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segunda-feira, 13 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25517: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (46): Viva o po(l)vo... da Lourinhã!


XV Quinzena Gastronómica do Polvo, Lourinhã, 10-24 de maio de 2024. Fonte: CM Lourinhã


1. Por estes dias, e até 24 do corrente, decorre a XV Edição da Quinzena Gastronómica do Polvo, no concelho da Lourinhã, a 70 km a norte de Lisboa...

O nosso vagomestre de serviço, que esteve 22 meses na Guiné, em 1969/71,  sem provar um arrozinho de polvo, um polvo à lagareiro  ou as patanicas de polvo (sabores da sua infância, quando o polvo era a comida dos pobres), não podia deixar de assinalar na agenda este evento gastronómico, que já vai na 15ª edição.

Não lhe pagam para fazer publicidade, mas o nosso vagomestre não pode deixar de prestar um serviço público aos seus conterrâneos que do mar à mesa nos oferecem estes pesticos... São 25 restaurantes com um cardápio de mais de 6 dezenas de receitas de povo:

 (...) "Desde os clássicos e tradicionais Polvo à lagareiro, Arroz de polvo ou Salada de polvo, até opções mais inovadoras e arriscadas, os restaurantes locais não se deixaram intimidar pela exigência do público e, mais uma vez, aprumaram a arte de cozinhar o polvo. 

"Os visitantes poderão mergulhar na onda de sabores de entradas como Carpaccio de polvo trufado, na fusão de técnicas culinárias italianas com sabores tradicionais presentes numa Bruscheta de polvo ou numa Polpette de polvo com maionese de polvo e alcaparras. 

"Ainda neste mar de irreverência, marcam presença pratos como o Cachorro de polvo com bacon fat mayo, pickle de couve e batata palha, Francesinha de Polvo com Aguardente DOC Lourinhã e Polvo com açafrão, risotto preto e frutos do mar. Para terminar, um Brownie de café com creme de Mascarpone e chantilly de polvo deixa a vontade obrigatória de guardar espaço para a sobremesa.

Os amantes de boa comida terão a oportunidade de explorar uma variedade de pratos de polvo confecionados por 25 restaurantes da região da Lourinhã. Cada espaço terá o desafio de apresentar as suas propostas únicas, destacando as diferentes e criativas formas de cozinhar este prestigiado ingrediente." (...) (Fonte: 
CM Lourinhã)

Este ano, a Quinzena Gastronómica do Polvo conta com a participação dos seguintes restaurantes (passe a publicidade):

2. Já em tempos o nosso "vagomestre" homenageou este evento que leva à mesa do povo...  o polvo da Lourinhã


O polvo que, no tempo dos reis,  ia à mesa do povo...

por Luís Graça

Agora o polvo, o povo, serve-se
com batatas assadas a murro, pum!!!,
anuncia o cozinheiro-mor do reino.

Já lá vai o tempo das favas contadas,
do bico calado e pé ligeiro,
a era do cheiro a esturro,
o regime do come e cala-te,
e do lápis-lazúli do censor.
Agora a dieta é chique, é mista,
cale-te e não comas,
muito menos fillet mignon,

Nem sequer rosbife,
que já não há almoços grátis, avisa o vedor,
ameaça o almoxarife, aconselha o dietista.

Urra!, sim, senhor,
pois se o reino é porco e glutão,
e se o tesouro está sem tostão,
então que viva o polvo, o povo,
à lagareiro, alarve,
e que à sobremesa se sirvam passas do Algarve,
manda sua alteza, el-rei,
de todos o primeiro cãocidadão.

Mas agora quem está no pedestal, e mija de alto,
é o Burnay, o banqueiro, croupier do casino real.
Viva o povo dos polvos,
o terceiro estado da nação,
morra o polvo dos povos,
sem eira nem beira.
O polvo apanhado nos covos,
nas minas e armadilhas
dos senhores da terra e do mar,
e depois afogado em puro azeite virgem de oliveira,
no caldeirão de todas as batalhas,
travadas e por travar.

O polvo, o povo,
apanhado nas malhas da história, em contramão,
nos buracos negros da memória,
nas falhas da terra opaca, nas marés rasas.
Sem honra, sem glória, sem grandeza!

Bom povo, grande besta de carga,
pobre polvo, cuja rede neuronal tentacular
é comida à mesa, de garfo e faca,
p'lo pregador predador.
Resta-te a triste consolação
de seres tema de quinzena, patriótica e gastronómica.
E quiçá a vitória amarga de ires à mesa
do senhor comendador, industrial de exportação,
que fez do globo uma banda filarmónica.

Acabaram-se os privilégios do sangue,
morte ao arroz de cabidela,
morte ao frango, morte ao capão,
E que o coelho não se zangue
por ser roubado e despromovido
no tacho e na panela.
Ladrão mais finório é larápio,
diz o léxico do tempo novo que aí vem,
viva o funcho e a beringela!

E vai de frosques, o senhor doutor,
dos cânones e das leis,
que de fraque senta-se o regedor,
no chão do piquenicão,
onde quem mais ordena é o polvo, o povo,
no cardápio, democrático, do barracão do petisco.
Mas, atenção, mais vale prevenir o risco
de o poder cair na rua,
sob o tentáculos do inteligente polvo
e os alvoroços do estúpido povo.

Produto gourmet, produto manufaturado
de todas as maneiras e feitios,
batido, dançado, cantado,
algemado, açoitado, degradado, 
exportado, e outrora (em)bebido
em sangue suor e lágrimas.
Povo desalmado, acéfalo,
povo (en)cantado, afadistado, cefalópode,
grelhado, alimado, escalado, 
escalfado, esfolado, escalpelizado,
salteado em fricassé e até enlatado 
em óleo vegetal na ração de combate
do soldado da guerra colonial da Guiné.
Ou era óleo de fígado de bacalhau, camaradas ?
Que a gente sempre ouviu dizer mal
do rancho, do vagomestre, e do comandante...
Mas quem diz, ufa!, que não aguenta,
na tropa amocha, na terra ou no mar,
que, quando bate na rocha,
quem se lixa é o polvo, o polvo!

Enchamuçado, encapuçado, emboscado,
enforcado, fatiado, espalmado em filhós, 
embrulhado em pataniscas,
frito, fuzilado, seco ao sol no telhado,
teso que nem um carapau.
E até, imagine-se, pizzado!,
sim, muitas vezes pisado, humilhado e ofendido.
Que o polvo, o povo,
pouco esquelético mas mimético,
na ausência de espinha (dorsal),
adapta-se bem à nouvelle cuisine
e aos caprichos dos novos chefs.

Mas, o que mais irrita,
o amigo secreto do polvo, do povo,
que não tem limousine e anda a pé,
são os donos da cozinha, os magarefes,
mal entroikados,
que falam em nome dele, o povo,
e que, de garfo e faca em riste, ou até à espadeirada,
o imolam pelo fogo,
e o guarnecem, com a batata frita de Bruxelas!...

Abaixo o fascismo sanitário,
viva o cardápio proletário!,
glória ao arroz de polvo,
malandrinho, de coentrada...
E saúde e longa vida para o povo, agora pobrezinho,
que dantes também comia iscas... com elas!

Lourinhã,
Quinzena Gastronómica do Polvo,
10 de junho de 2014,
revisto em 13 de maio de 2024.
___________

Nota do editor:

Último poste da série > 12 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25376: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (45): "Chef" Alice, guardiã dos saberes (e dos sabores) culinários associados ao sável do Douro (que já não há): frito com açorda de ovas com com arroz de feijão, era a comida dos pobres, que não tinham a "burla", na Quaresma...

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25498: De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (5.ª estadia, 2024): crónicas de Rui Chamusco (ASTIL) (excertos) - Parte V


Timor > Dili > Projeto CAFE (Centros de Aprendizagem e Formação Escolar) > "No passado dia 25 de fevereiro chegaram a Timor-Leste 36 docentes portugueses que irão desempenhar funções pela primeira vez no Projeto CAFE, juntando-se aos 107 docentes que renovaram, no início de 2024, os contratos de cooperação anteriormente celebrados. Foram recebidos pela Coordenação Geral tendo ocorrido posteriormente uma receção na Embaixada de Portugal em Díli (...).

"Este Projeto o qual constitui para o Estado Português e para o Ministério da Educação, o projeto de maior envergadura por si coordenado e cofinanciado no quadro dos acordos de cooperação bilateral na área da educação, mediante o qual se promove a educação e o ensino em Língua Portuguesa em 13 municípios daquele país, envolvendo no presente ano alunos cerca de 11 000 alunos, 150 docentes portugueses e mais de 300 docentes timorenses.

"O Projeto CAFE tem como principais vertentes desenvolver e consolidar o ensino em língua portuguesa naquele território, a nível do ensino não superior, reforçar a formação de docentes timorenses e promover a maior qualificação do sistema educativo timorense, respondendo a três necessidades concretas: (i)  formação complementar a jovens recém-qualificados;: (ii) ensino público de qualidade; (iii) Ações de formação e capacitação."

Fonte: Adapt de Direção - Geral de Administração Escolar > Notícias > 1 de março de 2024 (com a devida vénia...)


1. O Rui Chamusco  de regressar de Timor ao fim de 3 meses de estadia... É a sua quinta visita Chamas-lhe o Som Quixote da lusofonia e o seu 'mano' Eustáquio (da família Sobra, onde ele fca, em Dili), o Sancho Pança: resistiu e lutou nas montanhas contra a ocupação indonésia.  

Depois de terem construído, em 2017,  a Escola São Francisco de Assis (ESFA) ,  na montanha de Liquiçá, ele e a Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste, querem agora o  assegurar a colocação de professores, com formação específica. (*)

Nesta 5ª crónica volta a dar-nos exemplos das  partuclaridades da(s) cultura(s) timorense(s) mas também das dificuldads que se depararam ao ensino da língua portuguesa, que é língua oficial, falada por poucos, a par do tétum.


O Rui Chamusco é um beirão admirável, generoso, solidário, amigo do seu amigo,  "lince" nascido na serra da Malcata, no concelho de Sabugal (terra de desterro na Idade Média, tal como Timor o foi do séc. XVIII até à II Guerra Mundial, "terra abençoada por Deus", diziam os nossos colonialistas republicanos, mas duramente castigada pelo Diabo em figura de gente, primeiro os japoneses, depois os indonésios e as milícias pró-indonésias, até à sua independência, já no início deste milénio). 

É professor de educação musical reformado, do Agrupamento de Escolas de Ribamar, Lourinhã;  é cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste. Será, dentro de dias,  um novo membro da Tabanca Grande (pelo que ele tem feito por Timor-Leste e pela lusofonia).  Tem 77 anos, mora na Lourinhã.  Era grande amigo do nosso tabanqueiro Eduardo Jorge Ferreira (de resto, colegas, professores) e agora meu e do João Crisóstomo (o nosso "cônsul em Nova Iorque").


De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (5ª estadia, 2024): crónicas de Rui Chamusco (ASTIL) (excertos) - Parte V



Rui Chamusco e o seu amigo e 'mano'
Gaspar Sobral. Em Dili, fica hospedado casa do Eustáquio,
irmão do Gaspar. Foto: LG (2017)
Quinta crónica, enviada de Timor Leste, em 1 de maio último, às 1:14, pelo Rui Chamusco, na sua 5ª estadia (fev/maio 2024).


 
16.04.2024, quinta feira - E vivam os mortos!...

Há culturas assim. Viver é morrer; morrer é viver, dependendo daquilo em que se acredita. Também em Timor isso acontece.

Hoje foi o funeral de um vizinho.   A meio da tarde ouve-se grande agitação aqui nas redondezas                                                                                                                       e até o pátio dos “Sobrais” está cheio de pessoas que procuram entrar ou subir para as "microletes" (**) e as "carehs" a fim de acompanharem o féretro ao cemitério de Becora. 

Mas quando já tudo parecia tranquilo, com as cerimónias terminadas, eis que se ouve uma grande algazarra de vozes, músicas e outros sons, dando a entender que a “festa” ainda não tinha acabado. Fui ver e confirmar com o Eustáquio que assim era.

Faz parte do funeral. As pessoas voltam ao local donde partiram e continuam a celebrar a morte através da refeição e do convívio. Tudo muito naturalmente, sem grande estresse, porque todos ajudam. Isto é que é viver! Morremos nós, mas vivem os outros. A morte e a vida de braço dado.

E assim a vida continua...

17.04.2024, quarta feira - De encontro em encontro

Aquilo que já nem esperávamos aconteceu. A meio da tarde, o meu telemóvel chama, e vejo que é da Coordenação CAFE (***). Apreensivo atendo, mas fico estupefacto quando do outro lado da linha ouço alguém a dizer:

 É o professor Rui Chamusco? Daqui fala o senhor Roger Soares e é para saber se esta tarde pode vir à Coordenação CAFE, porque estou disponível.

 Ok!”respondi eu. Estamos de saída para aí.

E lá vou eu mais o Eustáquio para este encontro, na esperança de que nos ajudem a encontrar uma solução para a colocação de professores na ESFA. E, de um momento para o outro, conseguimos a audiência pretendida.

Para aquilo que nos tinham dito da nova coordenação, confesso que fiquei muito sensibilizado e surpreendido pela atitude dos coordenadores, a saber o dr. Roger Soares e a Dra. Lina Vicente (já conhecida de anos anteriores).

Ambos se mostraram muito recetivos às nossas informações e propostas, penso até que é por aqui que passará uma decisão favorável. Até nos prometeram uma visita à ESFA, ainda que por compromissos já assumidos não possam participar na celebração do 6º aniversário. Vamos a ver! Temos batido a tantas portas que alguma se há-de abrir. Nem que seja para severem livres de nós... “O pedinte tantas vezes bate à porta que o patrão, talvez já chateado com tantos batimentos, se levanta e vem dar-lhe a esmola.”

19.04.2024, sexta feira  - Hospital Guido Valadares

Hoje passámos toda amanhã no hospital, para acompanharmos a Nanda (Fernanda) que é (será a mulher do Zinon e, por conseguinte, a nora do Eustáquio), que foi a uma consulta de endocrinologia devido a um nódulo a tiroide. Este hospital de Dili está sempre cheio de gente. É um hospital público e por isso ninguém paga nada. Também por isso é muito procurado.

Não admira, portanto, o tempo que se tem de esperar para ser atendido. Não há marcação de consultas, e a chamada é por ordem de chegada. Mesmo assim, tudo numa boa nesta sala (?) de espera. Há que esperar até que chamem pelo nome. Até houve momentos de humor que os próprios doentes tentavam criar para aliviar o ambiente. E, para que isso acontecesse, oEustáquio muito contribuiu, conversando com as pessoas que já lá estavam ou as que iam chegando. 

Uma das pessoas que esperava pela consulta tinha a bengala que utilizam os deficientes visuais, e viu-se logo pelo seu comportamento que realmente não via nada. Foi então que o Eustáquio se abeirou dele e da sua esposa para se dar a conhecer. Mas afinal eles já se conheciam e até habitam perto um do outro. 

Quiseram saber da vida de um do outro e, claro está, com perguntas cujas respostas não eram nada agradáveis. Por exemplo quando perguntaram ao Eustáquio pela Aurora (sua mulher) e ouviram a frase “a Aurora já morreu, faz o dia 19 de julho um ano, ouviu-se um Ohhhh! impressionante pela surpresa. 

Também ficámos deveras impressionados quando o amigo revelou a causa da cegueira. Fizeram-lhe uma intervenção à tiroide, e teve como consequência acessória a falta devisão. Mas, no meio de toda esta tragédia, houve um grande momento de humor, quando ele diz para o Eustáquio: “Pois. Eu olhava para onde não devia olhar, e agora fiquei cego”. Toda a gente riu a bom rir com a piada. 

E é isto! Mesmo no meio da adversidade, há sempre a possibilidade de “virar o bico ao prego”. Que resiliência, meus amigos!... Ainda nós nos queixamos por tudo e por nada.

21.04.2024, sábdo  - História de um capacete de motorista

Tobias desde há uns dias que é figura diária na casa do Eustáquio, de quem é afilhado, e vem ajudar nas obras que estão em curso: colocação do chão em mosaicos. Também não teve vida fácil, e até já esteve preso, não sei nem me importam as razões, perdendo, entretanto, a primeira mulher que aproveitou a ausência dele para arranjar outro. Está claro que o Tobias teve todo o direito de, já liberto, poder também encontrar outra mulher, da qual já nasceram dois filhos. 

O mais velho, Marcelino, de quatro anos, há dias que vem com o pai e faz o encanto dos nossos olhos e ouvidos. Muito bonito e vivaz, fala com clareza o tétum e de vez em quando algumas palavras em português que o abô Rui vai debitando. Eu chamo-lhe “Marcelinho pão e vinho”, e é um regalo ver os dois “inhos” em ação: a criança e o velho; o menino e o velhinho. “De velhinho se volta a menino”. 

A primeira vez que lhe dei dois rebuçados foi a correr para o pai, dizendo: este é para o mano. Logo aí me cativou pelo sentido de partilha e de família.

Mas vamos à história do capacete. O Tobias viu uma criança com um capacete e foi logo a correr para ver se seria o seu, que estava junto da sua motorizada, não fosse ele a ficar outra vez sem o seu. E foi então que surgiu a história do capacete. Há tempos apareceram uns rapazes a quererem vender um capacete. O Tobias, como precisava de um, comprou-o e, legalmente, tudo estava bem, passando o Tobias a utilizá-lo nas suas deslocações e viagens. Até que uma vez, alguém que vinha atrás que por acaso até é polícia,  reconheceu o capacete e, ultrapassando-o,  se pôs à sua frente fazendo-o parar e dizendo: "Onde roubaste esse capacete?" O Tobias, que até tem dificuldade em começar a falar, respondeu-lhe: "Eu não o roubei, eu comprei”. E gerou-se ali a confusão habitual: "compraste a quem, etc, etc"... Então o Tobias disse ao polícia: “Se tem dúvidas vamos ali a casa do meu padrinho para confirmar". E assim foi. 

Na entrada da casa do Eustáquio esclareceu-se tudo. Um grupo de rapazolas aqui do canto, armados em larápios vão furtando as coisas que podem para depois venderem na candonga. Através da descoberta deste roubo concluíram que também sacos de cimento e outras coisas foram levadas da casa em construção desse mesmo polícia. Conclusão: o capacete foi devolvido ao seu primeiro dono, e os outros materiais furtados foram pagos através de uma multa que aplicaram a esses jovens. Só que, como esses jovens não tivessem o dinheiro suficiente para o pagamento da multa, então as famílias aqui do canto pagaram entre si mas com um sério aviso: "Se voltais a fazer isso deixamos que vos prendam e passem a cumprir a pena na prisão”. 

Tudo se resolveu, exceto o Tobias que ficou a arder, sem o dinheiro com que tinha pago ofamoso capacete.

22.04.2024, segunda feira - Vítima do massacre de Liquiçá

Esta tarde fomos ao município de Liquiçá falar do concelho de Sabugal, um encontro previamente combinado no âmbito do acordo de colaboração celebrado entre os dois municípios. Nada que superasse as expetativas, para além de dar a conhecer o nosso município, tal e qual como já se fez nonSabugal em relação ao município de Liquiçá. Vamos a ver, na prática, em que é que se traduz este acordo de colaboração.

À saída das salas da presidência estava o senhor Manuel Nunes Serrão, personalidade bem conhecida de Liquiçá, que amavelmente nos veio cumprimentar, falando a língua portuguesa. Irmão do amigo senhor Renato que em 2019 visitou o Sabugal e outras terras portuguesas que criaram laços com o município de Liquiçá, depressa nos envolvemos em conversa de amigos que estão contentes por se encontrarem e travarem conhecimento.

Foi então, quando fiquei a saber o que aconteceu com este senhor Manuel Serrão durante o “massacre na igreja de Liquiçá”. Em 1999, cinco meses antes do plesbicito sobre a independência de Timor-Leste, as milícias apoiadas pelas tropas indonésias irromperam pela igreja onde estavam à volta de 2000 pessoas ali abrigadas e, à catanada, massacraram aquelagente. Bastantes morreram (dizem que mais ou menos 100 pessoas), e muitos deles ficaram mutilados. Arrepiante!... 

Pois o senhor Manuel foi uma dessas vítimas que, por sorte ou graça de Deus, levou uma catanada no pescoço, sendo bem visível a enorme cicatriz. Segundo os médicos que o operaram, a sua sorte foi a veia principal não ter sido atingida, caso contrário faria agora parte da lista dos mortos desse massacre. 

São estes testemunhos vivos que nos fazem pensar se a violência, a brutalidade, as armas têm algum sentido em qualquer parte do mundo. Quanto mais não vale o diálogo, a tolerância, as relhas e os arados. “Não queremos mais o ódio /Não queremos mais a fome / Não queremos mais a guerra / Queremos pão para toda a terra”.

23.04,2024, terça feira  - Festa na aldeia!?

Tudo aconteceu ao final da tarde. Já tinha conhecimento de que hoje seria o jogo de estreia da equipa feminina de futsal de Ailok Laran, da qual a Adobe, a Elixce e a Felismina fazem parte. A equipe e a sua comitiva de adeptos deslocaram-se ao campo da aldeia de Tahan Timor, que até tem dois jogadores de futebol na seleção nacional. Tudo levava a crer que o mais certo seria a derrota de Ailok Laran. Aliás, ao intervalo já perdiam por 3 a zero, o que supunha virem de lá com um cabazada de golos. Mas o milagre aconteceu. A equipe perdedora ao intervalo remontou e conseguiu empatar e ganhar o jogo por 3-4. 

As heroínas são sobretudo as três moças da família Sobral: a Adobe pelas defesas que fez como guarda-redes, a Mina(Felismina) que fez o hattrik e a Elixce que marcou também o seu golo.

Conclusão: até ao lavar dos cestos é vindima.

23.04.204, terça feira - “Cultura” e medicina em conflito

Nem dá para acreditar, mas é verdade. Ontem à noite, depois de uma tarde cansativa, chegamos de Liquiçá estafados a Ailok Laran com uma vontade enorme de irmos descansar. Foi o que eu fiz e, assim faria também o Eustáquio se nada houvesse em contra. Mas não. Passadas algumas horas ouvia o Eustáquio ao telemóvel, conversando com a família da Nanda, que nos dias anteriores teve consulta médica, seguindo-se exames e análises para detetar a causa e a consequente solução para o problema, com apossibilidade de uma intervenção cirúrgica. E, quando supostamente todos esperavam o seguimento do processo, eis que chega o telefonema de um tio da Nanda para dizer:”Toda a família não está de acordo com esse processo. A nossa cultura tem outra explicação para a doença da Nanda, e é isso que vamos fazer”. 

E tudo ficou em standby, para seguir esse tratamento da sua cultura. Eu que já ouvi e tenho conhecimento de mais histórias destas, fico perplexo e nem sei o que hei-de pensar. Há rituais que respeito e acato, mas há coisas incompreensíveis que nos fazem duvidar e até rejeitar. E então esta de alguém ficar com determinada doença só por que comeu algo que a “cultura” não permite comer, é demais. Gostaria de explicar melhor, mas não posso, ou não devo. Valha-nos Deus!...

24.04.2024  - Ainda sobre culturas

Fiquei a saber que aqui, em Timor-Leste, há diferentes culturas segundo algumas regiões: cultura de Ermera, cultura de Dili, cultura de Açabe, cultura de Maubisse, etc. Todas elas ainda muito arraigadas nas populações.

Os mais velhos são os seus grandes defensores, e temem que os mais novos, influenciados pela modernidade, um dia as possam esquecer e abandonar.

São crenças que herdarem dos seus antepassados e que defendem “com unhas e dentes”. Muitas delas determinam o presente e o futuro dos seus cidadãos, nomeadamente no que se refere a comportamentos e atitudes perante os acontecimentos. Tenho ainda bem presente os rituais que os anciãos de Boebau / Manati realizaram por ocasião da inauguração da Escola São Francisco de Assis, nos quais exigiram a nossa presença e participação (eu e o Gaspar). 

E aqui vos deixo, como exemplo, esta descrição relativa às festas do “barlake”. É comum sempre que há uma festa ritual as famílias contribuíram com os seus “dotes” para as refeições, nomeadamente oferecendo animais (vacas, porcos, cabras), ou até dinheiro. 

Há regras muito rigorosas sobre quem tem de oferecer e a quem, quem pode consumir e o quê. Se um tio ou tia oferecer, por exemplo,  uma vaca ao sobrinho, todos podem comer esse animal exceto as pessoas do sexo feminino (sobrinhas). A pior parte do animal para consumo é sempre o pescoço, e sobretudo do fahi (porco). Quem fizer o contrário está sujeito a ter doenças do pescoço. Por exemplo, se alguém tem um problema de tiroide, é por que comeu carne do pescoço da vaca ou do porco. Já dá para entender alguma coisa do que escrevi anteriormente?...

24.04.2024, quarta feira - Mais uma do Eustáquio

Em amena cavaqueira, e depois de muitos comentários sobre a vida em Timor-Leste, mais concretamente em Dili e arredores, o Eustáquio sai-se com esta: “ Não compreendo por que é que aqui, em Timor, quando a gente vai fazer a inspeção aos carros, colocam a viatura em cima dos rolos e abanam para todos os lados. Então as estradas não estão já cheias de buracos que fazem a gente baloiçar de um lado para o outro? Precisam de mais provas de resistência?” 

Muito bem observado... E se quiserem mais provas que me chamem a mim, pois ao longo destas cinco estadias tenho sido vítima de todo este desconforto. Às portas de Dili, e até dentro da cidade, isso acontece. Quem tiver dúvidas faça o caminho do mercado de Perunas e outras circundantes, que logo se convence. Vão-se os carros mas ficam oscaminhos...

25.04.2024, quinta feira  - 25 de Abril, SEMPRE!...

Embora muito longe de Portugal, a celebração dos 50 anos da Revolução de Abril não me é indiferente. Até por que em 1974 tinha eu 27 anos, com vivências e episódios em que o anterior regime deixou marcas inesquecíveis.

Só quem de alguma maneira não sentiu na pele a vida em ditadura é que poderá ser a favor do “antigamente”. “Que los hay, los hay!...” Mas nem esses saudosistas, nem os que nasceram em “berço de oiro” da democracia, poderão abafar as conquistas e os valores que a Revolução dos Cravos nos legou. Felizmente que as forças democráticas bem presentes na sociedade portuguesa se mobilizaram para dar o devido destaque à celebração dos 50 anos. 

Todos nós sabemos que ainda há muito por fazer, sobretudo ao nível da justiça social. Todos nós somos críticos, e ainda bem, das políticas implementadas durante estes 50 anos. Todos nós queremos mais e melhor para nós e para os outros. Mas nada nem ninguém poderá aniquilar a valentia, a originalidade e, sobretudo, as consequências desta Revolução dos Cravos.

A luta continua! A vitória é difícil, mas é nossa!... 

Apraz-me registar que também aqui, em Timor-Leste, em Dili, os 50 anos são bem celebrados. Primeiro através da visita do Presidente Ramos Horta a Portugal para participar nas celebrações. Depois com um programa de atividades que se estende desde o dia 13 de abril a 4 de maio, e que tem como lema “Democracia e Liberdade pautam as comemorações do 25 de abril". E por fim, talvez a que mais agrada aos alunos das escolas, o governo deu tolerância de ponto. Seja como for, os 50 anos são bem celebrados neste canto do mundo, onde quase ninguém fala o português, mas que tem um grande carinho e afeição com os portugueses, com Portugal.

27.04.2024, sábado - Quando a emoção nos invade...

O fadista pergunta e responde: “Quando a tristeza me invade?... Canto o fado!” Mas não é de tristeza que se trata. É de emoção. E vem tudo isto a propósito do rescaldo das celebrações dos 50 anos de abril. Graças aos meios digitais, temos acesso às manifestações e ações que se desenvolveram em grande parte do nosso país. É uma confirmação de que abril está bem vivo, e que os seus valores continuarão a orientar a sociedade portuguesa.

Mas o que me emocionou até verter algumas lágrimas, foi ver como noutras paragens, por exemplo na Galiza, em Paris, em Timor-Leste e muitas mais, tanta gente cantava, com alma e coração, as canções de antes e depois, como que a agradecer a revolução dos cravos. 

E ouvir cantar “Grândola Vila Morena” por tantas vozes empolgadas pelo entusiasmo e a emoção deixa-nos extasiados, sem palavras, com os olhos embaciados de lágrimas. Quem viveu o antes e o depois de abril, não pode ficar indiferente à forma como o 50º aniversário foi vivido. E, Deus queira, que cada aniversário a caminho dos 100, seja a atualização deste espírito que o 25 de abril de 1974 nos ofereceu. 25 de Abril SEMPRE!... (...)

(Revisão / fixação de texto: LG)
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Conta solidária da Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (ASTIL)

IBAN: PT50 0035 0702 000297617308 4

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25473: De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (5.ª estadia, 2024): crónicas de Rui Chamusco (ASTIL) (excertos) - Parte IV

(**) Microlete: o termo já vem grafado no Priberam

Timor: Veículo privado de transporte colectivo de passageiros. Etimologia: de oirgem obscura.

"microlete", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/microlete.

(***) CAFE > Projeto dos Centros de Aprendi<agem e Formação Escolar

terça-feira, 30 de abril de 2024

Guiné 61/74 -. P25463: 20º aniversário do nosso blogue (13): Alguns dos melhores postes de sempre (VIII): Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé): Spínola, o Desejado - Parte I




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > s/ d > Cherno Baldé conversando com "Homens Grandes" de Fajonquito.  Adapt. de Foto: © Cherno Baldé (2013).  



Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > CCAÇ 2588 > Natal de 1970 > Destacamento de Bindoro > Visita do gen Spínola (atrás de si, o seu ajudante de campo, que nos parece ser o cap Tomás).

Foto (e legenda): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Dr. Cherno Baldé,
em Bissau (2019)

1. No 25 de Abril de 1974, o Cherno Baldé já confessou que estava em Fajonquito, com os seus 14 ou 15 anos,  e que ficou, perplexo, como todos os "djubis", "cães rafeiros do quartel", sem poder (nem querer) acreditar nas vozes que repetiam "A guerra acabou!... A guerra acabou!"... Para logo se interrogar, com angústia: "E agora ?!... O que será de nós?!" (*)... 

O sonho daqueles miúdos, filhos de príncipes, fulas de Sancorlã, era poderem ir ainda a tempo para a tropa,  receber o "crachá" dos "Comandos" e conquistar a "Honra e Glória" na luta contra os "homens do mato"!... Mas, para ele, Cherno. puto rafeiro,  o verdadeiro 25 de Abril já tinha acontecido há pelo menos quatro anos antes, com a aparição fulminante e justiceira, em Fajonquito, numa manhã de nevoeiro, do "Caco Baldé",  Spínola, o Desejado.

(...) "Todavia, na minha visão pessoal, o verdadeiro 25 de Abril, tinha acontecido em princípios de 1970, quando o general Spinola chegou ao aquartelamento de Fajonquito, sem pré-aviso, e na nossa frente deu um tabefe na cara branca e surpreendida do capitão da companhia, arrancando-lhe os galões que ostentava, alegadamente, por abuso de poder sobre a população indígena com cumplicidade do chefe tradicional local." (...) (*)

Já não nos lembrávamos desta história, contada na série "Memórias do Chico, menino e moço"... Mas lá estava, contava em maior detalhe no poste P11008, de 26 de janeiro de 2013 (**). Todo o poste, que vamos dividir em duas partes, merece ser antologizado, nesta efeméride (o 20º aniversário do nosso blogue), como um dos nossos melhores postes de sempre. (***)


MEMÓRIAS DO CHICO, MENINO E MOÇO (43) - O GENERAL SPÍNOLA E A POLITICA “POR UMA GUINÉ MELHOR” - PARTE I (**)
 
por Cherno Baldé


O que a seguir se apresenta é um texto narrativo resultante de recordações sobre as palavras de Aliu Samba ou Samba Kondjam (1) e um testemunho pouco fiável de uma criança “rafeira” de quartel, curiosa e intrometida,  em forma de uma reflexão retrospetiva sobre a política “Por uma Guiné Melhor” que, na minha opinião, se não atingiu o seu objectivo maior, terá contribuido de certa forma, para a mudança das mentalidades, modelando a especificidade da colonização portuguesa na Guiné.

Assim, iniciamos com algumas questões que, esperamos, alguém mais adulto, melhor informado e mais fiável, nos ajudará a responder:

(i) qual seria a perspectiva do General Spínola para a solução do caso da Guiné “portuguesa” durante a guerra colonial que opunha o exército português, envolvido em três frentes de guerra subversiva, e a guerrilha nacionalista conduzida por Amílcar Cabral por intermédio do PAIGC?

(ii) alguma coisa teria falhado nos planos do General para levar ao reconhecimento da autodeterminação e independência total da Guiné-Bissau, ocorrido em 10 de setembro de 1974, ou teria sido uma consequência lógica da sua visão para esta província ultramarina, em particular, e da política colonial portuguesa em geral, como saída para o conflito armado que ameaçava os alicerces do império colonial português? 

Sim ou não, é bem possível que estas e outras questões nunca venham a ter respostas satisfatórias que possam desvendar os segredos do mais velho e enigmático chefe da guerra colonial ou guerra do ultramar português que, com a condução da política “Por uma Guiné Melhor”, tinha conseguido conquistar a confiança de uma parte significativa da população da Guiné, dita portuguesa.

Na Guiné-Bissau independente, nos meses que se seguiram ao 25Abril74, pairou no ar um sentimento ou esperança de que o general Spínola voltaria para resgatar a Guiné das mãos dos independentistas que os militares do exército português na altura, encurralados nos centros urbanos e entrincheirados em alguns quartéis fortificados do interior, como gostava de dizer o PAIGC, na ansiedade de um rápido regresso à metrópole, tinham entregue sem quaisquer condições prévias. 

Ninguém sabia ao certo como seria feito o resgate nem para quando estava isso previsto e, mesmo, se estava previsto.


LEMBRANDO OS HERÓIS DE SANCORLÃ

Mas, como não há nada sobre a terra que dure para sempre, o boato que não se confirmou nos meses que se seguiram, acabou por se diluir na corrente dos rumores que iam surgindo, para de seguida se extinguir lentamente como as nuvens que desaparecem após a chuva, acompanhando a implantação e consolidação do PAIGC, concomitante à eliminação física de centenas de elementos dos ex-comandos, milícias e soldados nativos do exército português, assim como elementos das chefias tradicionais consideradas, potencialmente, perigosas na fase mais crítica da transição e concentração do poder nas mãos do Partido-Estado.

Estas notas servem também para lembrar e honrar a memória dos nossos pais, tios e irmãos, vítimas da repressão feroz e da exclusão politica e social que se abateu sobre os que estiveram, de forma abnegada e valorosa ao lado e ao serviço de um certo Portugal e em nome de uma certa causa em que acreditavam, seguindo os trilhos de homens de coragem que nunca olharam para trás, filhos dignos de Sancorlã omo Guelá Baldé, Bubacar Fanca, Sedjali Cumbael, Mâma Djamarã, Alanso Candé, Bodo Djau  (1) e muitos outros, nascidos nas terras de Ghâlen Soncô e de Buran-Djamé Baldé, onde as mulheres e mães para calarem o choro das crianças que traziam nas costas, simplesmente lhes diziam: 

"Cala meu filho, o teu pai vai mandar-te para os Comandos e, se não puderes ser comando, por livre arbítrio dos brancos, então serás o keledjaurâ (2) da nossa aldeia contra os homens do mato."

O que quer que tenha acontecido durante os golpes e contragolpes em Portugal, após o 25 de Abril, na Guiné a expetativa de um hipotético regresso do general, durante muito tempo, foi uma esperança secretamente alimentada e guardada, pelo menos, no regulado de Sancorlã que, com a independência do território tinha tudo a perder e nada a ganhar diante das rivalidades étnicas e contas antigas a ajustar com os seus vizinhos e rebeldes mandingas do Oio e Cola-Caresse que tinham apostado no cavalo certo na altura certa, investindo tudo na guerra contra o colonialismo, sim, mas também no sentido de recuperar a glória e a coroa perdidas durante as guerras pela posse das terras do reino de Gabú, um século atrás.


SPÍNOLA CONTRA OS IRÃS DE BANDIM


Se esta esperança acabou por desaparecer na cabeça de alguns guineenses, como foi dito mais acima e como seria lógico pensar em tais circunstâncias, parece que nem todos tinham deixado voar as ilusões sobre esta eventualidade e isto seria confirmado com as discretas visitas a terra de Dona Maria, no início dos anos 80, de algumas personalidades religiosas locais com a ajuda de emigrantes, os quais se teriam avistado com Spínola.

Ao certo, não se pode dizer que tivessem feito a viagem somente com esta finalidade, tendo em conta o secretismo que envolvia as deslocações, mas a verdade é que o tema sobre o qual mais se ouviu falar, após o regresso, tinha a ver com as notícias sobre o velho general, “amigo” dos guinéus, que, aparentemente, estaria vivo e de boa saúde, acrescentando, no entanto, que já era um homem com ar cansado, que falava muito pouco e que, embora se lembrasse de todas as pessoas com as quais se tinha privado enquanto governador, parecia estar distante da realidade atual da Guiné, da esperança e dos sonhos de uma hipotética comunidade luso-africana que, em tempos, ajudara a acalentar em alguns espíritos e/ou círculos mais próximos. 

Afinal, sempre os irãs de Bandim tinham conseguido os seus intentos.

O que foi dito até aqui serve o propósito de poder apresentar a ideia, partilhada com muitos, de que não era crível que depois de ter convencido os seus oficiais superiores e a testa de ferro do regime de Lisboa do “bien-fondé” da política por ele conduzida na Guiné, desde que chegara àquela província em 1968 e, depois de tanto trabalho e recursos investidos nos esforços para conquistar a confiança de populações nativas completamente à deriva e confrontadas com uma escolha difícil, o “Caco Baldé” (3) baixasse os braços, deixando a província, cuja população literalmente o idolatrava, a mercê dos seus ex-inimigos e antigos adversários.

É sabido que o contexto internacional bem como a situação real no plano da guerra, num continente em plena mutação politica, não lhe era nada favorável, mas não era menos verdade que os grandes homens sempre se distinguiram na história, por feitos em que muitas vezes a evidência dos factos não lhe era, de todo, favorável. 

E a evidência demonstrara que, a política “Por uma Guiné Melhor”,  sendo uma empreitada que, em muitos aspetos, parecia muito acertada na época, era ao mesmo tempo, de difícil aplicação prática, tratando-se de um ato que,  mesmo não alterando em nada o colonialismo, na sua essência, contrariava muitos dos comportamentos e preceitos coloniais habituais mais em voga,  e que pareciam justificar a própria colonização em si, ao veicular a noção de uma pretensa superioridade racial, baseada na origem e cor da pele, o que era insuportável e humilhante aos olhos dos “quase portugueses” ou assimilados. 

Esta era a verdadeira razão da guerra e tudo o resto viria por arrasto. Nós íamos compreender isto mais tarde, após a independência.

Mas, uma coisa era querer e outra, bem diferente, poder mudar velhas ideias embutidas na cabeça das pessoas durante séculos, num paí
s, também ele atrasado e governado por uma elite dominada por ideias fascistas. 

Assim, a mudança das mentalidades, se não era impossível de todo, no mínimo, era uma tarefa muito complicada. Mas, o general provou que não era dos que desistiam com facilidade, embora tivesse dez anos de atraso em relação ao pacto neocolonial referendado e aparentemente ganho por De Gaule nos territórios vizinhos da AOF (África Ocidental Francesa).

O acaso da história quis que, também em Fajonquito, fôssemos testemunhas desta evidente teimosia e pudéssemos assim sentir, ao lado da nossa população “indígena”, os efeitos de um ato de justiça colonial de tempos novos que, muitos anos depois, e favorecido pelo fracasso da nossa gloriosa independência que custou sangue, suor e lágrimas, segundo os cânones do nosso Partido-Estado,  e o desencanto patriótico que se seguiu, contribuíram para transformá-lo, finalmente, num cto sublime de elevado valor histórico e contributo importante para a mudança das mentalidades, marcando assim, de forma indelével, a sua passagem pelas terras da Guiné, não na cabeça dos eternos “colons”, mas no espírito do povo simples, eternos “indígenas” de uma nação multiétnica e plurirracial sem rumo. (...)
 
(Continua)

Bissau, 21 de Janeiro de 2013.
Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

(Revisão / fixação de texto: LG)

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Notas do autor:

(1) - Guelá Baldé – Alferes,  comandante do pelotão de milícias de Cambaju, morto em combate em 71 (não há unanimidade sobre a sua patente, muita gente, incluindo familiares, afirma que já tinha sido promovido a capitão de milícias, antes da sua morte).

No cômputo geral, havia no regulado de Sancorlã mais de 5 alferes/tenentes e 1 capitão, todos de 2.ª linha, no comando de pelotões de milícias (Sare-Uale, Sumbundo, Cambaju, Suna e Sare-Djamara) que a realidade do conflito tinha colocado na 1.ª linha da guerra, todos eles príncipes de Sancorlã); 

  • Carlos Bubacar Djau (Bubacar Fanca) 
  • Alf Comando, 2.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; 
  • José Manuel Sedjali Embalo (Sedjali Cumbael) 
  • 2.º Sargento Comando, 1.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; 
  • Mamadu Baldé (Mama Djamara);
  • Alf Comando, 2.ª Companhia, falecido em Portugal nos anos 90; 
  • Alanso Candé, 2.ª Companhia de Comandos; 
  • Bodo Djau,  Grupo de tropas especiais de Marcelino da Mata.

(2) - Guerreiro, herói e mártir.

(3) - “Caco Baldé” tem origens no meio e língua fulas, é uma alcunha bem conseguida e duplamente interessante. 

Caco, khaco ou haco, originalmente, quer dizer cor castanha (a cor das folhas secas), na língua fula, e servia inicialmente para designar a cor da farda das autoridades administrativas e/ou da tropa colonial. 

Mais tarde, para simplificar, este termo seria simplesmente utilizado para designar, de forma disfarçada e caricatural, as autoridades coloniais ou seus representantes. 

O apelido Baldé seria lindamente encaixado em acréscimo, certamente, seguindo a lógica da brincadeira muito habitual entre grupos que se consideram primos por afinidade (sanguínea ou territorial) - “Sanencuia”. Por exemplo, os Djaló são primos dos Baldé por afinidade sanguínea, da mesma forma que o grupo fula, na sua generalidade, é primo do grupo etnolinguístico mandinga que abrange Saracolés, Soninqués, Bambaras etc., por afinidade territorial.

Também é bastante lógico se tivermos em conta que a maior parte dos chefes tradicionais fulas (régulos) e colaboradores das autoridades coloniais, no chão fula, ou pertenciam a esta linhagem ou tinham este apelido, de modo que é uma homenagem e, ao mesmo tempo, uma caricatura dirigida à linhagem dos Baldé, na minha opinião bem conseguida, por um primo, resultante da brincadeira entre grupos de afinidade, usando a figura da maior autoridade portuguesa, de então, no território da Guiné.
Não tenho a certeza e trata-se de uma conjectura da minha parte como pista para uma pesquisa mais aprofundada.

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 29 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25458: No 25 de abril eu estava em... (34): Fajonquito... "A guerra acabou?!"... E, agora, o que será de nós, "cães rafeiros do quartel", que não cumprimos os nossos sonhos de meninos, que eram ser "comandos"? (Cherno Baldé, Bissau)

(**) Vd. poste de 26 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11008: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (43): General Spínola e a política "Por uma Guiné melhor"

(***) Nota atualizada do Cherno Baldé (em comentário ao poste P25458):

Caro amigo Luis,

Não sei se se deve empolar muito esta história que, na altura, nos causou um choque tremendo e muita incompreensão, pois durante todo o período anterior ao gen Spínola, nunca tinha acontecido uma cena igual.

O ex-capitão Carvalho ainda é vivo e residente, ao que parece, na zona de Arruda dos Vinhos, segundo a sua ex-esposa que, na altura, me contatou amigavelmente, mas para desmentir que o capitão tivesse levado uma chapada na cara. 

Acontece que não me contaram, eu vi com os meus olhos estando no mesmo sítio que, curiosamente, estaria mais tarde quando houve o morticínio do dia 2 de abril de 1972, provocado pelo soldado ("comando"?) Almeida e onde morreram o capitao Carlos Borges Figueiredo (CCAÇ 2742), o alferes Félix, (que era muito estimado também e que acompanhava com muita frequência as atividades da nossa escola), o furriel Alcino e mais outros soldados. O primeiro sargento (velha raposa) conseguiu fugir a tempo, mas ainda assim levou com um estilhaço no rabo. Foi a companhia do cap Carvalho que, praticamente, construiu o aquartelamento de Fajonquito e foi uma companhia extremamente sacrificada e, nãoo admira que não tenham representantes no Blogue, se calhar, como nos diz o Joaquim Luís Fernandes, devem estar fartos da guerra e da tropa até aos cabelos, para não falar do desgosto que tiveram com este acontecimento.

Se relatei o caso foi porque me marcou para sempre e fez do incompreendido gen Spínola o meu herói predileto, sobretudo com a dececão que depois tivemos no reinado do PAIGC.

A citação que acabas de recuperar ainda é da actualidade e reconfirmo, pois: 

(...) "Por uma Guiné melhor, ninguém podia fazer mais e melhor que este ´Show-off´' público, em nome da justiça e da dignidade dos Guinéus, indiferentemente da cor da pele, da classe social ou do nível da patente militar.

"Os indígenas tinham ficado confusos e boquiabertos, pois desde os tempos de Mussa Molo que ninguém tinha visto um capitão do exército português e branco a sofrer uma tão humilhante afronta ao seu estatuto de oficial superior por causa de alegados atropelos aos direitos humanos do 'gentio' rebelde e num território em guerra." (...)


Antes de terminar queria dizer que, revendo as datas com a ajuda preciosa do trabalho de pesquisa do amigo José Marcelino Martins, graças ao qual descobri o Blogue, cheguei à conclusão que, a quando da nossa mudançaa de Cambaju para Fajonquito, em 1967, a companhia que estava no subsector de Fajonquito era CCAÇ 1685 ("Os Insaciáveis") do cap Raiano (cap de infantaria Alcino de Jesus Raiano), homem alto e possante que,  sentado no seu pequeno jipe, parecia que estava de pá. Os nossos deram-lhe a alcunha de "Lello Dadhe",  o cabeça inclinada.

Quanto à CCAÇ 2435, alguns dias após o acontecido, foi substituida pela CCAÇ 2436 (a 20 de Abril 1970), do cap inf José Rui Borges da Costa que antes estava em Contuboel, até ao fim da comissão (13/08/1970).

30 de abril de 2024 às 15:11



segunda-feira, 22 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25422: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (27): Melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho...

Título das páginas centrais (4 e 5) do "Diário de Lisboa", de 18 de janeiro de 1934. São escassas as referências ao que se passou na Marinha Grande e noutros pontos do país, de Almada a Silves, de Lisboa a Coimbra... E nos dias seguintes a censura foi implacável: não há mais referências a estes acontecimentos, de resto ainda hoje ignorados ou mal conhecidos dos portugueses... Sobre o 18 de janeiro de 1934, ler por exemplo o artigo de Fátima Patriarca, publicado na "Análise Social", em 1993.

Contos com mural ao fundo: 
nada como ter um bom pai

por Luís Graça

− Há gajos que nascem com o cu virado para a lua. E que fazem gala disso… Como o teu cunhado, por exemplo…

 Quem, o Ulisses?

  Sim, Jorge, só tens um,  que eu saiba.

  Já agora retifica: ex-cunhado... E,  se queres que te diga, nunca fomos muito à bola um com o outro.

O Fernando (Nando, para os amigos) aproveitou  então para esclarecer o seu interlocutor, o Jorge, que já não via o Ulisses desde 1974, a seguir ao 25 de Abril… 

Mal saiu a amnistia, da Junta de  Salvação Nacional, aos faltosos, refratários e desertores, o Ulisses voltou à sua terra para abraçar o "paizinho" e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.

Veio com pressa, o Nando mal conseguiu pôr-lhe a vista em cima. Mas ainda se lembrava dele na escola, ao ex-cunhado do Jorge, hoje o senhor embaixador, com nome de rua na terra, o doutor por extenso Ulisses  C...

Foi um puto mimado, pelo menos  na escola. O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. (Ou rica e importante, como queira o leitor.) O Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente nos ditados de português (à compita), no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do pião.

 Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola  acrescentou o Jorge.

 Foi um sortudo, o Ulisses!... E era  competitivo!

 Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha mãezinha ia morrendo de parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!"

 A dona Natércia?!...  exclamou o Nando.  A parteira que  nos aparou a todos. Era tão ou mais popular que o meu velho mestre, o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto que podia ter corrido mal.

 Há,  sim. E a nossa terra não teria agora uma figura tão grada como o senhor embaixador Ulisses C...atalhou o Jorge.

A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira da terra a salvara a ela e ao seu menino…

− O "menino de sua mãe"..., estou a ver!

− A minha ex e as suas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele  , confidenciou o Jorge, uns bons anos mais velho do que o Nando. 

Nascera prematuro, mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto,  um sortudo... 

− Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos − interrompeu o Fernando (que era médico).

Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Afredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital.  Estamos a falar dos finais da guerra, doze anos depois, em 1944, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa. Como o Jorge,o Nando e todos os demais da sua geração...

− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrou o Fernando.

Em amena  cavaqueira com o Jorge, o historiador da terra, o homem que mais sabia sobre as misérias e  as grandezas das famílias tradicionais da vila,  o Fernando veio  a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…

− Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que sempre achei uma ingratidão  comentava o Jorge.  No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado. 

− A mãe morreu cedo com cancro da mama, incurável na época, se bem me lembro − atalhou o Nando.

Claro, o paizinho, o sr. Anselmo,  visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade,  até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas  descobriram que o pai tinha arranjado uma amante... 20 e tal anos mais nova, com casa posta num concelho vizinho.

 Mas… exilado, dizes tu?!   − interroga-se o Fernando.

 É uma figura de estilo. Como sabes, ele fugiu à tropa.

  À tropa ou da tropa?... Não é a mesma coisa: legal e tecnicamente, ele não foi um "fujão", como se costuma dizer em relação aos desertores.  Foi refratário, com muitos outros… Refratário ou  desertor era bem mais grave do que faltoso na época, até porque estávamos em guerra.

Aqui o Jorge gracejou com o Fernando,  dizendo:

− Eras ainda um puto, não te deves lembrar...  Mas em 1961, e eu já em Angola,  não tenho ideia de Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:

− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano,  vai ocupar e usurpar descaradamente...

− ... a nossa joia da coroa!...− apressou-se o Jorge a completar a  frase do seu  amigo.

E depois elucidou-o:

− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota de sangue contra as tropas do Pandita Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o maior dos desprezos… 

− Só soube isso muito mais tarde... Também não sei de semelhante humilhação aos nossos militares,  na nossa história. 

− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais do concelho,  que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos  pelos vizinhos. 

 Mas tu também te lixaste, Jorge, foste o primeiro ou dos primeiros da terra a marchar em 1961, para Angola, "rapidamente e em força"... 

− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela.  E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital de Belém.

Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses, o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o sr. Anselmo.  

Das suas origens do sr. Anselmo, sabia-se pouco. Sabia-se que tinha vindo de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e tivera sucesso, em termos  pessoais, familiares e profissionais.  Aqui casou aqui, teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios. E ganhou muito dinheiro...

− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte...  − observou, com sarcasmo, o Jorge. 

Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos basbaques dos putos da escola)…  

− Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda tímidos, mas pioneiros e promissores, com países da Europa do Norte. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na área das alfaias e máquinas agrícolas.

Começou no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias... 

− Ainda sou do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital... E a estrada ainda era macadamizada.− disse o Jorge.

Os negócios do sr. Anselmo foram crescendo no pós-guerra, em condições de mercado mais favoráveis, e sobretudo ao longo da década de 1950, com a crescente abertura da economia, a eletrificação e a industrialização do país, etc., ao ponto de se ter tornado, à escala regional, um médio industrial. 

− Era dos poucos que tinha carro e, mais importante, era o único que já tinha ido a Roma ver o Papa e visitado os lugares santos em Jerusalém − acrescentou o Jorge sobre o currículo do seu ex-sogro.

Viajava com alguma frequência para a Europa do Norte, com destaque para a Holanda (hoje Países Baixos) e também para a Itália (onde tinha a representação de uma conhecida marca de motocultivadores e tratores).

Quando se soube, por um dos diários da capital, o "Novidades" (jornal oficioso da  hierarquia da Igreja Católica portuguesa), que tinha sido recebido pelo Papa Pio XII, integrando um grupo de peregrinos católicos,  portugueses e brasileiros, o seu estatuto social na terra subiu mais uns dois ou três pontos. 

Passou a ter lugar na primeira fila na igreja, ao lado dos notáveis locais que tinham contribuído  com um "conto de réis ou mais" para o restauro da igreja matriz. (Eram "poucos mas bons", e sobretudo "almas piedosas", esses beneméritos, como dizia publicamente o pároco, a quem os dos "reviralho" chamavam, entre dentes, o "sabujo dos ricos"; mas convenhamentos, um conto de réis,  no início dos anos  50, não era um fortuna, seriam a preços de hoje qualquer coisa como pouco mais de  550 euros...).

Nunca foi, ao que se saiba, um católico praticante. E até se dizia, as más línguas do costume, que era "maçon" (coisa terrível e misteriosa que ninguém sabia o que era).

− O sr. Anselmo ia à missa ao domingo, mais para "ver e ser visto" e, naturalmente,  acompanhar a esposa. Claro, nunca o viram comungar...

O Jorge achava que ele era mesmo "maçon" (a maçonaria estava proibida) e, claro, do "reviralho", do "contra"...Durante a II Guerra Mundial, dizia-se que era "anglófilo" (até pro ter uma bomba da Shell).

− Mas finório como ele sempre foi,  nunca falou de política  comigo. Nem nunca o ouvi falar de política com os filhos.

Também é verdade, declinou em 1958 o  convite para integrar a União Nacional (o partido do Estado Novo), alegando  a sua origem social modesta: era filho de operário, vinha de um sítio mal afamado (a Marinha Grande), tinha a 4.ª classe, embora fosse um autodidata e poliglota. Ironicamente, insinuava que não podia competir com os doutores, médicos, advogados e magistrados da comarca pelos quais nutria, de resto, um profundo mas secreto desprezo.  

Recusou igualmente um linsonjeiro convite para integrar o executivo camarário, mas aí tinha um argumento de peso, os seus múltiplos afazeres como empresário de quem já dependiam algumas dezenas de famílias da terra. 

Em boa verdade, a razão não era essa: ele já movimentava mais dinheiro que a câmara toda... A autarquia, pobretana, nessa época, dependia do "fundo para o desenvolvimento da mão-de-obra"  e das "esmolas" do senhor governador civil do distrito para poder construir um simples lavadouro público ou abrir um estradão ...

Com uma grande superioridade moral, elevação de espírito, e sobretudo talento para os negócios, deixou bem claro, à tacanha elite local, que não precisava da política para subir na vida... 

Comprou e restaurou o melhor palacete da vila, para inveja de muitos. Acabou,   todavia, por se aproximar de alguns círculos da elite financeira e política do Estado Novo, quando encabeçou um grupo representativo das "forças vivas" locais que se "mexeram para trazer para a terra a primeira agência bancária".

Em contrapartida, sabia-se pouco ou nada da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.

− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indagou o Fernando (que, como médico, conhecia a história  da Marinha Grande).

 Sim, mas ele não gostava de falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a  casa da família, depois de casado. 

O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que  parecia mais verosimil, aos olhos  do dr. Fernando ... 

A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de  Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Também nunca houve grande curiosidade em saber mais da vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados.

Das poucas vezes que o Anselmo, a mulher e os filhos foram a Veira de Leiria, em passeio, aproveitando para visitar uns primos, deu para perceber melhor a sua origem: esses parentes ainda viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.

− Apesar da distância, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, só para assistir ao espetáculo da  arte xávega  ( com "os bois a lavrar o mar") e passar lá  uns dias na terra da sua mãe... 

Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a mulher e os filhos detestavam,  preferindo São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as famílias burguesas da região...

Estamos, entretanto, a falar de uma época em que  o industrial, o empresário capitalista, era menos considerado socialmente do que o comerciante ou até o funcionário público.  O Salazar era um "rural".  O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.

Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se  as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos, mais conservadores,  reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional... 

A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil, barata e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada imparável, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril.

Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamemnte as quintas) dessas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público ou  vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores... Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas. Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".

Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano ou tiraram um curso médio,  o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE, a  Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, e outra,  assistente social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório da empresa.

O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, antes que fossem ocupadas. 

Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Não foi "vira-casacas", como muitos outros, logo a seguir ao 25 de Abril. 

Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito  por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República.

 O Ulisses não era propriamente um amigo do peito do Fernando. Eram apenas conterrâneos, vizinhos e colegas de escola...

− Três anos nos separavam... além dos seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de "menino rico". 

Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila.  Na altura juntavam-se os putos das várias classes. Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que o Fernando nunca pôde frequentar (era filho de caseiro). 

Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro, com o pai,  por ocasião da  Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras. 

− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge. Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 14 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.

Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, antes que as coisas dessem para o torto (como deram). 

Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1944. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear. Vinha munido de uma valente cunha e de um relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de  Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar.

O melhor que o Ulisses conseguiu foi uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos pais.

Podia ter acabado o curso de germânicas, nas calmas (desde que não chumbasse), antes de ser chamado para a tropa,  mas, logo em 1964 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos e negócios. 

−  Tudo combinado com o paizinho, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato.   adiantou o Jorge.   Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios. 

− Mas a vida (ou a guerra de África)  trocou-lhe as voltas − adiantou o Nando.

De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena patética que terá feito lá em casa, "preferia mil vezes ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de herejes, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores". 

− A mãe, a minha ex-sogra,  era uma boa senhora, conservadora,   beata e amiga dos pobres. 

E não autorizava que se falasse de política  à hora das refeições.  De resto, não era hábito falar-se da  "porca da política" (sic) naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes.

A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, em 1962. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras". A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo... E o sr. Anselmo aqui também não abriu os cordões à bolsa...Dez contos era muito dinheiro...

A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as novas oportunidades que lhe surgiram pela frente na sua nova terra... Formou-se em direito europeu em Maastricht, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.

− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado. − Hoje tem uma reforma dourada, um vasto capital de relações sociais, é livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vive entre  o Algarve  e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não nos falamos, desde que eu me divorciei da sua irmã. Nem nunca mais apareceu por cá.

− Mas tem cá nome de rua, desde que passou a ser comendador...

− Em boa verdade, não sei o que é que ele fez pela nossa terra... O pai, sim,  mas esse nem um nome de beco tem...

− De qualquer modo, ele  é mais holandês do que português!  − arrematou o Fernando. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.  

− Teve um bom padrinho... o sogro holandês.

− Eu diria antes:  melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho − concluiu o  Fernando.

© Luís Graça (2023). Revisto em 20 de abril de 2024,
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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25394: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (26): um país de gente porreira - II (e última) parte