sexta-feira, 21 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24492: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (38): O arroz de lingueirão à moda de Candoz







Marco de Canaveses > Paredes de Viadorees > Candoz > Tabanca de Candoz > 15 de julho de 2023 > Aqui também chegam os sabores do mar...


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1.  Dez dias de "férias & trabalho" na nossa Quinta .de Csndoz, longe da Lourinhã, da fisioterapia e do ginásio,... e do blogue (já que o acesso à Net é reduzido),  não nos impedem, a mim e à Alice, de manter a tradição do petisco... com sabor a mar. 

Ontem foi uma sardinhada, à moda antiga, para 15 pessoas. A Alice juntou cá os manos vivos.  O  Zé Carneiro  trouxe as sardinhas da lota de Matosinhos, e foram as melhores que comemos este ano, assadas em lenha de videira (que é a melhor)... Como se diz aqui, "souberam-nos pela vida"..., independentemente da sua origem (parece que foram pescadas no mar de Sesimbra). E lembraram-se os tempos da "sardinha para très"...

Há dias a "chef" Alice fez um arrozinho de lingueirão (ou navalha)... É um prato simples e delicioso, com arroz de tomate e coentrinhos.  (Podia levar pimentos, mas não  levou para estragar o gostinho a maresia do molúsculo...). 

 O "segredo" é lavar bem o lingueirão (ou navalha). libertando-o de toda e qualquer impureza , em particular a areia (que é extremamente desagradável para os nossos dentinhos e língua). Aproveita-se a "auguinha" onde se coze o molúsculo... 

Quanto ao resto, há para aí muitas receitas na Net, que o leitor pode consultar. Como sempre, estava um arrozinho de comer e chorar por mais...Esta gente aqui é especialista a cozinhar o arroz (de mil e uma maneiras)...

Amigos e camaradas, b0m verão,  e que Deus Nosso Senhor não  vos tire o apetite... Continuamos à espera que os nossos 'vagomestres'  nos mandem ao menos as fotos dos seus "petiscos de verão"... Comam bem (o que não quer dizer muito...)  e partilhem ao menos a vossa fotogaleria... gastronómica.  (LG)

II. Lingueirão, segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa:

lingueirão |güei|
(lin·guei·rão)

nome masculino

1. Língua grande.

2. [Zoologia] Molusco acéfalo bivalve, com concha retangular estreita e longa. = Canivete, Ligueirão,Lingueirão-de-Canudo,Longueirão, Navalha, Navalheira.  

Origem etimológica: língua + -eirão.

"lingueirão", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/lingueir%C3%A3o#google_vignette.

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24491: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (4): Amigos para sempre!


Foto: © Luís Graça (2011)

Contos com mural ao fundo (4) >   Amigos para sempre!

por Luís Graça (*)

Foi o primeiro encontro da Companhia, depois do regresso da Guiné... Vinte anos depois (!)... Na Anadia, em 1991, o ano em que nasceu a Internet, pelo menos a Internet que conhecemos hoje, em que as pessoas estão familiarizadas com as redes sociais, e usam o telemóvel e o correio eletrónico.

A organização coube ao "Vagomestre", auxiliado pelo "Transmissões"...  Não lhes foi fácil descobrir nomes, moradas, telefones  e até faxes... E juntar "boas vontades". (Ainda não havia endereços de e-mail, comunicava-se por  telefone,  telegrama  e fax.)

Faltou muita gente, a começar pelo ex-capitão, ainda no ativo, então na GNR, ao que se dizia. Ou talvez já na reserva, que ele nessa altura deveria  estar próximo dos sessenta... E outros, não poucos, disseram ao organizador: "Guiné, meu?!... Não,  obrigado!... Já dei para esse peditório!"...

Estavam presentes um alferes, o Azevedo, o "Ranger", uma boa parte dos furriéís e outras tantas praças, cabos e soldados, sobretudo do Centro e Norte. Ao todo não mais do que uma trintena, menos de um quinto da Companhia. 

O "Vagomestre",  também conhecido pela infame alcunha de "Unhas de Fome" (insultuosa para ele), fora o  principal organizador. Era de Aveiro, e tinha agora uma empresa de contabilidade ligada ao setor das pescas. O Oliveira, o "Transmissões", esse, ia fazendo também pela vida, sendo assessor jurídico de uma federação de sindicatos, ligada à CGTP-IN, depois de completar o curso de direito em Coimbra.

Também apareceu o "Pastilhas". O seu "bunker" era  a "República dos Feliz... ardos", os que não iam para o mato: ele, o transmissões, o gajo da ferrugem, o vagomestre, e dois sargentos (um deles, o  Félix, que chefiava a secretaria), e ainda  alguns primeiros cabos, como o cripto, o escriturário, o quarteleiro, o bate-chapas (o "Chapinhas*)... 

Toda a gente vivia em "bunkers", feitos de troncos de cibe, chapa de bidão, bidões  de terra e umas tantas das poucas pedras que havia  naqueles terrenos de aluvião... "Vida de ratos", queixava-se o Andrade que, à noite, passava horrores na expectativa de um ataque ou flagelação ao quartel.

Tinha piada,  as voltas que o mundo dera: o "Pastilhas" era agora tratado com outra deferência... Conseguira, ainda antes do 25 de Abril, entrar em medicina... Depois do Serviço Médico à Periferia, entrara na carreira de clínica geral, em 1983, e era, já em 1991, médico do trabalho numa fábrica de montagem de motores para automóveis, na região Centro.

Mas a figura principal do encontro, na ausência do capitão, era o "Campanhã", o valente "Campanhã", o "herói da Companhia"!... Era com emoção, "com alguma emoção, mal disfarçada" (sic), que o Neves, furriel do seu pelotão,  voltava a abraçar, ali na Anadia, nesse já longínquo ano de 1991, o "Campanhã", com o seu inimitável sotaque tripeiro e "a franqueza que era timbre da boa gente do Norte".

Dos presentes, havia mais um que tinha "subido na vida", o Azevedo, autarca social-democrata e empresário (fizera, logo na primeira hora, uma distribuição profusa do seu "cartão de visita" e transpirava felicidade e prosperidade por todos os poros)... 

O "Campanhã", esse, ninguém sabia ao certo o que fazia agora... Mas apresentava alguns sinais exteriores de riqueza, a avaliar pelo BMW ("em segunda mão, nada de confusões!") com que viera do Porto, com mais dois ou três camaradas "da corda", um dos quais nem sequer tinha nada a ver com a Companhia, fora paraquedista em Angola. 

O Neves, esse, ainda continuava, infeliz e mal pago, a trabalhar como jornalista num semanário da capital, e a fazer mais uns  biscates na rádio.

− E no fim quem levou a taça foi o capitão!... Chegou a major, ainda a guerra não tinha acabado para nós... − disparou o "Campanhã", a "abrir as hostilidades".

A taça ?!... − ouviu-se, lá do fundo da mesa, a voz do "Vagomestre", que estava com um ouvido atento à conversa do grupinho do "Campanhã", e outro orientado para as graçolas de alguém que recordava o pobre diabo  do "Peniche", a "Bichona",  o "bobo da corte" da Companhia, que assegurava que ainda havia de mudar de sexo antes de morrer. (Infelizmente morrera  de HIV/SIDA, uns bons anos antes,  por volta de 1985, com o mesmo corpinho  com que  tinha saído da barriga da mãe.) 

− Quer-se dizer, mais uns galões, mais graveto ao fim do mês… insistiu o "Campanhã".

−  Mas, ó pá, era a vida dele, a carreira dele! – atalhou o ex-alferes miliciano Azevedo, tambem tratado por "Ranger", transmontano, que nada tinha perdido do seu espírito de subserviência em relação a todas as hierarquias deste mundo.

 E depois nós éramos milicianos, estávamo-nos nas tintas para as divisas e os galões! – atalhou o "Vagomestre",  tentando, com sua proverbial falta de sentido de humor, deitar água na fervura.

− E, nós, o mexilhão, a tropa-macaca, os soldados do contingente geral! – ripostou o "Campanhã".

 Estávamos todos metidos no mesmo barco, essa é que essa!  opinou, por sua vez, o "Pastilhas", agora o "xô dôtor" Andrade.

 Mas mesmo assim havia diferenças, carago! No meio daquela merda toda – desculpem lá a expressão, que eu sou um home do Norte, carambas! – vocês até eram uns fidalgotes: tinham patacão, graveto; tinham messe, bar, bebidas estrangeiras; iam matar a malvada a Bafatá; comiam umas garinas, pretas ou verdianas, de vez em quando, em Bafatá e em Bissau; iam de férias, na TAP, à Metrópole…

E lá continuou o reguila do "Campanhã" a vociferar contra os privilegiados da tropa, neste caso os milicianos que na guerra tinham messe,  à parte, com direito a comer de garfo e faca, toalha branca na mesa e... até criados de libré!... 


Recorde-se que o capitão, um minhoto ("de sangue azul", dizia-se, com solar lá na terra, e todo cheio de nove horas), até lhes arranjou, aos impedidos na messe, uma farpela a condizer!... Um deles era justamente o "Peniche", soldado básico, ex-desertor e ex-presidiário (tinha passado pela Companhia Disciplinar de Penamacor; viera 
 a "ferros"  no T/T "Niassa", "um espectáculo confrangedor", recordava o Neves).

 Criados de libré, já não me lembrava dessa, ó meu! − comentou o "Campanhã", para o Neves, e outros que lhe estavam próximos, na mesma mesa (que, na prática, era só uma, comprida, onde cabiam todos os convivas; de fora tinham ficado, daquela vez, no primeiro convívio da Companhia, as caras-metade e demais famíliares).

 Messe com criados de libré, só em dias de festa, convém lembrar!... Por favor, nao exagerem!..?.O nosso capitão explicava que era para "os senhores oficiais e sargentos se sentirem em casa, não perderem a noção do tempo e não ficarem cafrealizados"  recordou o Azevedo. − E que pena ele não poder estar aqui hoje com nós! 

− Cafrealizados?! − interpôs o Neves que nunca tinha concordado com a ideia de uma messe, separada do rancho, num quartel do mato como o da Companhia.

− Cacimbados, apanhados do clima, se quiseres! − esclareceu o "Ranger".− Afinal, sempre foram quase dois anos fora da civilização.

 Alguns de vocês, alferes e furriéis (não vale a pena aqui citar nomes) até nem queriam outra vida se não fosse terem de andar com a puta da canhota no mato, a embrulhar e a foder o coirão!... 

Em boa verdade, um dos alferes da Companhia tinha feito o curso de capitães e ainda fizera uma comissão em Angola, passando a integrar o QEO - Quadro Especial de Oficiais. Ninguém sabia do seu paradeiro. Alguém terá dito que ficara na África do Sul, depois da inpendência de Angola, o que carecia de confirmação.

E, dando um salto na cadeira, continuou o "Campanhã", de dedo em riste:

− Mais, seus c..., alguns milicianos que eu conheci, na tropa e depois na Guiné, nunca tinham ganho um tostão na puta da vida, a não ser talvez a mesada do velho…

 Calma aí e pára o baile, ó "Campanhã"! Estás a ser injusto, ao fazer generalizações abusivas!  interrompeu, de chofre, o Azevedo, que tinha vindo direitinho do seminário para a "Máfrica"  (onde fez a recruta) e depois para Lamego (onde tirou o Curso de Operações Especiais), com passagem por Tancos (para tirar as 'minas & armadilhas').

−  Bom amigo e camarada, tenho que te  lembrar que muitos de nós, furriéis e alferes, já trabalhávamos, e alguns começaram bem cedo, feito o 5.º ano ou o 7.º,  do liceu ou equivalente... 
  atalhou o Neves, ajudando a cortar o fio à meada do  discurso torrencial (e perturbador) do "Campanhã", e sabendo que os primeiros goles da zurrapa do espumante do Zé dos Leitões começava a abrir as goelas da desinibição. 

 Cá o Zé Soldado, como eu,  já era chefe de família e há muito que fossava  no duro, antes de ir parar com os quatros costados à Guiné. É bom que não se esqueçam disto, carago!... Quanto ao resto, reconheço que éramos todos iguais, brancos e pretos, oficiais, sargentos e praças, que elas no mato, c.., não traziam código postal!

 
O "Campanhã" e o Neves tínham-se  tornado amigos (ou, talvez melhor, confidentes e cúmplices um do outro, camaradas, no sentido etimológico do termo, já que na tropa não havia verdadeiros amigos, amigos do peito, mas apenas gente que partilhava a mesma condição, o mesmo chão, a mesma caserna, o mesmo "bunker", a mesma vala, o mesmo espaldão, o mesmo beliche, a mesma cama, enfim, o mesmo buraco)... 

Voltaram ambos a recordar  essa memorável viagem de comboio que, em meados de 1969, tinha levado a  Companhia, ensonada, do Campo Militar de Santa Margarida até ao cais de embarque, em Lisboa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos. 

Entre dois tragos de bagaço de vinho verde, rasca, o "Campanhã" fora-lhe contando a sua vida, os seus sonhos, os seus projectos, mas também os seus tropeções, fazendo do Neves o seu confidente de circunstância, vizinho de lugar e companheiro de infortúnio, "lucidamente deprimido" (escreveria ele mais tarde), à medida que o comboio da CP, requisitado pela tropa, galgava as terras 
banhadas pelo Tejo, ronceiro, sonolento e lúgubre, pela calada da noite, e o "Quarteleiro" tirava uns acordes sinistros do seu acordeão. Mas a maior da malta dormitava, encostada aos ombros de uns e outros, para acordar, estremunhada, com a brisa do estuário do Tejo...

Muitos deles ainda se tratavam, neste primeiro convívio anual, em 1991, pelas alcunhas da tropa. E, em rigor, o Neves já não se lembrava sequer dos nomes próprios da maioria dos seus camaradas da Companhia. O "Quarteleiro", por exemplo, sempre o havia conhecido por "Quarteleiro" e era um gajo impecável que  punha a G3  num brinquinho, quando a malta regressava do mato, coberta de pó ou enlameada, "a tresandar a merda". E, depois, animava a malta com o seu acordeão de arraial minhoto, tal como o Oliveira, que tocava viola e cantava uns fados e baladas de Coimbra. 

Da dura história de vida do "Campanhã", o Neves, com o seu traquejo de jornalista, tinha, porém, tomado notas, no seu diário. Lá em Baião, o último concelho do distrito do Porto, ficava uma infância pobre, e no Porto, em Campanhã, uma adolescência truculenta, uma filha de mãe solteira, um futuro incerto de operário da ferrugem. 

Filho de pequenos rendeiros pobres, cedo pegara na trouxa, num ato de rebeldia contra o "pai e patrão", para apanhar o comboio da Linha do Douro e assentar arraiais numa "ilha" do Porto, na freguesia de Campanhã, razão de ser da alcunha que lhe deram na tropa. Tinha um irmão mais velho, operário na CP, que trabalhava na manutenção da via férrea, e que lhe deu guarida nos primeiros tempos.

 Parti, sem a benção do meu pai, e com a minha mãe em alta berraria, em som estereofónico que era para as vizinhas ouvirem bem... Fui em busca de melhores dias na Invicta, já que em casa o caldo, a broa e a pinga mal chegavam para dez bocas. Nem sequer tinha graveto para comprar o bilhete. Viajei escondido num vagão de mercadorias, como um cigano ou um ladrão.

 Falas em fome... mesmo, a sério?!  insinuou o Neves, timidamente.

 Não, vocês, lá na capital, nem sabem o que é isso: uma sardinha para três em dia de festa; um bocado de toucinho quando se matava o porco lá pelo Natal; o ranço da salgadeira na loja quando eu ia buscar o verdasco; um caldo de água quente, pencas e pão de milho esfarelado para aconchegar o estômago; batatas com batatas, quando as havia… E um pingo de azeite, com cebolinhas, e castanhas cozidas no outono e inverno... Mas um homem habitua-se a tudo... Fome, fome, não direi. Digamos que passei... necessidades!... Até ir para o Porto, nunca soube o que era o leite da vaca, nem queijo, manteiga ou iogurte, nem muito menos cerveja. Nem sequer um ovo estrelado, que a minha mãe vendia os ovos para fazer algum dinheiro!...  Não, nunca conheci calças sem remendos.  Ou sequer um par de botas. O meu furriel sabe o que são socas?

 Não, não faço ideia! Peço perdão, sou um citadino...

 Tarocas, tamancos, chinelos, um calçado aberto, com um tira de couro por cima e sola de pau... Era o que a gente botava nos pés, quando ia à vila ou à escola. 

E no Porto, na sua Campanhã (onde ainda morou depois de vir da Guiné, sendo mais tarde alojado num bairro camarário), antiga zona popular e operária da cidade, faria entretanto a sua "universidade da vida" antes  da tropa: moço de recados, marçano, aprendiz de  barbeiro, trolha, futebolista júnior, empregado de café, barman, "chulo de puta fina" – "azeiteiro, como se dizia lá na "ilha" – até descobrir o duro caminho que o levaria aos portões da ferrugem (leia-se: da fábrica metalúrgica, que foi o seu primeiro emprego a sério, com descontos para a "Caixa", em Massarelos, a célebre Fundição de Massarelos, que já  havia conhecido melhores dias, e que irá fechar os portóes a seguir ao 25 de Abril).

 "Cães grandes"?!.. Aprendi a tirar-lhes o chapéu e a cuspir-lhes na sombra desde o dia em que, de socas, mas já com pêlo na venta e os tomates inchados, depois de feita a 4.ª classe, acompanhava o meu velho na visita anual à Casa da Fidalga, pelo São Miguel... 

− São Miguel?...

− Sim, no fim do ano agrícola, lá para o fim de setembro... Para acertar a renda e renovar o contrato: dois terços do vinho, metade do milho, a melhor fruta para a senhora, a viúva de um juiz salazarista (que o povo dizia que era do "Supremo" e condiscípulo de Salazar) e  que tinha mais quintas na região, entre o Marco e Baião, do que eu dedos na mão…

"Cães grandes" era uma expressão que lhe era querida, e suficientemente ampla para nela caber todos os que lhe podiam morder o fundilho das calças e "foder o coirão", do 1.º sargento ao oficial superior, do abade ao "fidalgo"... Em Santa Margarida, tinha levado uma porrada do "sorja", o Gravata, por evidente abuso do poder do seu superior hierárquico, acrescentaria o Neves, que foi contemporâneo dos acontecimentos...


O Neves aproveitou o reencontro da malta, em 1991, para recapitular, com o "Campanhã", o  que se tinha passado, ao certo, em Santa Margarida em maio de 1969, na formação da Companhia: o 1.º sargento era um "chicalhão" de cavalaria e não gozava das simpatias de ninguém, a começar pelos cabos milicianos, futuros furriéis... Por outro lado, o homem esperava ir passar apenas umas férias na Guiné, antes de ser chamado para a Escola Central de Sargentos , em Águeda. 

Às praças não perdoava que se esquecessem de lhe bater a pala!... Foi o azar do "Campanhã", para mais "reguila" desde o início da formação da Companhia. 

− Andavas já debaixo de olho do nosso primeiro!... Ele nunca foi à bola com reguilas como tu, e para mais do Porto!

De nada valeram os pedidos, insistentes, que os cabos milicianos lhe fizeram, para rasgar a participação. Era um homem inflexível, e irascível,  oriundo da arma de cavalaria "como o Spínola" (como gostava de lembrar). E alguns de deles até tinham um certo ascendente sobre ele, haviam começado, ainda em Santa Margarida, a dar-lhe explicações de português, francês, matemática e outras disciplinas essenciais para um futuro tenente SGE (Serviços Gerais do Exército)... 


O "Campanhã", que era uma figura popular, muito querida entre a malta da Companhia, acabou mesmo por levar uma porrada, na véspera de ser promovido a cabo, e lá partiu para a Guiné, "com muita mágoa e raiva", como simples soldado atirador de infantaria. O capitão, que precisava dos bons ofícios do 1.º sargento, para mais logo no início da formação da Companhia, nada fez para demover o 1.º sargento,  acabando por  dar andamento à participação, o  que causou evidente mal-estar entre a generalidade dos cabos milicianos.

O "Campanhã" falava do seu "velho", do  seu pai, com ternura contida e com o respeito comovido que lhe mereciam os mortos de que a História não fala. Tinha falecido em fevereiro de 1969, nas vésperas da ordem da sua mobilização para a Guiné.

 As alegrias passam, meu furriel. Só as desgraças e as injustiças nunca se perdoam e nem se esquecem. A "porrada", injusta, do nosso 1.º sargento ainda me dói, e vai-me continuar a doer pela Guiné fora. 
confidenciou ele, nessa inesquecível viagem de comboio.

Foi despromovido, podia ter ido no "Niassa", com as divisas de 1.º cabo, "com toda a cagança e mérito, porque as conquistei com muito suor"... E perguntava ao Neves:

− Acha justo eu estar a comandar uma secção, na falta de um furriel,  com o reles posto de soldado raso?... Nunca lhe perdoarei, àquele "cão grande"!... Se ele alguma vez tiver o azar de alinhar no mato (o que nunca irá acontecer, eu sei) ou se eu o apanhar a jeito nalgum ataque ao quartel, juro que o mato com um tiro na testa...

E, depois,  arrependendo-se da enormidade que tinha acabado de proferir, emendou, não fosse alguém ouvi-lo e denunciá-lo à "bófia":

− Não o mato, pela simples razão de que eu tenho uma filha pequena para criar... Mas sou capaz de lhe pregar um susto quando o pessoal  se instalar no 'parque de campismo'...

E prosseguiu, já com uns bagaços a mais, enquanto o comboio uivava na breu da noite:


 As tainadas, as bezanas, tudo isso a gente caga e mija... As fodas, um gajo vem-se e, ala, moço, que se faz tarde... Qual amor, qual carapuça!... Nunca soube o que era isso.  

O Neves, "alfacinha" (que ue  não conhecia  nem imaginava até o que era a pobreza de muita gente do campo e da cidade que vivia  no Norte)  não conseguiu disfarçar as suas próprias emoções  quando uma grossa lágrima caiu pela cara  abaixo do "Campanhã " ao evocar  a figura do pai, num longo e pungente monólogo:

 − Veja o meu falecido pai: trabalhou uma vida inteira como uma besta de carga para morrer pobre como Jó, sem um cantinho a que chamasse seu, como qualquer cabaneiro ou cigano sem eira nem beira. Sem saber sequer uma letra, nunca foi à escola, tal como a minha mãezinha que Deus já lá tem, um e outra.... Sem nunca ter ido sequer ao Porto visitar-me e ir à Foz, de elétrico, para ver o mar… Nunca viu o mar, o meu velho!... Nem ele nem ela... Conheceu muitos 'fidalgos', como ele chamava aos senhorios ou patrões… Sempre o conheci de chapéu na mão, agradecendo a suas senhorias o grandessíssimo favor de continuar na terra por mais um ano, uma casa térrea e uns socalcos, depois do São Miguel… Viveu uma vida emprestadada, viveu por favor dos que mandavam neste mundo... É isso que me revolta, carago. E é por isso que me chamam reguila, corrécio, estroina ou pior... Mas eu digo-lhe: há coisas que um homem nunca esquece por muitos tombos que dê na puta da vida, por muitas bezanas que apanhe ou por muitas sacanices que faça… E eu já fiz muita merda, nesta meia dúzia de anos em que me tornei homem. Olhe, até fiz uma filha a uma gaja, menor, com quem fui obrigado a casar...

O Neves recordava estas palavras, ouvidas com empatia, no tal comboio da noite que transportava "carne para canhão", no longínquo ano de 1969... Curiosamente, verificava ali naquele almoço de convívio de antigos combatentes, vinte anos depois de "tudo ter acabado em bem" (como dizia o safado do Azevedo),  que nenhum deles se desculpava por feito aquela guerra e, muito menos, não de a ter perdido, mas de ter perdido a sua juventude, os seus "verdes anos" (como cantarolava o Oliveira).  Em contrapartida, haviam-se ganho novos amigos:

− Amigos para sempre! − concluiu o "Ranger", embevecido.

Para alguns deles, porventura para a maior parte deles, agora "despidos e despedidos" (a expressão era do Neves), desfardados, paisanos, passados à peluda, nus de corpo e alma como no dia em que haviam ido à inspecção, alcunhados de ex-combatentes da guerra do ultramar, últimos guerreiros do império colonial português, "mal amados" (pelo poder democrático do pós-25 de Abril)  − "mas vivinhos da costa como o carapau, graças a Deus!" (era a voz efeminada do "Peniche", o básico, a falar sozinho, lá do outro mundo,  orgulhoso,  porque  sempre acabara por ir parar à "vida artística da noite") − , tinha sido afinal a primeira e a última grande aventura das suas vidas cinzentas, um rito de passagem, uma iniciação (entre dolorosa e divertida) à vida adulta. 

 Uma espécie de acidente de percurso. Um pesadelo climatizado. Uma trovoada fantasmagórica numa bela noite de verão tropical. Um abcesso. Um furúnculo. Uma dor de dentes... - completou, dedilhando a velha viola, ao lado do Neves, irónico, o "baladeiro" do Oliveira, ex-furriel de transmissões, que era de Coimbra (ou arredores) e que, entretanto, se formara em direito.

− Um longo parto, meu furriel, um longo parto! 
− arremataria o "Peniche", no meio da galhofa geral, se fosse vivo, repetindo a frase que lhe dera celebridade e impunidade: "E eu inda hei-de ficar grávida (sic)... e dar à luz, com a ajuda da ciência!"...

Talvez, o Neves, ingénuo, esperasse ouvir a confissão pública de alguém que, agora, à distância dos acontecimentos e na atmosfera distendida do restaurante do Zé dos Leitões, quisesse tomar partido e se levantasse para fazer um discurso puro e duro sobre a traição dos capitães de Abril, do Spínola, do Caetano e de todos os gajos que andaram a gozar com o pagode. Ou então sobre o trágico equívoco que fora a anacrónica, tardia, guerra colonial, ceifando vidas, gastando cabedais, hipotecando o futuro. Mas, não, nenhum dos presentes levantara o copo de espumante para gritar "Viva ou Morra"!...

 Éramos todos, afinal,  bons rapazes! 
 confidenciou, desalentado,  o Neves para os seus botões...

É que todos faziam ali o  jogo da cumplicidade e da camaradagem, jogo cujas regras tácitas ninguém estava disposto a violar. Porque o momento era único, era mágico, e todos sabiam que nunca mais voltaria a repetir-se esse encontro na Anadia, em 1991, apesar das trocas de cartões e de fotos da família e das promessas de, para o ano, irem comer uma valente feijoada à transmontana e provar a famosa posta mirandesa, para lá do Marão "onde mandam os que lá estão" (assegurava o Azevedo, "agora autarca do poder local democrático" e empresário do setor agroalimentar).

 Para o ano em França de Bragança, camaradas!... São todos meus convidados!

 Eu já lá pus os butes, na França de Bragança, na quinta do Azevedo, e bibu no Porto, que é longe como o carago!... O nosso alferes faz o favor de continuar a ser meu amigo e camarada. 
 ironizou o "Campanhã" que continuava, amiúde, a trocar os vês pelos bês, sentindo que ainda lhe achavam alguma graça, os gajos do Sul, os "mouros". 

No fundo, todos aqueles homens, a caminho do meio século de existência no bilhete de identidade, sabiam que, na vida, há momentos irrepetíveis, pelo que nem os fantasmas, dolorosos, do passado, nem as paixões, ainda mornas, do presente, nem muito menos as inquietações, imperceptíveis, do futuro no século XXI que se aproximava a passos de gigante, deveriam perturbar aquele insólito e fugaz mas inesquecível encontro de umas escassas dezenas (não mais do que trinta!) de ex-combatentes da Guiné, mesmo quando, já no fim do almoço (e depois de uma nova rodada de uísques, de uma Old Parr de 1970, que o "Vagomestre" trouxera de lembrança, daquelas garrafas ainda com a etiqueta "From Scotland with Love For  the Portuguese Armed Forces"), alguém tivera o mau gosto, a bizarria ou o azar de se lembrar de evocar os mortos da Companhia...

 Agora é que foderam tudo, c...! –  exclamou, em voz alta e pose teatral, o  "Campanhã".

Comentava o Neves que nunca conhecera nenhuma alma tão sensível como a dele. Ou melhor: "nenhum actor, nenhum pantomineiro, com lágrima tão fácil como a dele"... Ele e o "Peniche" eram verdadeiros "artistas" da palavra e do sentimento, nunca se sabendo ao certo quando falavam "a sério" e abriam o "livro"...


Fez-se um "minete de silêncio"  (uma infeliz bocarra do "Campanhá") pela memória do "Peniche",  o "bobo da Companhia" e que, na "peluda", ainda chegou a ser  um popular mas meteórico  artista de cabaré.  O Peniche, "ofendido e humilhado", com 4 ou 5 anos de tropa no lombo, de tal modo que  o capitão desistira, logo no início, de lhe dar mais "porradas"....

Falou-se pouco da guerra. E de mortos e feridos. E de minas e armadilhas. E de colunas logísticas. E de emboscadas. E de operações. E de ataques e flagelações ao quartel e aos destacamentos da Companhia, que era de quadrícula. E de prisioneiros e de interrogatórios de prisioneiros... 

Enfim, havia um lado "sujo" da guerra que ninguém queria relembrar, pelo menos naquela hora e lugar. E o Neves, surpreso, descobriu que, nestes convívios, a generalidade da malta só queria falar afinal das coisas boas da guerra, as tainadas, as bezanas, os desenfianços, as bajudas, as lavadeiras, as anedotas...

Por outro lado, nenhum destes "bravos da Guiné" fora condecorado por feitos em combate, à exceção do "Campanhã" que, esse, sim, tivera uma cruz de guerra do Spínola depois de, "em luta corpo a corpo", ter "limpo o sebo" a um roqueteiro do PAIGC que, atrás de um bagabaga, se preparava para arrancar a cabeça do Azevedo. 

Esta foi, pelo menos, a versão do "Ranger" que, sendo o segundo comandante da companhia e o comandante da operação, fez o relatório do sucedido e foi, em abono da verdade, advogado em causa própria... (Sendo embora um bom operacional, gostava sempre de ficar bem na fotografia!...)

O "Campanhã" fazia parte da 2.ª secção do 1.º Grupo de Combate, que era comandado justamente pelo "Ranger" Azevedo. O "Campanhã", que era reconhecidamente um grande operacional, um "chanfrado dos cornos" (sic), também manteve sempre essa versão oficiosa que alguns, talvez "com dor de corno", consideravam no mínimo "fantasiosa"... 

O Neves lembrou que não podia confirmar ou infirmar os factos que ocorreram nessa operação. Estava com paludismo nessa ocasião, safou-se desse embrulhanço mas não de outros, que não foram melhores. Era o comandante da 3.ª secção.  

O Neves era o único furriel do 1.º pelotão. Os outros dois foram mais espertos do que ele, e procuraram outros ares. Não apareceram no convívio, para conforto dele e tranquilidade do seu espírito. Claro que o Neves, mal humorado, também fez questão de dizer, alto e bom som, não tinha mesmo vontade nenhuma em revê-los, sobretudo ao Pires, que desertara, aproveitando a licença de férias na metrópole, em 1970, segundo notícia que lhes dera depois o capitão, e que deixara a malta toda  "descolhoada" (sic)... Nada o fazia prever, nem nunca ele tinha dado a entender que o poderia fazer... Para a rapaziada que veio com ele, de Santa Margarida, o Pires era o exemplo do mais que improvável desertor: um gajo certinho, pouco ou nada falador, amigo do seu amigo, que sabia "fazer as  coisas pela calada"...

De qualquer modo, o Neves sempre achou que a cruz de guerra, "com mais ou menos água benta da caldeirinha do padreco do Azevedo", ficava bem no peito do bravo "Campanhã".

Ao que parece, a 1.ª secção do 1.º pelotão já estava na "zona de morte" de um grupo IN emboscado, com o Azevedo e o guia  à frente. O "Campanhã", que vinha com a 2.ª secção, na curva do trilho, viu de relance, de perfil,  o tubo do RPG2 a sair do bagabaga, com a granada pronta a disparar.

 Parecia um c... das Caldas, a sair do forno, a passo de caracol. Só tive tempo de gritar: Todos pró chão, seus c...!', e disparar uma rajadada, a matar, sobre o vulto que estava, de pé,  por detrás do bagabaga. Despejei-lhe um carregador sobre o tronco, visto de perfil...


Não terá havido nenhuma luta corpo a corpo. Mas quem conta um conto, acrescenta-lhe sempre um ponto... O "Campanhã" recuperou apenas o RPG2 com a granada e salvou a secção do Azevedo de um massacre. Este ficar-lhe-ia reconhecido para o resto da vida... Ainda hoje são amigos e o "Campanhã" é visita da sua casa em Bragança... No relatório, redigido e assinado pelo Azevedo, "o IN teve várias baixas, uma confirmada e 2 estimadas, pelos rastos de sangue"... 

O Neves recordou, para um grupo mais restrito, à mesa, o gozo interior, e o ar sereno, do "Campanhã", quando recebeu, de peito inchado, a cruz de guerra e o capitão lhe voltou a pôr as divisas de 1.º cabo, no 2.º ano da comissão, já o "nosso primeiro" tinha seguido para a grande escola de cabos de guerra de Águeda...

 Tenho pena que esse 'cão grande'  (sic) já não esteja aqui entre nós... Fazia questão de lhe enfiar a cruz de guerra pelo cu acima e depois mandar-lhe uma traulitada direta à caixa dos fusíveis ... - disse-me ao ouvido do Neves, no gozo. 


Naturalmente que o amigo (e camarada de pelotão) desculpava-lhe este lado de fanfarrão a que também têm direito os heróis de guerra. Aliás, também, naquele tempo, não havia assim tantos heróis de guerra por metro quadradao: o "Campanhã" fora um deles e o Azevedo nunca chegara a sê-lo, com muita pena dele.

O Neves ainda voltou a um um outro convívio da companhia, já no virar do milénio... E num deles reencontrou o capitão, então já coronel, na situação de reforma. Ter-se-á emocionado, o antigo capitão, quando evocou as trágicas circunstàncias em que foi morto o primeiro homem da Companhia, logo nos dois primeiros meses de Guiné... Estavam emboscados, de noite, quando há um militar que sai da sua seção para ir "arriar o calhau" (sic), sem dizer nada a ninguém e quebrando a rigorosa disciplina imposta... No regresso, ao ouvir restolhar o capim, o capitão instintivamente disparou uma rajada... Teve uma agonia horrorosa, o pobre soldado, durante quase uma hora, sem possibilidades de ser helievacuado... 

− "Herói ou santo", parece que era o lema de vida do Azevedo, já do seu tempo de menino e moço. Nunca foi uma coisa nem outra, e soube, entretanto, que infelizmente já morreu há dois anos, em 2011... E o nosso "Campanhã", também infelizmente, está em Custóias, à espera de julgamento.  Foi um choque para todos nós a revelação da sua vida dupla.  Uma vida madrasta.  Esperemos poder voltar a abraçá-lo, de novo, o mais 
breve possível.  Quero crer na sua inocência. 

De resto, o Neves nunca mais estivera com nenhum deles, o "Ranger" e o "Campanhã",  depois do convívio na Anadia, em 1991. E também não tinha podido ir, no ano seguinte, a França de Bragança, como ele escrevera, em email enviado ao organizador do convívio de 2013, no Porto.

No discurso, de improviso, que fez no Porto, à hora dos brindes, nesse convívio de 2013, o Neves (que não era dado a tiradas patrioteiras) disse tudo o que achava que se podia dizer sobre estes encontros de saudade, dos ex-antigos combatentes da Guiné:

Em verdade, nenhum destes heróis existiu. Nem poderiam ter existido: afinal, essa guerra nunca existiu e, se  chegou a existir, nós perdemo-la, justamente por falta de heróis improváveis como o "Campanhã" ou grandes combatentes como o nosso "Ranger", que nem sequer foram reconhecidos. De qualquer modo, honra e glória para eles!... Mas, em boa verdade, não foram heróis, não se consideravam heróis... Foram portugueses que apenas cumpriram o seu dever para com a Pátria, que está sempre acima de qualquer regime político, souberam fazer a guerra mas também a paz. E nós todos, aqui presentes, neste convívio, não passamos afinal de bons rapazes que, agora, no ocaso da vida, se juntam para  beber uns  copos,  conviver e matar saudades do tempo perdido. Mas ficámos  amigos, isso sim, ficámos amigos para sempre, citando o nosso saudoso "Ranger".

© Luís Graça (2007). Última versão, revista e melhorada: 19/7/2023.
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Nota do editor:

(*) Postes anteriores da série:


26 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24433: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (2): Que Alá te proteja dos teus amigos, que dos inimigos cuidas tu!

8 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24379 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (1): À porta do IPO, à espera de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas.

Guiné 61/74 - P24490: Tabanca Grande (550): João de Jesus Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), que se vai sentar no lugar 878 do nosso poilão

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano, João de Jesus Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), enviada ao Blogue no dia 15 de Julho de 2023:

Boa tarde Carlos Vinhal
Sou leitor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné desde as primeiras publicações - ainda como "FORANADA.BLOGSPOT.COM - mas nunca me decidi em colaborar no mesmo.

Como ultimamente, o Luís Graça se vem queixando da falta de colaboradores e publicações para "alimentar" o Blogue, resolvi oferecer a minha colaboração.

Para isso, estive a reler a história da minha Companhia e a relembrar as várias situações e "estórias" vividas naquelas terras vermelhas, quentes e chuvosas.

Desdobrei a história da minha Companhia em várias partes, para não ficarem muito "pesadas" e levarem os nossos camaradas a desistirem da leitura antes de chegarem ao final.

Já tenho a história da minha COMPANHIA DE CAVALARIA 2721 em emails individualizados.
Só preciso que me informes a data a partir da qual posso começar a enviar-te para publicação.
Pensei em mandar um email por semana, para não ficar muito maçador.

Se concordares com este prazo, diz-me o dia de semana que preferes que envie.

Votos de saúde.
Abraço.
JOÃO MOREIRA
Ex-Furriel Miliciano


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2. No mesmo dia foi enviada resposta ao João Moreira

Caro João:
Muito obrigado pelo teu contacto e pela tua disponibilidade para aderires à nossa tertúlia, não para seres mais um, mas prometendo desde já colaborar "forte e feio" com as tuas memórias.
Na verdade estamos muito necessitados de sangue novo, não forçosamente em idade, mas de camaradas que queiram deixar, na nossa página, as suas memórias, escritas e fotográficas, destinadas a serem consultadas pelos nossos vindouros e pessoas que, de alguma maneira, queiram ler os testemunhos, na primeira pessoa, de quem "por lá" andou e sofreu na pele as consequências de uma guerra que não quis.

As tuas memórias militares começarão quando e como quiseres. A recruta foi o nosso começo mas o fim, esse parece vir só com o fim da nossa existência. Estás à vontade para começares até na inspecção militar.

A periodicidade para o envio e publicação dos teus textos e fotos, será conforme queiras, mas acho que semanalmente não estava mal.

Não esqueças que de ti queremos saber: o nome, posto, especialidade, unidade, datas de ida e volta da Guiné, locais de acção, etc.

As fotos que enviares deverão ser acompanhadas por legendas (à parte), onde constará a identificação dos retratados (caso não vejas inconvenientes nisso), data, local e situação. Quando as quiseres intercalar nos textos, ou as colocas tu, ou fazes uma nota no local para nós as localizarmos durante a edição.

Deves mandar as tuas coisas, sempre para: luis.graca.prof@gmail.com e para mim, carlos.vinhal@gmail.com, para assim teres a certeza de que eu e/ou o Luís vai ler.
Vamos fazer uma prévia apresentação tua à tertúlia, pelo que podes aproveitar para aí começares a contar a tua vida militar e outros pormenores que aches que possamos saber de ti, por exemplo, formação académica, profissão, etc.

Acho que o essencial está dito, mas estou sempre por aqui para qualquer dúvida.

Recebe um abraço do camarada, de há muito, e amigo desde hoje
Carlos Vinhal


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3. Nova mensagem do camarada João Moreira ainda no mesmo dia:

Carlos e Luís Agradeço a aceitação do meu pedido de inscrição no grupo.
Em resposta ao Carlos Vinhal, informo que tomei nota das tuas sugestões.
Comunicar-vos-ei os elementos que sugeriste. Não garanto que seja hoje, mas se se proporcionar ainda informo neste fim se semana. Se não puder, envio durante a próxima semana.

Informo-vos que enviarei um email por semana, para publicação e que neste ritmo posso tenho stock para mais de um (1) ano.

Abraço e bom fim de semana.

JOÃO DE JESUS MOREIRA
FURRIEL MILICIANO (porque não quis virar as divisas)

João Moreira na actualidade

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4. No dia 16 recemos a mensagem em que o nosso novo amigo, João Moreira, faz um resumo do seu percurso militar:

Boa tarde Carlos e Luís,

As sugestões do Carlos Vinhal, iriam ser satisfeitas ao longo das publicações que irei enviar.

De qualquer forma e para fazer a minha apresentação vou enviar os dados que o Carlos Vinhal sugeriu.

Chamo-me JOÃO DE JESUS MOREIRA-

Nasci no dia 05 de Junho de 1946, no lugar do Candal, freguesia de Santa Marinha, concelho de Vila Nova de Gaia.

Tirei o Curso Geral do Comércio na Escola Industrial e Comercial de Vila Nova de Gaia.
Fiz a Secção Preparatória para o Instituto Comercial, na Escola Oliveira Martins, no Porto.
Fiz a admissão e frequentei o Instituto Comercial do Porto mas não acabei o curso.

Fui trabalhar na secção de peças duma empresa Comercial do Porto, que entre outras actividades também vendia máquinas industriais.

Com o desenvolvimento dessa secção foi criado um departamento de contabilidade só para esse sector e eu fui transferido para a contabilidade até ir para a tropa.

Quando vim do ultramar fui reintegrado na secção de peças, que passei a chefiar e a ser o gestor de stocks.

Na vida militar fui furriel miliciano com a especialidade de atirador de cavalaria. Também tirei a especialidade de Minas e Armadilhas, em Tancos.

Em Janeiro de 1969 fui para Estremoz para formar batalhão para a Guiné, mas não embarquei por estar internado no Hospital Militar de Évora.

Quando tive alta do Hospital Militar vim gozar os 10 dias da mobilização para ir ter com a minha Companhia que estava em Ingoré. Ao 2.º ou 3.º dia recebi um telefonema do 1.º sargento da secretaria do RC 3 de Estremoz, a dizer para regressar ao quartel, porque tinha sido desmobilizado.

Fiquei lá até Dezembro de 1969, data em que fui transferido para o RC 4, em Santa Margarida, para formar a Companhia de Cavalaria 2721, novamente para a Guiné.

Embarquei no T/T Carvalho Araújo, no dia 04 de Abril de 1970, ou seja já tinha sido incorporado há 27 meses (21 meses de tropa efectiva mais 6 meses das 2 especialidades perdidas. Já era furriel desde Janeiro, embora ainda não me tivessem promovido.

Fui para o Olossato, que tinha um destacamento no Maqué. Ficavam na estrada Mansoa, Bissorã, Olossato, Farim. No final de Maio de 1971, metade da Companhia foi para Nhacra e a outra metade, onde estava o meu grupo de combate, só fomos no dia 09 de Junho.

Ao princípio da noite sofremos um ataque (penso que foi o primeiro ataque a Nhacra). Em Nhacra também passei pelos destacamentos de Dugal e Ponte de Ensalmá.

Regressamos num avião dos TAM, no dia 28 de Fevereiro de 1972.

Curiosamente o Vinhal foi e veio nos mesmos transportes, 2 semanas depois de eu ter ido, e esteve também na mata do Oio. Estávamos a cerca de 10 quilómetros de distância, em linha recta, com o mítico MORÉS, no meio.

Nhacra, 1971 - João Moreira

Reprodução, com a devida vénia, da pág. 512 do 7.º Volume - Fichas das Unidades - Tomo II - Guiné, da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), publicação do Estado-Maior do Exército.

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5. Comentário do Coeditor CV:

Caro amigo, e camarada de armas, João Moreira, como prometi, estás apresentado formalmente à tertúlia.
Tens reservado para ti o lugar 878 do nosso poilão.

Acho que sabes que tens na tertúlia um companheiro da tua CCAV 2721, o ex-Alf Mil Op Esp, Paulo Salgado, que escreveu o livro "Guiné - Crónicas de Guerra e Amor". Não sei estiveste na apresentação aqui no Porto.

Temos, como disseste, um percurso quase paralelo na Guiné, vocês embarcaram para lá no dia 4 de Abril de 1970, indo no "Carvalho Araújo", e nós no dia 13 do mesmo mês, no Porto do Funchal, no navio "Ana Mafalda". Fomos quase vizinhos, Olossato e Mansabá não ficavam asssim tão distantes, fazendo as duas localidades parte do "empreendimento turítico" do Morés.
Se a tua Companhia substituiu em Abril, no Olossato, a CCAÇ 2402 do BCAÇ 2851, a minha substituiu também em Abril, mas em Mansabá, a CCAÇ 2403 do mesmo batalhão.

Apesar de tudo, a CCAV 2721 teve mais sorte porque em Maio/Junho de 1971 se mudou para um local bem mais pacífico, Nhacra, enquanto a 2732 aguentou estoicamente, em Mansabá, até Fevereiro de 1972, chorando ainda a perda de dois camaradas, em Janeiro, na zona de Mamboncó, um dos carreiros de e para o Morés. A CCAV 2721 regressou a casa em 28FEV72 e a CART 2732 só em 19 de Março.

Ah! Ainda mais uma coincidência, temos ambos uma "pós-graduação" em Minas e Armadilhas.
Posição relativa do Morés, uma importante base estratégica do PAIGC. © Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné

A tua Companhia a partir do Olossato, e a minha, em Mansabá, foram forças activas no Plano de Operações Faixa Negra, que tinha como missão o apoio logístico e manter a segurança aos trabalhos de asfaltamento da estrada Mansabá-Farim, obra reatada no Bironque, até à margem esquerda do rio Cacheu. As nossas Companhias faziam parte das chamadas Forças de Intervenção, a minha integrada no Sub-Agrupamento "M", juntamente com a CCP 122, 2 GCOMB/CCP 121, mais 1 Pelotão(-) do EREC 2641. A tua 2721 fazia parte do Sub-Agrupamento "O", juntamente com a CCP 121(-) mais 21.º PelArt (10,5).

Posição relativa do Bironque na estrada Mansabá-Farim. © Infografia Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

Ainda a propósito da tua ida tão tardia para a Guiné, e uma vez que já terias tempo suficiente para a promoção a Furriel Miliciano, antes do embarque, nunca chegou a sair à ordem a tua promoção a 2.º Sargento? Éramos mesmo muito mal tratados, no fim do curso de sargentos promoviam-nos(?) a cabos, e quando tatingíamos o tempo para promoção a 2.ºs sargentos, esqueciam-se de nós.

Como o poste já vai longo, resta-me deixar aqui um abraço de boas-vindas em nome dos editores e da tertúlia.

Estamos por aqui sempre disponíveis para qualquer dúvida que tenhas em relação ao funcionamento do Blogue, e já que nos indicaste a tua data de nascimento, a menos que não queiras, terás direito ao nosso singelo postalinho de aniversário. CV

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24275: Tabanca Grande (549): As "fotos da praxe" do cor inf ref Mário Arada Pinheiro, que completou 90 anos em 12/12/2022... Foi 2.º cmdt do BCAÇ 2930 (Catió, 1971/73) e Cmdt do Comando Geral de Milícias (1973)

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24489: Antologia (91): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte II


Guiné-Conacri  > PAIGC > Novembro de 1970 >  Coacri > Escola Piloto do PAIGC  (criada em março de 1965, para acolher os filhos dos combatentes e os órfãos de guerra), dirigida pela dra. Lilica Boal (Maria da Luz Boal), cabo-verdiana, formada em Portggal na Faculdade de Letars da Universidade Clássica de Lisboa; era ta,mbném ela  (aqui na foto), a responsável pedagógica pelos conteúdos nos manuais escolares, publicados na Suécia. 

Imagem do fotógrafo norueguês Knut Andreasson (com a devida autorização do Nordic Africa Institute, Upsala, Suécia). A fotografia não traz legenda.  O fotógrafo fez parte de juntamente com uma delegação sueca (tendo à frente a antiga líder do parlamento sueco, Birgitta Dahl) que visitou as "regiões libertadas" da Guiné-Bissau, em novembro de 1970.

Mo interior, nas "regiões libertadas", não havia estruturas, escolas, hospitais ou outros equipamentos sociais, de pedra e cal... Pela simples razão, que eram um alvo fácil para a aviação portuguesa, e porque eram difíceis os caminhos que levavam às bases de rectaguarda, tanto no Senegal como na Guiné-Conacri. Além disso, sabemos que eram duríssimas as condições de vida tanto das populações controladas pelo PAIGC como pelos guerrilheiros... A propaganda para consumo externo, naturalmente, contava outra história...  

Fonte: Nordic Africa Institute / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)




1. Pensamos que terã ainda algum interesse. para os nossos leitores,   saber como é que um pequeno partido revolucionário (o PAIGC) de um pequeno país de África, a Guiné-Bissau, território sob administração portuguesa (e então com cerca de meio milhão de habitantes) caiu nas "boas graças dos suecos"… 

Tor Sellström, do Instituto Nórdico de Estudos Africanos, num texto de 290 páginas, publicado em português, em 2008, conta-nos essa história, uma história que interessa, pelo menos, aos suecos, aos portugueses e aos guineenses... 

Vamos continuar a segui-lo, reproduzindo, com a devida vénia,  mais um  excerto do seu livro. Aproveitamos para  chamar a atenção para alguns factos e dados que merecem a nossa contestação ou reparo crítico, nomeaadamente quando o autor fala do trrajeto do PAIGC e do seu líder histórico, não citando fontes independentes e socorrendo-se apenas das "lendas & narrativas" do PAIGC... Eis alguns exemplos:  (1) a greve dos trabalhadores portuários do Pijiguiti e o papel do PAIGC; (ii) a batalha do Como: (iii) o controlo de 2/3 do território e de 400 mil. habitantes por parte do PAIGC; (iv) as escolas, as clínicas e as lojas do povo nas "áreas libertadas"; (v) o assassassinato de Amílcar Cabral.  etc.

O texto, de 290 páginas, tem muitas, demasiadas, notas de pé de página, úteis (do ponto de vista documental) mas maçadoras, que o leitor poderá dispensar ou apenas ler na diagonal.. Em todo o caso, mantivemo-las. 

Os negritos são nossos: ajudam a destacar alguns dos pontos importantes da narrativa. O "bold" a vermelho são passagens controversas, que são uma chamada de atenção para o leitor, devem merecer um comentário crítico (ou o recurso a leituras suplementares). 

Corrigimos os excertos seguindo o Acordo Ortográfico em vigor.

Para já aqui ficam os nossos agradecimentos ao autor e ao editor, Nordiska Afrikainstitutekl (em inglês, The Nordic Africa Institute).

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Ficha ténica: Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Nordiska Afrikainstitutekl, Uppsala, 2008, 290 pp. Tradução: Júlio Monteiros. Revisão: António Lourenço e Dulce Åberg. Impresso na Suécia por Bulls Graphic, Halmstad 2008ISBN 978–91–7106–612–1.

Disponível em https://www.diva-portal.org/smash/get/diva2:275247/FULLTEXT01.pdf

(Também disponível na biblioteca Nordiska Afrikainstitutekl (ou Instituto Nórdico de Estudos Africanos) aqui, em "open acess" .)

Resumo do excerto anterior (*):

Com base numa decisão parlamentar aprovada por uma larga maioria, a Suécia tornou-se em 1969 o primeiro país ocidental a dar ajuda oficial aos movimentos nacionalistas das colónias portugueses (MPLA, PAIGC, FRELIMO). O PAIGC vai-se tornar o principal beneficiário dessa ajuda (humanitária, não-militar). Muito também por mérito de Amílcar Cabral e da sua habilidade diplomática.  Até então, e sobretudo na primeira metade da década de sessenta,  o debate na Suécia sobre a África Austral  tinha quase exclusivamente sido centrado na situação na África do Sul, onde vigorava o apartheid.

O êxito da campanha contra a participação da empresa sueca ASEA no projecto de Cahora Bassa em Moçambique, por volta de 1968–69, na altura em que decorria a guerra do Vietname, levou a que os principais grupos de pressão (“Grupos de África”,  oriundos de cidade como Arvika, Gotemburgo, Lund, Estocolmo e Uppsala) se  ocupassem quase em exclusivo da luta armada nas colónias portuguesas, com destaque para a Guiné-Bissau.



 Excerto do índice (pág. 4)

O PAIGC da Guiné-Bissau: Desbravar terreno

Pág.

As colónias portuguesas no centro das atenções

138

A luta de libertação na Guiné-Bissau

141

Primeiros contactos

144

Caminho para o apoio oficial ao PAIGC

147

Uma rutura decisiva

152

Necessidades civis e respostas suecas

154

Definição de ajuda humanitária

157

Amílcar Cabral e a ajuda sueca

161

A independência e para além dela

168

 

A luta de libertação na Guiné-Bissau
(Tor Sellström, op cit., pp. 141-143)




(...) Tal como os outros territórios em África submetidos ao controlo de Portugal, a então chamada ”Guiné portuguesa” e as ilhas de Cabo Verde (13) foram, em 1951, constitucionalmente incorporadas enquanto ”províncias ultramarinas” na metrópole portuguesa.

Esta démarche, que, no fundo, foi uma manobra do regime português destinada a perpetuar o domínio colonial, não se traduziu em qualquer benefício para os habitantes desses territórios, antes pelo contrário. 

Comentando o ”absurdo da nossa situação”, Amílcar Cabral declarou em 1961 que os colonialistas portugueses tentam convencer o mundo de que não têm colónias e de que os nossos países africanos são ”províncias portuguesas”. [...] Quando o país colonizador tem um governo fascista, quando o povo desse país é em grande parte analfabeto e não conhece nem usufrui de direitos humanos fundamentais [...]; e quando, para além disso, a economia da metrópole é subdesenvolvida, tal como acontece em Portugal, a violência e as mentiras atingem níveis sem paralelo e a falta de respeito pelos povos africanos não conhece limites( 14).

Tal como em Angola e Moçambique, Portugal governou com punho de ferro na Guiné-Bissau e quaisquer protestos foram esmagados sem contemplações. Em finais dos anos cinquenta, a polícia secreta do regime, a infame PIDE (15), estava já instalada em Bissau e começava a constituir a sua rede de informadores, semelhante à que já funcionava em Portugal. Daí resultou que a ”Guiné portuguesa” não tenha sido poupada à violenta repressão levada a cabo pela polícia e aos massacres que as populações da parte austral do continente conheceram em 1959–60. 

Em agosto de 1959, cerca de 50 estivadores em greve no Pijiguiti foram mortos pela polícia portuguesa. Tal como aconteceu em casos deste tipo na África Austral, o massacre teve consequências muito profundas.

Um mês a seguir aos assassinatos, os militantes do PAIGC realizaram uma reunião em Bissau, na qual se decidiu libertar a Guiné e Cabo Verde ”por todos os meios possíveis, incluindo a guerra” (16).

O PAIGC era o mais antigo de todos os movimentos de libertação nas colónias portuguesas em África. Inicialmente designado Partido Africano para a Independência (PAI), foi formado em Bissau em Setembro de 1956, por um pequeno grupo de ativistas, sobretudo de origem cabo-verdiana, em torno da figura de Amílcar Cabral, três meses antes da fundação do MPLA de Angola.

Apesar de existirem e se terem feito notar outras organizações nacionalistas, nomeadamente a FLING (Frente para a Libertação e Independência da Guiné), tinham quase todas a sua base no vizinho Senegal e não tinham atividade na própria Guiné-Bissau (17).  Tal como acontecia com a FRELIMO de Moçambique, mas em contraste com o MPLA de Angola, o PAIGC era o movimento de libertação claramente dominante. Por isso, juntamente com o facto de levarem a cabo uma estratégia baseada em preceitos político-militares claros (18), a organização de Cabral veio dar grande coesão ao movimento de libertação.

Importante neste contexto foi o facto de a causa anticolonial não ter sido nunca complicada de forma importante por questões relacionadas com colonos. O número de residentes portugueses era extremamente baixo, nunca tendo ultrapassado os 2.000 civis europeus no território, sendo a maioria eram administradores coloniais, mais do que colonialistas (19)

Sob a liderança de Amílcar Cabral (20), o PAIGC adquiriu grande visibilidade na altura da greve do Pijiguiti, na qual participou intensamente. Contudo, a repressão que o movimento viria a sofrer a seguir obrigou a liderança do movimento a sair do país. Cabral fundou o quartel do PAIGC no exílio em 1960 em Conacri, capital do país vizinho ao sul da Guiné-Bissau, a francófona República da Guiné (21).

Seguiu-se um período de intensa mobilização política junto dos camponeses no sul da Guiné-Bissau, em combinação com atos de sabotagem e de desobediência civil. Em janeiro de 1963, o PAIGC deu início à fase de luta de libertação nacional por via armada, com um ataque ao quartel do exército português em Tite.

As vitórias militares do PAIGC seguiram-se umas às outras muito rapidamente. Seis meses depois de começar a guerra, o Ministro português da Defesa, o general Gomes de Araújo, espantou o seu governo ao admitir publicamente que os nacionalistas tinham tomado o controlo de uma parte significativa da colónia (22).  

No início de 1964, o moral em Lisboa sofreu um novo revés quando o PAIGC rechaçou um contra-ataque em larga escala contra a ilha de Como, anteriormente ocupada pelos nacionalistas na sua ofensiva militar. Nessa operação tomaram parte pelo menos 3.000 efectivos do lado português (23).

A batalha pelo controlo de Como marcou um ponto de viragem. A partir dessa altura, as zonas libertadas do sul da Guiné-Bissau permaneceram firmemente nas mãos do PAIGC, enquanto os portugueses, que acabariam por atingir uma presença de cerca de 30.000 efetivos num país com um pouco mais de meio milhão de habitantes, concentraram a sua atenção na defesa da capital, num conjunto de posições fortificadas e na utilização do seu poder aéreo.

Por volta de meados dos anos sessenta, altura em que a situação militar começou a estabilizar-se, o PAIGC controlava cerca de metade do território nacional, onde tinha em funcionamento uma administração e serviços sociais próprios, incluindo cuidados de saúde e educação.

Para que fosse possível desenvolver estas atividades era essencial que o movimento obtivesse ajuda de fora (24) e foi em resposta a esse pedido que o governo sueco decidiu, em meados de 1969, aumentar o nível de ajuda humanitária ao PAIGC.

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(11) Ethel Ringborg: Memorandum (”Stöd till befrielserörelser”/”Apoio aos movimentos de libertação”), Ministério dos Negócios Estrangeiros, Estocolmo, 7 de Setembro de 1971 (MFA). A fazer fé numa nota manuscrita, fica a sensação de que foi escrito como ”informação de base” para o Ministro dos Negócios Estrangeiros, que se fez representar na reunião do Comité Consultivo da Ajuda Humanitária (CCAH), realizada duas semanas depois.

(12) A ajuda oficial, ainda que reduzida, ao ANC (iniciada em 1973), à SWAPO (1970), à ZANU (1969) e à ZAPU (1973) antecedeu o reconhecimento, dado a esses movimentos pelos AGIS entre três e seis anos depois.

(13) Situadas no Atlântico, a cerca de 600 quilómetros a nordeste da Guiné, as ilhas de Cabo Verde tinham, no início dos anos sessenta, uma população total de pouco mais de um quarto de milhão de pessoas, maioritariamente de origem mista africana e portuguesa. A partir de finais do século XV, o colonialismo português ligou estas ilhas, de uma forma íntima, à Guiné, no continente africano. Muitos cabo-verdianos participavam ativamente no PAIGC, a nível da liderança, mas não só. Apesar de ter nascido na Guiné, o próprio Amílcar Cabral era de origem cabo-verdiana.

Tal como o nome indica, o PAIGC destacava a unidade dos dois territórios mas, além da propaganda política e de algumas atividades, o movimento de libertação nunca tentou incluir as ilhas na luta aberta pela libertação. Cabo Verde continuou sob domínio português até ao golpe de estado em Lisboa, em Abril de 1974, o que contribuiu para alargar o fosso entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau após a independência, e acabaria por levar à separação formal no início de 1981.

(14) Amílcar Cabral: Revolution in Guinea: An African People’s Struggle (”Revolução na Guiné: A luta de um povo africano”), Tomo 1, Londres, 1969, p. 10.

(15) Polícia Internacional e de Defesa do Estado.

(16) Basil Davidson: The Liberation of Guiné: Aspects of an African Revolution, Penguin African Library, Harmondsworth, 1969, p. 32.

(17) A FLING concentrou uma grande parte das poucas energias que tinha na crítica da liderança ”não-africana” do PAIGC, ou seja, o facto de Cabral e outros líderes serem mestiços cabo-verdianos. Sediada em Dakar, capital do Senegal, a FLING recebia um apoio considerável do presidente Léopold Senghor que, durante toda a guerra de libertação na Guiné-Bissau, manteve as suas opções políticas abertas, distribuindo os seus favores entre a FLING e o PAIGC.

(18)  Ver Lars Rudebeck: Guiné-Bissau: A Study of Political Mobilization, Scandinavian Institute of African Studies, Uppsala, 1974.

(19) Norrie MacQueen: The Decolonization of Portuguese Africa: Metropolitan Revolution and the Dissolution of Empire, Longman, Londres e Nova Iorque, 1997, p. 37.

(20) Nascido na Guiné-Bissau em 1924, Amílcar Cabral foi para Lisboa em 1945 para estudar no Instituto Superior de Agronomia, formando-se em 1952 com notas extraordinárias. Em Portugal, Cabral participou ativamente em grupos políticos e culturais africanos clandestinos e formou em 1951, juntamente com Mário de Andrade e Agostinho Neto, de Angola, e Marcelino dos Santos, de Moçambique, o Centro dos Estudos Africanos em Lisboa. Descrito como o ”berço dos líderes africanos”, o Centro de Estudos Africanos juntou os futuros líderes do PAIGC, MPLA e FRELIMO e abriu o caminho para a constituição de outras organizações, tal como o Movimento Anti- Colonialista, formado por Andrade, dos Santos e Cabral em 1957 e, mais tarde, a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), no ano de 1961.

Depois de se formar, Cabral foi para a Guiné para chefiar uma estação de pesquisa próxima de Bissau, tendo levado a cabo um estudo agrícola da colónia em 1953–54. A missão, bem como as repetidas visitas a Angola como consultor agrícola para várias empresas entre 1955 e 1959, puseram-no em contacto direto com as realidades dos camponeses africanos, experiência da maior importância para o desenvolvimento do seu raciocínio político. Cabral, em conjunto com Aristides Pereira, o seu irmão Luís e mais algumas pessoas, fundou o PAI/PAIGC em Bissau, em setembro de 1956, acabando por ser nomeado seu secretário-geral. Nesse mesmo ano, participou também no processo que acabou por conduzir à formação do MPLA em Luanda, a capital de Angola.

Após o massacre do Pijiguiti, em agosto de 1959, os líderes do PAIGC foram forçados a exilar-se e, em maio de 1960, Cabral fixou-se em Conacri, capital da vizinha República da Guiné, de onde liderou a luta de libertação. Cabral viria a ser assassinado a 20 de Janeiro de 1973, em Conacri.

Para mais informações sobre a vida de Amílcar Cabral consulte Amílcar Cabral: Revolutionary Leadership and People’s War de Patrick Chabal, African Studies Series, Cambridge University Press, Cambridge, 1983.

(21) Para distinguir a República da Guiné, país independente, da Guiné ”portuguesa”, referimo-nos à segunda como Guiné-Bissau e à primeira apenas como Guiné. O MPLA de Angola também criou o seu quartel-general no exílio em Conacri em 1960, transferindo-o no ano seguinte para Léopoldville (Congo).

(22) MacQueen op. cit., p. 38.

(23) Chabal op. cit., p. 59.

(24) Além do mais, o PAIGC foi responsável pelo aumento constante do número de refugiados tanto na Guiné como no Senegal.

 [ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G ]

2. Em contraponto leia,-se estes excerts do 1º livro da CECA:


CECA (1988) > Campanhas de África (1961-1974)  – Breve síntese


(…) c. Guiné (pp. 116- 121)

A partir de 1958, constituíram-se, no estrangeiro, diversos Movimentos que visavam obter a independência da Guiné Portuguesa.

Alguns deles usufruíam do apoio de Dacar: União Popular da Guiné (UPG), fundada em 1958; União Democrática Cabo-verdiana (UDC), em 1959; Movimento de Libertação da Guiné (MLG), em 1961, e a União dos Naturais da Guiné Portuguesa (UNGP), em 1962. Outros apoiavam-se em Conakry: o Movimento de Libertação da Guiné e Ilhas de Cabo Verde (MLGCV), fundado em 1959 e o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), fundado em 1956 por Amílcar Cabral .

Após várias vicissitudes, que incluíram reagrupamentos de alguns destes Movimentos, a partir de 1962, ficaram atuando apenas o PAIGC e a Frente de Libertação para a Independência da Guiné (FLING). Pode dizer-se mesmo que, a partir desta data, a luta armada assou a ser conduzida exclusivamente pelo PAIGC, que acabou por ser o único a lutar em todos os campos.

Contudo, é o Movimento para a Libertação da Guiné (MLG) que efetua, em 1961, as primeiras acções terroristas em S. Domingos e, uns dias depois, em Susana e Varela. Ainda que sem outra finalidade aparente que não fosse a de roubar, estes atos provocaram a saída de muitos nativos para a República da Guiné e para o Senegal (97).

Há, porém, antecedentes. Em 3 de Agosto de 1959, ocorrera a greve de estivadores de Pijiguiti (Bissau), reprimida pelas forças da ordem. Embora se considere que este acontecimento não teve uma relação direta com os movimentos nacionalistas, tanto o MLG como o PAIGC se atribuem a responsabilidade deste incidente, que tem vindo a ser reivindicado por qualquer destes partidos. A data é celebrada pelo PAIGC como o dia nacional da revolução e os elementos grevistas, que foram mortos, são glorificados como os primeiros "mártires da Pátria".

De qualquer forma, pode dizer-se que este acontecimento ateou o rastilho que vai fazer eclodir, dois anos mais tarde, a luta contra a autoridade portuguesa (98).

Em princípios de 1963, voltaram à atividade os grupos do MLG com várias incursões na Província. Revelaram-se de novo em fevereiro e março de 1964 em ataques a tabancas, mas devido à ação enérgica dos moradores, apoiados pelas NT, estes não resultaram (99).

Em meados de 1962 e no Sul da Província, o PAIGC tinha feito a sua estreia com armas e intensificava o seu já grande esforço de propaganda e de aliciamento das populações, iniciado clandestinamente na década de cinquenta. Na noite de 30 jun / 1 jul desse ano, desencadeia as primeiras ações no Sul da Província partindo da República d Guiné (100).

Em 1963, aumenta a sua atividade no Sul e executa as primeiras ações contra as nossas tropas (ataque ao aquartelamento de Tite e emboscadas) (101). Em meados desse ano, coloca os primeiros engenhos anticarro e leva a efeito ações a N do rio Geba (Oio).

Em 1964, alarga a sua atuação para o Norte a partir do Oio, até à fronteira com o Senegal, criando assim condições para poder ser reabastecido a partir deste território. Iniciou também a sua atividade no canto NE da Província e na área do Boé, visando pressionar a etnia fula, pouco recetiva à ação subversiva do PAIGC, e surge pela primeira vez com o chamado "exército popular", numa ação sobre Guileje (102).

Nos anos que se seguiram, o PAIGC, que sempre beneficiou de um indiscriminado apoio de diversos países (principalmente os de Leste e os Africanos), intensificou a sua ação alastrando a sua influência militar a novas áreas, obrigando as nossas tropas a um constante esforço que exigiu apreciáveis reforços.

O PAIGC foi dispondo sempre de melhor armamento e de maiores efetivos em pessoal. E foi melhorando também as suas formas de atuação. Pela colocação constante de engenhos anticarro e antipessoal em todos os itinerários por onde se deslocavam as nossas forças ·e pela frequente flagelação dos meios terrestres, aéreos e navais que tinham de atuar na Província, os deslocamentos das nossas forças, quer para atividade operacional quer por simples razões administrativas e  logísticas, tornaram-se, com o correr dos anos, sucessivamente mais difíceis e dispendiosos.

Facilitaram o desencadear da insurreição e o desenvolvimento da luta alguns fatores que, num território de tão diminutas dimensões como a Guiné, assumiram especial importância. Entre eles, destacam-se:

  • grande densidade populacional (exceto no Sul) e fraca estrutura administrativa enquadrante;
  • enorme variedade de grupos étnicos, bem diferenciados e independentes e com dialetos próprios;
  • rede de vias de comunicação muito pobre e escassa;
  • arborização densa, na maior parte do território;
  • densa rede de rios e canais, dificultando extraordinariamente a movimentação por terra e tornando as deslocações por via aquática morosas e cheias de perigos;
  • amplitude diária de marés invulgarmente grande, que fazia sentir s seus efeitos não apenas no litoral mas muito para o interior, ao longo dos cursos de água, criando importantes problemas diários para deslocações, quer em terra quer nos rios;
  • recursos locais escassos, sobretudo para alimentação;
  •  clima depauperante e grande risco de doenças tropicaisterritório pequeno e extensa fronteira terrestre, permitindo rápidas incursões e a fuga para os países vizinhos apoiantes. 

Em 1969, a luta que o PAIGC nos impunha era, sem dúvida, muito dura. Todavia, as tropas portuguesas - brancas ou pretas – ocupavam todo o território e, embora com dificuldades nalgumas zonas, movimentavam-se em todo ele.

Por toda a parte continuavam a existir populações fiéis às autoridades, ou junto aos nossos aquartelamentos ou isoladas - e, conforme as zonas, constituídas ou não em autodefesa.

A partir de 1970, é incrementada a construção de aldeamentos, onde se proporcionava assistência escolar e sanitária às populações nativas. Ao mesmo tempo, são lançados os "Congressos do Povo", onde, por duas vias diferentes (a regional e a étnica) e em escalões diferentes (local e provincial) as populações expõem os seus anseios e preocupações e apresentam sugestões para a sua valorização social. Os congressos - o último dos quais se realizou entre 21 de Fevereiro e 10 de Abril de 1974 - eram autênticos elos de ligação entre o povo e o governo e, através deles, os povos participavam na vida da comunidade.

Em 1973, com o início do emprego dos mísseis terra-ar, o PAIGC atingiu o auge da sua atuação, tornando difíceis os movimentos da nossa força aérea, o que se refletiu no desenvolvimento das operações terrestres.

Ao mesmo tempo que o apoio internacional dado ao PAIGC lhe foi permitindo reforçar e alastrar a sua ação, fomos impondo e alterando o nosso dispositivo militar na Província e desencadeando medidas para acelerar o progresso da população da Guiné. Tais medidas de carácter militar, político-administrativo, social e psicológico, permitiram que a defesa fosse conduzida com a colaboração de uma boa parte da população.

O próprio inimigo o reconheceu. E, em diversas alturas, houve mesmo claras e importantes manifestações do desejo de interromper a luta por parte de elementos proeminentes das forças que se batiam contra nós, chegando a efetuar-se contactos importantes para estudo da forma de se avançar nesse campo.

Mas estas intenções não resultavam, porque outros elementos inimigos, pela força, faziam calar aquelas vozes. O próprio dirigente do PAIGC, engenheiro Amílcar Cabral, que tinha, por mais de uma vez, manifestado abertura para um determinado tipo de solução para o conflito, chegando a estabelecer alguns contactos com as nossas autoridades, acabou por ser eliminado em 1973 por elementos radicais do seu partido.

Em abril de 1974, a situação na Guiné requeria um maior reforço do nosso potencial militar e o inimigo beneficiava de uma cada vez  maior ajuda de diferentes países, nomeadamente dos que queriam afastar de vez a África da Europa Ocidental.

 Acoitava-se em certas zonas de refúgio, que considerava "áreas libertadas", e cuja superfície exagerava para efeitos de propaganda, dizendo que elas atingiam, na totalidade, dois terços da área do território.

A verdade, porém, é que, apesar de todas as dificuldades, as NT · tinham acesso a todo o território, embora com medidas de segurança variáveis conforme as regiões. Também havia outros aspetos que nos eram favoráveis, de que se salientam:

  • generalizada ausência de ódios raciais, sendo fácil a convivência do português europeu com os nativos da Guiné e apreço por parte destes pelo esforço que ia sendo feito para melhorar as suas próprias condições de vida e a humanidade e generosa igualdade com que, sobretudo no meio militar, eram tratados;
  • coesão em cada um dos diferentes grupos étnicos e validade da sua estrutura hierárquica tradicional, que tinha consciência das características positivas da atuação dos portugueses:
  • participação, na maioria dos casos voluntária, de muito importantes efetivos humanos naturais da Guiné (importantes pelo número e pela qualidade) que não atuaram apenas enquadrados nas unidades normais do Exército destacadas para a Guiné.

De facto, quanto a este último ponto, havia unidades em que, sendo os oficiais e sargentos pertencentes aos quadros normais do Exército, todas as praças eram naturais da Guiné..

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 1.º Volume;  Enquadramento Geral. Lisboa, 1988, pp. 116-121 (Com a devida vénia...).

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