uns meses!

Um grande abraço

António Ramalho (757)
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Guiné 61/74 - P23220: Notas de leitura (1442): "Pedaços de Vidas", por Angelino Santos Silva; Mosaico de Palavras, 2010 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Há que confessar que nada me fora dado a ler como esta encruzilhada de vidas em que somos levados de meados do século XX até ao princípio deste século, tudo começa no meio rural, talvez na Freguesia de Recarei, Concelho de Paredes, percorre Caldas da Rainha e Santarém, Lamego e uma intensa atividade operacional na Guiné, no centro da trama estão dois amigos fraternos; mas como temos aqui uma encruzilhada de vidas, muito provavelmente se conta a história de alguém que se conhece bem que levou uma vida conjugal infernal e que tudo vai contar, desde os primeiros episódios de um ciúme obsessivo até à tentativa de espoliar o marido e viver em permanente quezília com os filhos, temos aqui uma galopada de episódios pintalgados de dramatismo, seguramente que Angelino Santos Silva ganhou coragem para este desnudamento em que expõe a sua vida, recorrendo ao escudo da malha ficcional.

Um abraço do
Mário



Pedaços da vida de um antigo Comando na Guiné e em Portugal, obra singularíssima

Mário Beja Santos

Convém, antes de mais, justificar no título o uso de “obra singularíssima”. Angelino Santos Silva dá-nos conta do seu currículo, fez parte da 26.ª Companhia de Comandos, combatendo na Guiné de 1970 a 1972, levou uma vida de trabalho, introduz no seu currículo casamento e divórcio e orgulha-se de ter sido um competente diretor de vendas. Homenageia os camaradas e execra os praticantes do ciúme, veremos adiante que a singularidade desta obra assenta em duas histórias entrelaçadas, uma envolve dois jovens, amizade inquebrantável, António e Augusto, que combaterão juntos na mesma Companhia de Comandos; e a outra a de um casal que, de peripécia em peripécia, como iremos assistir, descobrirá o inferno relacional, tudo começa em obsessões de ciúme, culminará num golpe de baú e num divórcio litigioso onde iremos presenciar, a toda a largura, o lavar da roupa suja.

Como, nestas coisas da literatura da guerra colonial, acabamos sempre de falar de nós, mesmo com recurso aos artifícios de entrepostas pessoas e até de lugares e tempos tidos por convenientes numa tentativa de afastar suspeitas de incursões autobiográficas, há que conferir coragem a Angelino Santos Silva por esta memória e esfrangalhada diatribe familiar levado ao caos. Tudo começa pela história de António Daborda e Augusto Marques, furriel e primeiro-cabo dos Comandos, e do infausto casal Mário Oliveira e Maria Carolina. Os jovens vão às sortes, apurados para todo o serviço, o Mário e a Carolina casam quando ele regressou de África. A família de Augusto socorre-se de um pilantra, o Arnaldinho, a quem entregam 50 contos, na tentativa de safar o filho de África, mal sabe Ti João que o Arnaldinho é doido por jogo e por passear com meninas, não houve cunhas nem o Augusto queria. Iremos acompanhar a vida dos jovens em Lamego, cenas de brutalidade não faltarão, tudo justificado pelos instrutores em nome da resistência que é indispensável para as tropas especiais. E as páginas vão-se sobrepondo com os primeiros anos da vida do casal Mário e Carolina e as brutalidades em Lamego, não faltarão cantis com água e urina, tudo para beber e começam os ciúmes na vida familiar, a intromissão das irmãs de Carolina na vida do casal, surgem os primeiros delírios da Carolina, forja amantes para o marido, em Lamego António Daborda revela as suas competências, tem suficiente força de caráter para todos aqueles aturdimentos e gritarias durante a noite, altifalantes e ordens para formar na parada, é a vez de Augusto chegar a Lamego, se aquela amizade feita na aldeia já era sólida vai ganhando a consistência do aço; Mário leva uma vida amargada, acaba sempre por arredar a ideia de se separar daquela mulher errática, quer ver os filhos a viver em meio familiar, sujeita-se aos caprichos de Carolina, cada vez mais dominada pelas manas e exigindo ao marido um sem-número de excursões, que tanto podem ser a Cuba, como à República Dominicana, como a Tenerife; os dois grandes amigos reencontram o meio familiar sempre que há férias, o Arnaldinho reaparece como um fantasma, os filhos de Mário e Carolina vão crescendo e, para seu espanto, a mão maltrata-os, chega a inventar envenenamentos.

O romance segue o seu curso, mais brutalidade em Lamego, vamos ter agora uma Companhia de Comandos, no meio de trabalho de Mário começa a haver inquietações, Carolina não faz outra coisa que dizer mal do marido, começa-se a duvidar da sanidade mental da senhora.

Chegou a hora do embarque, chega-se à Guiné naquele estranhíssimo período de março/abril de 1970 em que parecia que se ia chegar a um acordo de paz, havia para ali umas negociações secretas, tudo redundou, em 20 de abril, num selvático retalhamento de vários oficiais e seus acompanhantes, caíram numa cilada, a guerra recomeçou, e a vida operacional de 26.ª Companhia de Comandos seguiu o seu rumo. Carolina consegue induzir o marido para um negócio de um ginásio onde vão também participar os sobrinhos, filhos de uma muita amada irmã, Carolina disparata a toda a hora com as empregadas e vai preparar o golpe do baú, retira os dinheiros da conta comum, leva as joias e outros bens, anuncia para quem a quer ouvir que o marido a espanca e ela sofre a mais terrível das crueldades mentais daquela besta. Os filhos do casal questionam como é que o pai aguenta aquela mãe tão disfuncional, entretanto monta-se a estratégia do divórcio, António e Augusto vão com a sua Companhia até Bula, parece estar tudo calmo, ainda não se deu a tragédia do 20 de abril, estas duas histórias que andam a par vão ganhar eletricidade quer na sala do tribunal, quer na atividade operacional da 26.ª Companhia de Comandos que percorre a Guiné, assaltando bases, apoiando colunas, intervindo para resolver encrencas.

E se o julgamento clarifica que Mário está inocente de todas as acusações, a vida de Augusto e António tem outro desenlace, a Companhia tem dado apoio ao alcatroamento de uma estrada entre Mansabá e Farim, o tapete vai chegar ao K3. Há necessidade de bater uma zona, procurar uma base de morteiros, os helicópteros não conseguiam localizá-la, tal a camuflagem, vai também tropa africana. A tragédia surge no terceiro dia de operação, na mata tudo parecia calmo, está-se perto do objetivo, pede-se apoio a um helicóptero, o seu canhão mete respeito. O furriel António está a dar ordens, mas não acaba a frase, uma violenta explosão atira-o a uma distância bem folgada, não ouve nada, não sente as mãos, não sente as pernas, tenta dar alguns passos, mas volta a cair, vê alguns camaradas estendidos no chão e outros a correr, descarregando as suas armas. Deitado no chão sente a correntes de ar das pás do helicóptero, é para ali transportado, ali desmaia, acorda no hospital militar de Bissau, está intacto, apenas com umas ligeiras queimaduras nas costas, tal como aconteceu a Angelino Santos Silva, na guerra que ele viveu. Mas Augusto, o seu amigo fraterno, sucumbiu. Em janeiro de 1972, António vê-se novo no Cais da Rocha do Conde de Óbidos, com os seus camaradas segue para Lamego, metem-se à estrada num táxi de Lamego a caminho de casa, viagem acidentada até ao Porto. Em São Bento toma o comboio para casa, a sua aldeia espera-o, aparece enregelado à família, tem o aspeto de desenterrado. Mete-se na cama e durante três dias esteve em silêncio, contabiliza ganhos e perdas, isto enquanto no tribunal a advogada de defesa dá os parabéns a Mário que confessa que não está feliz: “Não é uma sentença em papel, ainda que justa, que sossega a besta que em mim foi despertada por duas bestas que me infernizaram a vida e marcaram para sempre a minha e a dos meus filhos”.

Como nada até hoje li como estes pedaços de vidas, de gente que chega ao destino com todas as convicções abaladas a classifico como “obra singularíssima”.

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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23211: Notas de leitura (1441): “A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007 (4) (Mário Beja Santos)

domingo, 1 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23219: Efemérides (366): "O primeiro 1.º de Maio", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887

Em mensagem de hoje, dia em que se comemora em todo o mundo o 1.º de Maio, o nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68) enviou-nos este seu poema alusivo à efeméride:

© ADÃO CRUZ

1.º de Maio

Adão Cruz

Primeiro e único
verdadeiro
Maio acordado
penoso
duro e cansado.
Floresta de braços e abraços
festa dor do Maio primeiro
carne e alma
seio fecundo
leite que alimenta o mundo.
Ir e voltar
ir e vir noite e dia
penoso caminho da vida inteira
para prender um braço de sol
entre as mãos calejadas
calor que os filhos aquece
calar da fome que os adormece.
Luta que não esmorece
na esperança de outros sóis
coração de Maio
de vidas e canções
dos que amam a terra
plantada de ilusões.
Quer de noite quer de dia
festa da alegria
Maio de dor e lágrimas
nunca Maio da agonia.
Sol inteiro e dourado
Sol poente
sol do acordar de Maio
Maio de todos
Sol de toda a gente.

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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23181: Efemérides (365): Passaram 97 anos da Revolta de 18 de Abril de 1925, em que participou o meu pai (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS/QG/CTIG)

Guiné 61/74 - P23218: Humor de caserna (53): O anedotário da Spinolândia (IV): "quer que embrulhe... ou levo-o no olho ?" (António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639, Binar, Bula e Capunga, 1969/71)

1. Mais três histórias que têm por protagonista o gen António de Spínola, "duas delas presenciei-as eu, a primeira foi-me contada pela protagonista". O "compilador" foi o António Ramalho,  ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), natural da Vila de Fernando, Elvas, membro da Tabanca Grande, com o nº 757. 

Como o poste P18918 foi publicado há 6 anos, no píncaro do verão, não teve, injustamente, qualquer comentários... Pode ser que agora, o nosso Ramalho (que também era da arma de cavalaria com o nosso general) tenha mais sorte


(i) Senhor Governador, quer que embrulhe ou leva-o no olho?

O nosso General teve um pequeno acidente com o seu monóculo, enviou o seu impedido a um oculista da cidade, cuja empregada era familiar do proprietário, natural duma aldeia perto da minha.

Avisado depois de reparado o monóculo, foi ele mesmo levantá-lo com aquele seu ar austero, de camuflado engomado, sempre simpático para com as populações.

No acto da entrega pergunta-lhe a empregada:

 Senhor Governador, quer que embrulhe ou leva-o no olho?
– Menina, dê cá o monóculo, no olho levam vocês!...

A rapariga desmanchou-se a rir quando nos contou!

(ii) Você é que é o nosso alferes ?

Aquando da minha estadia em Capunga, vejo chegar um jipe com o nosso general a bordo, chamei imediatamente o furriel mais velho que estava jogando à bola.

A seguir às formalidades e cumprimentos da praxe, pergunta-lhe o nosso general:

– Você é que é o nosso alferes?
– Não, não sou, meu general, o nosso alferes foi buscar água a Bula.
– Pois olhe, você tem muito mais cara de alferes do que muitos que para aí há!... Transmita-lhe que eu vim cá ver o andamento do reordenamento em Capunga.

Comentários do Alferes à visita inesperada:

- Caraças... Não me avisaram!

(iii) Que belo pão, rapaz, parabéns!

Aquando da minha estadia em Bissum, fomos visitados mais uma vez pelo nosso general tendo como companhia um governante brasileiro, na ocasião!

Depois da visita à população também decidiram visitar o aquartelamento. De passagem pela padaria o nosso cabo ofereceu-lhe pão quentinho, acabado de sair do forno.

Depois de o apreciar, manifestou-se encantado pela qualidade:

- Que belo pão, rapaz, parabéns!
- Meu general, se cá voltar amanhã ainda estará melhor!
- Adeus, rapaz, então até amanhã!

... Até hoje! (**)

António Ramalho

[Seleção / revisão de texto: LG]

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(**) Último poste da série > 30 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23214: Humor de caserna (53): O anedotário da Spinolândia (III): a "melena" do cap inf Vasco Lourenço que irritou o célebre "Coronel Onze" (Fernando Magro, ex-cap mil art, BENG 447, Bissau, 1970/72)

Guiné 61/74 - P23217: 18º aniversário do nosso blogue (9): Carvalhido da Ponte, Rádio Alto Minho, 29/7/2021: em louvor de Otelo, e em memória do Manuel Bento, ex-fur mil, CART 3494, Xime e Mansambo, 1971/74 (Ponte Sor, 1950 - Xime, 1972)


José Luís Carvalhido da Ponte. 

Foto: Rádio AltoMinho (com a devida vénia...)


1. Por mão do Sousa de Castro (historicamente o membro nº 2 da Tabanca Grande,  editor do blogue CART 3494 & Camaradas da Guiné) chegou-nos este texto, da autoria do José Luís Carvalhido da Ponte,  ex-fur mil enf, CART 3494 (Xime e Mansambo,  1971/74)-

O Carvalhido da Ponte é também membro da nossa Tabanca Grande desde a primeira hora.  E tem colaborado na Rádio Alto Minho,  de Viana do Castelo,  com crónicas ou artigos de opinião como ele, que abaixo se reproduz com a devida vénia. Incluído na série "18º aniversário do nosso blogue", é também uma homenagem ao 25 de Abril de 1974 e aos homens que arriscaram a vida e a liberdade para nos devolver a democracia.

Opinião: Por Otelo!



"Em dada altura simpatizaste com a violência dos que não se compaginavam com as ameaças de regresso do 24 de abril, é verdade. E não o devias ter feito. Mas, sabes, um dia, Cristo 'passou-se dos carretos' e chicoteou todos os vendilhões do seu templo."

Recordar é, etimologicamente, o ato (-ar) de voltar a trazer (re-) ao coração (-cord-). Recordar é, pois, um exercício de memória. Mas este como que regurgitar emotivo é uma mentira. Na verdade, o coração atraiçoa-nos a memória. Se o que recordamos nos foi, no ato do desenlace, agradável, revivê-lo-emos com uma prazerosa e, não raro, aumentada nostalgia. Se, pelo contrário, nos magoou, remastigá-lo será sempre um momento de agigantado masoquismo. A mesma praia será morada dos deuses para quem nela pela primeira vez amou, e amaldiçoado inferno para quem no seu mar perdeu um ente amado.

Vem isto a propósito das reações contrárias que a morte de Otelo provocou em todos nós. Uns recordam, tão só, o estratega de Abril; outros aplaudem a justiça, ainda que tardia, de Cronos, que tornou possível a nossa liberdade, reconhecendo-lhe, muito embora, os momentos menos felizes, que até acabou por pagar à sociedade, na prisão.

Faço parte desta plêiade. Reconheço que Otelo foi um homem de excessos. Polémico, pois. Mas pagou, com a prisão, e foi amnistiado pelo estado português em 2004. Mas, mesmo que assim não fosse, foi o Atlas da nossa liberdade. Arriscou. Planeou. Convenceu. Liderou. Conseguiu. E fomos livres, e somos livres e tão livres que todos nós podemos, publicamente, expressar-nos e até podemos opinar sobre o comportamento do Governo e do atual Presidente da República, na gestão deste processo.




Foto (e legenda): © Jorge Araújo (2012). Todos os direitos reservados.
 [Edição:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Mas eu tenho inúmeras outras razões. Hoje partilho uma.

Era o dia 22 de abril de 1972. Eu não tinha ainda 22 anos e estava na Guiné-Bissau, como enfermeiro, desde o início de janeiro desse ano, integrado na Companhia de Artilharia 3494 (CART 3494).

Manhã cedo, o 4º Grupo de Combate partiu para a mata de Ponta Coli, para garantir a segurança à estrada Xime­-Bambadinca. Aguardava-os uma emboscada dos guerrilheiros do PAIGC.

Alguns de nós, que ainda dormíamos, acordamos com os estrondos das rebentações e, logo-logo o Capitão Vítor Manuel da Ponte da Silva Marques, que nada me era, mandou avançar reforços em, salvo erro, duas unimog’s militares. E que o enfermeiro também teria de ir. Naturalmente.

Chegamos à ponta Coli. Que desolação. Tantos feridos! Mas grave mesmo era o Furriel Manuel Bento, meu companheiro de abrigo, natural de Ponte de Sor, onde deixara uma jovem esposa e uma bébé que nunca mais veria. Ainda gemia, sabia lá eu porquê, de tão desfeito que estava. A cabeça esventrada. Juntei-lhe os bocados e aconcheguei-os no que restava da caixa craniana. Para que nada se perdesse e regressasse ao húmus, o mais inteiro possível. 

Éramos grandes amigos e falava-me da esposa e da filha, que terá hoje 50 anos, e da esperança de as rever, logo que pudesse gozar algum tempo de férias. Não chorei. Só à tardinha, no silêncio ocasional da barraca, que ambos partilháramos, sob uma imensa mangueira. Só à tardinha, ou às vezes, nestes 50 anos, quando o coração me prega a partida e permite a memória.

Abençoado sejas,  Otelo! A tua coragem livrou da morte muitos outros jovens e deu-nos a capacidade de sonharmos para além dos impossíveis. Em dada altura simpatizaste com a violência dos que não se compaginavam com as ameaças de regresso do 24 de abril, é verdade. E não o devias ter feito. Mas, sabes, um dia, Cristo “passou-se dos carretos” e chicoteou todos os vendilhões do seu templo. Ele, que falava de paz e mandava que nos amássemos uns aos outros, não quis pactuar com os que prostituíam os seus espaços sagrados. Disse que um dia voltaria para nos resgatar. Espero que demore um pouco mais a vir, não vão os doutores da lei da nossa modernidade mandar que o prendam, porque um dia foi violento.

Como me magoou a fraqueza titubeante dos nossos governantes que não souberam dar-te as honras devidas, no momento da tua última aventura.


Meadela, 28 de julho de 2021
José Luís Carvalhido da Ponte

Rádio Alto Minho (com a devida vénia)

[Fixação / revisão de texto / negritos e realce a amarelo: LG]

 
2. Nota biográfica, da autoria do Sousa de Castro, sobre o José Luís Carvalhido da Ponte:

(i) ex-fur mil enf, Cart 3494/BART 3873, sediada no Xime e mais tarde em Mansambo (Guiné, dezembro 1971 a abril 1974);

(ii) foi professor e diretor da Escola Secundária de Monserrate, Viana do Castelo;

(iii) tem vários trabalhos literários publicados:


 (iv) membro da Associação de Cooperação com a Guiné-Bissau e contando com o apoio do Rotary Clube de Viana do Castelo, é responsável pelo trabalho desenvolvido no Cacheu, cidade geminada com Viana do Castelo: muito dedicado à causa humanitária na Guiné-Bissau, para onde se desloca regularmente, tem procurado contribuir para o bem-estar daquele povo, nomeadamente na área da saúde.
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P23216: Parabéns a você (2059): Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705 (Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23210: Parabéns a você (2058): Giselda Pessoa, ex-Sarg Enfermeira Paraquedista da BA 12 (Bissau, 1972/74)