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sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16468: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (48): O filme das cartas de amor e guerra de António Lobo Antunes, realizado por Ivo M. Ferreira


Fotograma do filme "Cartas da Guerra",  do realizador portuguiês Ivo M. Ferreira, em exibição nos cinemas. Diversos "clips" (vídeos) podem ser vistos aui, no sítio O Som e a Fúria 

Sinopse

"1971. António vê a sua vida brutalmente interrompida quando é incorporado no exército português, para servir como médico numa das piores zonas da guerra colonial – o Leste de Angola. Longe de tudo que ama, escreve cartas à mulher à medida que se afunda num cenário de crescente violência. Enquanto percorre diversos aquartelamentos, apaixona-se por África e amadurece politicamente. A seu lado, uma geração desespera pelo regresso. Na incerteza dos acontecimentos de guerra, apenas as cartas o podem fazer sobreviver."



1. Mensagem do Antº Rosinha


[ Antº Rosinha é um dos nossos 'mais velhos', andou por Angola, nas décadas de 50/60/70, do século passado, fez o serviço militar em Angola, foi fur mil, em 1961/62, diz que foi 'colon' até 1974... 'Retornado', andou por aí (, com passagem pelo Brasil), até ir conhecer a 'pátria de Cabral', a Guiné-Bissau, onde foi 'cooperante', tendo trabalhado largos anos (1987/93) como topógrafo da TECNIL, a empresa que abriu todas ou quase todas as estradas que conhecemos na Guiné, antes e depois da 'independência'; é colunista do nosso blogue com a série 'Caderno de notas de um mais velho']

Data: 9 de setembro de 2016 às 00:02

Assunto: O Filme das Cartas de Lobo Antunes


Não sei será tão útil a publicação... Mas aqui vão as minhas impressões [, depois de ver o filme, "Cartas da Guerra", de Ivo M. Ferreira, baseado nas cartas que o António Lobo Antunes escreveu à mulher durante a guerra colonial].

Foi uma maneira muito interessante de pôr no cinema o espírito de revolta contra a guerra, nas cartas de amor, e dor da separação de um jovem casal.

O suplício da separação conjugal que aquela guerra provocou no médico sente-se permanentemente na voz permanente feminina (falha aí alguma coisa, apetecia que falasse em inglês e termos as legendas em Português) e num major, que desesperado pede ao médico para lhe inventar uma doença que o devolvesse para o ente querido.

Ora quando o major está desesperado, imagina-se que a tropa toda em geral estará no mesmo estado de espírito.

A fotografia dos quartéis retrata bem o espírito claustrofóbico dos 100 x 100 de arame farpado no meu entender e penso que ALA [, António Lobo Antunes,] também sente da mesma maneira a «preto e branco»

Mas embora para ALA aquilo tudo fosse o Cú de Judas nas cartas e no resto, a fotografia faz o gosto ao espírito negativista da guerra e da terra, do autor das cartas, e aquelas paisagens parecem mesmo um fim do mundo a «preto e branco», o que na realidade é a parte totalmente irreal, pois que ao mostrarem alguns elefantes a banharem-se num rio, que possivelmente será na reserva de caça da Cameia, rio Cassai com quedas maior que o Corubal, paraísos na terra, onde algumas anharas se veem secas num tom a preto e branco, são iguais às maiores bolanhas da Guiné mas com rios de grandes caudais de água limpíssima (e com diamantes), a imagem, tirando uma viagem de helicóptero, não dá ideia da beleza da região.

Portanto aqueles espaços abertos do leste de Angola (cús de Judas), muita água, muita caça muito verde, no filme parece mesmo uma terra triste, pobre e de miséria como refere algures, nas cartas ALA.

Fui ouvir novamente a «cumprimentação»,  as «mantenhas» à maneira do leste dos quiocos, o «moio» que ALA já usava na psico-social.

O médico também se viu de G3 na mão em patrulha a pé, e bolsa de primeiros socorros a tiracolo que na minha guerra de 13 anos nunca tinha visto.

Vemos um soldado atingido nas costas e perde a vida e há feridos e mortos numa mina.

Há uma sanzala queimada, também entram flechas, mas houve um fuzilamento, se não interpretei errado, o que pensava eu que nenhum comandante de batalhão permitia (vivia eu, enganado ?).

Todos estes acontecimentos, com a voz feminina permanentemente a ler as cartas e alguma música de fundo.

Li o livro, não me lembro que fale no elemento "lavadeira",  no filme também não se vê nenhum tropa a dar a roupa a nenhuma lavadeira.

O único assédio que se vê foi de um branco (civil, colonialista) num bar levar um nega da garota, «calcinha»,  "nem qui fossis tinenti".

Há uma cena que não interpretei completamente que é um militar completamente despido, fugir de arma na mão para dentro da mata. Vê-se a seguir militares a percorrer a pé e de Jeep campos e rios,
penso que seria à procura desse nu foragido.

Uma coisa que não se vê, foi ninguém ir de férias ou de folga à cidade mais próxima ou à capital, o que era prática frequente na tropa em Angola.

E os 24 meses obrigatórios não eram passados no "mato", pelo menos alguns meses eram as companhias transferidas para as capitais de distrito sendo que em geral era para Luanda e Sul de Angola. Esse pormenor não se vê no filme mas é mencionado no livro das cartas.

O essencial das cartas está lá.

Não se vê uma lerpa na caserna, só se vê uma suecada ou bisca, num descanso da patrulha.

A intensidade da guerra está bastante bem representada para o que se ouvia dizer naquele tempo.

Como repito às vezes, aqueles domínios também foram meus e nunca ouvi lá um tiro.

Não creio que vá ter muitos jovens a ver o filme, é mais gente que andou lá ou senhoras, antigas madrinhas de guerra.

Pena passar desapercebida a qualidade literária.

Cumprimentos
Antº Rosinha

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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16379; Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (47): todas as colonizações são más, até aquelas que os portugueses começaram... e outros, "brancos, amarelos e negros" estão continuando... E vivam os guaranis do Brasil que se recusam a ir aos Jogos Olímpicos do Rio 2016

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16449: Recortes de imprensa (81): " As pessoas não falavam da guerra na guerra. Foi das primeiras coisas que eu percebi. Nem hoje eles falam na guerra. Eles [, os ex-combatentes, ] fazem almoços todos os anos e não falam nisso uns com os outros": entrevista de Ivo M. Ferreira, realizador das "Cartas da Guerra", à Rádio Renascença, em 1 do corrente


Rádio Renascença > 1 de setembro de 2016 > Entrevista, à Renascença, do realizador de cinema Ivo M. Ferreira, cujo filme "Cartas da Guerra" está agora, finalmente, em exibilção nos cinemas portugueses (*)



1. Obrigado ao nosso camarada Carlos Pinheiro, por estar atento ao que se passa na comunicação social e pode interessar aos leitores do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné que há mais de 12 anos, e em contracorrente,  falam todos os dias, da e sobre a guerra colonial... Eis um excerto da entrevista do Ivo M. Ferreira, com a devida vénia à Rádio Renascença (**):



Capa do livro, editado em 2005
pela Dom Quixote
"As pessoas não falavam da guerra na guerra. Nem depois"


(...) Há muito que o realizador queria tratar o tema da Guerra Colonial, "mas nunca tinha encontrado uma forma". Até que tropeçou nas cartas que o jovem António Lobo Antunes escreveu à mulher durante uma comissão de serviço em Angola, entre 1971 e 1973 (tinham sido organizadas pelas filhas de ambos e publicadas no livro "Deste Viver Aqui Neste Papel Descripto: Cartas d[a] Guerra", em 2005).

Um dia ouviu a mulher (Margarida Vila-Nova, que interpreta a mulher de Lobo Antunes no filme) ler o livro para a barriga onde crescia o filho de ambos e a ideia plantou-se. "Em termos históricos, de documento de guerra, em termos biográficos e de uma história de amor fantástica, havia uma série de elementos que me permitiam pensar que daria um bom filme." Escreveu o argumento com Edgar Medina em pouco mais de quatro meses.

(...) A pesquisa para o filme passou não só por outros escritos e livros de Lobo Antunes, como "Os Cus de Judas" ou "Memória de Elefante", mas também por conversas com outros antigos combatentes. Ouviu muitas vezes reacções. Como esta: "Mas por que caraças é que tu queres falar nisto?".

"As pessoas não falavam da guerra na guerra. Foi das primeiras coisas que eu percebi. Nem hoje eles falam na guerra. Eles [ex-combatentes] fazem almoços todos os anos e não falam nisso uns com os outros", diz.

Ivo M. Ferreira percebeu que muita coisa que ficou enterrada, "atirada para o mesmo canto do fascismo" para nunca mais se revisitar. Todo um período de "anseios e medos que não eram revelados nem à família nem aos colegas", que criou "um aquartelamento de silêncio muito mais forte do que o que eles tinham enquanto lá estavam".

Por isto tudo, Ivo não podia ter ficado mais surpreendido com as reacções que tem tido. "Sinto que este filme tem funcionado para fazer um desfolhar da cebola que, se calhar, também só podia acontecer agora, quando as pessoas estão naturalmente a desaparecer."

Agora que o filme finalmente chega às salas, trouxe uma surpresa para Ivo M. Ferreira. "Pensei sempre que as mulheres, as filhas, os filhos é que iriam ver o filme. As pessoas que os viram voltar diferentes. Mas de repente sei que há excursões de ex-combatentes, que é uma coisa que eu nunca pensei." (...)


Fonte: A entrevista, conduzida por Catarina Santos,. pode ser lida na íntegra, aqui,  no sítio da Rádio Renascença

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

31 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16433: Agenda cultural (489): Amanhã, dia de 1 setembro, estreia nos cinemas o filme, de Ivo M. Ferreira, "Cartas da Guerra", baseado nas cartas de amor e guerra de António Lobo Antunes, ex-alf mil médico, da CART 3313 (Angola, 1971/73). Descontos especiais para grupos de ex-combatentes e séniores

7 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16281: Agenda cultural (488): O filme "Cartas da Guerra", de Ivo M. Ferreira, baseado na obra de António Lobo Antunes, tem estreia comercial em 1 de setembro próximo


(**) Último poste da série > 27 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16423: Recortes de imprensa (80): Os "últimos tugas" de Bafatá: João e Célia Dinis, entrevistados pelo "Público", em 13/4/2013... O nosso camarada João Dinis, hoje empresário, vive na Guiné desde 1963. Pertenceu à CART 496 (Cacine e Cameconde, 1963/65)

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16433: Agenda cultural (489): Amanhã, dia de 1 setembro, estreia nos cinemas o filme, de Ivo M. Ferreira, "Cartas da Guerra", baseado nas cartas de amor e guerra de António Lobo Antunes, ex-alf mil médico, da CART 3313 (Angola, 1971/73). Descontos especiais para grupos de ex-combatentes e séniores












Ver aqui trailer do filme, disponível no You Tube. O filme teve anteestreia em 24 do corrente, às 19h30, no Cinema São Jorge, Lisboa, tendo contado  com a presença do realizador e dos actores.



Informação adicional da produtora, através de Marta Leon:


Boa tarde Sr. Luís Graça,

O filme CARTAS DA GUERRA estreia amanhã, dia 1 de Setembro. E estará nas salas de cinema até 7 de Setembro.

Envio a lista de salas:

- LISBOA E GRANDE LISBOA
Cinema UCI El Corte Inglés [Sessões: 14h20 | 16h40 | 19h10 | 21h30 | 23h55]
Cinemas NOS Amoreiras [Sessões: 13h10 | 15h40 | 18h50 | 21h30 | 00h00]
Cinema Ideal [Sessões: 14h15 | 16h15 | 20h00 (Leg. Inglês/ Eng. Subtitles) | 22h00]
Cinema City Alvalade [Sessões: 15h35 | 19h30]
Cinema Medeia Monumental
Cinema NOS Almada Forum [Sessões: 12h55 | 15h40 | 18h25 | 21h15 | 23h55]
Cinema NOS Oeiras Parque [Sessões: 12h50 | 15h25 | 18h00 | 21h00 | 23h50]
Cinema da Villa - Cascais
Cinema City Alegro Setúbal [Sessões: 11h40 (fim-de-semana) | 19h20]
Cinema Charlot (Setúbal)

- CENTRO
Cinema NOS Alma Shopping (Coimbra) [Sessões: 13h40 | 16h30 | 19h05 | 21h40 | 00h20]
Cinema NOS Forum Viseu [Sessões: 14h30 | 17h00 | 21h50 | 00h20 (6ª e sáb.)]
Cinema NOS Forum Aveiro [Sessões: 13h05 | 15h40 | 21h20 | 00h00 (6ª e sáb.)]
Cinema City Leiria
Cineplace Serra Shopping (Covilhã)


- NORTE E GRANDE PORTO

- Cinema UCI Arrábida 20 (Porto)
- Cinema NOS Alameda Shop & Spot (Porto) [Sessões: 13h10 | 15h40 | 18h30 | 21h10 | 23h50]
- Cinema NOS NorteShopping (Matosinhos) [Sessões: 16h10 | 18h40 | 21h25 | 00h00]
- Cinema NOS Braga Parque [Sessões: 18h00 | 21h00 | 23h40]
- Cinema NOS Nosso Shopping (Vila Real) [Sessões: 13h50 | 16h40 | 22h00 | 00h30 (6ª e sáb.)]
- Cineplace Estação Viana (Viana do Castelo)

- SUL E ILHAS
Cinemas NOS Forum Algarve (Faro) [Sessão: 18h40]
Cinemas NOS Forum Madeira (Funchal) [Sessões: 11:10 | 13:40 | 19:00]
Cineplace Parque Atlântico - Ponta Delgada (Açores)


Informo também que conseguimos negociar preços especiais para veteranos com os exibidores. Para grupos maiores de 15 pessoas, o valor do bilhete é de 4€ (por pessoa). Se por acaso tiverem interesse em organizar uma ida em grupo ao cinema, peço-lhe que entrem em contacto comigo para eu poder agilizar o processo com a sala de cinema à vossa escolha.

Fico a aguardar o seu feedback.

Obrigada,

Marta

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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16281: Agenda cultural (488): O filme "Cartas da Guerra", de Ivo M. Ferreira, baseado na obra de António Lobo Antunes, tem estreia comercial em 1 de setembro próximo

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16383: Notas de leitura (869): "Memória de elefante", a literatura de guerra, por António Lobo Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
Quando surgiram "Memória de Elefante" e "Os Cus de Judas" houve a clara perceção de que se tratava de uma nova arremetida literária. Primeiro, a autobiografia cáustica, mas também poética, os sofrimentos pelo amor perdido, a crítica acerada ao pindérico do funcionamento da instituição psiquiátrica: "A sala de consultas compunha-se de um armário em ruína roubado ao sótão de um ferro-velho desiludido, de dois ou três maples precários com o forro a surgir dos rasgões dos assentos com cabelos por buracos de boina, de uma marquesa contemporânea da época heróica e tísica do Dr. Sousa Martins".
É no seu romance de estreia que Lobo Antunes convoca recordações da sua vivência angolana e testemunha com irrecusável frontalidade o que pensa sobre guerra que travámos em África.

Um abraço do
Mário


"Memória de elefante", a literatura de guerra, por António Lobo Antunes

Beja Santos

“Memória de Elefante” é o primeiro romance de António Lobo Antunes, obra marcadamente autobiográfica, temos aqui o olhar do psiquiatra pelos seus doentes, pela instituição onde trabalha, acompanhamos o seu sofrimento no processo da sua separação conjugal. Obra por vezes dilacerante, acompanhamos uma quase via-sacra de quem anda ao abandono à procura de pistas para o futuro, e depois de muitas ínvias incursões e deambulações culminará num processo da redescoberta, numa autêntica profissão de fé, assim: “Amanhã recomeçarei a vida pelo princípio, serei o adulto sério e responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda, chegarei a tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo para tranquilizar os pacientes, mondarei o meu vocabulário de obscenidades pontiagudas”.

Será na obra seguinte “Os Cus de Judas”, também publicado no final da década de 1970, que Lobo Antunes revelará, com absoluta crueza, e com aspetos pícaros e burlescos, a sua experiência como médico em Angola. A seu tempo, procuraremos glosar o fundamental deste romance, agora é só para destacar as referências que ele faz à guerra em “Memória de Elefante”.

Tudo começa com uma conversa entre colegas, um médico pergunta-lhe se ele se vê a comer à mesa com um carpinteiro, ele responde: “Porque não?”, o que desaustina o outro, que o apoda de anarquista, de marginal, de alguém que aprova a entrega do Ultramar aos pretos. Segue-se uma tremenda catilinária de Lobo Antunes:  
“Que sabe este tipo de África, interrogou-se o psiquiatra à medida que o outro, padeira de Aljubarrota do patriotismo à Legião, se afastava em gritinhos indignados prometendo reservar-lhe um candeeiro da avenida, que sabe este caramelo de 50 anos da guerra de África onde não morreu nem viu morrer, que sabe este cretino dos administradores de posto que enterravam cubos de gelo no ânus dos negros que lhes desagradavam, que sabe este parvo da angústia de ter de escolher entre o exílio despaisado e a absurda estupidez dos tiros sem razão, que sabe este animal das bombas de napalm, das raparigas grávias espancadas pela Pide, das minas a florirem sob as rodas da camionetas em cogumelos de fogo, da saudade, do medo, da raiva, da solidão, do desespero? Com sempre que se recordava de Angola um roldão de lembranças em desordem subiu-lhe das tripas à cabeça na veemência das lágrimas contidas: o nascimento da filha mais velha silabado pela rádio para o destacamento onde se achava, primeira maçãzinha de oiro do seu esperma, longas vigílias na enfermaria improvisada debruçado para a agonia dos feridos, saíra exausto a porta deixando o furriel acabar de coser os tecidos e encontrar cá fora uma repentina amplidão de estrelas desconhecidas, com a sua voz a repetir-lhe dentro – Este não é o meu país, este não é o meu país, este não é o meu país, a chegada às quartas-feiras do avião do correio e da comida fresca, a subtil e infinitamente sábia paciência dos luchazes, o suor do paludismo a vestir os rins de cintas de humidade pegajosa, a mulher vinda de Lisboa com o bebé de surpreendentes íris verdes para viajar com ele para o mato, sua boca quase mulata a sorrir comestível na almofada (…) durante vinte sete meses morei na angústia do arame-farpado por conta das multinacionais, vi a minha mulher a quase morrer do falciparum, assistir ao vagaroso fluir do Dondo, fiz uma filha na Malanje dos diamantes, contornei os morros nus de Dala-Samba povoados no topo pelos tufos de palmeiras dos túmulos dos reis Gingas, parti e regressei com a casca de um uniforme imposta no corpo, que sei eu de África?”.

E o romance segue o seu curso, Angola agora está longe, a memória deambula pela infância, mas a vivência angolana, o profundo afeto reacende-se, fulminante:
“Como em África, pensou ele, exatamente como em África, aguardando a chegada miraculosa do crepúsculo do jango da Marimba, enquanto as nuvens escureciam o Cambo e a Baixa do Cassanje se povoava do eco dos trovões. A chegada do crepúsculo e a do correio que a coluna trazia, as tuas compridas cartas húmidas de amor. Tu doente em Luanda, a miúda longe de ambos, e o soldado que se suicidou em Mangando, deitou-se na camarata, encostou a arma ao queixo, disse Boa-noite e havia pedações de dentes e de osso cravados no zinco do teto, manchas de sangue, carne, cartilagens, a metade inferior da cara transformada num buraco horrível, agonizou quatro horas em sobressaltos de rã, estendido na marquesa da enfermaria, o cabo segurava o petromax que lançava nas paredes grandes sombras confusas. Mangando e os latidos dos cabíris nas trevas, cães esqueléticos de orelhas de morcego, madrugadas de estrelas desconhecidas, a soba de Dala e os seus gémeos doentes, o povo para a consulta nos degraus do posto a tiritar paludismo, picadas destruídas pela violência da chuva. Uma ocasião estávamos sentados a seguir ao almoço perto do arame, naquela espécie de lápide funerária com os escudos dos batalhões pintados, e eis que surgiu na estrada da Chiquita um espampanante carro americano coberto de pó com um senhor careca dentro, um civil sozinho, nem Pide, nem administrativo, nem caçador nem brigada da lepra, mas um fotógrafo, um fotógrafo munido dessas máquinas de tripé das praias e das feiras, inverosímil de arcaica, propondo-se tirar o retrato a todos, isolados ou em grupo, presentes para enviar carta à família, recordações da guerra, sorrisos desbotadas do exílio. Não havia comida para bebés em Malanje e a nossa filha tornou a Portugal magra e pálida, com a cor amarelada dos brancos em Angola, ferrugenta de febre, um ano a dormir em cama de bordão de palmeira junto das nossas camas de quartel, estava a fazer uma autópsia ao ar livre, por via do cheiro quando me chamaram porque desmaiaras, encontrei-te exausta numa cadeira feita de tábuas de barrica, fechei a porta, acocorei-me a chorar ao pé de ti repetindo Até ao fim do mundo, até ao fim do mundo, até ao fim do mundo, certo da certeza de que nada nos podia separar, como uma onda para a praia na tua direção vai o meu corpo, exclamou o Neruda e era assim connosco, e é assim comigo só que não sou capaz de to dizer ou digo-to se não estás, digo-to sozinho tonto do amor que te tenho, demais nos ferimos, nos magoámos, nos tentámos matar dentro de cada um, e apesar disso, subterrânea e imensa, a onda continua e como para a praia na tua direção o trigo do meu corpo se inclina, espigas de dedos que te buscam, tentam tocar-te, se prendem na tua pele com força de unhas, as tuas pernas estreitas apertam-me a cintura, subo a escada, bato ao trinco, entro, o colchão conhece ainda o jeito do meu sonho, penduro a roupa na cadeira, como uma onda para a praia, como uma onda para a praia, como uma onda para a praia, na tua direção vai o meu corpo”.

Tratava-se de uma escrita que anunciava uma rutura em formas e conteúdos, como se veio a comprovar nas dezenas de livros que se seguiram a esta auspiciosa estreia.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 11 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16380: Notas de leitura (868): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VI: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (II): Na margem direita do rio Corubal, na mata do Fiofioli: «¿Tú piensas aguantar la mecha esta?, olvídate, que no duras ni tres meses" / "Tu pensas aguentar esta ratoeira? Esquece, pois não duras nem três meses”...

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16281: Agenda cultural (495): O filme "Cartas da Guerra", de Ivo M. Ferreira, baseado na obra de António Lobo Antunes, tem estreia comercial em 1 de setembro próximo


Fotograma do filme "Cartas da guerra", do realizador Ivo M. Ferreira, a estrear em setembro próximo.

 Ficha técnica > Realizado por Ivo M. Ferreira • ​baseado no livro António Lobo Antunes, D’Este Viver Aqui Neste Papel Descripto, Cartas da Guerra, de organização Maria José e Joana Lobo Antunes • Argumento Ivo M. Ferreira, Edgar Medina • Fotografia João Ribeiro • Som Ricardo Leal • Decoração Nuno G. Mello • Guarda-roupa Lucha d’Orey •Caracterização Blue • Montagem Sandro Aguilar • Mistura Tiago Matos • Correcção de cor Paulo Américo • Direcção de produção Joaquim Carvalho • Co-produtores Georges Schoucair, Michel Merkt • Produtores Luís Urbano, Sandro Aguilar

P&B | 105’ | DCP • © O SOM E A FÚRIA 2016 | Vendas Internacionais The Match Factory

Fonte: O som e a fúria > Filmes > Cartas da guerra



1. Mensagem de Marta León, da produtora O Som e a Fúria

Data: 30 de junho de 2016 às 16:17

Assunto: Filme CARTAS DA GUERRA - Estreia em Setembro

 Boa tarde Sr. Luís Graça,


Vi que tem um blog Luís Graça & Camaradas da Guiné , que escreve também sobre a Guerra Colonial.

Contacto-o porque o filme CARTAS DA GUERRA de Ivo M. Ferreira, apresentado em estreia mundial na Competição Oficial da Berlinale 2016, terá estreia comercial em Portugal no dia 1 de Setembro 2016, e achamos que o filme é do interesse dos ex-combatentes do Ultramar.

Gostaria de saber se posso contar com a sua colaboração para divulgar o filme?

O filme estará em várias salas pelo país fora, portanto o mais simples será enviar-lhe uma lista das salas, assim que ela estiver fechada (julgo que será apenas durante o mês de Agosto).

Deixo-lhe abaixo todas as informações sobre o filme:

Sinopse: CARTAS DA GUERRA adapta uma obra do escritor António Lobo Antunes, composta por cartas que este escreveu à mulher, Maria José, durante o período em que esteve em serviço na Guerra Colonial [, em Angola,, 1970/72].

Longe de tudo que ama, escreve cartas à mulher à medida que se afunda num cenário de crescente violência. Enquanto percorre diversos aquartelamentos, apaixona-­se por África e amadurece politicamente.

A seu lado, uma geração desespera pelo regresso. Na incerteza dos acontecimentos de guerra, apenas as cartas o podem fazer sobreviver.

Link do trailer e imagens do filme:

http://osomeafuria.com/films/3/70/

Agradeço desde já a sua atenção e fico a aguardar o seu feedback. Se tiver alguma dúvida ou alguma sugestão, por favor, não hesite em contactar-me.

Cumprimentos,

Marta
____________

Marta León

O SOM E A FÚRIA
Av. Almirante Reis, 113 – 5º, Esc. 505
1150-014 Lisboa, PORTUGAL

tel +351 213 582 518  tel +351 919 299 133  fax +351 213 582 520
www.osomeafuria.com


2. Comentário de LG:

Olá, Marta, obrigado. Iremos dar o devido destaque ao filme... Vá estando em contacto connosco. Saudações. LG

3.  Resposta de  Marta León, com data de 1 do corrente:
 

Boa tarde, Luís Graça,

Obrigada pela sua rápida resposta e colaboração.

Assim que vá tendo novidades, informo-o! Peço-lhe que, se por acaso colocar alguma informação no seu blog ou na página facebook, me envie o link. Assim posso igualmente divulgá-lo nas nossas redes sociais.

Mais uma vez, muito obrigada pela sua disponibilidade.

Até breve, Marta

_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 30 de junho 2016 Guiné 63/74 - P16252: Agenda cultural (487): Mercado oitocentista e recriação histórica da batalha do Vimeiro (1808): Lourinhã, Vimeiro, 15-17 de julho de 2016 (Eduardo Jorge Ferreira, sargento do RI 19, Vimeiro, 1808; ex-alf mil, PA, BA 12, Bissalanca, 1973/74)

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16140: Nota de leitura (842): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
O trabalho de investigação de João de Melo foi tão rigoroso e cuidado, que publicados estes dois volumes sobre a literatura das três frentes em 1988 a sua leitura continua a ser imprescindível, bem entendido para quem pretenda conhecer as primeiras décadas da literatura da guerra.
O jornalista e escritor Joaquim Vieira contextualiza os acontecimentos, seguem-se as antologias.
Deixamos para a próxima incursão a revelação de um conto de Álvaro de Guerra de altíssima qualidade, e até agora não divulgado entre nós, "O Tempo em Uane".

Um abraço do
Mário


Os Anos da Guerra, por João de Melo (2)

Beja Santos

“Os Anos da Guerra”, com organização de João de Melo, dois volumes, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988, constitui o primeiro e até agora o mais significativo levantamento sobre a literatura da guerra colonial, nas suas três frentes. No primeiro volume, o escritor João de Melo passa em revista as principais etapas que conduziram os movimentos de libertação à luta armada, percorrem-se os itinerários da preparação militar e analisa-se a literatura de Angola. Este segundo volume integra as literaturas de Moçambique e da Guiné e diferentes olhares sobre e no regresso da guerra. Como sempre, Joaquim Vieira procede às introduções dos respetivos conflitos. No caso de Moçambique, refere que em 1964 a FRELIMO procurou lançar a insurreição em cinco distritos, descobrirá que não possuía forças suficientes e concentra-se em Cabo Delgado e Niassa, aproveita-se dos apoios situados na Tanzânia. A FRELIMO demorou a impor-se, sofreu divergências internas, tinha no seu seio duas grandes correntes, a pró-ocidental e a francamente pró-chinesa. O projeto de Cahora Bassa, no distrito de Tete alterou por completo o ruma da situação em Moçambique. Eduardo Mondlane foi assassinado nos escritórios da FRELIMO em Dar-es-Salam, Samora Machel sucede-lhe na presidência no ano seguinte e a ala mais moderada do partido é afastada, tendo-se alguns dos seus dirigentes entregue às autoridades coloniais. O período do Comandante-Chefe Kaúlza de Arriaga irá ficar assinalado pela operação Nó Górdio, proclama que a guerrilha está à beira do aniquilamento, numa altura em que a FRELIMO se concentra no distrito de Tete e ameaça a construção da barragem de Cahora Bassa. A guerra avança, o equipamento da FRELIMO melhora e em 11 de Abril é disparado o primeiro míssil Strella. Escreve Joaquim Vieira:
“O relatório do quartel-general da Região Militar de Moçambique, referente aos quatro primeiros meses de 1974, indica um acréscimo global da atividade da guerrilha, um pouco por toda a parte. Impressionado pela deterioração da situação, Costa Gomes decide afastar o Comandante-Chefe”.

Vários são os autores referenciados, mas a figura principal é necessariamente Carlos Vale Ferraz e o seu “Nó Cego”, aqui fica um estrato:
“Ao Passos pareceu-lhe distinguir silhuetas de palhotas, de gente entre os arbustos. Parou, avisou os soldados da sua equipa, o alferes e o capitão. Agachados, dispostos num rosário de contas ao longo do trilho, pressentindo a chegada do momento, retida a respiração, os homens, em equipas de cinco, foram-se desfiando em linha.
Prontos? Interrogaram os olhos antes de se lançarem ao assalto correndo e disparando sobre tudo o que bulisse, sombras e corpos. Atiravam as granadas de mão para o interior das palhotas como garotas assustando galinhas, rebentavam a pontapé as frágeis portas enquanto atravessavam o pequeno aldeamento, agarravam pelos panos os corpos dos negros que não tinam conseguido fugir.
- Encosta esse par de jarras aí a essa árvore para lhes retirar o retrato! – gritava o Pierre o para o Vergas, que passava arrastando um casal de negros velhos, ela, a cocuana, de tronco nu, as mamas descaídas quase até à cintura, a pele cinzenta escamada do calor e da sujidade, ele, curvado e dorido, as articulações deformadas.
O Vergas hesitou em entregá-los ao Pierre, sentia-se estranho, já não possuía as mesmas certezas dos primeiros meses de guerra, abriu a mão para os deixar entregues ao pequeno tripeiro e ficou de olhos parados vendo-o colocá-los a jeito antes de disparar uma rajada curta. Seguiu o descair lento deles até se enrolaram sobre a terra nos últimos estertores.
- Esta não! – rugiu o Passos, com uma negra jovem agarrada por um braço, para o Pierre a rir-se ainda com a G3 a fumegar, preparando-se para repetir a cena. 
– Esta vai pagar-mas doutra maneira! Puxou-a para trás de um arbusto enquanto os homens da companhia continuavam a disparar e a partir os potes de barro. Deitou-a sobre o capim seco, escutando deliciado os gritos e os tiros, arregaçou-lhe o pano da saia, abriu-lhe as pernas e enfiou-se nela. Resfolgou que nem um toiro cobridor.
A negra continua deitada depois de ele se levantar limpando-se antes de apertar as calças, os panos enrolados na cintura, os olhos parados, muito abertos, apenas os músculos tensos do pescoço erguiam ligeiramente a cabeça fixando inexpressiva, a cara dos soldados que se aproximavam.
- Vá, ó Transmissões de um cabrão, vá, agora tu! – berrava o furriel.
O Brandão, pálido como sempre, cuspiu e passou adiante. Foi o Freixo quem lhe tomou a vez, deitou a G3 ao lado do corpo e bombeou-se para cima e para baixo, rápido a despachar antes que outros viessem ou o capitão passasse por aquele canto escondido na periferia do aldeamento assaltado”.

E chegamos ao contexto da Guiné, Joaquim Vieira fala do significado comercial da colónia, da pujança da ofensiva rebelde, da desarticulação do território, da chegada de Spínola, da sua ofensiva psicológica e militar, são informações que todos nós já dispomos no blogue. A escolha de João de Melo para a literatura inclui nomes grados como Álvaro Guerra e José Martins Garcia. Começa logo por destacar o conto “O Tempo em Uane”, que veio incluído em Histórias Breves de Escritores Ribatejanos, antologia organizada por António Borga, Lisboa, 1968, mas que apareceu também numa antologia de literatura ultramarina organizada por Amândio César em 1966. É uma narrativa belíssima, merece destaque no próximo texto, nunca dela se falou aqui. Uma das razões fundamentais por que se deve procurar conhecer os textos que João de Melo escolheu para esta obra incontornável é a visão do depois da guerra a diferentes vozes e aí depõem escritores como Olga Gonçalves, António Lobo Antunes e Lídia Jorge, entre outros. “Os Anos da Guerra” incluem a bibliografia geral sobre a guerra colonial e a cronologia sobre as lutas de libertação, evidentemente tudo reportado a 1988. É ocioso dizer que muitíssima água correu depois sob as pontes.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16124: Nota de leitura (841): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15292: Notas de leitura (770): “As Naus", por António Lobo Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
António Lobo Antunes é um escritor recebido com aclamação ou pronto repúdio, não dá margem à indiferença. Lá para o termo dos anos 1980, dispunha de nome feito, era conhecido internacionalmente, publicou um romance um tanto à revelia da sequência de obras anteriores, “As Naus”, um achado experimental entre o passado e o presente, uma atmosfera das grandezas pretéritas e do caos que foi a chegada dos retornados, uma virulenta história trágico-marítima, em que se regressava de avião ou por nau.
É neste embrechado de histórias e historietas que um casal regressa de Bissau, na hora da independência e é metido temporariamente no Hotel Ritz.
Para ler e meditar, ou, quem sabe, querer ler o romance por inteiro. Sou suspeito, pois sou incondicional deste turbilhão da literatura.

Um abraço do
Mário


A Guiné num livro de António Lobo Antunes

Beja Santos

Médico em Angola, António Lobo Antunes estreou-se na literatura com duas obras associadas à sua experiência militar, Memória de Elefante e Os Cus de Judas, em 1979. No fim dos anos 1980, o escritor, já então consagrado pelas singularidades da arquitetura da sua escrita, publica “As Naus” cujo tema eram os retornados.

O livro foi prontamente incensado e escarnecido, uns consideravam que o escritor obtivera um achado misturando o passado e o presente, gente na torna-viagem com nomes como Camões, Gil Eanes, Francisco Xavier, Diogo Cão, entre outros. Caravelas e aviões, os Jerónimos do passado entendido como glorioso e pensões mal-afamadas entre o Paço da Rainha e o Intendente. É um périplo pelo Império, e aquele regresso caótico que se seguiu à descolonização, tudo se passa em Lixboa, a capital do reyno, no termo desse regresso reabilitam-se os mitos litúrgicos de sempre como o sebastianismo, é esse o final belíssimo do romance:
“Amparados uns aos outros para partilharem em conjunto do aparecimento do rei a cavalo, com cicatrizes de cutiladas nos ombros e no ventre, sentaram-se nos barcos de casco ao léu, no convés de varanda das traineiras, nos flutuadores de cortiça e nos caixotes esquecidos, de que se desprendiam esquecidos odores de suicida dado às dunas pela chibata das correntes. Esperámos, a tiritar no ventinho da manhã, o céu de vidro das primeiras horas de luz, o nevoeiro cor de sarja do equinócio, os frisos de espuma que haveriam de trazer-nos, de mistura com os restos de feira acabada das vagas e os guinchos de borrego da água no sifão das rochas, um adolescente loiro, de coroa na cabeça e beiços amuados, vindo de Alcácer Quibir com pulseiras de cobre trabalhado dos ciganos de Carcavelos e colares baratos de Tânger ao pescoço, e tudo o que pudemos observar, enquanto apertávamos os termómetros nos sovacos e cuspíamos obedientemente o nosso sangue nos tubos do hospital, foi o oceano vazio até à linha do horizonte coberta a espaços de uma crosta de vinagreiras, famílias de veraneantes tardios acampados na praia, e os mestres de pesca, de calças enroladas que olhavam sem entender o nosso bando de gaivotas em roupão, empoleiradas a tossir nos lemes e nas hélices, aguardando, ao som de uma flauta que as vísceras do mar emudeciam, os relinchos de um cavalo impossível”.

Pois bem, entre Índias e Angolas, há gente que regressa da Guiné, de onde vieram os primeiros escravos, a Guiné, diz o autor que se limitava então a um amontoado de casa no estuário do rio, muitas delas de madeira e de capim. Há para ali guerra, que se ouve em Bissau, e vamos então a algumas dessas referências guineenses avançadas por Lobo Antunes:
“A violência das explosões dos morteiros, das bazucas e dos canhões sem recuo estremecia as lagunas de Bissau, sobrepondo-se aos relâmpagos de Março (…) Uma noite escutaram por acaso na telefonia, num vendaval de assobios, a revolução de Lixboa, notícias, comunicados, marchas militares, a prisão do governo, canções desconhecidas, e no dia imediato, a tropa parecia menos crispada, os bombardeamentos rarearam, pretos de óculos flamejantes e camisas de feriado instalaram-se nas esplanadas e nos largos no lugar dos brancos. Convocaram-nos para uma reunião no Cine-Theatro das zarzuelas estafadas e das récitas dos bombeiros, onde um coronel de artilharia, com uma tripla fita de condecorações na clavícula, subiu ao palco em cujo fosso a orquestra desafinou entusiasticamente o hino, e lhes ofereceu de mão beijada, numa generosidade inexplicável, a possibilidade gratuita de tornar a Portugal (…) Batalhões completos, convulsos de amibas e lombrigas, com os furriéis a cabecearem de doença do sono logo após a charanga e a bandeira, alçavam-se para navios ferrugentos carregando as suas armas e os seus mortos (…) As naus aportavam vazias e partiam cheias, convexas de gente e de caixotes. Bissau despovoava-se de brancos e o início da estação das chuvas encontro-os sem saber o que fazer numa terra de selvagens triunfais que estilhaçavam à metralhadora os postigos das fachadas (…) 
Um amigo da fábrica de sonetos gongóricos, chamado Jerónimo Baía, descreveu-lhes os acontecimentos medonhos, sodomias, envenenamentos, rimas cruzadas, récuas de prisioneiros de algemas enxotados à coronhada para o mato. E quando o chá acabou e mergulhavam diariamente na água fervida o mesmo saquito sem sabor dependurado na extremidade de uma guita, a esposa, de costas para ele, anunciou-lhe na serena voz habitual com que enterrara, trinta e oito anos antes, a filha criança, já não pertenço aqui (…) Nessa mesma tarde subiu aos damascos rotos e óleos de defensores do reyno do palácio do governo, esperou numa enorme cadeira de dignatário, no meio de dezenas de brancos e mulatos, que lhe pronunciassem o nome e um funcionário de jaqueta o recebesse na cave do edifício e pediu dois lugares de porão para Lixboa (…) Se os brancos diminuíam, os pretos, em compensação, aumentavam nas casas atoladas nos caniços dos rios. Ocupavam as casernas que a tropa deixara, aliviada do peso da guerra, e enfeitadas de frases bélicas; acomodavam-se nos bancos de jardim, indiferentes à chuva, com as automáticas checoslovacas nos joelhos (…) Um grande paquete claro aproximava-se do cais a ameaçar destruir Bissau com o gume da proa. Não somos de parte alguma agora, respondeu o marido a designar o barco coroado de flâmulas, de emblemas reais, do estandarte do almirante Afonso de Albuquerque no topo do mastro principal (…) Depois de três meses de viagem um solzinho cor de pêssego despontou no meio da granito das nuvens e daí a nada avistaram o contínuo fervedoiro de mercado sírio de Lixboa a pular na distância, muralhas de castelo, fogueiras de judeus, procissões de flagelados, um trânsito simultâneo de carroças de escravos, cruzadores e bicicletas (…) 
Após cinquenta e três anos num cubículo de Bissau sofrendo mosquitos e cacimbo era-lhes difícil imaginar o ilimitado tabuleiro de damas do chão de mármore, as tapeçarias de hibiscos nas paredes, grooms disfarçados de hussardos, portas que se descerravam sozinhas. A cabine espacial do elevador, acostumado a assobiar de leve por órbitas de cometas, depositou-os numa espécie de corredor de basílica com os vãos dos altares laterais numerados (…) palpou-se longamente para se convencer da sua própria idade, tomando consciência dos molares que faltavam, dos músculos que obedeciam em guinadas dolorosas, do rosto devastado pelo clima da Guiné desde que aos quinze anos o pai o enviara para os trópicos aos cuidados de um primo sargento (…) 
Colocaram-nos na mesma mesa que três fazendeiros de Carmona que carpiam o café perdido e a lembrança das prostitutas da Muxima, um caçador de hipopótamos e um faquir guês de perinha ascética que mastigava parafusos e roscas (…) Um tenente de cabelos ralos, penteados desde a nuca numa minucia de ourives atravessou as tapeçarias, adaptou o microfone à sua altura, disse um dois três experiência, informou com ferocidade, damas e cavalheiros que se encontravam no Hotel Ritz por pura benevolência paternal das autoridades revolucionárias preocupadas em zelar pelo conforto e tranquilidade dos seus filhos até o Estado democrático conseguir casas ou pré-fabricados ou apartamentos nos bairros económicos para as vítimas da ditadura felizmente extinta, e que em nome, camaradas, da luta de classes e da construção do socialismo dirigida pela vanguarda política do exército, passariam a ser punidos com a forca os intoleráveis abusos de assar sardinhas nos lavatórios, cozinhas refogados e fritos nas cerâmicas dos chuveiros, vender as torneiras, assim como servir-se das cortinas estampadas do hotel opara blusas e adornos”.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15283: Notas de leitura (769): “Diário de Ébano", por Sofia Yala Rodrigues (Mário Beja Santos)

sábado, 25 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7034: Carta aberta a... (4): Camarada (de armas) António Lobo Antunes (António Graça de Abreu)



República Popular da China > Agosto de 2010 > O nosso camarada António Graça Abreu em locais facilmente reconhecíveis pelo leitor ocidental  (com  excepção talvez do segundo a contar de cima): (i) a Grande Muralha da China, (ii) o oásis de Dunhuang, no deserto de Gobi, província de Gansu, (iii) a Praça de Tiananmen, em Pequim.

Fotos: António Graça Abreu (2010). Direitos reservados



1.Carta aberta ao Camarada António Lobo Antunes

Areias, Estoril, 5 de Setembro de 2010

Herdei alguma coisa dele (o pai): A solidão feroz, a capacidade de ser horrivelmente desgradável para os outros, (…) a agressividade injusta.

António Lobo Antunes, revista Visão, 2 de Setembro de 2010

António Lobo Antunes: Quando o Benfica jogava, púnhamos os altifalantes virados para a mata, e assim não havia ataques.

Jornalista: Parava a guerra?

António Lobo Antunes: Parava a guerra. Até o MPLA era do Benfica…

(Entrevista à revista Visão, Maio de 2005)



Camarada António Lobo Antunes

Comecemos pois pela bola.

Nós lá em Cufar, no sul da Guiné, 73/74, era mais para o verde, a Companhia de Caçadores 4740 até se denominava “Os Leões de Cufar.”

Quando o Sporting jogava, fazíamos quase o mesmo que vocês no leste de Angola, voltámos os nossos rádios (éramos pobrezinhos, não dispúnhamos de altifalantes!...) para a floresta e era certo, sabido e garantido que os guerrilheiros do PAIGC, todos sportinguistas, não nos atacavam. Vinham até ao arame farpado e por ali se quedavam, do outro lado, entusiasmados, embevecidos, felizes ouvindo os relatos do Nuno Brás e do Artur Agostinho, e os golos do Yazalde.

Mas escrevo-te não por causa do futebol. Questões mais momentosas e importantes têm trazido o teu nome para a ribalta sofrida dos ex-combatentes das guerras de África.

Tu não sabes, -- também como honestamente confessas, não vês televisão, não ouves rádio, não lês jornais, não tens net, enfim vives numa torre de ébano voltada para o lado opaco do quotidiano das gentes --, tu não sabes, dizia eu, mas no último fim de semana de Agosto reuniram-se em Monte Real, Leiria, um tantos ex-combatentes do Ultramar, com o objectivo de tentar entender e explicar as estranhas, as nebulosas afirmações do António Lobo Antunes sobre a sua guerra no leste de Angola, 1971/73.

Como deves recordar, o ano passado, em entrevista ao Céu e Silva, referiste as 150 baixas do teu batalhão e os pontos ganhos pelos teus soldados, conforme iam abatendo inimigos para, infatigáveis matadores, conseguirem ser mudados para regiões de Angola menos flageladas pela guerra.

Não foi fácil para os ex-combatentes chegarem a um consenso definitivo no que às tuas palavras diz respeito. Reunidos na clareira de uma mata junto ao o pinhal de Leiria, gentilmente cedida pelos herdeiros do Lúcio Tomé Féteira, os representantes dos ex-militares portugueses agrupados na ACNMNVAPC (Associação dos Combatentes Nem Mortos, nem Vivos, antes pelo Contrário) acabaram por concluir:

Primeiro:

150 baixas por batalhão não é uma boa média. Os nossos valentes e garbosos soldados gostavam de ter tido mais baixas. O problema é que quase não as havia. O leste de Angola como tu bem sabes, caro António, era o cu de Judas, terras do fim do mundo pouco povoadas, onde até os elefantes se esqueciam que possuíam uma prodigiosa memória de elefante.

As mulheres do leste de Angola não eram baixas, mas sim espigadotas, altas, secas de carne, peitos pequenos e encolhidos. Uma baixa constituía uma raridade. Estas baixas, sim, eram uma tentação para qualquer soldado, português, angolano, cidadão do mundo. De nádegas redondas e brilhantes, de peitos alteados e firmes, romãs suculentas cobertas de chocolate, estas baixas eram a perdição dos nossos excelentes mocetões. Fiéis aos ensinamentos do vetusto Salazar, tipo “muitas raças, uma só nação”, aquelas baixas portuguesas de Angola, pestanudas, roliças transformavam-se com facilidade, aos olhos da nossa tropa, na tão desejada namorada, a companheira, a vizinha, a menina branca que ficara lá longe, nostálgica, desamparada na aldeia lusitana de Vila Meã, Bensafrim, Antuã ou Cernache do Bonjardim.

O batalhão do alf. mil. médico António Lobo Antunes, lá por Angola, em Gago Coutinho, no Chiúme teve, segundo dados fornecidos por ti próprio, 150 baixas. Foi o que pôde ser, o que se pôde arranjar, e o que os deuses e os sobas do leste de Angola concederam aos nossos excelsos mancebos. Que hoje morrem de saudades – estamos todos mortos, falecidos, moribundos, semi-defuntos, etc., não é António? – por aquelas deliciosas baixas angolanas, de olhos de mel e frenéticos rabinhos empinados.

Segundo:

Quanto à procelosa questão do sistema de acumulação dos pontos obtidos com a mortandade feita sobre o IN, a fim de se obterem transferências para zonas de paz, os ex-militares das guerras de África na reunidos na tal ACNMNVAPC (Associação dos Combatentes Nem Mortos, nem Vivos, antes pelo Contrário, repito) tiveram grande dificuldade em entender tão radicais pressupostos apresentados por ti, camarada António Lobo Antunes.

Depois de muita deliberação, chegaram-se a conclusões.

Assim:

Os soldados, nos ócios da guerra, jogavam à sueca. Por jogo ganho, marcava-se uma bolinha preta na cruz de cada equipa. As cruzes iam-se enchendo de pontos negros que, por brincadeira de mau gosto, os nossos homens, associavam a cabeças de guerrilheiros. Como bem recordaste na entrevista ao jornal Expresso, a 28 de Agosto, “ninguém desce vivo da cruz”, nem sequer numa suecada à antiga. Podes pois imaginar a razia nas hostes inimigas que, jogando à sueca, provocávamos.

Mas há mais.

Os soldados jogavam à sueca, os sargentos e oficiais jogavam mais à batalha naval. Nesta última variante lúdica, como sabes, o objectivo era afundar contra-torpedeiros, submarinos, até porta-aviões. Também por brincadeira de mau gosto, os homens do teu batalhão diziam que os navios iam carregados de velhos, mulheres e crianças oriundas do Leste de Angola. Embarcavam em Luanda e depois, mar alto com eles… Cada barco ao fundo, era um morticínio atroz.

A tropa portuguesa jogava a dinheiro. Marcavam-se pontos e fizeram-se boas maquias, houve muito patacão arrecadado que os nossos militares, de férias, iam patrioticamente gastar em zonas onde a guerra estava ausente, no Luso e até em Luanda.

Está tudo explicado.

Saudações de camarada de armas,
António Graça de Abreu, alf mil infantaria, Comando de Agrupamento Operacional nº. 1, Guiné, 1972/1974.

[Fixação / revisão de texto / título: L.G.]


2. Comentário de L.G.:

O António acaba de regressar de mais  uma das suas viagens "sínicas" (leia-se: à China)... Julgo que desta vez foi também em trabalho. No regresso mostra estar em boa forma, a avaliar por esta carta aberta ao António Lobo Antunes que, antes de ser escritor famoso, foi nosso camarada de armas... em Angola.

A carta é uma peça, notável, de fino humor, deliciosa, inteligente, civilizada, irónica. Não sei se o destinatário é o ALA. Tenho dúvidas... De qualquer modo, sabemos, à partida, que o ALA não a vai ler, pela simples razão de que ele é um público e notório info-excluído (segundo a imprensa escrita, o ALA não tem computador, nem e-mail, nem página na Net, nem conta no Facebook, nem nenhum dessas tretas das chamadas TIC - Tecnologias de Informação e Conhecimento, que são obrigatórias para se ser membro deste blogue, por exemplo).

O António Graça de Abreu, além do mais, vem cheio de energia: no próximo dia  2 de Outubro a 18 de Dezembro, vai dar início, no Museu do Oriente / Fundação do Oriente, de um curso, de 12 sessões, sempre aos sábados, das 10h00 às 12h30, com o título Introdução à História da China. O preço de inscrição é de 100 euros. Esta iniciativa já foi divulgada internamente na nossa Tabanca Grande.

Desejamos-lhe que tudo corra bem e que, entre os inscritos, haja malta nossa, interessada em aprofundar os seus conhecimentos sobre a civilização e cultura chineses...

É explicitamente objectivo do curso ao longo de 12 sessões  "pontuar os períodos de crescimento, apogeu, estabilidade e decadência do velho Império do Meio. E caminhar, com todo o rigor possível, pela História, as mentalidades, a cultura, a construção dos quotidianos na China Clássica e Contemporânea. Macau e os Portugueses na China estarão naturalmente presentes, tal como o nosso Museu do Oriente".

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P6917: (Ex)citações (96): Camarada...não é bem irmão, não é bem amigo, não é bem companheiro, não é bem cúmplice, é uma mistura disto tudo com raiva e esperança e desespero e medo e alegria e revolta e coragem e indignação e espanto, é uma mistura disto tudo com lágrimas escondidas (António Lobo Antunes, escritor, 68 anos)

1. Já foi pensamento do dia... há três anos atrás. Foi extraído da crónica do António Lobo Antunes na revista Visão (4 de Outubro de 2007)... Na altura, a frase mereceu apenas um comentário dos nossos leitores... O nosso camarada Henrique Matos escreveu: "A definição [de camarada] merece mesmo honras de primeira página"... 

O escritor faz hoje 68 anos e já deu por encerrada a polémica, com ex-combatentes da guerra colonial, em que o seu nome esteve envolvido. O teor carta que enviou ao presidente da Liga dos Combatentes está disponível no seu blogue oficioso (mantido por um fiel leitor, José Alexandre Ramos): Vd. poste de 27 de Agosto de 2010 >  Não se desce vivo de uma cruz.

Quanto à frase do escritor que voltamos a destacar hoje (e que contrasta com as infelizes declarações do ex-combatente em Angola, alferes miliciano médico, que causaram perplexidade e indignação em muitos de nós, leitores ou não da sua obra), é a seguinte:

6 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2161: Pensamento do dia (12): Camarada, uma palavra que só quem esteve na guerra entende por inteiro (António Lobo Antunes)

(...) "Não morreste na cama mas morreste entre lençóis de metal horrivelmente amachucados na auto-estrada de Cascais para Lisboa e a gente ali, diante do teu caixão, tão tristes. Eras meu camarada, que é uma palavra da qual só quem esteve na guerra compreende inteiramente o sentido: não é bem irmão, não é bem amigo, não é bem companheiro, não é bem cúmplice, é uma mistura disto tudo com raiva e esperança e desespero e medo e alegria e revolta e coragem e indignação e espanto, é uma mistura disto tudo com lágrimas escondidas" (...).

Foto: Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6912: Controvérsias (104): O caso António Lobo Antunes: Apesar de um pouco de todos nós ter morrido na guerra... que haja paz! (JERO)

A1.  Mensagem do JERO [, foto à direita], com data de ontem:

Caro Comandante



Ainda de São Martinho do Porto envio-te, em fim de férias, uma "actualização" do caso António Lobo Antunes [, ALA]. A versão é minha feita com o auxílio de algumas "peças" do nosso blog a que darás o destino que entenderes.


Cumprimentos a tua mulher e um abraço para ti do tamanho da Baía.


JERO


A2. Lobo Antunes e as “metáforas”… “Os factos não interessam nada”…
por JERO

Finalmente parece que está encontrado um caminho para a paz na “guerra” entre Lobo Antunes e os ex-militares (Expresso, de 28 de Agosto de 2010).

Recordamos resumidamente algumas das “peças” desta história da vida real, que incomodou sobremaneira o mundo dos ex-combatentes onde nos incluímos.

1- O tenente-coronel do Exército Carlos Matos Gomes, que escreve sob o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz, classificou recentemente como «fantasias e delírios» as declarações do escritor e ex-combatente António Lobo Antunes sobre a guerra colonial.

Lobo Antunes descreveu um cenário de barbárie causado pelos militares portugueses na zona de Angola onde cumpriu comissão de serviço na guerra, numa das entrevistas que integram o livro Uma Longa Viagem com António Lobo Antunes.

Descontente, um grupo de ex-combatentes, oficiais na reforma, quis processar o escritor por «atentado à honra e dignidade dos militares», tendo apresentado ao chefe do Estado-Maior do Exército uma petição nesse sentido.

A possibilidade de se avançar para um processo-crime foi rejeitada, por se tratar de uma «obra de ficção», noticiou recentemente o semanário Expresso, segundo o qual os militares admitem dar «um par de murros em público» ou «ir ao focinho» do escritor, a quem chamam ainda «bandalho» e «atrasado mental».

2- Uns meses antes -18 de Novembro de 2009- o comentário do meu “irmão de armas” Mexia Alves no blog do nosso “Luís Graça e Camaradas da Guiné” (P 5292) começava assim «…apenas vos digo que isto deve ter sido das coisas que mais me insultou como ex-combatente da guerra do Ultramar.

«Eu tinha talento para matar e para morrer. No meu batalhão éramos seiscentos militares e tivemos cento e cinquenta baixas. Era uma violência indescritível para meninos de vinte e um, vinte e dois ou vinte e três anos que matavam e depois choravam pela gente que morrera. Eu estava numa zona onde havia muitos combates e para poder mudar para uma região mais calma tinha de acumular pontos. Uma arma apreendida ao inimigo valia uns pontos, um prisioneiro ou um inimigo morto outros tantos pontos. E para podermos mudar, fazíamos de tudo, matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava, e como quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros».

(…) Mas são sobretudo estas duas frases que me indignam, «E para podermos mudar, fazíamos de tudo, matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava, e como quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros», porque faz dos militares portugueses um bando de assassinos frios e sem piedade, o que nós sabemos nem de longe nem de perto corresponde à verdade.

(…) Abraço camarigo para todos. Joaquim Mexia Alves

3- Aconteceram muitos e variados comentários de outros ex-combatentes.

Pela sua importância destacamos o comentário do nosso Editor Luís Graça que, entre várias considerações, referia então:

«As infelizes frases ditas, no estrangeiro, por um escritor de que eu sou leitor(…), reportam-se à sua condição de médico militar durante a guerra colonial e, nessa qualidade, não nos podem deixar indiferentes, dizem-nos também respeito... Em todo caso, não podem ser usadas como título de caixa alta, postas entre parênteses, fora de contexto, muito menos como libelo de acusação para linchamento do homem e do escritor em praça pública... Há que ler o livro e inserir essas e outras frases no contexto da experiência do autor que era, antes de mais, um oficial miliciano e só depois médico e só mais tarde escritor (em 1985, torna-se escritor profissional, abandonando a psiquiatria)... Deixo aqui outras frases do livro, o qual resulta - é bom não esquecê-lo! - de uma longa conversa com o Lobo Antunes, mantida pelo jornalista João Céu e Silva (que é, de facto e de jure, o AUTOR DO LIVRO!), entre Setembro de 2007 e Maio de 2009:


(...) [JCS] Dessa guerra há um dia que o tenha marcado mais do que todos os outros ?


[ALA] Há o dia 13 de Outubro de 1972, mas não posso dizer porquê. Foi uma violência, nunca vou esquecer esse dia! (p. 111)... (...) Eu nunca quis falar nem nunca escrevi sobre a guerra! (p. 110)... Há dias, tive uma conversa com um amigo... e recordei algumas coisas da tropa, o resultado foi que passei uma noite má. Acho que não há quem não tenha vindo de lá afectado (p. 111)...


Qual é esse terrível segredo que o escritor tem guardado, até hoje, só para si? E que não quis compartilhar com o João Céu e Silva (p. 391) ?... Aliás, essa "declaração inédita", esse terrível parágrafo que começa pelas terríveis palavras "Eu tinha talento para matar e para morrer"... podem ser "parte da solução do mistério sobre um certo episódio em África que se recusou a revelar-me" (sic) ... E, se for de facto assim, é um daqueles segredos que o homem leva para a cova , e não apenas uma manifestação da imaginação delirante do autor de "Memória de Elefante" (1979) ?

De resto, as declarações do veterano da guerra colonial de Angola podem levantar (levantam, seguramente) uma questão ética, que tem ver com ambiguidade, confusão e conflito de papéis a que o Lobo Antunes também não escapa, como ser social: onde acaba a consciência moral do homem, do militar e do médico e começa a liberdade criativa do escritor ? (…) Não sou advogado do escritor, muito menos do homem. E quero sobretudo reafirmar aqui um dos nossos princípios fundamentais, a (ix) liberdade de expressão (entre nós não há dogmas nem tabus), princípio esse que tem que ser compatível com o (i) respeito uns pelos outros, pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (hoje e ontem)...

4 - Voltando à actualidade (e ao Expresso de 28 de Agosto) a divulgação da troca de cartas entre António Lobo Antunes e o General Chito Rodrigues (Presidente da Liga dos Combatentes) somos surpreendidos pela novidade de que o escritor só se apercebeu da polémica – que dura há meses - durante o último fim de semana. E porquê ?

Porque não é um homem do seu tempo... A responsabilidade da afirmação é nossa e resulta do facto do próprio escritor reconhecer que «…não compro jornais, não tenho computador, não vejo televisão, nem vou à Internet».

E finalmente admite uma falha no relato que faz nas suas memórias de guerra. «Deveria ter dito que cada companhia teve 150 baixas e que cada batalhão teve 600 baixas”, porque, explica,«um pouco de todos nós, no melhor dos casos, morreu na guerra».

Aqui entendemos e subscrevemos.

«…Falou (fala) da guerra como fala da sua vida pessoal” de maneira completamente metafórica”, porque “os factos não interessam nada” e é preciso ver “a natureza e a verdade mais profunda das pessoas”.

Fica por esclarecer «…o sistema por acumulação de pontos entre os soldados ganhos com a morte dos velhos e crianças…».

Será com certeza mais uma metáfora que, na nossa opinião de ex-combatente, é, no mínimo, de extremo mau gosto…

Lobo Antunes não está acima da crítica… e os ex-combatentes merecem respeito, consideração e tranquilidade na reminiscência das suas memórias.

Apesar de um pouco de todos nós ter morrido na guerra…que haja paz!

JERO
 
B.  Outros comentários recentes de camaradas nossos que não chegaram a ser "postados":
 
B1. Do Torcato Mendonça,com data de 24 do corrente:
 
Camarada Amigo [C.V.]:

O Gen Chito Rodrigues, Presidente da Liga de Combatentes,  mostrou o seu desagrado pela entrevista do A. Lobo Antunes. Uma tal Liga dos Combatentes do Ultramar quer ouvir o escritor, isto no DN de hoje. Deve ser no seguimento da notícia da contra capa do último Expresso. Agora anda tudo a ver se chega primeiro.

Fui ver os recortes mas não encontrei.Tenho é o livro/entrevista Uma longa viagem com ALA do J. Céu e Silva. Sei que saiu aqui, e de que maneira, a condenação ao ALA. O sujeito estava (está?) louco quando disse aquilo e não venham com ficções...um fulano que é psiquiatra há tantos anos...

Porque escrevo? Só para te alertar que, provavelmente, vai aparecer aí Bernarda...deve ser só granada de fumos... das outras já se gastaram todas...

Um abraço, C.Vinhal,

do Torcato


B2. Do Carlos Filipe, com data de 25 do corrente:
 
UM LIVRO V/S UM (EX)-COMBATENTE

Lobo Antunes, com mérito próprio, escritor com todo o direito de criar suas obras literárias, com mais ou menos ficção, com histórias baseadas ou não em maiores ou menores verdades. Ninguém lhe pode tirar esse direito. E muito menos impôr-lhe o que deve ou não escrever. O que seria uma aberração da inteligência humana.

O que podemos nós, leitores, é aceitá-lo ou não, fazer a leitura dos seus livros ou não. Embora se lermos os seu livros, tenhamos o direito de estudar e criticar, sem dúvida alguma.

Já escrevi num comentário ao P6878,  "nuito mal vai a liberdade de expressão e de pensamento neste país, com a agravante de se tratar da interpretação de factos já com tempo suficiente de neutralizar barreiras de convivio intelectual". Também fiz referência à obra do escritor.

Porque volto ao assunto ? Partindo dos pressupostos acima, nada dá o direito aos "combatentes" de castigar quem quer que seja, pelo conteúdo do seu trabalho literário.

Isto faz-me lembrar o tempo da censura, da recolha (roubo) de livros das livrarias pela PIDE/DGS, etc. Ou ainda a detenção de alguém que tivesse publicado um trabalho com alguma distribuição. Para já não falar nas buscas a casas a onde a mesma suspeitasse haver pequenas bibliotecas de livros ditos subversivos.

Bem!... o principal motivo deste texto não é exactamente porque os "combatentes " estejam zangados ou não com o Sr. Escritor. De nenhuma forma me afecta, a não ser a preocupação do lento, mas contínuo aferrolhar da liberdade, em nome de valores muito discutiveis.

O principal motivo é a intervenção (declarações) de um sr. Tenente-Coronel de nome Morais [qualquer coisa] à televisão (SIC).

Sabendo-se que o próprio Chefe do Estado Maior do Exército, não patrocionou uma queixa contra o escritor Lobo Antunes, creio que, por considerar uma obra de ficção, o sr Ten Cor começou por afirmar que os "combatentes" tinham muita razão para estarem zangados com o escritor. Porque no seu entender do escritor "de certa maneira" chamou-os de assassinos. Chamou??

A seguir acrescenta "eram combatentes fizeram tanto quanto possivel uma guerra limpa". Afinal há guerras limpas e sujas e tambem outras com algumas nódoas, digo eu. E o sr Ten Cor não tem a certeza.

Reconhecendo que houve excessos por parte das forças armadas portuguesa (pouco claros,  digo eu) como em todas as guerras, chegamos ao verdadeiro DETONADOR da questão.

Garante o sr. Tenente Coronel Morais [Qualquer Coisa], que, " esses excessos praticados pelas F. Armadas, não foram planeados, não foram excessos projetas pelos Estados Maiores " estes "...nunca planearam nenhuma chacina, nenhum morticinio...as coisas aconteceram pelo chamado ruído, nevoeiro da guerra".

Há aqui qualquer coisa que não bate certo, que me coloca a seguinte interrogação: Não havia Cadeias de Comando? Então de Alferes até aos Soldados, que eram os que iam para o mato, seriam eventualmente os potenciais elementos que sujavam a guerra toda, porque a guerra limpa era a nível superior. Raios, afinal quem se sujou ou quem sujou ??

Não havia meios de comunicação (mesmo deficientes)? Grande parte das operações não eram planedas mesmo a nivel de Batalhão? E tantas outras ainda a nivel mais superior, mesmo ministrial ?? Então de quem foi e quais foram as directivas para as grandes operações que deram tanto burburinho a nivel internacional? Tudo isto, mesmo considerando os imponderáveis.

Sendo por aqui que o Sr.Ten Cor começa, vai agora ao encontro do texto do Lobo Antunes que tanto incomodou as nossas "praças"!!!

A questão dos "prémios", que parece ser o extrato da obra do escritor, para mim tambem é uma absoluta parvoíce e ridícula.

Diz o sr Ten Cor Morais [Qualquer Coisa]"...que nunca teve conhecimento" de tais prémios. Acredito até me ser razoavelmente demonstrado o contrário.

Mas mais uma vez , suporta-se em uma pequena parte do texto (já referenciado) do romance, do livro, da ficção, ou até eu posso chamar-lhe desvario literário do escritor Lobo Antunes, para deixar claro o seguinte: "...os combatentes têm razão para estarem fortemente zangados e para quererem castigar o escritor Lobo Antunes, por uma falsidade que ele cometeu",  esclareceu-nos o sr. Ten Cor.

Novas perguntas se me colocam: Quem são exactamente estes "combatentes" que querem castigar o escritor e como se revestia o castigo, de que tipo ??? Ainda estão de alguma forma no activo estes "combatentes" ???

Será que estão estes "combatentes" a acelarar para a frente, na esperança de chegarem a uma grandiosa parada, a que se faça a apologia da mordaça e outros desvios democráticos, tão em voga ???

Por último, o Sr. Tenente Coronel Morais [Qualquer Coisa] é apresentado como membro da Comissão Executiva do Encontro Nacional de Combatentes, por isso tinha socialmente o dever moral de tentar apaziguar a situação e não falar sobre ela como um "grito de guerra" sendo perentório de que " ...zangados...e quererem castigar o escritor Lobo Antunes... "

Por outro lado tendo sido (com certeza) oficial na guerra colonial, chefiando homens em situação hostil, deveria saber, no meu entender, desviar as "sinergias" dos combatentes (estou a falar de ex-combatentes e no meu entender) para os problemas que se lhe colocam hoje com idades que rondam os 60 anos, como a saúde, pensões, tratamentos, cuidados hospitalares e outros.

Sou anti-militarista, anti-colonialista. Andei por lá como os outros e repudio solenemente o que se passou nas as ex-colónias, mas não aceito que se venha atribuir a "sujidade" da guerra aos Soldados e/ou a Graduados de pequena patente. A HISTÓRIA NÃO SE APAGA.

P.S. - Actualmente que se saiba não estamos em guerra, em lado nenhum, portanto não existem combatentes, designação que deriva de condição de guerra ou outra similar. O que existem são ex-combatentes ou ex-militares. Salvo que ainda se tenha algures o sentimento de que se esteja em algum tipo de guerra surda.

E assim se vai lançando as "Sementes do Diabo".

http://sic.sapo.pt/online/video/informacao/noticias-pais/2010/8/ex-combatentes-do-ultramar-indignados-com-declaracoes-de-livro-de-lobo-antunes24-08-2010-23399.htm

Carlos Filipe
1º Cabo Radiomontador,
CCS/BCAÇ 3872,
Galomaro, 1971/74

B3. Este outros mails anteriores do Carlos Filipe (que está em tratamento por motivo de doença oncológica) mereceu o seguinte comentário da minha parte (LG):

Meu caro Filipe:  Sei que o momento que estás a passar, na tua vida, é penoso, doloroso, e eu não quero contribuir em nada para que o teu fardo ainda seja mais pesado... Pelo contrário, desejo-te rápidas melhoras e sobretudo muita força, física e mental, para venceres esta "má onda"... Quero estar contigo neste momento difícil que seguramente há-de passar...


Quanto aos documentos que nos tens enviado [ nomeadamente um artigo do El Correo de la Unesco, em espanhol, sobre as colónias portuguesas, de 1973], confesso que, por motivo de férias e menor disponibilidade de tempo para o blogue, ainda não os apreciei em detalhe... Mas já percebi o seu interesse documental. Oportunamente dir-te-ei a minha opinião. Até lá conto com a tua activa colaboração. Mas, deixa-me acrescentar, que no nosso blogue privilegia-se os textos "inéditos", incluindo documentos policopiados, da época, oriundos das NT ou do PAIGC, de circulação restrita, com interesse historiográfico, etc. É sempre necessário alguma relação, directa ou indirecta,com a temática na Guerra Colonial na Guiné...


PS - Em relação ao texto, corajoso, contra a maré, que escreveste em defesa do ALA [, António Lobo Antunes,], estou indeciso em voltar à polémica que começou, de resto, no nosso blogue... Por um lado, considero o assunto encerrado; por outro,  "aquela guerra não é nossa"... O ALA (que aprecio mais como escritor do que como homem e médico) não precisa deste "ruído" (...). É confrangedor ler certos comentários, que não gostaria de voltar a (re)ler no nosso blogue [...]. Se leres o blogue não oficial do ALA, por ele está tudo esclarecido...


http://www.alawebpage.blogspot.com/

[ Revisão / fixação de texto / bold a cor / título: L.G.] (*)
____________

Nota de L.G.:

(*) Último poste da série > 22 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6880: Controvérsias (103): O BCAÇ 237, a CCAÇ 153, o Coronel Bessa, o Major Pina, o início da guerra... (Carlos Silva / José Pinto Ferreira)

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5292: Controvérsias (54): A. Lobo Antunes faz dos militares portugueses um bando de assassinos frios e sem piedade (J. Mexia Alves)

1. Mensagem, com data de ontem, do nosso camarigo (camarada + amigo) Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Esp, CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa) (1971/73):

Meus caros camarigos:

Em comentário ao texto do Amílcar Mendes (*), aqui deixo a minha opinião.

Podem colocá-lo como comentário ou fazer dele o que quiserem, apenas vos digo que isto deve ter sido das coisas que mais me insultou como ex-combatente da guerra do Ultramar.

«Eu tinha talento para matar e para morrer. No meu batalhão éramos seiscentos militares e tivemos cento e cinquenta baixas. Era uma violência indescritível para meninos de vinte e um, vinte e dois ou vinte e três anos que matavam e depois choravam pela gente que morrera. Eu estava numa zona onde havia muitos combates e para poder mudar para uma região mais calma tinha de acumular pontos. Uma arma apreendida ao inimigo valia uns pontos, um prisioneiro ou um inimigo morto outros tantos pontos. E para podermos mudar, fazíamos de tudo, matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava, e como quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros».

Estas são, por aquilo que me é dado saber, as frases proferidas por Lobo Antunes e que são objecto da justa indignação do Amílcar Mendes e de muitos mais.

Para mim, muito mais importante que a frase: «Eu tinha talento para matar e para morrer», que até posso levar à conta de liberdade de expressão do escritor, (embora me pareça mais uma “boca idiota” de auto-elogio de quê não se sabe), são as afirmações que faz seguidamente, essas sim de uma gravidade muito séria e que colocam em causa todos os ex-combatentes, na sua dignidade, na sua humanidade, bem como as Forças Armadas Portuguesas, para além da enorme mentira que contêm.

Lembremo-nos que Lobo Antunes esteve em Angola já nos anos 70, ou seja, quando a guerra em Angola estava praticamente acabada, (cheguei a Angola no início de 74 e circulava-se livremente por todo o território), e portanto as operações militares, sobretudo ao nível dos Batalhões em quadrícula, não eram de molde a provocar as baixas que ele cita e muito menos a barbárie que ele refere.

Para um Batalhão em Angola ter naquele tempo 150 baixas, (que número tão redondo), como ele refere na mesma ocasião, deve ter contado as baixas por matacanhas e as unhas encravadas!

Um dos meus irmãos mais velhos esteve no Norte de Angola de 63 a 65, sempre em zonas de combate, e disse-me peremptoriamente que essa história dos pontos é uma pura e simples invenção, o que aliás nós bem percebemos, porque se fosse prática em Angola porque não o seria na Guiné e em Moçambique?

Mas são sobretudo estas duas frases que me indignam, «E para podermos mudar, fazíamos de tudo, matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava, e como quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros», porque faz dos militares portugueses um bando de assassinos frios e sem piedade, o que nós sabemos nem de longe nem de perto corresponde à verdade.

Não nos esqueçamos que são frases proferidas por um médico, que já o era, e que
portanto estava, devia estar, arredado das acções directas de combate.

Coloca também em causa os seus camaradas de Batalhão, fazendo deles uma espécie sub-humana, sem sentimentos e a roçar o animalesco! (...)

Pode ser um grande escritor, pode ser um bom médico, pode ser um intelectual, mas não é com certeza um homem decente quando profere estas aleivosias e insulta os ex-combatentes e as Forças Armadas Portuguesas.

E, desculpem, mas não perco mais tempo com este gajo!!!

Abraço camarigo para todos.
Joaquim Mexia Alves

2. O Joaquim já tinha deixado um comentário no poste do Amílcar (*). Tomo a liberdade de reproduzir o seguinte excerto:

(...) Mas repara meu amigo, que já aqui por variadas razões se “terçaram armas”, por vezes bem mais “violentamente”, por outros ditos de militares, jornalistas, etc, e considero que não podemos invocar os talentos de Lobo Antunes para a escrita, ou as suas capacidades intelectuais, ou a sua bela definição de camarada de armas, para nos eximirmos de o criticar quando diz coisas que atentam contra a dignidade de todos os ex-combatentes, sobretudo os que estiveram em Angola, e isso toca-me como ex-combatente e toca-me na família.

Um homem grande, de honestidade intelectual, que eu apesar de tudo acredito que ele é, já devia ter “vindo a terreiro” explicar as suas palavras e se exagerou, (e quem de nós não o fez já em determinadas circunstâncias?), devia retratar-se e explicar que tudo não passou de “figuras de estilo”. (...)


3. Comentário de L.G.:

As infelizes frases ditas, no estrangeiro, por um escritor de que eu sou leitor, mas que só conheço de vista (autografou, ao meu filho, adolescente, um dos seus livros há já uns largos anos na Feira do Livro de Lisboa, ainda era vivo o seu grande amigo, o José Cardoso Pires que estava a seu lado, e que escreveu uma ternurenta dedicatória à minha filha no seu livro "Hóspede de Job"), essas infelizes frases, dizia eu, reportam-se à sua condição de médico militar durante a guerra colonial e, nessa qualidade, não nos podem deixar indiferentes, dizem-nos também respeito... Em todo caso, não podem ser usadas como título de caixa alta, postas entre parênteses, fora de contexto, muito menos como libelo de acusação para linchamento do homem e do escritor em praça pública...

Há que ler o livro e inserir essas e outras frases no contexto da experiência do autor que era, antes de mais, um oficial miliciano e só depois médico e só mais tarde escritor (em 1985, torna-se escritor profissional, abandonando a psiquiatria)... Deixo aqui outras frases do livro, o qual resulta - é bom não esquecê-lo! - de uma longa conversa com o Lobo Antunes, mantida pelo jornalista João Céu e Silva (que é, de facto e de jure, o AUTOR DO LIVRO!), entre Setembro de 2007 e Maio de 2009:

(...) [JCS] Dessa guerra há um dia que o tenha marcado mais do que todos os outros ?

[ALA] Há o dia 13 de Outubro de 1972, mas não posso dizer porquê. Foi uma violência, nunca vou equecer esse dia! (p. 111)...

(...) Eu nunca quis falar nem nunca escrevi sobre a guerra! (p. 110)... Há dias, tive uma conversa com um amigo... e recordei algumas coisas da tropa, o resultado foi que passei uma noite má. Acho que não há quem não tenha vindo de lá afectado (p. 111)...


Qual é esse terrível segredo que o escritor tem guardado, até hoje, só para si? E que não quis compartilhar com o João Céu e Silva (p. 391) ?... Aliás, essa "declaração inédita", esse terrível parágrafo que começa pelas terríveis palavras "Eu tinha talento para matar e para morrer"... podem ser "parte da solução do mistério sobre um certo episódio em África que se recusou a revelar-me" (sic) ... E, se for de facto assim, é um daqueles segredos que o homem leva para a cova , e não apenas uma manifestação da imaginação delirante do autor de "Memória de Elefante" (1979) ?

De resto, as declarações do veterano da guerra colonial de Angola podem levantar (levantam, seguramente) uma questão ética, que tem ver com ambiguidade, confusão e conflito de papéis a que o Lobo Antunes também não escapa, como ser social: onde acaba a consciência moral do homem, do militar e do médico e começa a liberdade criativa do escritor ?

Os lapsos de memória do ex-oficial miliciano médico ou até a sua falta de rigor em relação a questões técnico-militares (por ex., calibres de armamento) devem ser tidas em conta, mesmo que não sirvam de desculpa... Por ex., na página 239, leio algumas coisas que me espantam e que não tenho a certeza de serem correctas (pode ser que alguém mo confirme):

"E à volta de cada mina, [os guerrilheiros do MPLA] punham várias minas antipessoais, porque a mina anticarro rebentava com duzentos quilos e a mina antipessoal, com a pica, eram mais quarenta quilos e aquela merda estourava toda. Mas asim saía mais barata ao Estado , porque enquanto uma Berliet custava dois ou três mil contos, pela morte de um homem, por um rapazinho, paam quatrocentos contos à família. Ficava mais barato!"

Confesso que já não sabia a que pressão rebentavam as minas e, muito menos, que o Estado pagava, na época, 400 contos de indemnização à família pela perda de um vida, cinco ou sete vezes e meia menos do que o custo de uma Berliet do Tramagal...

Fico por aqui. Não sou advogado do escritor, muito menos do homem. E quero sobretudo reafirmar aqui um dos nossos princípios fundamentais, a (ix) liberdade de expressão (entre nós não há dogmas nem tabus), princípio esse que tem que ser compatível com o (i) respeito uns pelos outros, pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (hoje e ontem)...

Quadratura do círculo ? Às vezes as peças não encaixam mesmo...

[ Revisão / fixação de texto / bold a cores / título: L.G.]

___________

Nota de L.G.

(*) Vd. poste de 17 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5283: Carta aberta ao António Lobo Antunes: que p... é essa de ter talento para matar ? (Amílcar Mendes, 38ª Cmds, 1972/74)