segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10554: Notas de leitura (421): "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu", de Manuel Luís Lomba (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Outubro de 2012:

Queridos amigos,
Avanço desde já que o livro do Manuel Lomba fará estalar alguma controvérsia, não propriamente pelo relatos da vida operacional mas pela miríade de considerações de índole política sobre tudo quanto se passou antes, durante e após a luta armada.

É um escritor que possui um domínio da língua, faz soltar os sons e liberta os sentidos na hora própria.
Há para ali parágrafos de raro valor, o tempo dirá. Estudou, esteve atento, colheu informação e não esconde o seu olhar peculiar sobre as coisas da Guiné.

Nunca me passara pelas mãos uma obra de tanta errância à mistura pelo gosto de contar e reviver as suas lembranças que não se apagam.

Um abraço do
Mário


A Batalha de Cufar Nalu

Beja Santos

É a primeira vez que leio um livro de memórias sobre a Guiné, em termos de vivência na guerra colonial, repertoriando igualmente a história da Guiné e os eventos mais salientes da luta armada. A pretexto de nos descrever um encadeamento de operações que durou para cima de dois meses para recuperar Cufar e pôr a respeito bases inimigas, “A Batalha de Cufar Nalu”, por Manuel Luís Lomba (Terras de Faria, Lda. 4755-204 – Faria, 2012), temos aqui um olhar muito pessoal de um homem que se cultivou e graças à sua vida profissional voltou à Guiné-Bissau. 

O seu currículo vem expresso na badana do livro: em 1963 frequentou o curso de sargentos milicianos em Tavira, foi monitor de instrução n primeira escola de recrutas de 1964, no RI 13 (Vila Real) e a seguir foi mobilizado para a Guiné, pelo Regimento de Cavalaria 7, Lisboa, onde participou na formação e instrução operacional do BCAV 705, ficando incluído na CCAV 703; o batalhão desembarcou em Bissau e ficou aquartelado no forte da Amura como força de intervenção às ordens do comando-chefe; é graças a este estatuto que vai participar no conjunto de operações que ele designa por a batalha de Cufar Nalu, posteriormente foi colocada em Buruntuma, que ele igualmente releva nas suas memórias.

Descreve de forma vivacíssima os tratos de polé até chegar ao teatro de operações. Viajam no navio Benguela, cargueiro de 10 mil toneladas, concebido para o transporte de gado, com capacidade de alojamento da tripulação e de apenas 17 passageiros. Pois foi aqui que 19 jovens viajaram durante uma semana, estivados como gado. É espirituoso e a sua escrita ágil ajuda a perceber tudo: 

“O Benguela realizava connosco a vocação de navio negreiro; havia poucos anos que os mesmos porões carregavam levas de 2 a 3 mil angolanos e moçambicanos, agrilhoados, para o trabalho escravo, nas roças de cacau e nas obras públicas, em S. Tomé e Príncipe”

E dá-nos conta de como ali chegou: 

“De trabalhador da construção civil, a começar a talhar, por necessidade e iniciativa própria, o caminho de vida, fui reciclado, aceleradamente, em militar e combatente; durante quase dois anos, com o posto de furriel miliciano, na CCAV 703". 

Mal chegados, são postos no ativo, concentrados no quartel de Bula, dependendo operacionalmente do BCAÇ 504, comandado por Hélio Felgas. Lá foi à frente de uma patrulha de reabastecimento, no contexto da operação Confiança, a cumprir a missão de desimpedimento da estrada entre Mansabá, Farim e Bissorã, enquanto outras companhias do seu batalhão mais o grupo de comandos Os Fantasmas cirandavam no Oio. Narra as peripécias ali vividas, os “Águias Negras” vinham com amor ao trabalho e prontos ao risco. 

A primeira emboscada sofrida pela CCAV 703, comandada pelo capitão Fernando Lacerda, ocorreu na picada entre Manssabá e Bironque. Por ali andaram em estreita cooperação com a CCAÇ 675, comandada pelo capitão Tomé Pinto. Isto é o princípio de 5 meses na vida airada. O autor aqui suspende a deambulação para nos dar a sua versão de como se fundou a nacionalidade bissau-guineense, aproveitando a circunstância para nos dar o quadro evolutivo da luta armada. Posto o enquadramento histórico reconsiderou útil, o leitor é lançado nas batalhas de Cufar Nalu.

São despejados em 19 de Dezembro de 1964 em reforço do BCAÇ 619 (Catió) e da CCAÇ 6 (Bedanda) a missão é destruir a base da mata de Cufar Nalu. Lá vão em ondas, depois do bombardeamento dos T6, primeiro assalto, segundo e terceiro, as coisas não estavam a correr de feição, as duas primeiras vagas foram rechaçadas. Tem aqui lugar o episódio em que ele anda perdido com a sua secção e investe, dentro da mata, até uma tabanca onde os animais pareciam fazer frente aos assaltantes. 

Vão guiados por Albino que pertencia à CCAÇ 13 comandada por João Bacar Djaló. Penetram no tarrafe, o Albino procura esquivá-los aos lugares onde os guerrilheiros estão emboscados. Uma sentinela é apeada do ponto de vigia, com um corte das carótidas. Viajam dentro de um túnel vegetal, desembocam numa cratera aberta por bomba de avião. Temos aqui páginas que poderão constar em qualquer antologia da literatura de guerra: 

 “Penetrámos numa galeria formado por mucibis e por poilões de grande porte, árvores abantesmas, nunca dantes imaginadas, os caules a interpenetrar-se e os troncos com ferimentos recentes, de estilhaços de outras bombas tugas, talvez das granadas de artilharia dos obuses instalados nos aquartelamentos de Cufar ou Bedanda, que não as desfolharam nem obstaram de manter sobre as nossas cabeças um tecto de verde luxuriante, infiltrado dos raios dourados do sol. Desembocava num pequeno trilho, exclusivo, com indícios ténues de circulação humana, começamos a palmilha-lo e deixamos de ouvir qualquer bulício, denunciador de aves, bichos ou turras. Então, começamos a ouvir o zunir dos motores dos bombardeiros T6, em aproximação à nossa retaguarda; da nossa frente começaram a chegar-nos, esbatidos pela distância ou pela elevada densidade florestal, o cacarejar intermitente das galinhas e os uivos dos cães. Lancei outro passa-palavra e o calafrio repetiu-se, ao confirmar-se a quebra, em permanência, do elo da nossa ligação pessoal à Companhia; estuguei o passo ao Albino e pusemo-nos o ciciar o ponto da situação.

A densidade florestal da Guiné opunha-se à propagação das ondas hertzianas. Procurei uma posição mais aberta e insistia a ciciar à minha “banana” alô, alô, cavaleiro 1, daqui cavaleiro 4; diga se me ouve, escuto! Senti o sangue a gelar, ao certificar-me que as nossas ligações etéreas não estavam perdidas, estavam cortadas (…) Lancei o passa palavra para o abandono imediato do conforto da cratera e dos abrigos disponibilizados pelos tugas, seguindo os vestígios de um pequeno trilho (…) Continuamos a progredir por essa amostra de trilho, que os turras teriam criado para seu uso exclusivo, envolvido por árvores de grande porte, que nos obrigavam a reconhecimentos redobrados, por oferecerem excelente proteção aos disparos, ou excelente obstáculo a eles, consoante o ponto de vista (…) Na tentativa de obstar aos disparos do armamento pesado dos turras, agi em tempo real no exercício do dever de comando, dando sinal ao bazuqueiro, a paliçada voou logo pelos ares, por uma granada-foguete, e pela voz “ao assalto!”
. Um após outro desataram em correria, curvados e aos ziguezagues, pelos espaços franqueados daquela tabanca, a disparar sobre tudo o que mexia e a lançar granadas de mão ofensivas sobre tudo o que configurasse obstáculo. Gerou-se um turbilhão infernal nos espaços abertos entre moranças, misturas e alternância de explosões e tiros, a cadência dos nossos a superar largamente os dos defensores, um desvario de crianças e mulheres a gritar, num redemoinho de pó – gentes, cães, galinhas, porcos, cabras, a atropelar-se, numa roda viva. Um bode avantajado, em porte e chifres, saltou a terreiro, a cabrear, muito excitado e arremeteu à marrada contra o soldado à minha direita, seguindo-se um salto mortal, com uma bala metida na base dos ditos, a estatelar-se junto às vacas já tombadas, já alvos privilegiados dos impactos”.

É esta a descrição que Manuel Lomba nos dá da sua primeira arremetida na área do Cantanhez.

(Continua)
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 19 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10546: Notas de leitura (420): "Guiné Portuguesa", por Avelino Teixeira da Mota (Mário Beja Santos)

7 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Diz o Mário Beja Santos, após umas novecentas recensões de obras que fomos escrevendo sobre a Guiné Bissau, recensões publicadas quase dia sim dia não neste blogue:

"É a primeira vez que leio um livro de memórias sobre a Guiné, em termos de vivência na guerra colonial, repertoriando igualmente a história da Guiné e os eventos mais salientes da luta armada."

Sim, senhor, é obra!...
Finalmente a recensão abalizada e conhecedora sobre um livro de conteúdo completo.

E que dizer das afirmações do autor?1...

"O navio Benguela realizava a sua vocação de navio negreiro; havia poucos anos que os mesmos porões
carregavam levas de 2 a 3 mil angolanos e moçambicanos, agrilhoados para o trabalho escravo
nas roças e obras públicas de S. Tomé e Príncipe."

Claro que houve trabalho escravo, tal como ainda hoje, para vergonha da humanidade, continua a existir trabalho escravo pelos quatro cantos do mundo.
Mas a questão não é essa, mas sim,
sempre, denegrir Portugal e os portugueses.

Pois, René Pélissier, o historiador francês e os seus amigos de peito:
Réne Pélissier que volto a citar:

"Para a história colonial portuguesa basta consultar os autores de língua inglesa. Há séculos que a maior parte a denuncia como negreira, arcaica, brutal e incapaz: a quinta essência do ultracolonialismo sob os trópicos".

Exactamente,aqui temos o exemplo do navio Benguela que realizava a sua vocação de navio negreiro.

Como eu entendo aquela gente de Guimarães, capital Europeia da Cultura, sob os auspícios de Jorge Sampaio, ex-presidenrte da República, pagos pelos nossos impostos, a fazeram o funeral de Portugal, com GNRs de verdade, também pagos por todos nós, na cerimónia de enterramento de Portugal, com salvas militares e tudo...

Que respeito têm hoje os portugueses por si próprios, que mínimo de admiração nos merece a nossa História?

Isto, mais recenesão, menos recensão, anda tudo ligado.

Não peço muito, apenas um mínimo de dignidade e de respeito pelo que fomos no passado e pelo que somos hoje.

É pedir demais.

Abraço deste português com onze meses em Cufar,Guiné-Bissau. 1973/74.

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Olá Camarada
Estás a destilar veneno porquê?
Tiveste um ataque malidicência?
Tem calma contigo!
Começaste na Guiné e já vais no Jorge Sampaio.
Ora para e toma um chá daqueles que os teus amigos "Xinezes" tomam para acalmar. Vais ver kisso passa...
Um Ab.
António J. P. Costa

Henrique Cerqueira disse...

"Vão guiados por Albino que pertencia à CCAÇ 13 comandada por João Bacar Djaló."
Caros Camaradas.Neste livro há algo que a mim me parece Inverdade ou então não entendi bem a leitura.
Copiei para este comentário a frase acima descrita.Pois , na verdade pelo que sei a CCAÇ13 nunca foi comandada por nenhum "João Bacar Djaló"
A Ccaç 2591 criada em 1969 , deu origem á CCAÇ13 em 1970 até 1974 com o nome "OS Leões Negros ". Se duvidas tiverem consultem o Blogue "Leões Negros" do nosso camarada Fortunato que tal como eu passou pela CCAÇ13.
É que escrever assim livros até eu...
O seu a seu dono e não houve nenhum natural da Guiné a comandar a CCAÇ13
Henrique Cerqueira

Anónimo disse...

Os futuros jogos Olímpicos no Brasil vão trazer certamente grandes surpresas em...natacäo.De entre as centenas de milhar de negros brasileiros certamente que muitos ainda näo terão perdido as qualidades fantásticas de nadadores de fundo demonstradas pelos seus antepassados atravessando o Atlântico em estilo...livre.Tudo numa busca de samba,feijoada,caipirinhas e futebol. "Negreiros,arcaicos brutais e incapazes"?Quem? Certamente näo os poucos colonos da Guiné dos nossos tempos.Eles até iam tão civilizadamente beber whiskys gelados a algumas sedes de Batalhões mais resguardados. Um grande abraco deste português com 67 anos de..."Lendas e Narrativas" da nossa tão rica História.

Antº Rosinha disse...

Conheci uma mulher Mucubal do deserto de Moçâmedes que esteve desterrada com um grupo de Mucubais, em São Tomé e Principe.

Acredito que esse barco Benguela tenha transportado (ou outro qualquer) essa mulher de Angola para São Tomé porque nos anos 44 ou 45 o barco começou a navegar pela CNN.

Em 1958, 19 anos, principiei a minha actividade de topografo e em cartografia precisavamos de intérpretes para mapearmos rios, morros, povoações etc.

Essa mulher era a única pessoa num raio de mais de 20/30 Km que falava português.

Foi ela que nos desenrascou perante os sobas e pastores que nos davam os nomes dos lugares.

Ela contou-nos que foi deportada porque as famílias daquela região não queriam pagar o "Imposto".

E, para informação concreta e histórica que pouca gente angolana e portuguesa sabe, essa tribo nunca pagou mesmo nenhum imposto ao contrário de outras tribos a norte.

Foi pela altura mais ou menos dos anos 40 essa deportação.

Tenho a dizer que em 1958 os Mucubais eram uma tribo com uma vida lindíssima e muito característica.

Temos que falar da nossa colonização sem complexos nem choraminguices nem dramatizações, porque os colonizados não procedem com lamechices, a não ser bisnetos americanos que gostam de ficar com muita pena mais deles próprios do que dos bisavós.

Para Antonio G. Abreu, tenho a dizer-te que assisti a um comício em Almada no verão de 1974, eu Retornado, calado que nem um rato, em que depois de ouvir o relato das maiores atrocidades que "os colonialistas" tínhamos praticado, os oradores deram-se ao trabalho de declamar os versos de Castro Alves do Navio Negreiro.

E no fim daqueles versos, duas velhotas viram-se para traz e quase a choramingar disseram-me "como aqueles malandros trataram tão mal os pretinhos, coitados".

AGA, hoje apenas me lembro que bom que os versos são em português.

Claro que na altura eu dizia para mim "esperem pela pancada".

AGA, não te "avexes" como dizem os baianos patrícios de Castro Alves.

Olha só prá minha cultura!

J. Gabriel Sacôto M. Fernandes (Ex ALF. MIL. Guiné 64/66) disse...

Não gosto e suspeito muito de pessoas que, não me conhecendo capazmente, ou mesmo de lugar nenhum, me tratam por QUERIDO AMIGO.
Tomei parte na operação a que chamam de batalha de Cufar Nalu em Dezembro de 1964 com a CC 617 BAT 619.

João Sacôto
EX-ALF.MIL.CC617

João José disse...

Tive a oportunidade de conhecer a Guiné, concretamente, Bissum-Naga, terra de balantas, Piche, terra de fulas e de futa-fulas, Bedanda com a sua Companhia de Caçadores 6, para quem não saiba, era uma comanhia do recrutamento da província, Gadamael-Porto e Guileje, e, no final da minha comissão, em novembro e dezembro de 69, Bigene e Ingoré. Além disso, tendo sido, em rendição individual, colocado na Bateria de Artilharia de Campanha Nº1, unidade do recrutamento da Província, tive a grata oportunidade de contactar largas centenas de africanos e de procurar compreender as suas motivações. Contrariamente ao que alguns querem fazer passar, regra geral, os guineenses acreditavam que a presença dos portugueses era uma oportunidade para alcançarem uma vida melhor. O grande problema estava no facto de que, no seu esforço expansionista, as grandes potências tinham outros interesses, e, em consequência, doutrinavam, armavam "até aos dentes" e incentivavam a expulsão dos portugueses da Metrópole, além de enviarem cubanos e búlgaros. Entretanto, o Gen. Spínola obteve a comprensão e a amizade de muitos líderes africanos, mas não obteve o necessário apoio de Marcelo Caetano, e, quando já acreditava numa forte possibilidade de uma paz negociada, uma facção mais próxima de Moscovo, tratou de assassinar os negociadores majores. Além disso, porque Amílcar Cabral se mostrava a favor da presença dos portugueses em África e a sua inteligência e clarividência fazia sombra ao sonho de uma maior grandeza por parte de Sequo Touré, com a conivência e apoio deste, alguns homens que receberam instrução militar e doutrinária em Moscovo, acreditando que passariam a ser reconhecidos internacionalmente como os novos líderes do PAIGC, trataram de o assassinar. É claro que trataram de os "calar" e muitos inocentes morreram nessa operação. Como quem com ferros mata com ferros morre têm-se "seguido" uns aos outros. Por outro lado, faz tanto sentido dizer que "aquela terra era deles" como faz sentido dizer que os Açores são dos açoreanos, a Madeira dos madeirenses ou o Algarve dos algarvios. Lembro que, ainda nos dias de hoje, o Canadá e a Autrália têm uma raínha que é a do Reino Unido. A diferença é que estamos a falar de um "outro" país, de uma outra nação, e veja-se a recente disputa das Maldivas com a Argentina.