segunda-feira, 23 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23286: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (25): Cacheu, restos que o império teceu... - II (e última) Parte


Foto nº 1 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Cacheu > O que resta do Monumento em homenagem do "V Centenário da Morte do Infante Dom Henrique [1460-1960]... Nas proximidades fica a antiga Casa Gouveia, agora comvertida em Memorial da Escravatuar e do Tráfico Negreiro.


Foto nº 2 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu > Cacheu > "Este monumento ...em que a pedra não está a aguentar...como nós", escreve o Patrício com fina ironia...


Foto nº 3 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Cacheu > Forte de Cacheu (séc- XVIII) > Aspecto parcial, com alguns dos 16 canhões de bronze...


Foto nº 4 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Cacheu >  Forte de Cacheu (séc. XVIII): exterior e porto


Foto nº 5 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Chacheu > Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro >  O museu foi inaugurado em 8 de julho de 2016... mas já apresenta sinais de degradação (manchas de salitre nas paredes interiores, por exemplo, visíveis nesta foto...) > O grande mentor deste projeto museológico foi o nosso amigo Pepito (1949-2014) que já não viveu para poder assistir á sua inauguração. É aqui lembrada por uma foto (da autoria de Luís Graça: Lisboa, Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade de Lisboa, 2006...e tal como o retratado, a palmeira também já não existe...)... Na foto à sua direita, o antigo edifício da Casa Gouveia, em ruínas, que foi recuperado para nele ser instalado este museu. 

O projeto da construção deste memorial, dando continuidade ao projeto Percurso dos Quilombos, recebeu um financiamento da União Europeia e  resultou dos esforços e colaboração da ONGD guineense Ação para o Desenvolvimento (AD), da Associazione Interpreti Naturalistici (AIN), de Itália, da COAJOQ, Cooperativa Agropecuária de Jovens Quadros e a Fundação Mário Soares.

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Segunda (e última) parte de um conjunto de fotos que nos foram enviadas recentemente pelo nosso colaboador permanente Patrício Ribeiro (Bissau), sobre a cidade do Cacheu e os restos da presença portuguesa (*). Fotos tiradas no domingo, dia 15 de maio, no Cacheu onde esteve em trabalho.

Sobre o Mmeorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro, em Cacheu, ver aqui um excerto de página da UCCLA:

 Guiné-Bissau, Cacheu > Inaugurado memorial de escravatura em Cacheu

A cidade de Cacheu (Membro Efetivo da UCCLA), no norte da Guiné-Bissau, conta, desde o dia 8 de julho, com um memorial dedicado à escravatura e tráfico negreiro, erguido num edifício em ruínas cujas obras de reabilitação foram custeadas pela União Europeia.

O memorial consiste num pavilhão multiusos, salas de formação, residência para investigadores e um museu que preserva alguns artefactos que marcavam o dia-a-dia dos escravos. A população de Cacheu contribuiu com os artefactos - colheres de cozinha, tachos, correntes, ferros que serviam para marcar os escravos depois de passados em lume, chicotes - que podem ser contemplados no museu.

A iniciativa é da organização guineense Acão para o Desenvolvimento (AD), com apoios de várias organizações locais e internacionais, nomeadamente a Fundação Mário Soares de Portugal que forneceu técnicos para a reabilitação arquitetónica do antigo edifício da Casa Gouveia hoje transformado no memorial.

O memorial foi apresentado como sendo um espaço que visa "valorizar a memória de uma realidade que marcou profundamente os países africanos e ainda hoje permanece com grande acuidade nas sociedades dilaceradas pelo tráfico negreiro".

A ideia da construção do memorial foi iniciada pela AD em 2010, no âmbito do projeto Percurso dos Quilombos, sempre contando com o apoio financeiro da União Europeia, dai que o representante desta comunidade na Guiné-Bissau, Vítor dos Santos, tenha enaltecido o trabalho realizado até aqui. "O memorial inicia hoje um longo caminho representando um elemento de união entre o presente e o passado e o futuro da comunidade em seu território bem como uma ligação com outros territórios (...) Estados Unidas, o Canada e o Brasil na perspetiva da compreensão da própria historia e da construção da memória histórica".

O ministro guineense da Cultura, Tomas Barbosa, disse que o memorial deve ser usado como um chamariz para os descendentes de escravos para que possam voltar à terra dos seus antepassados. (...)

Fonte: Excertos de UCLA - União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa > Guiné-Bissau, Cacheu > Inaugurado memorial de escravatura em Cacheu. Publicado em 09-07-2016 (com a devida vénia...)
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P23285: Notas de leitura (1448): “Guerra Colonial – Uma História por Contar”, trabalho dos alunos do Externato Infante D. Henrique (Ruílhe-Braga) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Não sei como hei de exprimir a minha perplexidade diante de documentos como este que encontrei entre as centenas de obras que a Biblioteca Nacional alberga sobre aquela nossa guerra. Jovens de um externato da região de Braga meteram-se ao caminho para apresentar um trabalho sobre memórias da guerra colonial, uma exposição que ocorreu na Fundação Calouste Gulbenkian em 1995: leram depoimentos numa companhia de caçadores, sobre orientação de um professor conversaram com antigos combatentes, esse mesmo professor falou com quem esteve no anexo do Hospital Militar Principal. Quantos trabalhos como este existirão, totalmente ignorados da opinião pública e dos investigadores? Como se podem recuperar estas pesquisas que podiam ser úteis à nossa juventude? Não tenho resposta, acho que o assunto merecia ser ventilado aqui na nossa sala de conversa.

Um abraço do
Mário



Os dias da guerra da Guiné dos nossos avós

Beja Santos

Não é a primeira vez que vemos o nome do Externato Infante D. Henrique (Ruílhe-Braga) ligado a pesquisas sobre guerra colonial, o blogue já acolheu referência deste estabelecimento de ensino. Encontrei na Biblioteca Nacional este documento, trabalho dos alunos apresentado na exposição “Guerra Colonial – Uma História por Contar”, que se realizou na Fundação Gulbenkian por ocasião do I Encontro Nacional sobre Stress Traumático, outubro de 1995. Fala-se na documentação da CCAÇ 2465, que desenvolveu a sua ação na Guiné entre fevereiro de 1969 e dezembro de 1970. Sob o título “Retalhos de uma guerra”, diversos elementos desta unidade militar, em novembro de 1970, registaram as suas vivências, os seus sentimentos, os momentos de cooperação com as populações locais. A CCAÇ 2465 construiu 180 casas novas para guineenses, uma escola, um posto sanitário, dez poços com bomba manual, abriu seis arruamentos e edificou trincheiras para defesa da população. Os alunos do Externato Infante D. Henrique extraíram desse documento alguns textos e tiveram acesso a correspondência estabelecida entre os militares e as famílias ou as namoradas, o seu trabalho de pesquisa culmina com um texto sobre o anexo militar de Lisboa. Estiveram em Bissum, participaram em muitas operações e patrulhamentos. Aqui se retém o que se escreveu sobre a Operação Bastilha:
“Cerca das nove e trinta da noite, deu-se a partida. A noite estava terrível, escuríssima, e não se conseguia ver nada à nossa frente, o terreno era escorregadio. Mas com todas estas dificuldades, lá fomos andando. Alto do Chopundo, palmeiral do Tebedé, Pojute, Lulu, Insumeté e estrada de Binar. Aí redobrámos todas as precauções, pois que, segundo as previsões, o acampamento inimigo estava perto. Cerca de dois quilómetros percorridos, o guia recusou-se a dizer onde era o acampamento, que não sabia onde era, dizia ele. À força de ameaças, lá continuou e meteu-nos por um trilho pelo lado direito da estrada. A progressão fazia lentamente e com a mão agarrada ao cinturão do companheiro da frente. Houve uma paragem e quando os olhos se habituaram à escuridão, vimos que estávamos mesmo no meio do acampamento inimigo. Eram cerca das quatro horas da manhã. O nosso capitão mandou recuar, pois o pessoal vinha desorganizado por causa da escuridão. Acenderam-se as pilhas e, então, vimos que o acampamento estava abandonado. Inspecionámos as tabancas, tirou-se o que era útil, deitámos fogo e saímos dali o mais depressa possível”.

Alguém escreve uma tocante homenagem ao enfermeiro:
“Enfermeiro que estás vigilante, o teu coração vive numa ânsia desesperada, pois aguardas a todo o momento a súplica de alguém que padeça. Tu que passas noites e noites em claro, que sabes guardar no teu coração todos os queixumes, os prantos e súplicas, olha para o mundo e diz-lhe quanto vales, quanto sofres para o ganho de todos. Já te vi muitas vezes cansado mas nunca adormecido. És um homem louvado e querido, ostentas orgulhosamente uma bata branca e tens um nome de enfermeiro”.


O que se escreve sobre o anexo militar, sito na Rua Artilharia 1, que a minha irmã frequentou todos os sábados a partir dos finais de 1968 até eu regressar a Lisboa, em agosto de 1970, continua discretamente silenciado. Alguém depõe para os jovens do Externato Infante D. Henrique o que se passou em 17 de janeiro de 1973, no aquartelamento de Encheia. Tentara-se um golpe de mão e quem conta a sua história, o furriel Maia, recebeu um tiro que o atingira com muita gravidade no cérebro. “Inicialmente era um caso perdido, a perfuração de sete centímetros de uma bala no cérebro provocou perda de massa encefálica. Permaneci dois dias estendido numa pedra da morgue de Bissau entre caixões com mortos e com uma placa de identificação em madeira atada a um dos tornozelos. Como decidiram enviar-me para a metrópole e descobriram a hipótese de sobreviver, desconheço. Sei que viajei no porão de um avião civil até ao Hospital da Estrela. Acordei no quarto n.º 14 em neurocirurgia. Este hospital tinha algumas caraterísticas diferentes das outras unidades de saúde civis: os seus utentes eram exclusivamente combatentes. Fui sujeito a várias intervenções muito delicadas e foi-me traçado o seguinte quadro clínico: hemiplegia que me afetou todo o lado esquerdo. Começou/continuou o meu sofrimento através do segundo e terrível local de saúde militar de Lisboa, o famoso anexo conhecido em linguagem popular pelo Texas.

O edifício era murado, havia vários pavilhões (alguns eram pré-fabricados). Nestes pavilhões de sofrimento humano, esta juventude continuava a guerra contra a má sorte, os traumas da guerra, vendo-se amputados dos membros superiores e inferiores, cegos, doentes com distúrbios mentais, paraplégicos, tetraplégicos, queimados, múltiplas amputações, doentes pulmonares… Quem podia, dava uma volta pelos arredores mas sempre à civil. Passava-se o tempo no bar a jogar às cartas, a ver televisão ou a ler. Toda a limpeza deste enorme complexo era feita por civis. A infiltração de prostitutas no Texas era frequente”
.

O organizador deste texto sobre anexo é José Manuel Lages, nome que é referido no nosso blogue, foi elaborado com base em depoimentos recolhidos junto de militares anónimos que por força da guerra foram cair no anexo militar. É um rol de tragicomédia, de cenas acabrunhantes, brincadeiras macabras: cegos a tirarem o olho de vidro e porem em cima da mesa do refeitório, os profissionais especializados em produzir ou arranjar autorizações de saída a troca de alguns cobres, as brincadeiras com as deficiências de cada um… Termina o trabalho dizendo que à data o anexo ainda albergava combatentes que ali ficarão depositados até à morte.

Pega-se neste documento elaborado por jovens, vêem-se as fotografias, os poemas de amor, os depoimentos sobre as operações, a descrição orgulhosa de Bissum, aquela terra e a sua gente e fica-nos a pergunta sem resposta: Por onde andarão muitos outros trabalhos assim feitos por gente com a idade dos nossos netos, relatos de memória discretamente arquivados, sem acesso a outros jovens, e por igual razão sem acesso aos investigadores?

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23280: Notas de leitura (1447): “Guiné-Bissau, dos povos à nação, uma longa marcha de sofrimento”, por Malam Sambú; edição de autor, Macau, 1999 (Mário Beja Santos)

domingo, 22 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23284: Documentos (39): Amílcar Cabral, a "honra militar" e o assassinato dos 3 majores e seus acompanhantes, no chão manjaco, em 20/4/1970: acta (informal) do Conselho de Guerra do PAIGC, Conacri, 11 de maio de 1970, um "documento para a história"


Guiné-Bissau > Bissau > Restaurante Colete Encarnado > 21 de Abril de 2006 > O nossso camarada e amigo coronel inf DFA,  ref, A. Marques Lopes  (à direita), jantando com o "inimigo de ontem", comandante Lúcio Soares e o comandante Braima Dakar. Sobre este último acrescentou: "O Braima Dakar, nome de guerra de Braima Camará, numa das fotografias, é outro comandante que esteve ligado à morte dos três majores em chão manjaco. Disse-me que se disseram muitas coisas sobre isso que não são verdade, que não queria falar, e não me contou nada" (...) (*) 

Foto (e legenda): © Xico Allen (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa da ata (informal da Reunião do Conselho de Guerra do PAIGC, Conacri, que teve início em 11 de maio de 1970 e onde se aborda o assassínio dos 3 majores e seus acompanhantes, em 20 de abril de 1970, entre Jolmente e Pelundo (chão manjaco).


1. A Acta da Reunião do Conselho de Guerra (Alargado),  do PAIGC, Conacri, 11 de maio de 1970, ou pelo menos as suas cinco primeiras páginas de um total de 25, é um "documento para a História"...  Daí dever ser conhecida, ou melhor conhecida, pelos nossos leitores. E comentada, com a necessária distância e capacidade crítica...

Ficamos  a saber que Amílcar Cabral, pessoalmente, deu o seu OK ao assassinato ("liquidação") dos três majores e seus acompanhantes, perpretado em 20 de abril de 1970, fez agora 52 anos.  Não sabemos se os queria ver mortos ou apenas aprisiononados, até por que havia a perspetiva de o PAIGC  "fazer bingo": apanhar também o Spínola!... A acta não é inteiramente inclusiva: Amílcar Cabral "deu o seu acordo à proposta, mas pediu que agíssemos depressa" (sic). Há dúvidas sobre donde a ordem, de Dacar ou de Conacri. Talvez os biógrafos de Amílcar Cabral tenham mais elementos, que eu não tenho, agora, aqui à mão.

Entre 0s presentes nesta reunião do Conselho de Guerra estavam estavam três homens que estariam, também, mais tarde envolvidos no seu (dele, Amílcar Cabral) assassinado em 20 de janeiro de 1972 em Conacri pelos seus homens: Mamadu Indjai, seguramente, mas também, como suspeitos ou cumplíces,  Osvaldo Vieira e até o próprio 'Nino' Vieira (seu primo). 

Mamadu Indjai será condenado à morte e fuzilado, injustamente ou não, o  Osvaldo e o 'Nino' levaram para a cova este segredo (o seu eventual envolvimento no complô contra o "pai da Pátria"), bem como muitos outros segredos...

Não sabemos se houve emoção, ódio ou raiva na intervenção do Amílcar Cabral, muitas vezes considerado o "Che" Guevara africano, o revolucionário romântico... Para alguns de nós, a sua máscara caiu aqui (foi o meu caso, estava na Guiné em abril de 1970, e perdi todas as ilusões sobre aquela maldita guerra  ao fim de um duríssimo ano de atividade operacional, mas confesso que, em Bambadinca, em leno mato, em abril d 1970 sabia-se muito poucos pormenores sobre o que acontecera, e a censura, por sua vez, não deuixou que trabsparecesse nada nos jornais da metrópole, para além da seca notícia necrológica das Forças Armadas)... 

Cinismo, sim. Silêncio, sim. Dificulade em assumir a "barbaridade" de um acto destes, o assassínio de sete inimigos, sete homens, indefesos, desarmados..., contra todos os códigos de ética da guerra e da guerrilha... 

E  branqueamento das profundas divisões que já afetavam o PAIGC (e de alguns dos seus fracassos dois anos depois da chegada de Spínola). Cinismo típico d0s revolucionários (e contra-revolucionários), homens e mulheres, ideólogos, políticos e militares, formatados pelo "pensamento único",  para quem  os fins justificam os meios... Por isso, conceitos como "honra militar", "código de ético", "direitos humanos", "compaixão",  "convenções de Genebra", etc., não existem. 

Os nossos camaradas Jorge Picado (JP) e Jorge Araújo (JA) tiveram a trabalheira e a santa paciência de ler e retranscrever esta minuta de ata, em postes publicados há uns anos atrás: P12704 de 10 de fevereiro de 2014 (*), e P20891, de 23 de abril de 2020 (**).

A ata, manuscrita, foi redigida por Vasco Cabral (Farim, 1926 — Bissau, 2005) (mais tarde ministro da Economia e das Finanças, ministro da Justiça e vice-presidente da Guiné-Bissau, e que ficará na história como sofrível poeta bilingue,   tendo conhecido as prisões políticas de Salazar e não não tinha qualquer relação de parentesco com o líder Amílcar Cabral nem com o Luís Cabral).

No documento o secretário do Conselho de Guerra (o único, presente, com estudos universários completos,  para além de Amílar Cabral)  usa muito as abreviaturas, que se procurou manter, completando-as. Vê-se que tinha treino a minutar atas de reuniões do Partido.

Uma ou outra gralha, de pequena monta,  na fixação e revisão do texto, tanto na versão de JP como na de JA, leveram-nos a fundir os  dois trabalhos. Optámos por manter as preciosas notas de JP e JA, relativamente aos nomes que são referidos na ata. Ajudam a torná-la mais legível, sem perder a preocupação de rigor. (Uma das gralhas tem graça: o Braima Dakar não exigiu aos "tugas" a libertação do seu "país", mas sim tão apenas do seu "pai"; outra, com piada, foi a troca de "track", panfleto, por "pacto"...).


2. Transcrição da intervenção do Secretário Geral do PAIGC, Amílcar Cabral (1924-1973), manuscrita por Vasco Cabral (1926-2005), secretário da reunião do Conselho de Guerra. realizada em Conacri, de 11 a 13 de Maio de 1970.





“S[ecretário] G[eral] : 

Saúdo os  cam[aradas] . É com o máximo prazer que fiz esta  r[eunião]  que, desta vez, é em Conacri, para variar. 

Desde a última reunião do B[ureau] P[olítico] até esta, a luta já mudou bastante. A Leste é uma mudança constante. Por ex., fomos capazes de atacar Mansoa e Bissorã, com novas armas. 

Nesta altura, a posição do inimigo é diferente. O inimigo deve estar a pensar o que deve fazer para evitar os n[ossos] ataques aos centros urbanos. Conseguimos fazer causar ao inimigo, em todas as frentes, um choque psicológico bastante grande. Conseguimos anular a tentativa do inimigo de desorientar as nossas populações.

A situação mudou também por causa da acção levada a cabo no Norte contra alguns oficiais superiores, em conseq[uência] da acção combinada das n[ossas] forças armadas, da segurança e da Dir[ecção] do P[artido].

A liquidação dos três majores, um alferes e alguns outros elementos (segundo alguns cam[aradas] - um capitão e um Chefe da PIDE) [1]  mostrou que era falsa a propaganda dos tugas [2] de que estavam à vontade na n[ossa] terra e Por outro lado, os tugas estavam convencidos de que conseguiam comprar a n[ossa] gente.

Toda a política de Spínola [3], em conseq[uência] destas n[ossas] acções, está posta em causa. E para toda a gente, tanto dentro como fora da n[ossa] terra, o n[osso] prestígio aumentou bastante e até para o n[osso] inimigo. Sobretudo esta liquidação dos oficiais superiores, contribuiu para isso. 

O tuga pensava antes que nós todos éramos cachorros. O tuga agora já se convenceu do contrário. Isso aumentou a n[ossa] dignidade, a n[ossa] importância aos olhos do próprio inimigo.

Os nossos cam[aradas] foram capazes de enganar, discutir com eles, convencê-los, apesar da sua imensa experiência e capacidade e liquidá-los...

A situação hoje é diferente da altura em que fizemos a r[eunião] em Boké  [4]. Os n[ossos] cam[aradas] deram provas de capacidade. Nesta luta, como costumamos dizer, tudo é possível. Conseguimos levar armas pesadas do Sul para o Norte, quase sem perdas: perdemos dois  cam[aradas] e três armas. Os  n[ossos] cam[aradas] foram capazes de enganar, discutir com eles, convencê-los, apesar da sua imensa experiência e capacidade e liquidá-los.

No intervalo da reunião de Boké para este, um ponto importante da n[ossa] terra que é o Kebo [5] foi atacado diversas vezes. Isto é t[tam]b[ém] importante. Sobre a passagem de armas do Sul para o Norte [6].

Através [de] certos cam[aradas] que estão em Canchungo  [7]. , os tugas tentaram ligações com eles, com vistas a desmobilizar a n[ossa] gente. Tentaram, servindo-se de elementos do FLING [8], portanto a um nível mais baixo, desmobilizar a n[ossa] gente. Sem resultados. 

As conseq[uências] foram a prisão de quatro dirigentes da FLING. Tentaram contactar Albino, Braima Dakar [9] e outros. E na região de Quínara. E t[tam]b[ém] com gente na periferia da n[ossa] luta: Laí, Pinto e João Cabral.

Tentaram a ligação com André Gomes  [10] e Quintino   [11]. Eles avisaram a Dir[ecção] do P[artido], para a interrogar. André Gomes deu mais uma prova de confiança ao P[artido]. Ele mesmo supunha que os tugas queriam desertar. Só depois é que se viu que o [que] queriam [era] desmobilizar a n[ossa] gente. 

O S [ecretárioi] G [eral deu o seu acordo à proposta, mas pediu que agíssemos depressa.

Luís Correia [12], pôs-se, por sua própria iniciativa, em contacto com os cam[camaradas] da zona. Lúcio Tombô [13] t[am]b[ém]  foi  envolvido na combinação. Ele pôs-se em contacto com os tugas, mas quem devia falar era Braima Dakar que jogou um papel de defesa do P[artido].

Os tugas escreveram cartas amáveis e respeitosas aos cam[aradas], num grande namoro. Deram-lhes grandes presentes. Propunham que os guineenses deviam ir substituir os cabo-verdianos, de quem já tinham feito uma lista negra de 30 e que deviam ceder os seus lugares a guineenses. Deram presentes vários: conhaque, whisky, rádios, relógios, panos para as mulheres, cigarros bons, etc.

Encontraram-se cinco vezes [13] Na quarta vez esteve presente o Governador, que apertou a mão, tirando a luva, do n[osso] cam[arada] André Gomes. (Amílcar lê uma das cartas de um major, Pereira da Silva, a André Gomes.)

No dia do encontro deviam vir os n[ossos] cam[aradas] chefes e estava prevista a vinda do próprio Governador. Os cam[aradas] vieram de facto acompanhados das suas armas. Apareceu mesmo o Luís Correia e eles já sabiam da sua presença. Para não desconfiarem, disseram-lhes que o Luís Correia estava presente e era um alto resp[onsável] do P[artido]. Durante as conversações com os tugas, foi decidido pararem os bombardeamentos aéreos, e os combates. Isso aconteceu de facto: os nossos camar[adas] pararam também certas regiõs. (Amílcar lê uma outra carta do Major Mosca) [14].


Durante as conversas, Braima Dakar, aproveitou para fazer certas exigências. Pediu a libertação de seu pai, a libertação de 2 cam[aradas] (Claude e José Sanhá) [15]  e foram mesmo soltos (já cá estão).

Durante as tréguas, os cam[aradas] levantaram minas na estrada de Bula-Binar. Mesmo assim, houve uma emboscada em Biambi, aos tugas, na qual, segundo  uma carta apanhada, de um dos majores, afirmam que morreram quatro tugas 
[16].

Também dão notícia dos ferimentos graves que sofreu um capitão que estivera com eles numa reunião, ao tentar detectar minas: perdeu um braço e uma das vistas [17].

Salienta ainda o facto de ter havido nas nossas bases, vários cam [aradas] que começavam a protestar contra as ligações que estavam a ver com os tugas. Alguns disseram que se isso continuasse se iam embora. Isto é t[am]b[ém]  uma coisa muito importante, porque mostra a fidelidade desses cam[aradas ao P[artido] (eles não estavam ao corrente das coisas).

Nino – Saliente a import[ância] de os n[ossos] cam[aradas] terem levado à certa grandes homens dos tugas. Isso foi porque os tugas nos consideram como cachorros. Os tugas sentem hoje qual é a n[ossa] força, tanto moral como política.

Amílcar – Este acto foi um acto de grande consciência política e um acto de independência. Foi um acto de grande acção e de capacidade dos n[ossos] cam[aradas] do Norte. É a primeira vez que numa luta de libertação nacional se mata assim 3 majores, 3 oficiais superiores que, nas condições da n[ossa] luta, equivale de facto à morte de generais.



Capa da Revista Militar, nº 4, abril de 1970


Refere o artigo de Felgas [18] na Rev[ista]   Militar [19] que, no fundo, é um grande elogio ao PAIGC. Diz algumas das suas observações a nosso respeito. Talvez que os tugas vão desenvolver uma acção de grande envergadura e de repressão.

Depois do acontecimento [20], publicaram um tract [21] ao qual propunham mais contactos com os  n[ossos] militares,  mas não onde se realizaram [22] mais em Canchungo e em Pelundo.

Dizem que os n[ossos] militares não cumpriram os preceitos de honra militar. Mas que eles cumprirão no futuro os deveres de honra militar. Eles afirmam que querem o fim da guerra. 

T[am]b[ém] as populações de certas zonas (Mansoa, por exemplo) estão bastante influenciadas pela realidade, pela utilização de novas armas. Dizem por exemplo: "agora, mama acabou" (querendo significar que já não há protecção junto dos tugas nas cidades). 

Apela aos camar[adas] para terem iniciativas, pensarem profunda[mente] nos problemas, criarem, conhecerem bem cada um dos seus homens.

Anuncia os problemas que vão a seguir ser discutidos (Ordem de trabalhos). (...)

 [A transcrição das 5 prineiras páginas de um total de  25, a revisão e fixação de texto, bem como as notas, são da responsabilidade de Jorge Picado, Jorge Araújo e Luis Graça. Os negritos são de LG. ]

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Notas de Jorge Picado (JP), Jorge Araújo (JA) ou Luís Graça:

[1] Não havia outros ofciais, mas sim mais 3 guineenses. Se algum era da PIDE, desconheço. JP.

[2] Tuga: termo depreciativo para designar os Portugueses. JP.

[3] Gen António Spinola (1910-1997): Com-Chefe e Governador Geral da Guiné (1968-1973)- JP/JA. Sabe-se que, contrariamente à sua vontade, não compareceu a este encontro fatal, por conselho do secretário-geral da província, ten-cor Pedro Cardoso, que recebia em primeira mão as informações da PIDE. LG.

 [4] Importante base do PAIGC em território da Guiné-Conacri, a sul, importantíssima para a logística da guerrilha e para o apoio, nomeadamente, médico-hospitalar da guerrilha.  LG.

[5] Kebo, Quebo, Aldeia Formosa, no sul da Guiné, junto à fronteira com a Guiné-Conacri. LG.

[6] A frase parece estar incompleta... LG.

[7] Canchungo, Teixeira Pinto: coração do chão manjaco. LG.

[8] FLING: Frente de Libertação para a Independência Nacional da Guiné, fundada em Dakar-Senegal em 1962, opositora do PAIGC. JP.

[9] Braima Dakar: era um dos dois componentes do Comando Geral da Zona Biambi-Naga-Bula fazendo também parte do Comando Conjunto da Frente Biamb-Canchung. JP.  Nome de guerra de Braima Camará: vd. foto acima, Bissau, 2006.  Temos a informação de que já faleceu há anos. Terá sido ele a levar, até  Conacri, como "despojos de guerra", os galões dos quatro oficiais assassinados, os 3 majores e o alferes... LG.

[10] André Pedro Gomes: era um dos três responsáveis pela Zona de Nhacra, um dos três componentes do Comando Conjunto da Frente Nhacra-Morés, um dos vinte e três  componentes do Comité Executivo da Luta (CEL) e por inerência também um dos componentes do Conselho Superior da Luta (CSL).

Em 17 de Fevereiro de 1968, terá sido ele a chefiar o comando que flagelou, com foguetes (Katiusha), o aeroporto de Bissau. Em 1972 era um homem da inteira confiança de Amílcar Cabral, membro do Comité Executivo da Luta e Comandante da frente Nhacra – Morés.

Será mais tarde um dos braços direitos de Buscardini. Em 31 de Dezembro de 1980, um mês e meio depois do golpe de Estado de 14 de mobembro de 1980, o Nô Pintcha noticiava o seu "suicídio" na prisão... 

[11] Quintino (Vieira) era o responsável pela Segurança e Controle (SC) do Sector Autónomo de Canchungo no Comité Regional da Região Libertada a Norte do Geba (CRRLNG) e por inerência igualmente membro do Comité Nacional da Região libertada a Norte do Geba (CNRLNG)]. JP.

[12] Luís Correia era responsável pela Segurança e Controlo (SC) do Sector do Oio no CRRLNG e igualmente do CNRLNG, além de membro do CSL e creio também do CEL, JP.

[13] Lúcio Tombom, um dos comandos da Zona de BULA. JP.

[14] o PAIGC e o Amílcar Cabral nunca foram bons em números: os encontros dos "negociadores  portugeses"  com os homens de André Gome foram nove (9) ou dez (10), conformeas fontes  e não 5 (cinco). LG.

[14] João Mosca era alf mil cav, não major. JP.

[15] José Sanhá: antes de 1964 já comandava guerrilheiros numa Zona do Norte e depois de libertado foi novamente integrado pelos responsáveis da Frente Biambi-Canchungo, sem que tivessem consultado a Direcção do Partido, acto entretanto criticado pelo S.G. na reunião alargada da Direcção Superior que teve lugar em Conacri de 12 a 15 de abril de 1970 e onde foi apresentada e aprovada uma nova Estrutura do Partido e onde este elemento em causa foi confirmado como um dos comandantes da Zona de Biambi, da Frente Biambi-Canchungo. JP,

[16] Será que se referem a: António da Silva Capela e Henrique Ferreira da Anunciação Costa, da CCAV 2487, em 18Out69; e Joaquim José Ramalho Rei e Manuel Domingos Martins, da CCAV 2525, em 07Dez69]? JA. 

De todo improvável, acrescenta LG: as "negociações secretas" dos homens do CAOP1 terão começado em fevereiro de 1970...

[
17] José Paulo [Abreu Nogueira] Pestana (então capitão da CCAÇ 2466/BCAÇ 2861), "foi ele que mais tarde foi substituir o capitão [José Júlio da Silva de] Santana Pereira [CCAÇ 2367/BCAÇ 2845], ferido com uma mina antipessoal na zona de Có-Pelundo, onde se construía uma estrada entre Bula e Teixeira Pinto. Nunca podíamos descurar as minas colocadas nos trilhos, que já haviam vitimado um alferes (José Manuel Brandão, da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892, em 02Mar70) e ferido o capitão". - in https://www.cmjornal.pt/mais-cm/domingo/detalhe/conheci-os-tres-majores-assassinados (04Jan2009), com a devida vénia. JA.

[18] Cor inf Hélio Esteves Felgas (1920-2008). JA. ntigo coamndante do Comando de Agrupamento 2957, Bafatá, 1968/70.

[19] Revista Militar, n.º 4 – Abril de 1970, " A luta na Guiné", pp. 219-236. JA / LG

[20] Referência à liquidação dos três majores e seus acompanhantes, em 20 de abril de 1970

[21] Tract (sic), em inglês: panfleto.

[22] Refência aos anteriores encontros
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Fonte:

Citação:
(1970-1970), "Acta informal das reuniões do Conselho de Guerra em Conakry", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34125 (2022-5-22)

Instituição: Fundação Mário Soares | Pasta: 07073.129.004 | Título: Acta informal das reuniões do Conselho de Guerra em Conakry | Assunto: Acta informal das reuniões do Conselho de Guerra, em 11 e 13 de Maio de 1970, manuscrita por Vasco Cabral. | Membros Presentes: Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, João Bernardo Vieira (Nino), Osvaldo Vieira, Francisco Mendes, Pedro Pires, Paulo Correia, Mamadu N'Djai [Indjai], Osvaldo Silva, Suleimane N'Djai. | Secretário: Vasco Cabral.
Data: Segunda, 11 de Maio de 1970 – Quarta, 13 de Maio de 1970. | Observações: Doc incluído no dossier intitulado Relatórios: 1960-1970. | Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral.
Tipo Documental: ACTAS

(Com a devida vénia...)
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Notas do editor:

(**) Vd. poste de 23 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20891: (D)o outro lado do combate (59): A morte dos três majores no chão manjaco, em 20/4/1970, e a intervenção de Amíclar Cabral, três semanas depois, na reunião do Conselho de Guerra (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P23283: Ser solidário (246): O Núcleo de Ponte de Lima, da Liga dos Combatentes, associou-se à Campanha do Estado-Maior-General das Forças Armadas de doação de Manuais Escolares (1.º ao 6.º ano) para a Guiné-Bissau (Manuel Oliveira Pereira, ex-Fur Mil)


1. Mensagem do nosso camarada Manuel Oliveira Pereira (ex-Fur Mil da CCAÇ 3547/BCAÇ 3884 (Contuboel, 1972//74):

O NÚCLEO disse SIM à chamada... Mais uma vez a solidariedade dos "Antigos Combatentes Limianos" se faz sentir... As imagens que se seguem são disso testemunho.
Eis o pedido que nos foi feito:

APELO À FAMÍLIA MILITAR
Iniciativa Ajuda Militar Solidária à Guiné-Bissau

O Estado-Maior-General das Forças Armadas está a promover uma campanha de ajuda à Guiné-Bissau, que consiste na angariação de manuais escolares (1.º ao 6.º ano), de livros do plano nacional de leitura e de material escolar, que serão, posteriormente, enviados para aquele país ...

Recolhidos os livros e material escolar, num total de quase 500 exemplares, havia que fazer a entrega. Para o efeito, uma "Delegação do Núcleo" constituída pelos associados Manuel Oliveira Pereira (Presidente) e Hermínio Magalhães, deslocou-se à unidade militar "Regimento de Cavalaria n.° 6, em Braga, sendo recebida pelo responsável de Logística, Sr. Sargento-Mor Luís Pinto.

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23256: Ser solidário (245): Convite para a apresentação do livro "Terra de Afetos - Um Tributo à Guiné-Bissau", por Joana Benzinho, dia 21 de Maio de 2022, pelas 15h45, no Mosteiro de Odivelas. A receita da venda deste livro reverte para a ONGD Afectos com Letras

sábado, 21 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23282: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte V

1. Parte V da publicação do texto de memórias "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (Bissau, Buba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte V

Como já tive ocasião de mencionar atrás, tudo fiz para criar todas as condições que me levassem a ter uma comissão tranquila o mais possível nesta minha passagem pela Guiné. Porém, nem o Comandante nem o segundo Comandante me deram tréguas até ao último dia que passei no Pelundo.

Depois de logo no início ter recusado ao segundo Comandante (Major Pinho) o álcool para limpar o cachimbo, tivemos mais uma pega passado pouco tempo.

De Bissau, e juntamente com os medicamentos que mensalmente eu requisitava, o primeiro-sargento da CCS, que chefiava este serviço, juntou particularmente umas embalagens de Dum-Dum para o pessoal de saúde. O Major, que mal desconfiava da chegada dos caixotes com material sanitário, aproximava-se da porta do posto médico para dar uma espreitadela ao que vinha nos ditos caixotes. Ao ver as embalagens de Dum-Dum, voltou-se logo para mim dizendo que ele e o Comandante também tinham direito a serem contemplados. Para me ver livre dele, dei-lhe duas embalagens com a condição de uma delas ser para o Comandante.

Passados dois dias já estava a pedir mais uma embalagem porque já tinha gasto a que lhe tinha dado. Disse-lhe que não, já que as existentes eram do pessoal de saúde porque se tratava de uma oferta tal como dois frascos de “Oratol” que me eram oferecidos. Zangou-se ficando furioso comigo. Acabei de o comtemplar com um frasco de inseticida para encher uma bomba a fim de matar os mosquitos.

Este Major criou o hábito de pedir às jovens que o deixassem tirar-lhes fotografias. Mas tentava sempre que colocassem as mamas ao léu para mais tarde as poder projetar. Não concordando eu com a atitude deste homem e militar com grandes responsabilidades, contrariando também com tudo que eu tentava fazer junto da população, falei com as jovens para não se deixarem fotografar. Sabendo que a recusa delas se devia a uma ordem minha, fez-me ameaças de prisão para mim mal me apanhasse em falta. A guerra entre nós dois acentuou-se. Eu já não podia ver semelhante militar.

Deste modo, e dado me ameaçar com prisão constantemente, todas as oportunidades que fui tendo para lhe moer o juízo, tudo fiz para não deixar perder nenhuma.

Em frente da residência que tinha sido construída para os Professores que fossem colocados no Pelundo, para dar aulas na Escola anexa a esta residência e, quase também em frente desta, foi também construído um chafariz. No dia da sua construção, foi colocado um Milícia a vigiar o mesmo, enquanto o cimento estivesse fresco.

Nessa tarde, e como era meu hábito entre o fim da hora de serviço e o jantar, fui dar o meu passeio pela aldeia. Aproveitei também para ir dar uma injeção à Professora. Esta, encontrando-se adoentada, solicitou-me que o tratamento que o médico lhe havia receitado não fosse efetuado senão por mim e na sua residência, já que no Posto Médico não havia a privacidade que ela desejava ter.
Nessa tarde, aproveitei também para ver o chafariz e conversar um pouco com a Professora mais o irmão que vivia com ela. Depois de lhe ter administrado a injeção convidaram-me para jogar com eles uma partida de cartas.

Estávamos os três (eu a professora e mais o irmão desta) assim entretidos, quando o Major passou de jipe em frente do chafariz e não parou, seguindo em frente nessa estrada que poucas casas ou palhotas tinha. O tempo passou e começou a escurecer. Comentei para a Professora e para o irmão que estava a achar estranho não ver o Major de regresso para o Quartel. Nisto, o Milícia, que se encontrava como atrás descrevi a guardar o chafariz, veio ter comigo dizendo-me baixinho que o Major se encontrava na esquina de uma palhota e atrás da residência da Professora a espiar-me. Como já era bem escuro, levantei-me do lugar onde me encontrava sentado e, elevando bem a minha voz preguntei: – Quem será o filho da p… que se encontra ali no escuro a espiar-nos? – Ora se fosse a espiar a c… da mãe dele! Regressei ao meu lugar e reparei que a Professora tinha ficado vermelha que nem um tomate bem maduro apesar de ter cor bem morena. Baixinho, foi-me dizendo que eu poderia vir a ter graves problemas com Major. Voltei a levantar a minha voz dizendo que de noite todos os gatos são pardos. Continuei dizendo que quem quer que fosse e que estivesse ali a espiar-nos não passava de um cobarde. Deixei-me ficar por mais cerca de uma hora e só depois me dirigi ao Quartel. Confesso que mal dormi nessa noite.

Na manhã seguinte e como me era habitual, fui tomar o pequeno-almoço já com a messe de Sargentos fechada. Estava eu tranquilo a beber o café com leite quando entra de rompante o Major gritando para os cozinheiros e dando-lhes uma grande reprimenda por me estarem a servir o pequeno-almoço aquela hora. Foi dizendo que ele o Major e Segundo Comandante levantava-se antes das sete da manhã para tomar o pequeno-almoço antes das oito horas e, por isso, não tinham que me estar a servir naquela hora. Estes, muito aflitos e tremendo como varas verdes, responderam-lhe que não eram capazes de me negar o pequeno-almoço naquela hora até porque eu estava sempre disponível para eles fosse a que horas fosse. Achei então que deveria interferir e virei-me para o Major disse-lhe. – Eu, Figuinha de nome e Furriel Enfermeiro, levanto-me pelas oito horas da manhã para tomar o pequeno-almoço antes das nove horas, mas Major, se o senhor partir a cabeça pelas três da manhã, esteja descansado que me levantarei para lhe cozer a cabeça. Vendo que eu lhe tinha tirado os argumentos, virou o disco à conversa e pediu-me para ir ver uns pés de tomateiros que havia mandado plantar em volta do refeitório das praças e que, segundo ele, estavam a morrer. Respondi-lhe que fosse andando que eu lá iria dar uma espreitadela. Assim o fiz.

Na verdade, quando cheguei junto aos tomateiros, verifiquei que estavam morrendo.
Apareceu junto a mim o condutor do Major muito aflito com o que estava acontecendo e foi-me contando que tinha perdido o adubo que o meu colega da Granja de Teixeira Pinto lhe tinha entregado a meu pedido. Como o adubo era parecido com o sal, foi à cozinha pedir aos cozinheiros uma quantidade que aplicou junto aos pés dos tomateiros. Fiquei rapidamente a saber as causas da morte destas plantas. Baixinho, não fosse o Major ouvir já que não se encontrava muito afastado de nós, disse-lhe que o sal tinha queimado as plantas.

O soldado ficou logo a tremer de medo das possíveis consequências que lhe poderiam acontecer acaso o Major viesse a saber. Tranquilizei-o, dizendo-lhe que eu não diria nada ao Major e que iria tentar encontrar outras justificações para o sucedido. Calmamente, fui verificando os caules das plantas procurando alguma causa. Encontrei logo de seguida um tomateiro atacado pela rosca que perfurando o caule o fragiliza. Esta lagarta, eliminando o cerne por onde a planta se alimenta, provoca-lhe a morte. Chamei o Major para lhe mostrar a lagarta causadora da doença.

Neste mesmo instante passava por nós um cabo cripto que vinha assobiando de contente. O Major chamou-o gritando e perguntou-lhe de onde vinha. O cabo respondeu que vinha da aldeia. Então, a besta do Major aplicou-lhe logo uns murros e pontapés ao mesmo tempo que lhe ia dizendo que sendo detentor de segredos militares, não podia nem devia andar a passear fora do Quartel. Eu, apercebendo-me que o Major estava a vingar-se nele por não ter tido hipóteses de se vingar em mim, intervim dizendo-lhe que era uma barbaridade o que estava a acontecer. Parou, respirando fundo, lá foi pedindo-me desculpas dizendo-me que tinha perdido a cabeça.

O dia não ficou por aqui. Disse-lhe para ir até ao Posto Médico que eu iria a seguir ter com ele para lhe dar um remédio para aplicar nos tomateiros a fim de matar a lagarta.

Estava eu aproximando-me do mesmo, verifiquei que o Major atrevido foi apalpar as mamas de uma moça que esperava por consulta. Ela virou-se num repente, pregando-lhe uma valente bofetada. O Major recuou atarantado. Porem, foi perguntando se só o Furriel Figuinha tinha ordem de lhe apalpar as ditas mamas. A moça, sem mais, levantou a blusa e virando-se para mim pediu para lhas apalpar dizendo que a mim dava autorização para o fazer. Ele, ficando pálido, virou as costas, mas foi-me dizendo que ao meu mais pequeno descuido me aplicaria quarenta dias de prisão. Não lhe dei qualquer troco. Até ao fim da comissão as guerras entre nós os dois foram uma constante.

Um outro acontecimento, bem desagradável entre nós os dois, aconteceu numa altura em que o Médico se encontrava ausente, como no caso anterior. Numa das noites e após o jantar, encontrando-me ainda na messe com mais uns Sargentos e alguns Furriéis, entrou o Major que dirigindo-se a mim foi dizendo que se sentia adoentado com muitas dores de garganta. Pediu-me então medicação para o seu posto, ou seja para Major. Respondi-lhe que não entendia onde queria chegar já que todos os medicamentos que possuía não tinham posto militar. Estes, tanto eram para os Soldados como para os Oficiais. Voltou de novo ao princípio da conversa dizendo que ele tinha razão dando como exemplo as aspirinas do Laboratório Militar e as da Bayer. Que as da Bayer seriam para os quadros superiores e as do Laboratório Militar para os soldados e quadros intermédios. Perante o olhar perplexo de todos, já que segundo a ótica do Major se encontravam no segundo escalão, respondi-lhe que não concordava com a sua análise, ao mesmo tempo perguntei-lhe senão confiava nos medicamentos do Laboratório Militar e, caso afirmativo, teria que informar a Direção de Saúde Militar, em Bissau, bem como lhe disse que as aspirinas da Bayer, que possuía no Posto Médico, se destinavam ao pessoal do mesmo, pois tinha sido uma oferta de Bissau. Aproveitei sim, para lhe dizer que na verdade eu lá possuía material com divisas militares. Um desses materiais eram as agulhas para dar as injeções e, como tal, tinha lá uma com o posto de Major. Esta era comprida e grossa e já com a ponta bem virada e com alguma ferrugem. Deste modo, só lhe restava escolher entre a agulha ou os comprimidos. A agulha, apesar de ponta virada, entraria nem que fosse a murro e, ao sair, lhe faria um rasgo na nádega de modo a nunca mais se esquecer de mim. Prefiro engolir as pastilhas, disse-me ele logo a seguir, acrescentando que lhe fosse levar os comprimidos ao seu gabinete.

Logo que o Major saiu da messe, vários comentários foram feitos pelos presentes. Uns dizendo que eu me tinha excedido e como tal poderia ter consequências desagradáveis. Uns outros, mas poucos, enalteceram a minha coragem perante a arrogância do Major. Confesso que fiquei extremamente nervoso, mas não poderia deixar passar a imagem de que o exército possuía medicação conforme as patentes e, como tal, eu faria tratamentos diferenciados. Saí da messe e dirigi-me ao Posto Médico para encontrar medicação de acordo com as queixas que ele me apresentou, e que eram de uma gripe.

Com a medicação em meu poder, lá fui ter com esta encomenda ao seu gabinete. Aqui, voltou a provocar-me. – O que me estás a dar não serão comprimidos anticoncessionais? Respondi-lhe que não possuía tais medicamentos dado que não havia mulheres no Quartel. Respondeu-me dizendo que eu estava muito errado já que no Quartel havia muitas meninas disfarçadas em homens. – Mas não será veneno para me matares? – Voltou ele perguntando. Respondi-lhe de novo que ficasse descansado pois não tencionava matá-lo já que, se o fizesse, teria que gramar com um outro que o viesse substituir. Acrescentei que a ele já lhe conhecia as manhas e, acaso viesse outro, teria que demorar tempo a conhecer. Virei costas não lhe dando mais conversa.

Ao passar pela porta do quarto do Capelão, este chamou-me baixinho, dizendo-me que tinha ouvido a conversa entre mim e o Major e que tinha ficado preocupado. Foi-me dizendo que tivesse mais cuidado. Neste momento senti uma pancada nas minhas costas. Era o Major que, dirigindo-se ao Capelão, lá foi dizendo que eu era uma grande encomenda. Calmamente, retirei-me não alimentando mais o assunto.

A minha guerra com este personagem continuou. Um fim de tarde, altura em que por norma as jovens da aldeia e algumas já menos jovens levavam a roupa aos nossos militares, fazendo estas entregas junto da porta de armas e recolha de roupa suja, como também, recebiam o pagamento pelo trabalho prestado. Dizia eu que, numa dessas tardes, encontrava-me mais o Médico Dinis Calado e o Alferes Tunes em conversa com a jovem Judite que cuidava da minha roupa, bem como da do Médico, do Major Pinho e do Tenente Coronel Romão Loureiro. O tema da conversa era sobre a forma como ela se relacionava comigo. Os dois (Médico e Alferes) estavam fazendo-lhe perguntas provocatórias que ela, muito inteligente que era, ia dando a volta. Eis que aparece o Major vindo de Jipe e dirigindo-se à jovem, a íntima a ir cumprimenta-lo. – Então Judite, não vens cumprimentar o teu Major? Respondeu-lhe ela logo de seguida. – Não Major, o Figuinha não deixa. Bem, fiquei sem fala e o mesmo acontecendo ao Médico e ao Alferes que, ao meu lado, permaneciam. O Major baixou a cabeça e, carregando no pedal do Jipe, entrou em aceleração no Quartel. Médico e Alferes olharam para mim e comentaram que mais um problema eu teria pela frente. Ela, sorridente com a vitória que acabava de obter sobre aquela espécie de militar, acabou com a conversa e foi de regresso a casa. Sobre esta jovem escreverei mais na parte final do meu testemunho.

No dia seguinte, mal o Major me avistou de novo, ameaçou-me dizendo que no dia que me apanhasse em falta, me aplicaria quarenta dias de prisão. Para mim, foi mais uma que me passou ao lado.

Por orientação superior ou por vaidade dele, mandou construir no meio do Quartel uma espécie de monumento com as inscrições e emblema do nosso Batalhão. No dia anterior ao por ele destinado a ser inaugurado, mandou para a prisão (dez dias) o Alferes Tunes meu amigo e do Médico. A consternação deste caso foi geral entre todos nós. Nessa noite, eu, Médico e vários soldados e Furriéis fomos curtir as mágoas no bailarico. Procuramos regressar perto da meia-noite e, já no Quartel, o Médico fez um pequeno discurso virando-se para o local onde o Major estaria a dormir e, ao mesmo tempo, um pequeno grupo onde eu me incluía, demos início à inauguração, urinando sobre o dito monumento. O grupo era fixe para não dar com a língua nos dentes já que, se o Major viesse a saber, tínhamos o caldo entornado!

Por último, e para não escrever muito sobre esta personagem, no fim da comissão e no dia de regresso a Bissau, procurou-me para me dizer que eu não iria juntamente com os outros militares, mas sim, com ele no Jeep. Achei muito estranho este convite, mas calculei logo quais os motivos. Deste modo, mal chegamos a Bissau e o condutor nos levou até à porta do Hotel onde ele se alojava, dirigi-me ao Major dizendo-lhe que o convite que me havia feito foi para lhe servir de guarda-costas no percurso. Atrapalhado por verificar que eu tinha descoberto os motivos da minha companhia no jipe, começou a gaguejar e pediu ao condutor para me levar sem mais demoras ao local onde eu fosse ficar alojado, esperando o dia de embarque para Lisboa. O Major, sabendo do quanto eu era estimado pela população e estes tendo familiares na guerrilha, não me iriam fazer mal como em outras tantas vezes, eu já tinha feito aquele percurso.

(Continua)

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Nota do editor

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Guiné 61/74 - P23281: Os nossos seres, saberes e lazeres (505): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (51): A região de Sintra numa exposição de Alfredo Keil (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
O espólio de Alfredo Keil é vastíssimo, abarca a sua pintura, os seus desenhos a grafite, até programas de eventos, cadernos de viagens onde deixou inúmeros esboços, há registos das suas viagens por diferentes países, fotógrafo e médico, grande colecionador, autor da música do nosso hino nacional, e podíamos ir muito mais longe. Pintou muito sobre a sua cidade natal, Lisboa, mas também o Zêzere e os esplendorosos rincões de Sintra, foram estes o que aqui registei da sua mais recente exposição que se realizou na Galeria São Roque Too, um espaço bem apropriado para receber o pintor e o músico a quem tanto deve a cultura portuguesa.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (51):
A região de Sintra numa exposição de Alfredo Keil


Mário Beja Santos

A Galeria São Roque Too realizou uma exposição de Alfredo Keil, intitulado O Som das Árvores, entre dezembro de 2021 e fevereiro de 2022. Constava na notícia da Agenda Cultural de Lisboa: “Alfredo Keil (1850-1907) foi uma figura ímpar da arte portuguesa, tendo-se destacado nas artes plásticas, na música, na fotografia, na literatura e no teatro. Apesar de ter sido um artista muito versátil e completo, a exposição que a São Roque Too apresenta debruça-se predominantemente sobre Alfredo Keil músico e pintor, vertentes em que mais se distinguiu. Assim, na área da música, O Som das Árvores expõe documentos e objetos colecionados com a sua obra mais famosa, o Hino de Portugal – A Portugueza -, incluindo a sua partitura original. Alfredo Keil foi ainda pioneiro na ópera do nosso país; por isso, encontram-se também expostos vários cenários das suas quatro óperas: Serrana, Irene, Dona Branca e Susana, assim como documentação diversa que inclui correspondência trocada com Verdi e Puccini. No que respeita à sua obra plástica, a exposição conta com 70 pinturas e desenhos, que incidem maioritariamente sobre paisagens e vistas dos locais preferidos do artista: Lisboa, Sintra e Zêzere”. O que mostro ao leitor tem a ver com Sintra, embora reconheça que nos deixou obra relevante nas telas que pintou sobre Lisboa ou a região do Cabril.

Alfredo Keil pode ser classificado como um tardo romântico no seu naturalismo, olha-se para esta pintura e vê-se que era um artista que apreciava viajar, isto além de ter sido um colecionador eclético, nesta exposição por exemplo eram patentes objetos dessa vastíssima coleção que ele legou. Viajava muito e deixou as suas impressões desde Havre a Nurembergue (era filho de alemães, o pai veio com D. Fernando Saxe-Coburgo-Gota, abriu alveitaria na Baixa de Lisboa). Ele nasceu em Lisboa e representou a sua cidade natal, nesta exposição da Galeria São Roque Too estava um óleo que muito admiro intitulado Lisboa vista do Ginjal. Sendo verdade que os artistas do seu tempo se sentiam motivados a representar cenas da vida quotidiana, pessoas a passear pelas ruas ou em cafés e nas praias, Keil foi atraído pela natureza onde deixou obras esmeradas. Teve casa na Praia das Maçãs e daí o valioso punhado de representações da natureza que nos deixou, vê-se a sua motivação por Colares, o Cabo da Roca, a majestade selvática das praias.
Não escondo o deslumbramento que toda esta região me dá, aqui passei férias e por aqui deambulo com muito prazer, e com esse mesmo prazer que vos mostro algumas imagens destes belos recantos do concelho de Sintra.

Colares – Ribeira, não datado
Searas em Colares, 1878
Quinta Mazziotti – Colares, 1880
“Banzão”, 1882
Pescador na Praia das Maçãs, não datado
“Monte da Azoia”, não datado
O Farol do Cabo da Roca, 1882
Colares V, não datado
Praia da Ursa, 1878
Na última pedra – Praia das Maçãs, 1895
“Azenhas do Mar”, não datado
Azenhas do Mar, 1851
Colares – Lavadeiras na Ribeira, não datado
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23263: Os nossos seres, saberes e lazeres (504): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (50): Uma amostra dos tesouros colecionados pelo Dr. Anastácio Gonçalves (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23280: Notas de leitura (1447): “Guiné-Bissau, dos povos à nação, uma longa marcha de sofrimento”, por Malam Sambú; edição de autor, Macau, 1999 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Nada de espetacular neste achado, trata-se de um grito de alma de um guineense que se diplomou na República Popular da China e trabalhava na Universidade de Macau ao tempo desta edição de autor, para a qual nunca ouvira qualquer referência. Agradece ao nosso confrade António Estácio o apoio dado na pesquisa bibliográfica. Apresenta alguns aspetos curiosos nas referências que faz às etnias, é manifesto que tinha a história da presença portuguesa na Guiné muito colada com cuspo, daí a sua digressão errática. As mãos não lhe doem na acusação que faz de todos os excessos do regime a partir do Estado. Um documento que fez época, de alguém que na diáspora não se conformava com a violência e o caos em que se encontrava a Pátria.

Um abraço do
Mário



Guiné-Bissau, dos povos à nação, uma longa marcha de sofrimento

Beja Santos

“Guiné-Bissau, dos povos à nação, uma longa marcha de sofrimento”, edição de autor, Macau, 1999, é escrita de Malam Sambú, natural de Mansoa, licenciado em Engenharia Elétrica e Eletrónica pela Universidade de Nanjing, China, e no momento em que deu à estampa este seu livro trabalhava na Universidade de Macau. É uma obra que possui uma narrativa divulgativa sobre determinadas etnias depois de apresentar a geografia do país, fala igualmente da chegada dos europeus (infelizmente com muitos dislates, incorreções, inverdades e até saltos bruscos na narrativa histórica) após uma descrição sumária da luta armada revela ao que vem, no essencial: traça um libelo acusatório do regime ditatorial de Nino Vieira.

Vê-se que estudou a preceito um conjunto de etnias (não trata de todas e das que trata revela manifesto desequilíbrio expositivo) e enuncia um conjunto de curiosidades que vale a pena repisar. Falando dos Balantas diz que, de entre o grupo animista eles são os mais demorosos integrando um longo bloco étnico que se estende por toda a costa senegalesa até à Costa do Marfim. A ausência de Estado explica a falta de menção quanto à sua tradição histórica. Descreve os diferentes escalões na estratificação etária, é um dos pontos curiosos da sua exposição. Os Balantas são grandes produtores de arroz. Não aceitaram pacificamente a imposição colonial de terem chefes vindos de povos islamizados, como muitos outros autores já observaram, esta base de contestação propiciou a grande adesão à luta armada desde a primeira hora.

Os Papéis, ou Pepéis, dispõem de uma organização social hierarquizada semelhante aos Mandingas e quanto à língua aparentam-se com os Brames. São originais do Sul da Guiné, da região de Quínara, foram-se deslocando para a ilha de Bissau onde criaram vários regulados, todos eles religiosamente subordinados aos Beafadas, cujos ídolos ainda hoje veneram. Para além da ilha de Bissau, distribuem-se ao longo do Litoral, desde a mata de Putama até ao rio Cacheu. Na ilha de Bissau existe um local conhecido pelo nome de Enterramento, o qual possui uma grande carga histórica. Fica na zona compreendida entre Brá e Bor, onde se encontram enterradas algumas personalidades guineenses mais importantes, caso do régulo Bacampolõ Có.

Os Mansoanques ou Suénes têm a sua difusão étnica no Norte da Guiné-Bissau. A região compreendida entre Farim e Mansoa era predominantemente habitada pela etnia Mansoanque, originários de uma cisão havida nos Beafadas. Na sequência da guerra santa que lhes foi movida pelos Mandingas, o grupo Mansoanque sofreu uma enorme retenção, é hoje um dos grupos étnicos mais reduzidos da Guiné-Bissau. Em virtude da grande semelhança que existe entre os apelidos Mansoanques e Beafadas, há quem admita mesmo que estas etnias tenham feito parte da mesma família. Há uma enorme semelhança entre apelidos, por exemplo Sambú, Djassi, Soncó e Mané.

Os Mandingas são descendentes dos povos oriundos do Sudão Ocidental e da Etiópia. Sabe-se que no século XIII os Mandingas de Malinke, sob o comando do general Sundiata Ketá estabeleceram-se na região do Gabú. A Guiné torna-se um membro do vasto império do Mali sendo dirigida por um Farim (Governador) que normalmente era escolhido de entre as famílias Mané e Sané. O Gabú era o principal estado Mandinga. No Nordeste, na margem direita do Geba, os Mandingas formaram os reinos de Oio e de Braça. Para além do território guineense havia também outros pequenos reinos mandingas nos territórios vizinhos, tais como os do Vale do Gâmbia. Diz também Malam Sambú que os Mandingas ou Incas são originários do Oio.

Fala sumariamente dos Fulas, Bijagós, Beafadas, Nalus, Cocolis, Nhomincas, Banhuns, Cassangas e Manjacos.

Temos depois o histórico da presença dos povos europeus com destaque para os portugueses. Não deixa de referir que o trabalho forçado teve uma presença pouco expressiva, sendo praticamente utilizado pelas autoridades administrativas na construção e manutenção de estradas de terra batida.

Esquematiza as diferentes etapas da luta armada e após referência à chegada entusiástica do PAIGC ao território da Guiné-Bissau faz um rol da caça às bruxas, purgas, assassinatos, execuções sem qualquer tipo de julgamento, refere invenções de golpes como o alegado preparativo de um golpe de Estado por parte dos Antigos Comandos Africanos de que nunca se apresentou um documento de acusação fidedigno, contextualiza o terror permanente das arbitrariedades da polícia secreta.

E assim chegamos ao seu território de eleição, após o 14 de novembro de 1980 a ascensão de um processo ditatorial onde o autor é meticuloso a expor os crimes e extorsões praticados por Nino, incluindo a falsificação dos atos eleitorais, o assassinato dos rivais, como Paulo Correia, a sua vida luxuosa, a sua desbragada vida sexual destruindo matrimónios e enxovalhando famílias, os seus investimentos no estrangeiro, a venda de armas aos rebeldes do Casamansa, o progressivo descalabro dos Serviços Públicos. Talvez dado o facto de trabalhar em Macau, reporta a venda de passaportes a chineses que nem sabiam onde ficava a Guiné-Bissau… Usa uma linguagem crua, não se coíbe de dizer que o expoente máximo da ladroagem era personificado por Samba Lamine Mané.

E assim chegamos à questão das armas do Casamansa, diz taxativamente que Nino tinha uma percentagem na venda das armas mas que Ansumane Mané também não tinha as mãos muito limpas, o que acontece é que todo o círculo militar estava inteiramente informado de que iria ocorrer uma nova purga e foi nesse contexto que se iniciara o sangrento conflito político-militar com a chegada de tropas estrangeiras.

Este professor universitário é uma voz solitária, apresenta mesmo um manifesto propondo o saneamento político do país. É evidente tratar-se de uma obra datada, nunca tivera qualquer referência à sua existência, é a felicidade de vasculhar os vastos descritores da Guiné-Bissau na Biblioteca Nacional que possibilitam estes achados.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23266: Notas de leitura (1446): “Cartas à Guiné-Bissau, Registos de uma Experiência em Processo”, por Paulo Freire; Moraes Editores, 1977 (Mário Beja Santos)