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quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23618: Bedanda, região de Tombali, no início da guerra - Parte II: Testemunho de Jorge (ou George) Freire, ex-cap inf, comandante da 4ª CCAÇ , no período de novembro de 1962 a maio de 1963



Jorge Freire, ex-cap inf, que esteve na Guiné, em 1961/63, e desde então a viver nos EUA (aqui com a sua esposa), e onde é conhecido por George Freire, engenheiro e empresário. Desde julho de 2019, o seu blogue tem estado inativo. Esperamos que ele e a família estejam bem de saúde.

Foto: © George Freire (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


 

 Vídeo (9' 56'') George Freire > Nov 62 / mar 63 > Vídeo 2/3 > Nova Lamego, Buruntuma, Bissau, Cacine, Bedanda, Chugué... Os primeiros sinais da guerra, no sul da Guiné, em março de 1963: O primeiro morto, o primeiro prisioneiro, as primeiras transferências de população, ... A farda amarela, a mauser...Fauna local: a hiena, o crocodilo... O Rio Cumbijã...

Inserido na conta do Virgínio Briote no You Tube / bra6567 (licar aqui, como alternativa, para visionar o filme)

1. Todas as guerras tem um começo, um desenvolvimento e um fim... É como um rio, que é alimentado, desde a nascente, por mil e um riachos, ribeiras e outros rios... A guerra pela independência na Guiné, levada a cabo pelo PAIGC,  era perfeitamente previsível... Só restava saber a data,  a hora e o local do primeiro tiro, como viria a acontecer em 23 de janeiro de 1963, em Tite, pelas 01h45.

Depois foi o jogo de xadrez... Nem sempre há xeque-mate, como foi o caso... Estupidamente, os dois contendores (e os seus estrategas, patrocinadores e  claques de apoio) deixaram a guerra / o jogo arrastar-se demasiado tempo, por onze (ou mais) longos anos. Acabou por se encontrar uma "solução política", esgotada a sorte das armas... que nem sempre protege os audazes.

Recuemos, pois,  ao princípio imediato, passando por cima das complexas condições antecedentes (causas próximas e remotas), que isso fica para os historiadores... 

Do lado português, é impressionante ver como uma  escassa força de algumas centenas de homens guarnecia, em agosto de 1962,  todo o sul da Guiné, compreendendo a região de Quínara (onde a guerra começou) e a região de Tombali, que era o celeiro da Guiné: Comando do BCAÇ 237 (Tite); CCAÇ 152 (Cacine, Gadamael Porto, Aldeia Formosa, Saltinho); CCAÇ 153 + Pel Caç 859 (Fulacunda);  1 Pel Caç / CCAÇ 84 (Empada e Cufat), 

ZA (Zona de Acção) de Tite - Abrangia o sul com fronteira com a República da Guiné (*):
  • Comando do BCaç 237 (Tite); 
  • CCaç 152 (- Pel e 1 Sec) (Buba);
  • 1 Pel Caç / CCaç 152 (Cacine) com 1 Sec Caç (Gadamael Porto); 
  • 1 Pe1 Caç (-)/CCaç 152 (Aldeia Formosa) com 1 Sec Caç (Saltinho);
  • CCaç 153 (-1 Pel) e Pel Caç 859 (Fulacunda); 
  • 1 Pel Caç/CCaç 84 (- 1 Sec) (Empada) com 1 Sec Caç (Cufar); 
  • 4ª CCaç (-1 Pel e 1 Sec) (Bedanda) com 1 Pel Caç (Tite); 
  • 1 Sec Caç (Cacine); 
  • CIM: 2 Pel Caç (I) (Bolama); 
  • Pel Mort 19 (Tite);
  • Destac Man Mat 245 (Tite).

Guiné > Dispositivo das NT em 8 de agosto de 1962.  Destaque para a ZA de Tite (que abrangia todo o sul, com fronteira com a Guiné-Conacri: umas escassas centenas de homens concentrados em Tite, Fulacunda, Bolama, Buba, Empada, Aldeia Formosa, Bedanda, Catió e Cacine:

Infografia: CECA (2014) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné  (2022)

Quatro meses depois, em 1 de janeiro de 1963, o  Sector Sul era guarnecido pelas seguinte forças,  parte delas do recrutamento local: 4ª CCAÇ + Pelotões de Caçadores Indígenas (*):
  • 1 Cmd BCaç, 1 Sec Caç Indígena (I) e 1 Pel Mort todos aquartelados em Tite;
  • 1 Pel Caç (+) em Aldeia Formosa
  • 2 CCaç (-2 Pel e 3 Sec) e 1 CCaç I (- 2 Pel e 4 Sec) em Bedanda
  • ClM, 1 Pel Caç (Pel Indígena - 1 Sec) em Bolama
  • 1 CCaç (-1 Pel) + 1 AMetr em Buba
  • 1 Cmd BCaç, 1 CCS (-1 Pel Rec Inf), 1 CCaç, 1 Sec Caç (Ind) e I Pel Mort todos aquartelados em Catió
  • 1 Pel Caç (1 Sec Ind) em Cabedú
  • 1 Pel Caç (l Sec Ind) em Caboxanque
  • 1 Pel Caç + 1 Sec Caç (Pel Ind) em Cacine
  • 1 Pel Rec Inf em Cufar
  • 1 CCaç (-3 Pel) + 1 Sec (1 Sec Ind) em Empada;
  • 1 CCaç + 1 Pel Caç + 1 AMetr em Fulacunda
  • 1 Pel Caç (-1 Sec), Pel Ind (- 2 Sec) em Chugué
  • 1 Pel Caç (1 Sec Ind) na Ilha das Galinhas.

2. Contemporâneo destes acontecimentos, temos o Amadu Bailo Djaló (**), ex-sold condutor auto, que esteve em Bedanda, na 4ª CCAÇ durante o 1º semestre de 1963, antes de se oferecer, em 1964, para os Comandos do CTIG. Do que viu não gostou, nem teve saudades de Bedanda.  

Verificamos agora que ele teve como comandante, nesse período, o ex-cap inf Renato Jorge Cardoso Matias Freire (ou só George Freire, como é conhecido nos EUA, para onde emigrou logo em meados de 1963, e na nossa Tabanca Grande, onde ingressou em 29/12/2008).

Da leitura do diário da Guiné, de George Freire,  depreende-se que houve um rápido alinhamento da população local, com os fulas a mostrarem-se leais às autoridades portuguesas e os balantas (e outros: biafadas, nalus...) a ficarem do lado do PAIGC...  Ficamos a saber, por exemplo, que a população (fula) de Bedanda, em meados de 1965, ao tempo do cap inf Aurélio Manuel Trindade, era fundamentalmente oriunda do Cantanhez, e mais concretamemte de Iemberém (no nosso tempo, Jemberém).

Houve seguramente terror e contraterror nestas ações de ambos os lados, nos primeiros tempos da guerra. Mas repare-se que os prisioneiros feitos pela 4ª CCAÇ eram  entregues ao batalhão (o George Freire não o identifica, claramente, mas seria o BCAÇ 356). 

Por outro lado, um dos alvos privilegiados da ação da guerrilha são as casas comerciais, a Ultramarina (ligada ao BNU) e à Gouveia (pertencente à CUF)... O PAIGC apropriara-se, em Cafine, em 25 de março de 1963, do navio "Mirandela", pertencente da casa à Gouveia,  e do navio "Arouca",  da casa Brandão (serão depois utilizados  para transporte de pessoal e material em águas da Guiné-Conacri).

A produção de arroz vai decrescer drasticamente nos anos seguintes. A importação de arroz mais do que triplica de 1962 (c. 9 mil toneladas) para 1964 (c. 30 mil toneladas). A Guiné nunca mais será a mais a mesma, depois do ataque de Tite, em 23 de janeiro de 1963. As comunicações (por terra e por rio), em particular, tornaram-se impossíveis ou difíceis.

(...) A situação no Sul piorava. O inimigo actuava então em quase todo o sector, aproveitando o facto de serem muito escassos os efectivos militares. As deslocações destes tornaram-se cada vez mais difíceis, em face das obstruções das principais estradas da região. Em 2/3Abr, o ln atacou por três vezes o aquartelamento do Destacamento do Chugué; assassinou nativos e régulos que resistiam ao aliciamento; no dia 07, atacou elementos militares em reconhecimento na região de S. Miguel Balanta; em 21, numeroso grupo inimigo opôs forte reacção à CCaç 414, nas ilhas de Caiar e Como. Em 22, o ln atacou por duas vezes forças militares que actuavam em Jabadá.

Esta actividade do ln levava a admitir que, no Sul da Província, só estavam efectivamente sob controlo das autoridades as populações que viviam próximo das guarnições militares; as mais afastadas consideravam-se sujeitas à pressão do ln, como é natural em guerra subversiva" (Fonte_ CECA, 2014, pág. 92).

Todos estes topónimos, citados pelo George Freire, no seu diário, são-nos familiares, para muitos de nós: Bedanda, Cabedu, Caboxanque, Cacine, Cadique, Cafal, Cafine, Catió, Chugué, Jemberem, Mejo, Salancaur...  Ainda não se falava de Guileje nem de Gadamael... Repare-se que há tabancas que vão ser logo de imediato abandonadas (caso de Jemberém, cuja população fula é transferida então pela 4ª CCAÇ  para Bedanda), 

Achámos oportuno voltar a publicar este documento que, a par do testemunho escrito do Amadu Djaló, nos ajuda a perceber a rápida degradação da situação mlitar no sul da Guiné, nos primeiros seis meses de 1963.

2. O testemunho de George Freire [ex-cap inf Jorge Freire, da CCAÇ 153, da 3ª CCAÇ e da 4ª CCaç, Fulacunda, Nova Lamego, Bissau, Bedanda, 1961/63; hoje engenheiro, a viver desde agosto de 1963 nos EUA]

(...) "Durante o Natal de 1961 a minha mulher veio passar um mês a Bissau onde eu estava na altura a comandar uma companhia de nativos. 

Em Julho de 1962 a minha mulher voltou para a Guiné e passou quase 3 meses no Gabu (Nova Lamego), onde eu comandei uma companhia mista [3ª CCAÇ, futura CCAÇ 5, "Gatos Prertos", a partir de 1/4/1967, Canjadude, 1967/1974]. 

Do Gabu fui transferido para Bedanda   [4ª CCAÇ, futura CCAÇ 6, "Onças Negras", a partir de 1/4/1967, Bedanda, 1967/1974], onde ela ainda passou quase um mês, mas nos fins de Dezembro tive que a mandar de volta a Portugal pois as coisas começaram a aquecer demais. (...) 


O meu Diário da Guiné
 
por George Freire

Como história, transcrevo partes de um diário que encontrei no meio de papelada antiga numa gaveta da minha secretária. A primeira entrada no diário foi no dia 31 de janeiro de 1963 e a última, no dia 28 de maio do mesmo ano. Aqui vai:

31/1/63:

Ataque de terroristas aos Fulas de Jemberem 
[no original, Emberém, hoje Iemberém]. Mataram o chefe da tabanca e outros 6 Fulas.

2/2/63:

Acção em Boche Falace pelas minhas forças de Emberém. Um grupo de terroristas balantas em fuga deixou grande quantidade de arroz cozido (!).

6/2/63:

O nosso destacamento em Salancaur foi atacado às 00:30. Tivemos baixas: um furriel e um soldado foram mortos do nosso lado e vários terroristas foram abatidos. 
[O furriel foi o José do Rego Rebelo, açoriano de Ponta Delgada, CCAÇ 274 / BCAÇ 237; foi o segundo  furriel miliciano a morrer no TO da Guiné].

Nesta mesma noite, também atacaram o nosso destacamento em Cacine, mas felizmente não houve baixas a assinalar.

8/2/63:

Fui a Bissau tratar de vários assuntos da Companhia [4ª CCaç].

9/2/63:

Volta de Bissau. Manga de trabalho em atraso devido as acções dos últimos dias. Recebemos informação de que vários terroristas passaram ao largo, vindo de Catió para a zona de Cacine. As instalações da Ultramarina foram assaltadas e o encarregado europeu foi morto.

10/2/63:

Lista de material extraviado em combate: 1 capacete em Chugué, 1 espingarda Mauser e 1 pistola-metralhadora em Jemberem.

Esta madrugada as instalações da Gouveia em Salancaur foram atacadas. Os terroristas levaram cerca de 10 toneladas de arroz e outros géneros de comida.

11/2/63:

Efectuámos acções em Jemberem, Salancaur e Cadique. 

Vários elementos terroristas que tinham tomado parte no assalto aos Fulas de Jemberem foram aprisionados e enviados para a sede do Batalhão.

12/2/63:

Um alfaiate mandinga, Mamude Djassi, que tinha sido aprisionado em Chacual pelos terroristas e que passou vários dias num dos seus acampamentos, conseguiu fugir e apresentou-se ao nosso destacamento do Chugué. Foi transportado para o nosso quartel em Bedanda. Enviei um rádio para o Batalhão para que este Mandinga possa ser aproveitado como guia na acção que está a ser preparada pelo Batalhão.

13/2/63:

Enviei um pelotão para Salancaur para proteger o embarque de arroz da Ultramarina e da Gouveia.

14/2/63:

Patrulhamento feito em Jemberem e Cadique. Nesta última povoação tivemos contacto com terroristas Balantas que puseram alguma resistência mas acabaram por fugir. Três foram abatidos.

15/2/63:

O nosso quartel em Bedanda foi visitado por 3 directores da CUF, procurando informações do que se está a passar na região. 

Nessa mesma altura, terroristas rebentaram um pontão na estrada de Catió junto de Timbo

Houve também grande tiroteio em Chugué e algumas explosões na estrada próxima da área. 

Os 3 directores ficaram bem informados do que se está a passar...

16/2/63:

Chegou o Pelotão de acompanhamento da Companhia 273. Uma patrulha das nossas forças do Chugué foi atacada por um grupo armado de pistolas-metralhadoras. Não sofremos baixas mas 2 terroristas foram abatidos.

Regressou à base o Pelotão destacado em Salancaur. Foi rendida por novas forças a Secção que se encontrava destacada em Emberém.

17/2/63:

Continuaram a chegar mais elementos da companhia 273.

18/2/63:

Reconhecimentos feitos a Salancaur, Jemberem e Cadique

Aprisionámos alguns dos elementos que tinham atacado o nosso destacamento de Salancaur.

22/2/63:

Fomos visitados aqui em Bedanda pelo Comandante Militar e pelo Major Mira Dores, durante a altura em que tínhamos começado uma acção no mato de (Nhairom?), com 2 pelotões da CCaç 273 e 1 Pelotão da minha Companhia.

23/2/63:

Regresso da acção. Pobres resultados. Foram encontrados vários acampamentos terroristas, abandonados mas com indícios de terem sido ocupados recentemente. 

Foi rendida a secção de Jemberem.

25/2/63:

Reconhecimento feito em Salancaur e Mejo. O Capitão Delfino, Comandante da Companhia que substituiu a CCaç 74, visitou-nos, para discutirmos colaboração.

26/2/63:

Outra visita pelo Comandante Militar e o Comandante da Força Aérea, para discussão sobre a colaboração da FA na próxima operação que iremos executar. Pormenores foram discutidos em detalhe.

27/2/63:

O Capitão Relvas veio da sede do Batalhão visitar-nos em Bedanda. Aparentemente, o Comandante do Batalhão está chateado por não ter sido consultado nos detalhes de apoio pela FA. e tomou a decisão de fazer a operação sem esse apoio. (Incompreensível!).

A acção começará esta noite a partir das 00:04.

A acção terminou pelas 15:00 do dia 28/2/63. Os resultados que poderiam ter sido bastante satisfatórios, foram praticamente nulos, pois vários grupos de terroristas conseguiram, (devido a configuração e extensão do terreno de acção), fugir e dispersar. Se a FA tivesse colaborado os resultados teriam sido tremendos, pois o número de terroristas que conseguiram infiltrar-se entre as nossos forças foi considerável. (Esta foi a opinião de todos os comandantes de pelotão directamente envolvidos na acção. Na área onde a minha companhia actuou, notamos exactamente os mesmos resultados).

É evidente que os terroristas foram avisados da operação a tempo de poderem debandar. Nada me admira, pois temos um número considerável de soldados nativos, incluindo Balantas...


1/3/63:

Hoje pela 09:30 e mais tarde pelas 14:30, pessoal do pelotão do Cabedú sofreu emboscadas respectivamente entre Cafal e Cafine e no cruzamento de Cabante. Na segunda emboscada sofremos um morto e um ferido. Uma viatura Chaimite 
[lapso: talvez Daimler ou Fox ou White, não havia Chaimites em 1963], foi destruída na primeira emboscada. Seguiram dois pelotões reforçados para os locais das emboscadas.

Em Impungueda uma patrulha da CCaç 859 travou contacto com os terroristas e feriu alguns e os outros conseguiram fugir.

2/3/63:

Durante parte do dia de ontem e durante todo o dia de hoje as nossas forças percorreram todo o terreno nas zonas das emboscadas. Encontraram vestígios dos atacantes, fizeram um prisioneiro que tinha tomado parte numa das emboscadas, mas nada mais. O soldado ferido seguiu de avião para Bissau e o morto foi enterrado no cemitério de Bedanda.

O prisioneiro foi interrogado mas poucas informações conseguimos. Foi enviado para o Batalhão para ser interrogado.

3/3/63:


O Comandante Militar veio cá hoje de avião com o segundo Comandante do Batalhão 356. Depois de informados dos acontecimentos dos últimos dias, seguiram para Catió.

4/3/63:

Recebemos informação do Batalhão de um possível ataque planeado pelos terroristas a Caboxanque e Jemberem.

Enviei dois pelotões para Jemberem e Cadique, ponto de onde, segundo a informação, os terroristas se estavam a organizar para os ataques. Em Caboxanque executámos acções por um pelotão da minha companhia e outro da CCaç 273.

6/3/63:

Fizemos um reconhecimento à zona de Jemberem. O Alferes Gonçalves encarregou-se de falar aos chefes Fulas de Jemberem e discutir a possível mudança das suas tabancas para Bedanda. Há toda a vantagem dessas mudanças para incrementar a protecção da população Fula. Poderemos também formar aqui e em Bedanda um pelotão de uns 40 Fulas, o que nos poderá ajudar substancialmente na segurança da área e aliviar as nossas forças. Os chefes Fulas aceitaram a nossa oferta de braços abertos.

7/3/63:

Começámos o transporte da população Fula de Jemberem. Usámos 10 viaturas neste movimento. Calculamos que serão necessárias 3 mais viagens semelhantes.

8/3/63:

Continuação do transporte dos Fulas. Seguiram dois pelotões da CCaç 273 para a região de Salancur.

9/3/63:

Continuação do transporte dos Fulas. Os pelotões da CCaç 273 continuaram a operar na região de Salancur.

Elementos Fulas de Emberem conseguiram aprisionar um nativo que sabiam estava ligado ao movimento terrorista. Quando este nativo (Balanta) foi interrogado aqui na Companhia, deu-nos a informação de que elementos terroristas estão no mato de Boche Falace a prepararem um ataque àquela povoação. Enviámos um pelotão da CCaç 273 para a área.

Recebemos também informação, por elementos do Chugué, que um grupo de terroristas bem armado estava concentrado do outro lado da fronteira com a Guiné Francesa, perto da zona de Banta-Sida.

Mais informações recebidas do pelotão de Emberem: cerca de 300 elementos terroristas estavam a preparar um ataque à nossa companhia em Bedanda na madrugada de amanhã.
Dei ordens para que todo o nosso pessoal, (estávamos um pouco desfalcados pois tínhamos 2 pelotões em operações longe de Bedanda), estar em alerta em posições defensivas, já há muito preparadas para eventualidades semelhantes. Foi uma longa noite de nervos, mas o ataque nunca se deu.

10 e 11/3/63:

Acabámos o transporte dos Fulas de Emberem para Bedanda, contudo ainda teremos que transportar abastecimentos e víveres que ainda lá ficaram, em especial uma grande quantidade de arroz. 

Os Fulas fizeram um outro prisioneiro que, após interrogado, nos deu boas informações sobre o grupo terrorista que tem actuado na zona de Boche Falace: nomes de comandantes, armamentos e locais aproximados do grupo. Este prisioneiro foi enviado para o batalhão.

13/3/63:

Recebemos novas informações sobre um outro possível ataque ao nosso aquartelamento no dia 16 ou 17.

O Benfica venceu o Dukla de Praga para a Taça dos Campeões Europeus. Ouvimos o relato no rádio.

15/3/63:

Chegou um pelotão da CCaç 417 que seguirá para Caboxanque. Enviei uma grande coluna de 10 viaturas para Jemberem para trazer o resto dos víveres pertencentes aos Fulas.

16/3/63:

O pelotão da CCaç 417 seguiu para Caboxanque para render o Pelotão 859.

18/3/63:

Chegou o Pelotão 859 que seguirá para Bafatá. A CCaç 273 partiu para Jemberem em operações, não se sabendo por quantos dias.

19/3/63:

Visita do Major Pina para discutir os pormenores do movimento dos Pelotões 859, 870 e 871 para Bafatá. Eu irei a comandar a coluna e voltarei para Bedanda de avião.

20/3/63:

O Alferes Mendes seguiu com um pelotão para o Chugué dentro do novo plano de ordenamento dos dispositivos.

22/3/63:

Cabedú enviou uma mensagem informando que os terroristas estavam a planear uma emboscada às viaturas da CCaç 273 que se tinham deslocado para a região de Darsalame. Enviei imediatamente um rádio para o Capitão Gaspar com todos os detalhes da informação.

23/3/63:

Chegou outro pelotão da CCaç 417. Seguirá amanhã para Cabedú para render o Pelotão 871, que virá para Bedanda e depois para Bafatá na minha coluna.

(...) O meu diário, cobrindo os acontecimentos que se passaram entre a minha partida para Bafatá com a coluna, a minha vinda de retorno a Bedanda e as semanas até ao dia 18 de Maio, extraviou-se, infelizmente.

Lembro-me de alguns detalhes de possíveis ataques a Bedanda que, felizmente, nunca se concretizaram. Nós estávamos muito bem preparados, com todo o terreno à volta do aquartelamento (cerca de uns 150 metros), completamente limpo de arvoredo e vegetação.

Tínhamos os morteiros de 60 todos treinados nas áreas prováveis de ataque, além de explosivos enterrados e comandados à distância. Bem no fundo, eu estava com esperança de que os terroristas tentassem um ataque, pois seriam totalmente aniquilados, mas nunca aconteceu, possivelmente porque eles sabiam que tal acção seria muito difícil e arriscada.

No dia 18 de maio, o Capitão Nelson (meu colega de curso) (****) veio render-me. Durante os 4 dias seguintes fiz a entrega da 4ª CCaç ao Nelson e no dia 21 de maio segui de avião para Bissau.

Ai estive à espera de transporte e finalmente no dia 27 de maio parti de volta a Portugal no navio da CUF “Ana Mafalda”.




Curso finalista da Escola do Exército (hoje, Academia Militar) do ano de 1955, do qual faziam parte (além do George Freire, com 75 anos de idda em 2008, residente nos EUA, antigo comandante da 4ª CCAÇ - Fulacunda, Bissau, Nova Lamego Bedanda, Maio de 1961/ Maio de 1963),  os seguintes oficiais reformados do exército português: generais Hugo dos Santos, António Rodrigues Areia, Adelino Coelho e António Caetano; coronéis João Soares, Costa Martinho e Maurício Silva, entre tantos outros.  O capitão José Manuel Carreto Curto, ex-cap inf, CCAÇ 153 (Fulacunda, 1961/63) era "do curso um ano mais velho do que o meu". (Faleceu em 18/11/2018, com ten gen ref.)

Foto (e legendagem): © George Freire (2008). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Fonte: Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 6.º volume: Aspectos da Actividade Operacional. Tomo II: Guiné. Livro I. Lisboa: 2014, pp. 62 e 88.


(***) Vd. poste de 27 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11011: Efemérides (119): Diário de George Freire, ex-comandante da 4ª CCAÇ (Bedanda, 1962/63): o início da guerra no sul do CTIG (jan / mar 1963)...Recordando topónimos que nos são familiares: Cabedu, Caboxanque, Cacine, Cadique, Cafal, Cafine, Catió, Chugué, Jemberém, Mejo, Salancaur...

Vd. também poste de 24 de janeiro de  2013 > Guiné 63/74 - P10996: Efemérides (117): O início da guerra no CTIG há 50 anos: Nova Lamego, Bissau, Bedanda... O paraíso... perdido (set 62/mai 63): filme de George Freire, ex-cap inf QP, a viver nos EUA há meio século (Virgínio Briote / Luís Graça)

(****) Comandantes da 4ª CCAÇ (Bolama, Buba e Bedanda, 1958/67): Cap Inf Manuel Dias Freixo | Cap Inf António Ferreira Rodrigues Areia | Cap Inf António Lopes Figueiredo | Cap Inf Renato Jorge Cardoso Matias Freire (membro da Tabanca Grande, onde é conhecido como George Freire)| Cap Inf Nelson João dos Santos | Cap Mil Inf João Henriques de Almeida | Cap Inf Alcides José Sacramento Marques | Cap Inf João José Louro Rodrigues de Passos | Cap Inf António Feliciano Mota da Câmara Soares Tavares | Cap Inf Aurélio Manuel Trindade 

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23609: (D)o outro lado do combate (68): os "Armazéns do Povo", mito ou realidade ?


Guiné ou Guiné-Conacri > Possivelmente numa base do PAIGC, no sul, na região fronteiriça ou mais provavelmente já em teritório da Guiné-Conacri > Visita de uma delegação escandinava às "áreas libertadas" > Novembro de 1970 > Transporte de sacos de arroz em viaturas soviéticas. Segundo a inteligência militar portuguesa, o PAIGC dispunha, na Guiné- Conacri, de cerca de 40 camiões russos (havia dois modelos, o Gaz e o Gil) , que faziam o transporte dos abastecimentos de Conacri até a Kandiafara e, depois de retirada de Guileje, por parte das NT, em 22 de Maio de 1973, até mesmo para lá da fronteira, utilizando o corredor de Guileje... 

O "grande celeiro do sul" abastecia de arroz as populações sob controlo do PAIGC; os excedentes eram exportados, nomeadamente para a região norte. Havia uma rede de "Armazéns do Povo" que ia de Conacri até ao interior das "áreas libertadas" (o seu número não ultrapassaria as escassas duas dezenas, desde 1964 a 1974). Essa rede, mal ou bem, funcionava e terá permitido o desenvolvimento de uma "economia de guerra"  de que muitos de nós, antigos combatentes portugueses, não fazia a mínima ideia...

Até ao fim da guerra, e pelos dados disponíveis (*), provenientes do próprio rgime, não haveria mais do que duas dezenas de "armazéns do povo" nas "áreas libertadas" (desconhece-se a sua locaização), para por volta de 1978 atingirem já um total de  de 129...


Fonte: Nordic Africa Institute (NAI)  / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI) (As fotografias, em formato jpg,  tem numeração, esta é a nº 28, mas não trazem legenda. Legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).


1. No livro de memórias do ex-cap inf Aurélio Manuel Trindade, ex-cmdt da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 (Bedanda, jul 65 / jul 67)  ("Panteras à Solta", de Manuel Andrezo, ed. autor, 2010, 339 pp), a palavra "arroz" aparece, obsessivamente, ao longo dos cerca de 70 capítulos ou histórias. 

Em Bedanda, em 1965/67, a população, maioritariamente fula, refugiada da guerra,  não cultivava arroz e passava fome, segundo o cap Cristo. O  arroz que se lá se consumia, vinha de barco,  de Bissau, ou então era o que era lavrado nas bolanhas em redor pela "população do mato" (maioritariamente balanta) controlada pelo PAIGC ou sob duplo controlo, e comprado pelos comerciantes locais às "mulheres do mato" que vinham à "povoação comercial" vender o que lhes sobrava (arroz, mandioca, mancarra, óleo)  e comprar o que lhes faltava (cana, tabaco, panos). Isto queria dizer que pelo menos no setor S3 (Bedanda), não havia "Armazéns do Povo" ou, se existiam, funcionava muito mal. Realidade ou mito,  os "armazéns do povo" foram um elemento importante da propaganda do PAIGC, nomeadamente para consumo externo. 

Em termos de segurança alimentar, e nomeadamente, no pós-guerra, no tempo do Luís Cabral, a continuação da experiência dos "armazéns do povo" terá sido mais um dos "elefantes brancos" da economia planificada. A tal ponto que acabaram por ser "privatizados" (em 1992) e hoje definitivamente extintos (segundo notícia da agência Lusa, de 1 de abfril de 2022)...

Do lado das NT ("nossas tropas"), na época, ao tempo dp governador e comandante-chefe  gen Arnaldo Schulz, a missão era (e iria continuaria  a ser no início do consulado de Spínola) "aniquilar, capturar ou, no mínimo, expulsar o IN, destruir todos os seus meios de vida e recuperar a população sob o seu controlo". O arroz, muito em especial, era destruído: era a base da alimentação da guerrilha e da população sob o seu controlo. O mesmo se passava com o gado e demais animais domésticos: às vezes salvavam-se as vacas, desde que fosse possível transportá-las para o aquartelamento mais próximo. (Spínola percebeu, tardiamente, que o terror não se combatia com o contra-terror...).

Leia-se estes excertos, retirados do livro acima citado, de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do hoje ten gen ref Aurélio Manuel Trindade):

(...) Logo os pelotões do Carvalho e do Oliveira dispersaram e se espalharam pela bolanha. Alguém tinha fósforos, fizeram-se tochas e com um rapidez incrível os homens iam de monte em monte e destruíam o arroz. A bolanha ficou em chamas. Os homens libertavam-se da tensão com que estiveram toda a noite e manhã. O arroz era a principal fonte de rendimento. Destruir o arroz era como destruir as fábricas no tempo da segunda grande guerra mundial. A companhia destruía sempre todo o arroz que encontrava na sua passagem. O capitão dizia que era mais importante destruir o arroz do que as casas. Estas podiam ser facilmente reconstruídas, mas o arroz representava o trabalho perdido de um ano e era preciso esperar pela nova colheita (...) (pág. 144) (Negritos nossos).

(...) "Muito preto e pouco branco, é tropa de Bedanda e é preciso ter cuidado. Muito branco e pouco preto é outra tropa. Outra tropa não mete tanto medo à população do mato nem aos guerrilheiros (...) (pág. 146) (Negritos nossos).

(...) O Capitão Cristo nem teve tempo de dizer mais nada. O Cordeiro e os seus homens
já iam a meio da bolanha, em direcção às LDM, com as vacas. Foi debaixo de fogo que
a tropa teve que embarcar, mas os guerrilheiros tiveram que assistir à coragem da tropa
de Bedanda que, nas suas barbas, lhes surripiou 14 vacas

A Marinha, depois de muita insistência, lá embarcou as vacas, ficando onze para a companhia de Bedanda e três para os marinheiros. Tudo negócio feito pelo Cordeiro. Iriam ter carne para alguns dias. 

A nossa vacaria ficava na área controlada pelos guerrilheiros, mas nós íamo-nos
abastecendo desta forma pouco ortodoxa, não tínhamos alternativa. Ou vacas
roubadas ou nada. Chegados à Companhia, cansados física e psicologicamente, o mais
difícil de acalmar era o capitão Cristo que dizia mal da companhia de Cufar e do
Comando do Batalhão. (...) (pág. 56).

Curiosamente, não aparece, nas 4 centenas do livro, qualquer referência aos famosos "armazéns do povo" de que o PAIGC se gabava de ter, em funcionamento,   nas "áreas libertadas",e em particular no sul do território... Se eles existiam, o cap Cristo e os seus homens da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 nunca os viram ou lhe prestaram a mais pequena atenção...

Vale a pena reproduzir aqui um excerto do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971 (**), documento classificado na época como reservado, e de que nos foi facultada uma cópia,   pelo nosso amigo e camarada A. Marques Lopes, cor inf DFA, na situação de reforma. 

O documento teve ampla divulgação no blogue, sob a série " PAIGC: Instrução, táctica e logística: Supintrep, nº 32, Junho de 1971".

Na altura, e por causa de alguns melindres de alguns dos nossos camaradas,  fizemos questão de sublinhar que a divulgação deste e doutros documentos sobre a organização e o funcionamento do PAIGC era meramente informativa, não implicando, da nossa parte, qualquer juízo de valor. 

Por outro lado, tivemos o cuidado de lembrar que  não se tratava  de um documento de PAIGC, mas sim das NT,  embora utilizasse fontes escritas e orais ligadas à guerrilha contra a qual  então combatíamos. A sua origem era o próprio Com-Chefe da então província portuguesa da Guiné. Tratava-se de um subintrep distribuído aos comandos das unidades do CTIG em junho de 1971 (Supintrep: Do inglês, Supplementary Intelligence Report, ou seja, Relatório de Informação Suplementar).

No Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação Mário Soares, há diversa documentação fotográfica sobre os "armazéns do povo". 


2. Subintrep nº 32, junho de 1971 > AGRICULTURA, PECUÁRIA E INSTALAÇÕES COMERCIAIS (*)

(1) Produção agrícola e pecuária nas “áreas libertadas”

Em todas as “áreas libertadas” do sul da província a produção das culturas alimentares tem registado elevado crescimento, tanto como resultado do aumento das superfícies cultiváveis com ainda em consequência de melhores cuidados atribuídos a essas culturas.

Efectivamente, apesar da redução do tempo útil de trabalho motivado pela crescente actividade das NT, muitas bolanhas têm sido aproveitadas, o que se traduz num aumento de produção de arroz em percentagens que chegam a atingir de ano para ano os 20%. 

As “áreas libertadas” do sul são mesmo já autosuficientes para satisfação das suas necessidades alimentares, sendo os excedentes da sua produção de arroz enviadas para o exterior, para distribuição a outros locais onde a produção não atinge os níveis necessários.

O mesmo não acontece no norte da província. Aqui a população, tradicionalmente mais ligada a outras culturas, não produz arroz em quantidades suficientes para se abastecer, pelo que são enviadas regularmente colunas à fronteira para transporte desse produto para o interior.

Outras culturas alimentícias, tais como mandioca, batata doce, milho e legumes, subsidiárias na ração alimentar da população, têm tido também apreciáveis aumentos de produção. O desenvolvimento da cultura de féculas e legumes abre novas perspectivas para a utilização de um sistema alimentar novo, reduzindo o uso do arroz, quer na frequência quer na proporção.

Ainda nas “áreas libertadas” do sul, nomeadamente nas regiões de Catió e Cacine, as populações têm-se dedicado ainda ao desenvolvimento das culturas frutíferas, tendo os cuidados prodigalizados no tratamento permitido a obtenção de uma abundante produção de anazes, bananas, papaias, laranjas, etc.

Igualmente se refere, dada a importância de que se reveste, a especial atenção que tem sido dada ao tratamento de gado e animais de criação.

Como factores decisivos no desenvolvimento da produção agrícola e pecuária que se verifica especialmente nas “áreas libertadas” do sul, refere-se, por um lado, a existência de agrónomos especializados na Rússia e Cuba e, por outro, o intenso trabalho político levado a efeito no seio das massas rurais, convencendo-as da importância que representa o desenvolvimento agrícola das “áreas libertadas”.

A fim de recompensar os que mais se esforçam no trabalho dos campos, o Partido institui prémios para os melhores produtores.


(2) Empresa de comércio geral (Armazéns do Povo)

Em fins de 1965 afirmava Amilcar Cabral:

“Na Guiné, em dois anos e meio de luta armada, libertámos cerca de metade do país. Nas regiões libertadas estamos a construir uma vida nova, temos várias dezenas de escolas, instalámos comércio para abastecer as populações em artigos de primeira necessidade através dos Armazéns do Povo, criámos serviços de assistência sanitária e vários outros organismos que definem o novo Estado em formação”.

O objectivo do PAIGC, ao levar a cabo estas iniciativas, foi o de criar condições que estabelecessem bases de uma sociedade nova. No que diz respeito aos Armazéns do Povo teve-se em vista a sua criação satisfazer as necessidades de abastecimento das populações, fornecendo-lhes artigos de uso corrente para seu consumo em troca de produtos agrícolas que, por sua vez, são trazidos para o exterior onde são vendidos, revertendo os lucros dessas transacções para os cofres do Partido.

Verifica-se, assim, que os Armazéns do Povo permitiram a valorização do trabalho do povo, na medida em que trouxeram uma solução ao problema da comercialização, da agricultura e artesanato, já que, como se referiu, os produtos agrícolas (arroz) e, provavelmente, os artigos de artesanato funcionam como moeda de troca.

Estes Armazéns não são contudo, em princípio, destinados a auferir lucros. Dando para já uma experiência útil na futura organização do comércio, os Armazéns do Povo têm como objectivo, na hora actual, servir como elo e ligação com as massas, representando por si só uma arma poderosa ao serviço dos interesse do povo e do Partido, não só do ponto de vista económico mas também, e especialmente, do ponto de vista político.

Através deles, na medida em que evita as transacções comerciais nos nossos estabelecimentos, o PAIGC procura o nosso "isolamento" ao mesmo tempo que garante a segurança das suas "áreas libertadas"

Dum modo sumário e face aos elementos disponíveis, é a seguinte organização e funcionamento da Empresa de Comércio Geral do PAIGC, a qual depende, para efeitos de organização do Departamento da Organização e Questões Internas e para efeitos da prestação de contas do Departamento de Economia e Finanças.

Esta tem em Conacri o órgão de abastecimento central – os Armazéns Centrais – e “antenas” em todas as “regiões libertadas” – Armazéns do Povo -, designados também por Depósitos, os quais são numerados, encontrando-se à frente deles um responsável, possuidor de conhecimentos genéricos de contabilidade.

Como se referiu, os Armazéns Centrais abastecem estes Depósitos com artigos de consumo corrente nomeadamente açúcar, sal, conservas, roupas e calçado, enviando à data da expedição dos artigos uma "factura" na qual constam discriminadas as quantidades e valor da mercadoria.

Muito embora seja utilizado o dinheiro, o mais vulgar é o sistema de permuta em que os podutos agrícolas, especialmente o arroz, ou mesmo o gado, funciona como "moeda" de troca, sendo os produtos obtidos na troca enviados aos Aramazéns Centrais com nota de remessa, local onde essa distribuição é devidamente escriturada em mapas dos quais se junta o Mapa de Distribuição de arroz.

Admite-se, para facilidade de transporte, que parte desses produtos sejam enviados directamente às bases logísticas sem passar pelos Armazéns Centrais, embora estes movimentos em mapa sejam sempre feitos nestes armazéns creditando-se às Bases que directamente receberam os produtos.

Todos estes movimentos são contabilizados, sendo feitas periodicamente inspecções tendentes a verificar a “situação” em que se encontram os depósitos.

Nestes, diariamente, é elaborado um mapa relativo às receitas diárias, no qual são escrituradas as mercadorias saídas e a entrada de produtos.

Ainda se conhece, nos movimentos dos Depósitos, um documento nota de crédito. (...)

[Seleção / revisão / fixação de texto / negritos: LG] (***)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca > Rio Udunduma, afluente do rio Geba Estreito  > 1970 >  A  economia guineense dependia também da produção pecuária que por sua vez estava dependente da prática da transumância, prática essa que a guerra veio limitar ou inviar... 

As manadas de gado dos fulas, povo originalmente de pastores nómadas, eram um sinal exterior de riqueza e de status social do seu dono. Por essa razão, os fulas tinham tradicionalmente relutância em alienar esse património... Por morte do dono, os animais eram abatidos para alimentar o choro, uma festa que se prolongava por vários dias, dependendo da posição hierárquica do defunto na sociedade fula... 

Com a guerra, a entrada de dinheiro nas tabancas fulas fazia-se fundamentalmente por duas vias: (i) o pré dos soldados africanos e das milícias (a par do dinheiro que as lavadeiras recebiam); e (ii)  e as vendas de gado vacum aos militares portuguesas, compensando a quebra da produção da mancarra, devido à guerra... 

O porco era criado pelos povos animistas e ribeirinhos: balantas, manjacos, papéis... Havia por vezes conflitos com a população local, devido a abusos dos militares (que roubavam ou matavam vacas, porcos, cabritos ou galinhas)... Durante a Operação Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969), as populações sob controlo do PAIGC, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, sofreram grandes perdas de gado, para além da destruição de toneladas de arroz... Muitos animais foram abatidos a tiro, nalguns casos foram, inclusive, levados até ao aquartelamento do Xitole onde foram abatidos e consumidos.

Também não há referências, no relatório da Op Lança Afiada, a "armazéns do povo" no Sector L1,  nas áreas controladas pela guerrilha. A existirem, deveriam estar muito bem escondidos ou camuflados, em zonas de floresta-galeria, de difícil observação tanto aérea como terrestre.

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 
15 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16390: Notas de leitura (870): "Guiné-Bissau, Reconstrução Nacional", fotografias de Michel Renaudeau, Éditions Delroisse, Paris, 1978 (Mário Beja Santos)

(...) Falando do comércio interno, são referenciados os Armazéns do Povo, assim apresentados: “Nas zonas libertadas do país foram criados em 1964 os Armazéns do Povo, entidade comercial cujo objetivo era manter o abastecimento dos bens essenciais nas referidas zonas. Ao mesmo tempo, os Armazéns do Povo absorviam parte da produção gerada pelo setor agrícola. Após a libertação, os Armazéns do Povo, passaram a constituir a principal empresa do país, estendendo a sua atividade a todo o território nacional. De 20 postos comerciais em 1974, os Armazéns do Povo passaram atualmente a 129”. (...)

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23603: Notas de leitura (1493): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VIII: A visita de uma delegação do Movimento Nacional Feminino, em fevereiro de 1966: "O senhor capitão hoje está cheio de sorte, há meses que não via uma mulher branca, hoje vê duas"

 
Guiné > Região de Cacheu > CCAÇ 2367/BCAÇ 2845, "Os Vampiros" (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70) >  2 de maio de 1969  > O nosso camarada, membro da Tabanca Grande (e da Magnífica Tabanca da Linha), Miguel Rocha, ex-alf mil inf, na altura a fazer as funções de comandante da companhia,  aqui a "tabaquear o caso",  com a presidente do Movimento Nacional Feminino, Cecília Supico Pinto  (1921-2011) (a menos de um mês do seu 48º aniversário natalício)... O nosso camarada "indaga da possibilidade de obter mais uns maços de tabaco para os rapazes da sua Companhia" (*)... Mas o caixote está quase vazio... e o que restava já tinha destino... Até o tabaquinho era rateado...

O caixote tem uma marca ou um logo, "INTAR", que hoje a maior parte dos nossos leitores já não é capaz de decifrar: INTAR - Empresa Industrial de Tabacos, SARL... Foi nacionalizada, juntamente com a Tabaqueira (grupo CUF): as  duas empresas tabaqueiras detinham praticamente a totalidade do mercado nacional de cigarros. Em 30 de junho de 1976,  foi criada a Tabaqueira - Empresa Industrial de Tabacos, EP (que já não existe, ou melhor é ums subsidriária de uma multinacional).

Esta cena (a da foto acima)  foi recordada pelo Miguel Rocha, em poste ainda recente (*). E nele acrescentou:

(...) "no ano do I Centenário do nascimento (30/05/1921) de Cecília S. Pinto, em sua memória, e com profundo respeito e admiração pela sua pessoa e sua obra, não esquecendo todas as outras Senhoras do MNF, muitas delas Mães de jovens mobilizados para as frentes de combate, venho aqui deixar meu testemunho de eterna gratidão pelo apoio dado aos combatentes na sua inegável qualidade de 'portadora de afectos' " (!) (...).(*)

Foto (e legenda): © Miguel Rocha (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné  > Região de Tombali > Nhala > 10 de março de 1974 > Visita da líder do  Movimento Nacional Feminino > A Cilinha, aqui já com 53 anos feitos, de óculos escuros, e sempre impecavelmente vestida e penteada,  olha directamente para a objectiva do fotógrafo.  Ela sabia que, ali no "cu de Judas", era o alvo de todas as atenções... Era uma mulher, branca, de personalidade forte, corajosa, elegante e vistosa sem ser bonita.  Em 1974, já tinha o "respaldo político" que tinha no tempo de Salazar...

A seu lado o comandante de batalhão de Aldeia Formosa, ten cor inf Carlos Alberto Simões Ramalheira, e o cap mil inf Domingos Afonso Braga da Cruz (1946-1987), cmdt da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513/72,  que estava em Nhala, tendo estado também em Aldeia Formosa e Cumbijã. (A 1ª Companhia passou por Buba e Mampatá; a 3ª estava em Aldeia Formosa.)

Foto (e legenda): © António Murta  (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Estas duas fotos, com uma diferença de cinco anos,  servem para ilustrar uma outra visita, do MNF, realizada en 1966,  três anos e oito anos antes (respetivamente),  ao capitão Cristo e aos seus bravos de Bedanda, e reconstituída no livro de memórias do cap inf Aurélio Manuel Trindade (n. 1933) ("Panteras à Solta", de Manuel Andrezo, ed. autor, 2010, pp.  340-342), de que temos publicado diversas notas de leitura (**)

A visita a Bedanda está descrita em  três páginas deliciosas que servem para comprovar que a Cilinha e o seu Movimento Nacional Feminino (MNF) estavam longe de ser consensuais e até queridos, aos olhos de muitos militares, não só milicianos (que eram os mais críticos), como  também de uma parte dos  oficiais do quadro permanente, sobretudo os mais jovens.

Os militares de Bedanda (onde estava a 4ª CCAÇ, companhia de guarnição normal da província)  é contemplada por uma rápida e inesperada  visita de duas senhoras do  MNE, que vêm de Bissau, de DO-27 (presume-se), acompanhadas de um alferes.  

O autor não a identifica, mas a protagonista desta história da visita (que  "acabou por não dignificar em nada o MNF", pág. 340), era seguramente a Cecília Supico Pinto (mais conhecida por "Cilinha" pelos "rapazes" que prestavam serviço no ultramar). 

A visita deve ter ocorrido em fevereiro de 1966, na época seca (a primeira vez que ela foi à Guiné,  à sua "Guinezinha") (***), e não em junho de 1966 (já na época das chuvas, como sugere o cap Cristo, traído  certamente pela memória, ao dizer que já tinha 11 meses de comissão). 

Na mesma altura, a CCAÇ 736, em Cufar (1965/66), comandanda pelo cap inf  (Carlos Alberto Wahnon Mourão da) Costa Campos recebeu a visita da  delelegação do MNF, constituída pela  Cecília Supico Pinto e  a Renata da Cunha e Costa, aqui documentada pelo nosso Mário Fitas, ex-fur mil op esp,  no poste P8371 (****)

O cap Cristo terá sido pouco "oficial e cavalheiro" no trato com as senhoras, dirão alguns... No livro é irónico, para não dizer sarcástico e até truculento, na descrição e apreciação que faz da visita (é certo que muitos anos depois, mais de 40 anos depois):

Primeiro "hipotecaram um avião" (sic), um recurso sempre escasso e dispendioso naquela época e, para mais, no sul da Guiné, e depois "os resultados da visita foram menos que nulos porque foram negativos". 

(...) Depois da visita ficaram convencidos de que as senhoras quiseram ver, com
os seus próprios olhos, uns macacos que levavam vida de cão, algures no sul da Guiné, sem as mínimas condições e péssima alimentação (...)  Negritos nossos].           

Num aquartelamento onde faltava tudo ou quase tudo, abastecido penosa e perigosamente uma vez por mês, por via fluvial, a visita das senhoras do MNE, de mãos vazias, podia parecer um insulto gratuito. E, para a tropa nativa, deveria ser algo de intrigante e exótico:

(...) Quanto a frescos, muito raramente os comiam. Combatiam os guerrilheiros, dia e noite, sendo mais os dias de contacto com a guerrilha do que o contrário. Não por acaso dizia-se que Bedanda era uma ilha cercada pela guerrilha. Na opinião dos oficiais da Companhia de Bedanda as senhoras queriam levar no seu palmarés, para contarem às amigas durante os chás-canastas, que tinham estado no sul da Guiné, numa Companhia onde o perigo era constante. Para elas isso era bom, para a tropa era um frete (...) (pág. 340).

"Frete": eis talvez o termo mais apropriado, para  caracterizar a atitude dos homens de Bedanda face à visita meteórica das duas senhoras do MNF. Esta opinião seria compartilhada por alguns comandantes de subunidades no mato, comandantes operacionais como o cap Cristo que davam o "litro e meio" e pouco ou nada recebiam em troca, dos  seus superiores hierárquicos (comando de setor, comando de agrupamento e senhores de Bissau). 

O cap Cristo, pessoa civilizada e militar aprumado, mas frontal, cumpriu naturalmente os seus deveres de hospitalidade, "oferecendo-lhes o que tínham: cerveja, uísque e conservas",  sem esquecer a  água... que era ingerível. Em contrapartida, elas nada tinham para ofecerer, para além das palmadinhas nas costas, dos sorrisos postiços e da exibição... da cor da pele:

(...) A visita tinha sido mal planeada. Uma visita deste tipo deve ser acompanhada de algumas lembranças, bolas de futebol, por exemplo, ou rádios, jogos de damas, isqueiros, cartas, algo que possa servir para atenuar o isolamento destes homens. Nada disso foi oferecido à Companhia pela delegação do MNF. 

As ofertas foram exclusivamente bate-estradas [aerogramas, na gíria da tropa, LG] que divididos pelo efectivo, davam três exemplares a cada militar. Era muito pouco para uma visita que se supunha ter por finalidade dar alguma alegria e apoio aos militares. O capitão pediu outros materiais ao MNF que nunca foram recebidos (...) [Negritos nossos] . 

No decurso da visita, o cap Cristo verificou que "uma das senhoras era mais extrovertida do que a outra. Falava muito com toda a gente, e na sala de oficiais sentou-se em cima duma mesa com as pernas a baloiçar e a saia um pouco subida, parte das coxas à mostra" (...) (pág. 340).  

Este diálogo entre os dois (a senhora só pode ser a Cilinha que, nessa altura, em fevereiro de 1966, já tinha 45 anos), reconstituído muitos anos depois, merece ser transcrito (pág. 341). É um belo naco de prosa castrense:

(...) "- Senhor capitão, há quanto tempo está aqui?

─ Onze meses, minha senhora. [Ele queria dizer sete meses, desde julho de 1965, fez mal as contas. LG ]

─ Já foi à metrópole depois de ter chegado à Guiné?

─ Ainda não. Quando cheguei vim logo para Bedanda e daqui só tenho saído para o mato. Nem a Bissau fui.

─ Então hoje está cheio de sorte.

─Não sei porquê. Só se for por ter visitas. Para quem está isolado da civilização como nós estamos, as visitas são sempre bem-vindas e dão-nos muito prazer e alegria.

─ Era disso que eu estava a falar. E as de hoje são visitas especiais. Desde há onze meses que não via uma branca e hoje teve oportunidade de ver duas.

─ É verdade minha senhora. Nesse ponto tem razão. Já não via uma mulher branca há onze meses e daqui a pouco nem sei como elas são. Hoje vejo duas brancas e duma delas vejo as pernas até às coxas. Mas como deve calcular, isso é muito pouco. Quem está aqui no mato, na situação em que nós estamos, precisa e merecia mais do que ver brancas. E a esse respeito, como sabe, estamos a zero.

─ O senhor capitão é muito exigente.

─ Não, minha senhora. Primeiro não exijo nada, nem sequer a vossa visita. Segundo, tenho trinta anos e sempre ouvi dizer que um homem é um homem e um bicho um bicho. Além disso não sou de pau. Tenho as minhas necessidades como todos os homens e o instinto mais apurado pelas dificuldades por que tenho passado no que a nossa conversa subentende.

─ Compreendo a sua situação mas mais nada posso fazer.

─ De qualquer maneira muito obrigado pela intenção e pela boa vontade.

─ Senhor capitão, está na hora de me ir embora e acredite que deixo Bedanda com pena, e também sofro com a vida de isolamento que vocês aqui levam. Tudo o que puder fazer por vocês, farei. Gostaria, se me permitisse, de me despedir dos seus soldados à moda do MNF. (...)


A despedida da líder do MNE, perante a companhia formada na parada,  foi, para surpresa de todos, feita com um valente assobio à cabreiro da Serra da Estrela:

(...) ─ Pedi ao vosso capitão para me despedir de vocês. Gostei de estar aqui convosco, estas horas, tenho pena de não poder estar mais tempo. Daqui a pouco é noite e o avião não pode levantar voo. Tenho que estar hoje em Bissau. Sei que são uma boa tropa, valentes combatentes. Estou contente por isso e deixo-vos a minha solidariedade, amizade e respeito, bem como a de todas as mulheres portuguesas que se sentem felizes por saberem, que mesmo em más condições, os soldados portugueses cumprem com eficiência as suas missões. Se me permitirem vou-me despedir “à MNF”. (...)

E o autor não deixa o leitor com água no bico, descreve o modo da despedida com detalhe e sentido de humor:

(...) Ao dizer isto, a senhora leva dois dedos à boca e solta um assobio que faria inveja a muitos pastores. Toda a companhia ficou sem saber com reagir. Esperavam tudo menos os assobio. Conseguiu surpreender. O mais surpreendido parecia ser o capitão que olhou para a senhora com uma cara de basbaque que metia aflição (...) Negritos nossos]

A seguir, o capitão  e os restantes oficiais  acompanharam as senhoras até à pista, como mandavam as boas regras da etiqueta militar. Embasbacados, "ele e os alferes ficaram na pista até o avião desaparecer no horizonte". (...) (pág. 342).

Caros leitores, digam lá se não é um texto de antologia? Parabéns ao autor. Não estamos habituados a esta lhaneza e desassombro na escrita, por parte dos militares da sua geração, oriundos da Escola do Exército... Tiro-lhe o quico, meu general!...


Guiné > s/l > Fevereiro de 1966 > Cecília Supico Pinto, então com 44 anos, na sua primeira viagem à sua "Guinezinha",  falando para um grupo de militares; em segundo plano, um dos seus "braços direitos", também elemento da comissão central do MNF,  [Amélia] Renata [Henriques de Freitas] da Cunha e Costa.  

Fotograma do vídeo (6' 43'') da RTP Arquivos > 1966-02-01 > Cecília Supico Pinto visita Guiné (Com a devida vénia...)
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Notas do editor:



Último poste da série > 9 de setembrro de  2022 >  Guiné 61/74 - P23601: Notas de leitura (1492): "Diário Pueril de Guerra", por Sérgio de Sousa; Editoral Escritor, 1999 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23590: Notas de leitura (1489): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VII: A incrível história do soldado 25, cabo-verdiano, aliciado pela amante, uma "mulher do mato" de Cobumba, para cometer um acto de alta traição: tomar o quartel e matar todos os tugas...



Guiné > Região de Tombali > Bedanda > 4ª CCAÇ (1965/67) > s/d > "Mulheres do mato. Ao centro está o alferes Oliveira." 

Fonte: Manuel Andrezo . "Panteras à Solta", edição de autor, s/l, 2010, pág. 398 (Com a devida vénia...).



O gen Arnaldo Schulz em visita à 4ª CCAÇ em Bedanfa, s/d (c. 1964/67). Foto do Arquivo Histórico Militar, reproduzida por CECA (2014), p. 257.


Fonte: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro I; 1.ª Edição; Lisboa (2014), pág. 257
.


1. Continuação da leitura do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010], 399 pp. il, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército). [ Manuel Andrezo é o pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade, ex-cap inf, 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, Bedanda, jul 1965/jul 67] (*)

No livro "Panteras à solta" (que cobre o período que vai de julho de 1965 a julho de 1967, em que o cap inf Aurélio Manuel Trindade esteve à frente da 4ª CCAÇ e depois CCAÇ 6, em Bedanda),  há várias referências ao "comandante militar" e/ou "brigadeiro comandante militar" sem nunca o autor o nomear.  Também não há qualquer referência ao com-chefe e governador da Guiné, desse tempo, o brigadeiro e depois general Arnaldo Schulz...

Rcorde-se que desde o início da guerra,  era comandante-chefe o coronel tirocinado do CEM, Fernando Louro de Sousa (nomedo em 19mar63). Irá exercer as funções cumulativamente com as de comandante Militar, tendo substituído no cargo o coronel do CEM João Augusto da Silva Bessa. Promovido a brigadeiro (em 9jul63),  terminaria a comissão em 20mai64, altura em que  seria  substituído,no dia seguinte, pelo brigadeiro Arnaldo Schultz, que por sua vez acumularia as funções com as de governador da província. Promovido a general em 20abr65, Schulz cessaria funções em 23maio968. A partir de 7set66, há um novo comandante militar, o brigadeiro António M. Malheiro Reymão Nogueira.  Para os leigos, nem sempre é clara a distinção entre comandante militar e comandante-chefe...
 
Uma das preocupações iniciais do cap inf Cristo ("alter ego" do autor), quando chega a Bedanda,em rendição individual, em julho de 1965, para comandar a herogénea 4ª CCAÇ, é o reforço da coesão,  do espírito de corpo, da disciplina e da lealdade dos seus homens. 

Tanto Bissau como o comando de sector,  o S3, em Catió (onde estava sediado o BCAÇ 619, 1964/66, rendido depois pelo BCAÇ 1858) tinha  reservas em relação a esta companhia de guarnição normal, por alguns incidentes de natureza disciplinar. Era considerada uma boa companhia, do ponto de vista operacional, mas com altos e baixos, e a passar em meados de 1965 por um "mau momento"... 

Havia, ao que parece, por parte de Bissau (onde na época o governador geral e com-chefe já era o gen Arnaldo Schulz que nunca é mencionado no livro) um preconceito, fundamentalmente racista, em relação aos "caçadores nativos" (e em especial aos "cabo-verdianos"). A perceção de que os principais dirigentes do PAIGC eram cabo-verdianos ou de origem cabo-verdiana (a começar pelos irmãos Cabral) pode ter alimentado e agravado a desconfiança em relação os militares das NT, cabo-verdianos ou de origem cabo-verdiana.

Aiás, só tarde, e devido à persistência do cap Cristo, os "soldados nativos" passaram a ter a novíssima G3 em lugar da velhinha Mauser, da II Guerra Mundial... E combatiam um inimigo dotado de armamento superior (a começar pelas armas automáticas, como a Kalash). Diz o tenente-coronel que vem de Bissau, mandado pelo "brigadeiro omandante militar":

(...) "Você tem que compreender que comanda uma companhia de negros em quem não confiamos totalmente. Já houve aqui uma tentativa de revolta e ninguém nos diz que não possa haver outra, e era muito aborrecido se eles fugissem para o mato com as G3. (...) (pág. 124).

A situação deveria ser semelhante nas outras duas companhias de "caçadores nativos", de guarnição normal: a 1ª CCAÇ, que estava em Farim (e que deu origem à CCAÇ 3); e a 3ª CCAÇ (que estava em Nova Lamego) e que deu origem à CCAÇ 5.  O nosso colaborador permanente José Martins, ex-fur mil trms dos "Gatos Pretos" (CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70) recorda-se que que na sua secção, no seu tempo,  havia 6 mausers e 6 G3...
 
2. Por volta de finais de 1964 ou princípios de 1965, tinha havido, na 4ª CCAÇ, um incidente grave que poderia ter  tido consequências trágicas,  Recorremos a alguns excertos do livro que estamos a ler, "Panteras à Solta":

(...) "─ Eu também queria dizer algo meu capitão ─ disse o 1º Sargento. ─ Há alguns meses atrás, antes de eu vir para a companhia, houve qualquer coisa com alguns soldados negros, principalmente cabo-verdianos, que fez com fossem conduzidos ao Comando do Batalhão, em Catió, onde ficaram detidos. São soldados da companhia que ainda lá permanecem presos. Não sei o que se passou mas a companhia tem necessidade de resolver este assunto. (...) (pp- 31/32)

(..) ─ Obrigado ─ disse o capitão. ─ Algum dos senhores sabe alguma coisa mais que me queira dizer sobre os soldados da companhia presos em Catió?
─ Eu, meu capitão ─ disse o Alferes Ribeiro. ─ Eu já estava na companhia quando
isso aconteceu. Não falei antes porque julguei que em Bissau, quando por lá passou, o nosso capitão Xáxa ou alguém lhe tivesse falado nisso. 

O alferes Ribeiro descreveu, então, os antecedentes da situação.  Um dia, ao cair da noite, estavam para sair para uma operação e dispunham de um prisioneiro, capturado na operação anterior que ia servir de guia. Aconteceu que o alferes Cordeiro encontrou o prisioneiro, fora da prisão, a sair calmamente do quartel. Prendeu-o novamente e interrogou-o para saber como tinha conseguido sair da prisão, tanto mais que havia um soldado a guardá-lo à vista. 

Inicialmente o prisioneiro não queria falar mas com a habilidade do alferes Cordeiro ele acabou por confessar que tinha sido solto pelo soldado 25 e que se dirigia para o seu acampamento, em Cobumba

Chamado o soldado 25, outro cabo-verdiano, foi o mesmo posto perante os factos. Negou, a princípio, qualquer interferência, mas perante as evidências acabou por confessar. A declaração dos motivos foi bem mais difícil de obter. Mas o alferes Cordeiro, perito na arte do interrogatório, conseguiu que o soldado 25 confessasse os motivos da sua acção.

Tinha uma amante, mulher do mato da zona de Cobumba. Todos as semanas a mulher vinha à povoação comercial vender arroz e comprar cana e tabaco, e dormia uma noite com o soldado. Na cama, ela ia procurando saber coisas da companhia.

Tantas vezes dormiram juntos, tanto falaram da companhia, que a mulher lhe prometeu o comando de Bedanda se ele a ajudasse a tomar o quartel. As promessas eram tão aliciantes que ele aceitou ajudar desde que lhe dissessem o que tinha de fazer e lhe comunicassem o momento de agir. Fez ligações com outros soldados do seu pelotão, na maioria cabo-verdianos, e estabeleceram um plano de acção que, na sua essência, apontava para a tomada do quartel pelas força. 

Na noite aprazada para o ataque, os cabo-verdianos, ao tempo do pelotão do alferes Barata, facilitariam a entrada dos guerrilheiros, matando nos quartos todos os brancos, oficiais e sargentos e alguns cabos especialistas. Durante o ataque, o pelotão dos revoltosos e mais alguns soldados negros que aderissem ao movimento, liquidariam todos os soldados que não quisessem juntar-se aos guerrilheiros. 

Conquistado o quartel e feita a limpeza de militares e de civis que não aderissem, o 25 passaria a comandar toda a área de Bedanda. Como tudo se veio a saber por confissão do soldado 25, todos os militares implicados foram presos e enviados para Catió onde seu deu início aos autos. Nessa noite, ninguém saiu para o mato, refizeram-se os pelotões até que se recebessem novos efectivos em praças. 

A partir dessa data passou a exercer-se um controle apertado de entradas e saídas das mulheres do mato, para se averiguar as que dormiam em Bedanda, onde e com quem.

─Meu capitão, nós todos, oficiais e sargentos, ficámos convencidos de que estávamos sentados num barril de pólvora. Se dessa vez tivemos sorte ao descobrir a tempo a conspiração, na próxima poderemos não ter, pelo que todos temos  de ficar atentos e permanentemente vigilantes. " (...) (pp. 32/33).

Ficamos sem saber se os militares sediciosos da 4ª CCAÇ, tal como soldado 25, maioritariamente "cabo-verdianos" (sic), eram nascidos em Cabo Verde ou na Guiné. Sendo do recrutamento local, era mais provável que fossem guineenses, de origem cabo-verdiana...
 
3. Ficamos, todavia,  a saber que, ao tempo da 4ª CCAÇ (e mesmo depois, com a CCAÇ 6), havia um sistema de livre trânsito em Bedanda, para as "mulheres do mato", que iam à "povoação comercial" vender os seus produtos e comprar outros que lhes faziam falta. 

Em geral, eram mulheres, mães, filhas  ou parentes de guerrileiros.   Eram oriundas "de Cobumba, de Pericuto, de Chugué. (...) (pág. 116), ou seja, de povoações que ficavam a escassos   quilómetros,  em redor de Bedanda.

As mulheres vinham de zonas onde havias boas bolanhas, e que continuavam a ser cultivadas. O arroz (e outros produtos, como a mandioca) era suficiente para as necessidades dos guerrilheiros e da população sob o  seu controlo. Em contrapartida, havia falta de arroz (e produtos frescos) em Bedanda.

Sabe-se que populações balantas emigraram, nos anos 20/30, para a região de Tombali e ali desenvolveram a cultura do arroz. No sul, os balantas (mas também biafadas, mandingas, nalus, sossos...)  são aliciados pelo PAIGC.  A economia da região fica totalmente desarticulada. Bedanda, em pleo chão balanta, é agora ocupada maioritariamente por fulas fugidos do Cantanhez e doutras partes.

(...) "O capitão não aceitava que a população sob o controlo das suas tropas vivesse pior do que a população controlada pelos guerrilheiros. Do lado deles não havia falta de arroz, mancarra, mandioca e óleo. Do lado da tropa tinham apenas cana, tabaco e panos que os comerciantes traziam de Bissau, e o arroz que compravam às mulheres dos guerrilheiros.  

Fazia-se um intercâmbio grande entre a população comercial e as mulheres do mato. Traziam arroz, mancarra e óleo, e voltavam com tabaco, cana e panos para elas e para os homens. Se era difícil para os militares compreender a sua posição como um elo na cadeia logística dos guerrilheiros, mais difícil era verificar que os outros tinham mais comida do que a população que a tropa controlava. O capitão ia reagir a esta situação de uma forma pouco usual. (...) (pp. 76/77).

Em suma, a tropa facilitava a entradas das "mulheres do mato" em Bedanda por onde circulavam livremente (exceto nas intalações militares), havendo todavia sido criado, para o efeito, um mecanismo de controlo (que não vem descrito em detalhe no livro): 

(...) Dado estar autorizada a entrada das mulheres do mato na povoação comercial, existe um sistema de controlo que permite ao coma companhia saber quantas mulheres entraram e donde vieram. Muitas vezes as mulheres trazem galinhas e ovos para vender, e o próprio capitão tem comprado algumas, pondo-as numa capoeira no pelotão da cantina. Normalmente tem lá três ou quatro galinhas.

 O capitão, acompanhado do Lassen, desloca-se muitas vezes aos acessos a Bedanda, de manhã cedo, para falar com as mulheres do mato e aproveita para mandar a sua mensagem. Quando quer saber informações de determinadas áreas, o capitão utiliza várias pessoas que vão desde comerciantes a soldados ou aos homens grandes da tabanca, nomeadamente soldados da milícia. Quando isso acontece, o capitão autoriza que se façam despesas nas casas comerciais, em tabaco e em cana, para se criar um clima de confiança. Por vezes é um trabalho demorado mas permite ao capitão ficar a saber o que se passa na mata à sua volta. (...) (pág. 102)-

Chegaram a estar em Bedanda, num só dia,  uma centena de "mulheres do mato" que o cap Cristo também usava para fazer a sua "psico" e obter informações sobre o que se passava do lado de lá, ao mesmo tempo que aproveitava para  transmitir "recados" aos "homens do mato", e em última análise ao 'Nino' Vieira:

(...) "No dia seguinte, às onze e meia da manhã, mais de 100 mulheres estavam
concentradas no pelotão da cantina. O capitão tinha mandado recolher aos abrigos todos os soldados. Além disso, tinha avisado a tabanca, o administrador e todos os comandantes de pelotão de que a artilharia iria fazer fogo ao meio-dia". (...) (pág. 272).

Segundo o cap Cristo, o 'Nino' teria estatado inicualmente na tropa portuguesa, dizia-se. E tinha estado justamente em Bedanda. Razão por que Bedanda era um "espinho encracado" na sua garganta (pág. 269). Daí a tentativa, gorada, de um dia tentar conquistar, ocupar e ou destruir Bedanda. Falava-se num força de 800 homens. (Vd. capáitulos "Os 800 do Nino", pp. 269-273).

(...) Utilizando o cabo Francisco o capitão dirigiu-se às mulheres.
─ Soube que os vossos maridos e filhos se preparam para atacar Bedanda para matar o nosso capitão. Mas nosso capitão não tem medo nem que venham mil guerrilheiros. Nosso capitão sabe que Nino só ainda tem 800 para o vir atacar. Digam-lhe que é pouco. Para entrar em Bedanda e matarem nosso capitão precisa de muito mais gente. Nosso capitão não foge suma galinha. Quem foge suma galinha são os vossos maridos, são os guerrilheiro do Nino. Traduz para elas." (...) (pág. 272)

Mas, como vimos com a história do soldado 25, o sistema também funcionava a favor do PAIGC. Digamos que havia um "modus vivendi" que agradava a todos, por muito insólito que isso possa parecer hoje aos olhos dos nossos leitores que não conheceram o sector S3... Noutros sectores como o L1 (Bambadinca), que eu cnheci (em 1969/71) as coisas não funcionavam assim: as "mulheres do mato" arriscavam ser emboscadas, presas ou mortas, quando se dirigiam a Nhabijões e a Bambadinca, cambando o rio Geba,  para visitar os parentes e/ou fazer compras...

(Continua)
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Notas do editor: