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sábado, 9 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23418: Os nossos seres, saberes e lazeres (511): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (58): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 3 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Prossegue a romagem em território onde se viveu alguns meses, vai para 55 anos, tudo começou em Mafra, da Ilha de São Miguel se saltou para a Amadora para formar batalhão, dado como ideologicamente inapto fui recambiado para a rendição individual. Por desígnios da roda da fortuna até nasceu na Guiné uma grata amizade com médico oftalmologista, era inevitável deambular por lugares e espaços associados a gratas recordações, no dia-a-dia, após trabalho no quartel, era por aqui que se andava pelo próprio passo, e jamais esqueceu o aprazimento de tais vivências. Agora vai-se até ao interior, até à Bretanha e aos Mosteiros, requintes do rochedo vulcânico em perpétua conversa com a espuma do oceano.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (58):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 3


Mário Beja Santos

É imperioso regressar aos meus lugares mágicos, àqueles a que me afeiçoei, vai para cinquenta a e cinco anos. Era aqui à esquina, vindo da Rua de Lisboa, e depois de tomar o pequeno-almoço no mesmo local, merecendo sempre a distinção de um pãozinho quente com queijo da Ilha e galão, que tomávamos a viatura militar que nos conduzia aos Arrifes, o meu camarada Vasconcelos Raposo limitava-se a sair do Palácio da Conceição, onde vivia o Governador, lá íamos na caixa todos a monte, eram cerca de 7 quilómetros até chegarmos ao Batalhão Independente de Infantaria N.º 18, era seu comandante um distinto oficial Clodomiro Sá Viana de Alvarenga, demitiu-me de gerente de messe, eu, para evitar ficar encalacrado com dívidas, pus os oficiais a chicharro, ovos preparados de toda a maneira, carne guisada, houve levantamento, era gente fina, de boca delicada, agradeci a demissão, deixei as contas em ordem, passei a dormir sossegado, quem me antecedeu passou de facto um mau bocado, teve que desembolsar cerca de 100 contos, eu vivia a contar os meus 1100 escudos, até deu para convidar a minha mãe a visitar esta terra dos meus sonhos.
Aqui vim pedir, antes de regressar ao Continente, que o meu amado Jesus me desse o bom comando, saber ajudar, ser destemido e dar o melhor aos subordinados. Por razões que a Deus pertence, fui ouvido, deram-me bravos soldados guineenses para comandar, é um outro território de saudades, complementar a este. A imagem deste Deus-Homem sempre me acompanhou, sempre nos demos muito bem, irrecusável era esta visita, na parede lateral a este computador em que escrevo tenho uma réplica no registo do Senhor Santo Cristo feito por uma artífice de gabarito, a Graça Páscoa.
A igreja tem muita harmonia e belíssimos azulejos. Como gosto de apreciar a devoção alheia, espequei-me a ver quem entra, e de facto o ponto magnético é aquela grade, no ponto oposto a esta imagem, onde se conserva a relíquia que qualquer açoriano invoca, não só os tementes, mas todos aqueles que nesta relíquia encontram um dado indispensável do seu bilhete de identidade, faz parte da sua pertença.
Imagine-se, no sétimo ano dos liceus dávamos literatura do século XIX, e falava-se nos sonetos de Antero, o meu professor, Padre António Dias de Magalhães, estudara-o afincadamente, criava aos alunos uma atmosfera tão forte que era impossível não deixar de ficar impressionado com aquele Santo Antero que num ato de desvairo, num banco que tinha por cima a palavra Esperança pôs termo à vida, ainda hoje me perturba o que leva o ser humano ao suicídio, aqui fiquei em contemplação, não há nada como amar a vida até ao último dia, na ciência de que devemos dar a nós e aos outros de acordo com os talentos recebidos.
Perco-me a ver estes motivos da calçada, todos tão engenhosos e felizmente tão bem cuidados, há seguramente um apreço cultural nesta minha ilha mágica pelo chão bem tratado, a presença constante da lava que o Homem domestica para sua comodidade.
Aqui me venho prostrar diante deste altar que me parece uma renda de bilros, nada sei sobre esta devoção a São Sebastião, é um templo grandioso marcado pelo gosto dos primitivos povoadores (há dias, a ver o livro da minha neta de História e Geografia encontrei a barbaridade de se falar em colonização dos Açores, como é que é possível não se saber a diferença entre colonização e povoamento?), temos aqui bastante requinte manuelino, muito barroco, o templo é gracioso, impossível não percorrer os altares, primeiro o altar-mor, e depois as devoções, como aqui se mostram.
Vinha com a fisgada de poder visitar o tesouro, conversei com o sacerdote, tinha trabalho litúrgico pela frente, vinha acompanhado de um inglês e queria mostrar-lhe duas dalmáticas e duas casulas do século XIV, do que me foi dado perceber alfaias religiosas adquiridas depois da Reforma, aqui vieram parar, mas há muitos mais outros tesouros para ver, seguramente fica para a próxima viagem.
Tive sorte com a hora do dia, uma luz crua que não permite contraste com os tons de alvenaria e o rendilhado manuelino, tanto da porta principal como da lateral, com estes belos medalhões, a Igreja de São Sebastião tem conhecido intervenções capazes, não vejo nada desfigurado, é sempre com satisfação que ando à volta deste belo património, outro traço da identidade nacional, é com orgulho que olho para estes primeiros traçados da aventura portuguesa fora do Continente Europeu.
Finalizo por ora esta deambulação, primeiro as Portas da Cidade, todos os dias aqui me vinha enamorar deste ornamento de pedra que possui o dom não de ser volátil, mas de abraçar quem chega. E ali perto vejo a fachada de um prédio onde, no primeiro andar ia visitar José Luís Bettencourt Botelho de Melo, tudo começou na Guiné, limpou-me os olhos depois de uma mina anticarro, nasceu uma linda amizade, veja-se esta foto ali na praia do Pópulo, fomos comer, como era da praxe, os filetes de abrótea, na companhia da filha. Melancolia, perdi o amigo que aqui me recebia sempre de braços abertos. Deixo aqui o meu preito de homenagem.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23404: Os nossos seres, saberes e lazeres (510): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (57): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 2 (Mário Beja Santos)

sábado, 2 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23404: Os nossos seres, saberes e lazeres (510): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (57): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Estas romagens de saudade têm os seus preceitos. Não há aspetos enfadonhos por retornar aos lugares conhecidos, vem-se em alforria, escolhe-se à carta, só há dias marcados para o Vale das Furnas, até lá tocam as campainhas. É a primeira manhã em Ponta Delgada, e logo assoma à memória a fase de adaptação à vida da cidade, de modo geral todos os outros tinham vida familiar organizada, eram muito poucos os que andavam a amanhar com recursos próprios. Tinha mapas das ruas, havia já os rigores outonais, quando ao fim da tarde descia da Rua de Lisboa em diferentes direções. Primeiro foi a descoberta do desenho da cidade, aquelas ruas quilométricas que pareciam vir lá do fundo da costa sul e se embrenhavam de São Pedro a São Roque; e no casco histórico de Ponta Delgada dei comigo a subir e a descer dentro daquele plano ortogonal que ainda hoje me surpreende. Mas por ali andei a mirar monumentos do meu culto, como o Convento de Santo André ou a Igreja do Colégio, de olhos postos no chão a contemplar os enleios geométricos da calçada portuguesa, a passar pelos jardins e a cogitar o que fazer durante a tarde, recordei João Bom, sabe-se lá porquê, talvez pela proximidade à Bretanha, não havia chuva à vista, passeou-se a manhã toda, amesendar-se era outro propósito e a seguir tomou-se a camioneta da carreira. Como nos velhos tempos, tinha que ser.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (57):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 2


Mário Beja Santos

Começo a manhã na vadiagem, há objetivos definidos, mas não quero furtar as surpresas, é para isso que serve a memória e meio século de afetos perduráveis, inquebrantáveis. Desço a Rua do Contador, aqui está à minha espera o Convento de Santo André, uma das maiores formosuras da arquitetura religiosa, data do século XVI e escusado é dizer que andou ao sabor das remodelações. Num dos primeiros fins de semana disponíveis, em outubro de 1967, vim visitar o Museu Carlos Machado, criado em 1930, entrava-se pelo lado oposto desta primeira imagem, subia-se uma escadaria, havia a graciosidade de um pequeno jardim, e assim se entrava no que fora um convento de religiosas clarissas, impressionara-me muito a igreja, de uma só nave, com a sua cobertura de pinturas e as impressionantes grades de ferro forjado, e fora um prazer aquela área de História Natural. Limito-me agora a mirar o convento por fora, toca-me esta harmonia, a moldura dos janelões, a austeridade das grelhas para quem está dentro ver e não ser visto, e depois, como é impressiva a imagem do rendilhado dos janelões. Não quero empanzinadelas de arte, sei que no Núcleo de Santa Bárbara, em edifício próximo, um espaço de recolhimento recuperado, estão as exposições dos dois artistas plásticos, Domingos Rebelo e Canto da Maia, hoje de manhã visito o primeiro, a ambos conheço bem, quero revê-los cuidadosamente para melhor os conservar.

A caminho do Núcleo de Santa Bárbara, quedo-me diante deste pormenor de calçada portuguesa que logo me assombrou quando aqui cheguei, a quantidade imensa de desenhos geométricos, veja-se a profundidade desta rua que muitas outras, também em profundidade atravessam, é certo que há momentos em que se caminha a medo, tal e tanto é o tráfego rodoviário, mas os passeios estreitam-se, é a contingência do desenvolvimento, guardo as saudades daquele tempo em que caminhava tão gostosamente a pé, para saborear a ortogénese, a perpendicularidade destas ruas estreitas, parece que vieram do campo para a cidade, guardando este casario baixo compactado, o que dá um encanto por aqui vaguear na dimensão da escala humana.
O que mais gosto em Domingos Rebelo é a sua narrativa em prol da açorianidade, mesmo sendo ele dotado de uma paleta suave, vem da escola realista, naquele turbilhão de Paris, caldeiro de movimentos estéticos, foi ali que firmou o seu pincel figurativo, com ressaibos naturalistas, e daí esta plasticidade onde cabe retrato, neste caso e elegia dos trabalhos agrícolas, onde não faltam nuvens tormentosas, e daqui se salta para um tema icónico, os imigrantes, ele regista o que é fundamental levar dos parcos bens, bem visível o registo do Senhor Santo Cristo dos Milagres, e há a dor da partida e também aquela figura enigmática da senhora da cidade, bem enchapelada, que tudo olha sem interferir, e o pano de fundo aquelas Portas da Cidade, hoje profundamente alteradas.
Vamos agora aos retratos, primeiro um artista dos tempos de Paris, atenda-se à pose, à meditação, ao sossego das mãos, não é artista em transe, poderá ser poeta ou músico. A obra seguinte toca-me muito, dentro da linhagem do Orpheu, ele foi o último, aí talvez por fevereiro de 1968, o grande etnógrafo e poeta quis conhecer-me e convidou-me para jantar na Rua do Frias, bem perto deste Núcleo de Santa Bárbara onde o estou a recordar, no retrato ele está no vigor da idade, recebeu-me no alto das escadas, com uma estranhíssima indumentária que parecia ter uns guizos, ainda pensei que era traje gaúcho, a um jovem sem obra que se limitara a cumprir um programa de conferências proposto por amigos, era deferência demasiada. Contemplo o retrato, recordo o jantar e os dois livros que me ofereceu, ganhei forças para ir ver mais tarde a exposição que está na Biblioteca Municipal.
Sob a forma de um tríptico, Domingos Rebelo faz desfilar gente piedosa que vem beijar o pezinho do Menino Jesus, todos os olhares se encaminham nessa direção, a exceção está no primeiro plano, aquela mãe ajoelhada fará certamente um comentário à menina de pé descalço, seguramente sob o olhar do sacristão, e curiosamente o menino que balança o ostensório é figura única que domina a cena, e o que podia ser um desequilíbrio na figuração acaba por organizar toda a sinceridade e ingenuidade da tensão religiosa.
É a oração de romeiro, e duas recordações me assaltam. A primeira, e a de carro, algures na costa norte, e avançava em marcha cadenciada um grupo de romeiros, conforme me alertaram. Saímos da viatura, como prova de respeito. Nada me fora dado ver tão intenso sinal de piedade, o coro da reza, o caminhar sem distrações, a austeridade da indumentária, os velhos e as crianças, provando que o amor a Deus não divide as idades. A segunda, foi uma brejeirice, convidado a fazer uma conferência no Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, na autarquia de Ponta Delgada, fui recebido à porta pelo seu presidente, o Dr. Machado. Vendo-me a contemplar um quadro que logo identifiquei como saído da paleta de Domingos Rebelo, uma família orando com um pão em primeiro plano, logo comentou: “Este quadro estava no meu gabinete, confesso que a certa altura em já não podia ver aquele pão a toda a hora, mandei-o pôr aqui à entrada, e olhe que está muito bem, não lhe parece?”.
Domingos Rebelo não precisou de copiar ninguém, mas devo dizer que desconhecia esta obra que até me recordou o espanhol Joaquín Sorolla, pelas cores vivas, pela movimentação na orla da praia, pela ondulação e imponência da figura principal, aquele equilíbrio ao ombro de quem sabe como e o que transporta. Como fiquei a gostar desta embriaguez de luz!
Despeço-me de Domingos Rebelo revendo o seu autorretrato, ele em pose de desfastio, como se simulasse que estava a ser fotografado em momento de pausa, e temos a sua mulher, a sua musa, de olhar vagante, meticulosamente inserida num meio florido, ressaltando o acetinado do vestido daquele esverdeado neutro, que, sabe-se lá porquê, me lembrou Cézanne, passe a autenticidade deste mestre açoriano.
Outro local de memória, um daqueles jardinzinhos que pululam dentro da cidade, decidira fazer uma pausa, não havendo hoje o meu saudoso Café Gil, o nosso ponto de encontro noturno, estando fechada a livraria também, fui matar saudades à Tabacaria Açoriana, guarda formato antigo, tem hoje outra substância, mas os livros lá estão, a preços económicos, e as pessoas ali se reúnem em tertúlia, como nos velhos tempos. Parei e meditei. Quero ver se organizo o programa da cidade da tarde, há autocarros, está decidido, se tiver a sorte de comer uma boa sopa de peixe na Central, vou até João Bom. O que veio a acontecer.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23383: Os nossos seres, saberes e lazeres (509): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (56): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 1 (Mário Beja Santos)

sábado, 25 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23383: Os nossos seres, saberes e lazeres (509): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (56): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Era fatal como o destino, a primeira ancoragem depois do confinamento tinha de ser aqui, por razões do coração, pela aprendizagem recebida, há bem mais de meio séculos atrás. Em qualquer um destes lugares desta ilha, digo-o sem fanfarra, devo ter posto os pés. Logo à chegada à Lagoa, é assim que esvoaçam as lembranças, me recordei daquele Natal de 1967, que foi preparatório do milagre que se deu no Natal de Missirá, no ano seguinte, graças a mãos amigas, andei a saudar quem tinha feito a recruta comigo, andei pela Ribeira das Tainhas, Remédios, Lomba da Maia, Ribeirinha, e muitíssimo mais, as viagens multiplicaram-se, entranhou-se o gosto por este mundo ilhéu, o seu falar doce, com um picante um tanto francês, um certo espavento quando os familiares e os amigos se encontram, a gostosa comida e doçaria, tudo somado e multiplicado em trouxe a São Miguel, e já no rescaldo anda por aqui uma moinha a pedir para voltar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (56):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 1


Mário Beja Santos

Aqui arribei no início da segunda semana de outubro de 1967, promovido a aspirante fui recambiado para dar recrutas no Batalhão Independente de Infantaria N.º 18, sito nos Arrifes, a cerca de 7km de Ponta Delgada, aqui tinha quarto, janta, alguns fins de semana por minha conta, o entardecer, o anoitecer, era a descoberta de me ter por conta e risco, e sem nenhuma ilusão de que em breve seria convocado para uma área de combate nas Áfricas. Ainda não contei tudo sobre este período de felicidade, as amizades feitas e duradouras, a descoberta desta ilha esplendente, o prazer de conversar e ouvir o acento tão melódico do ilhéu, uma linguagem ímpar. Fizera a jura ser aqui a primeira deslocação depois do período do confinamento, vim em romagem de saudade, mesmo de gratidão, pois foi aqui que pude sentir, naquela convivência das recrutas, que possuía algum dom para a liderança, muito jeito me deu para a vida que levei até agosto de 1970, depois mudei de agulha, até na vida profissional fugi do comando, adquiri outros interesses. Guardo ainda a imagem daquele meio da tarde em que o Carvalho Araújo sulcava em direção a Ponta Delgada, sempre em paralelo com aquelas reentrâncias, falésias a pique, rochedos de negrume, a bruteza das águas a espumar sobre as penedias, a alvura das casas, um belo contraste, as grotas a verter caudais de água, como toda aquela massa vulcânica expelisse em permanência todo aquele líquido, por desnecessário. Aqui cheguei, era o fim do inverno, mão amiga me acompanhou até à Lagoa, havia que amesendar, foi um luxo, não pelo queijo fresco com pimenta da terra ou as lapas com molho Afonso, o banquete foi um peixe porco bem grelhado, inhames, legumes saborosos, e vinho do Pico para apaladar. Pois a primeira imagem era para homenagear quem preparou o banquete, aqui se mostra uma área portuária da Lagoa, tudo me remeteu para aquela segunda semana de outubro de 1967, a era do meu descobrimento.
Depois da Lagoa, pedi ao meu anfitrião que me deixasse ver as praias, muito antes do Pópulo temos a praia das Milícias, que tanto aprecio, sempre me deslumbrou esta articulação entre a rocha verdejante, a areia e a ondulação. Melhor receção eu não podia ter. Arrumada a tralha na cidade, houve o gosto de ir até aos jardins, todos eles são assombrosos.
Ponta Delgada tem alguns dos jardins mais aprazíveis que eu conheço, o Jácome Correia, foi palácio de marqueses, hoje é residência oficial do presidente do Governo Regional; o de José do Canto, outra formosura, tal como o jardim botânico António Borges, também cheio de plantas exóticas, é delicioso estar sentado num banco de jardim a contemplar o monumento a Antero de Quental, bem perto da biblioteca municipal da Igreja do Colégio, hoje núcleo de arte sacra do museu Carlos Machado. Mas tive saudades do jardim da Universidade dos Açores, aqui me receberam para palestrar, aqui entrevistei para um programa de televisão o professor Vasco Garcia, aqui vim visitar um querido professor, Machado Pires, que foi reitor desta casa. É um jardim modesto, mas tem o quanto basta para me lavar a alma, os metrosideros, as araucárias, as estrelícias, a terbentina, as obrigatórias azálias, a fiteira, a sumaúma, o dragoeiro. Entro no jardim e demoro a ver estas raízes que lutam contra o asfalto, bem podemos molestar a natureza, no fim ela é sempre imperativa e possidente.
Está no ADN do ilhéu a convivência floral, os primitivos povoadores, os que desembarcaram no que hoje se chama a Povoação devem ter ficado estarrecidos com tanto matagal, houve que o desbastar para produzir comida e habitação, tudo sempre cheio de temores, segundo o grande cronista Gaspar Frutuoso, viviam aterrados com os roncos que vinham do Vale das Furnas, houve quem pensasse que para lá daquela imensidão verde havia um inferno. A jardinagem e o gosto pelas flores faz parte do direito costumeiro, mesmo aqui, que não é um ambiente luxuriante como no jardim António Borges, onde não há nem estufas nem pavimentos em bagacina vermelha, apetece contemplar estes troncos rugosos, talvez fibras para têxteis ou cordas de ancoragem, ou cestas, esta palmeiras que lembram coqueiros, o dragoeiro com a sua seiva vermelha, lá fora, isso sim, proliferam os plátanos, permanentes sentinelas nas estradas.
E não falta uma gruta, já vi arcos armados em rocha vulcânica, aqui é tudo singelo, tudo rocha vulcânica, não há chamamento ao mistério ou caminhos sinuosos, ela lá se impõe e nos chama à atenção no meio de intensa vegetação.
Anoiteceu e ando em busca do meu passado, ali mais ou menos em frente à torre da Câmara Municipal e não longe da estátua dedicada ao Arcanjo havia um café-restaurante onde eu era comensal. Estou no Largo da Matriz, em frente de uma porta lateral ao sabor manuelino, mais tarde aqui irei entrar, sempre deambulei por estas Portas da Cidade, e percorria a avenida Infante D. Henrique, e lá longe me era dado avistar, entre as brumas, todas aquelas penedias em direção ao Salto do Cavalo, se não era bem assim eu imaginava. Pois aqui me detive para recordar doces lembranças de há 55 anos atrás.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23363: Os nossos seres, saberes e lazeres (508): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (55): Christine Garnier na Guiné e nos Açores (Mário Beja Santos)

sábado, 18 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23363: Os nossos seres, saberes e lazeres (508): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (55): Christine Garnier na Guiné e nos Açores (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2022:

Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto

Mário Beja Santos

No seu incontornável livro de investigação, Salazar - Biografia Política, Publicações Dom Quixote, 2009, por Filipe Ribeiro de Menezes, o historiador atribui uma grande importância a um livro que apareceu simultaneamente em Portugal e França em 1952. Salazar acedera dar uma entrevista a uma jornalista francesa, dizia-se que bastante reputada, mas na imprensa portuguesa pouco se referiu o seu currículo. Christine Garnier, em termos atuais, é o que se chamaria uma repórter de conflitos, uma viajante incansável, muito centrada em acontecimentos africanos, nasceu no Senegal e ao Senegal dedicou muitas páginas, ainda hoje dignas de serem lidas. Gostava imenso de ir ver de perto questões turbulentas, como uma rebelião no Sara Espanhol, viajou pela Gâmbia e pela Guiné Portuguesa no final da década de 1950. O que se previa ter sido uma entrevista de horas ficou acordado ser uma longa conversa entre a jornalista e o ditador na sua casa no Vimieiro, é o pano de fundo de Férias com Salazar, a reportagem, como sublinha Filipe Ribeiro de Menezes refrescou, retocou, criou no leitor a ilusão de que aquele habilíssimo político vivia totalmente empenhado no interesse nacional, mas não hesitaria em regressar à sua terra natal, que é mostrada no documento como quase o centro da sua vida. Ao contrário do que se fez constar, Salazar ficou verdadeiramente reconhecido pelo trabalho de Garnier, bem se insinuou ter havido para ali uma paixão de homem serôdio, Marcelo Mathias, então embaixador em Paris, recebeu a incumbência do ditador em adquirir uma joia de alto valor na Place Vandôme, Mathias pareceu assombrado com o número indicado por Salazar, este não gostou que o seu embaixador duvidasse da sua palavra, a joia preciosa foi entregue à jornalista como lembrança da sua estadia no Vimieiro. E Salazar recebeu no Forte do Estoril por várias vezes Garnier, até acompanhada pelo seu segundo marido.
Christine Garnier e Salazar, um ângulo equívoco magistralmente captado por Rosa Casaco, fotógrafo e inspetor da PIDE

Talvez alguém se lembre um dia de consultar os artigos de Christine Garnier, é possível que haja surpresas. Uma delas poderá ser o seu aparecimento na Guiné Portuguesa em 1961, a pedido de Salazar, tinha havido uma incursão de manjacos residentes no Senegal que foram atacar São Domingos, flagelação de pouca monta, Garnier apareceu, levou relatório, seguiu para Dacar, prometeu que aquele documento iria ser enviado a Salazar. E poderá mesmo acontecer que os arquivos revelem outras surpresas, uma delas podia ser a ligação entre Garnier e os serviços secretos franceses, esta mulher insinuante e de belíssima escrita publicava regularmente as suas reportagens, com dados importantíssimos, muito úteis para a política externa francesa. É uma suposição. Ela escrevia em diferentes periódicos, era uma presença constante numa das revistas de índole conservadora de maior reputação em França, La Revue des Deux Mondes, é no número de 15 de janeiro de 1958 que ela publica um admirável artigo, Sumptuosos, Melancólicos Açores…

Inicia o seu trabalho em dia de procissão nas Capelas, junto dos pescadores de baleias. Descreve o colorido da festa, ruas floridas, ricas colchas nas janelas, o estralejar dos foguetes, a venda de guloseimas, mas deixando sempre a menção da pobreza daquela gente fervorosa. Passa para a História dos Açores, o seu povoamento, onde não faltam flamengos, a emigração açoriana, o deslumbramento da Ilha das Flores, a vida comunitária do Corvo, onde ninguém fechava a porta à chave, depois o Faial, o Pico, a pesca da baleia, encanta-se com Angra do Heroísmo e os seus monumentos e a tourada à corda. Estamos agora em Ponta Delgada, socorre-se de uma palavra para um estado de espírito, a mornaça, uma referência ao capacete e ao ar húmido e pesado. Regista o entusiasmo com que os açorianos se encontram e se saúdam tão efusivamente; inevitavelmente o passeio vai até às Furnas, dá-nos uma bela descrição, não esconde o seu encantamento pela beleza da paisagem, os pontos altos atormentados, as lagoas, o fundo das crateras, a doçura e a serenidade que sempre viu nos aglomerados urbanos.

E temos a pincelada final, o Senhor Santo Cristo dos Milagres, que se abriga no interior do Convento da Esperança, em Ponta Delgada. É uma visão que esmaga, aquele tronco coberto por uma capa vermelha, o semblante de sofrimento de Cristo que se ofereceu para a redenção do Homem, do lado de cá da grade há sempre gente ajoelhada a pedir-lhe devotamente ajuda. E há as festas que podem durar até sete semanas, os tapetes de flores, as iluminações. Despede-se do leitor gabando os jardins açorianos, jamais esquecerá as hortênsias e aquela cor mineral que parece pratear as pétalas. Só falta dizer-nos, no fim da reportagem, que está pronta a regressar.


Capa de um best-seller que revitalizou a imagem de Salazar, interna e externamente, na década de 1950, sete edições em catadupa
Onde se vê que a jornalista já conhecia a Guiné antes da guerra de libertação chegar
Artigo da jornalista publicado na revista em janeiro de 1958

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23343: Os nossos seres, saberes e lazeres (507): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (54): Os jardins esplendentes do Palácio Nacional de Queluz - 3 (Mário Beja Santos)