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sexta-feira, 3 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20806: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (1)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 
Reencontrar uma fotografia que tem mais de cinquenta anos, associada ao pré-anúncio de que a Guiné está à espreita e me vai receber de braços abertos, suscitou um conjunto de recordações em torno de perto de meio ano que vivi em S. Miguel, e que teve uma importância excecional na minha vida. 
Como os mais jovens não acreditam que aquele mundo existiu, tal qual aqui se recorda, permito-me trazer à vossa presença este cadinho de recordações. De associação com essa vida militar, novinho em folha, abria-se um capítulo de amizades inquebrantáveis e de uma adoração por aquela terra que seguramente irá até ao final dos meus tempos. Dessas amizades aqui farei um bosquejo, gente afetuosíssima que me preparou moralmente para a experiência guineense. Vão partindo, como ainda recentemente partiu uma distintíssima figura micaelense, Cremilde Tapia, senhora dadivosa, voluntária da generosidade e da dedicação à causa dos mais necessitados. Todo este rasurado lhe será dedicado, pelo bem que me fez e aos meus familiares, incluindo minha mãe, que se despediu de mim nessas duas partidas, para Ponta Delgada e para a Guiné, com o mesmo apelo: "Peço a Deus que tu regresses são e salvo"

Um abraço do 
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (1)

Mário Beja Santos

“Olha, pai, andei a remexer nas gavetas do meu quarto, encontrei esta tua fotografia, tenho a impressão que tu tinhas ido para a tropa, tens um ar resignado mas não pareces triste. Como foi?”.

Peguei na imagem, há quem diga que não nos conseguimos rever naquilo que éramos, há mais de cinquenta anos atrás, mas não houve hesitação no reconhecimento, aquela boina que eu compunha como se fosse uma boina basca, a boa disposição de ter aprendido como dava jeito ter o corpo moldado para a guerra no horizonte, sem remissão. Expliquei à Joana que acabara de ser promovido a Aspirante Oficial Miliciano, com classificação baixíssima, tudo devido a uma incompetência medular para mexer no armamento, não que me custasse limpar a Mauser ou a G3, aprendi as limpezas domésticas muito novo, não era essa a dificuldade, ao montar qualquer arma sobravam-me sempre peças. Atingira o objetivo maior, certificar-me que o corpo estava apto para as grandes fadigas, como se comprovou no exame rigoroso de mais de dois anos na Guiné, a calcar laterite por tudo quanto era sítio. Promovido a Aspirante e lançado a caminho de Ponta Delgada, com colocação no Batalhão Independente de Infantaria n.º 18, Arrifes.

E a seguir, outras fotografias se encadearam. A minha mãe entendeu que devia convidar dois grandes amigos meus, no jantar de despedida, em 6 de outubro de 1967. Veio a Helena Vidal, minha professora de inglês e alemão, foi ela que me levou ao British Institute ver aqueles espantosos ciclos de cinema dos anos 1950 e 1960, com Sir Laurence Olivier e Alec Guinness à cabeça; e o Eduardo Canto e Castro, amizade firmada a partir do primeiro ano no Colégio Moderno. Para meu infortúnio, estes amigos diletos já desapareceram. Na outra fotografia, já estou no cais, a seguir embarco no Carvalho Araújo. A Amélia Lança e a Margarida Silveira, duas amigas de peito, talvez convencidas que eu partia para a Polinésia e sem regresso, acenaram até ao barco desaparecer no horizonte. A minha mãe não foi, temia comover-se. Despedimo-nos à porta de casa. E retive o que ela me disse, e que irá repetir quando a beijei pela última vez no cais da Rocha do Conde de Óbidos: “Peço a Deus que tu regresses são e salvo”. Terá pedido insistentemente, a roda da fortuna acobertou-nos.




Estou absolutamente convicto que um jovem açoriano tem a maior das dificuldades em acreditar no que eu já escrevi sobre Ponta Delgada e a vida em S. Miguel. Toda a zona da baía à volta do porto, a ida pela Calheta até à Lagoa, são paisagens de algum modo irreconhecíveis. Chegámos à noite, despedi-me do José Medeiros Ferreira, que partiu para a Fajã de Baixo, e um amigo do meu cunhado, Dragomir Knapic, levou-me até aos Arrifes, dormi no quartel, no dia seguinte começou a pesquisa de quarto, fiquei a viver num quarto alugado na Rua de Lisboa, n.º 31, muito perto do Coliseu Micaelense e da Cervejaria Melo Abreu, apanhava o Largo 2 de Março e antes de chegar às portas da cidade virava à direita para o Café Nacional, mesmo em frente da Câmara Municipal, fiz contrato de comensal, jantava ali todos os dias, sem exceção. Quando regresso a Ponta Delgada, e tem sido com muita regularidade, procura permanências e as grandes mudanças. Não sei se há outro ponto do país que beneficiou tanto com o regime democrático. Os recrutas que tive adoravam a tropa, por razões elementares: nunca tinham comido pequeno-almoço, almoço e jantar, carne e peixe todos os dias; muitos não sabiam o que era o chuveiro, o champô, o fazer diariamente a barba. Jovens dóceis e conviventes, não sei se jamais voltarei a encontrar gente que fala com tanta sinceridade, sem esconder como vive lá na terra, como trabalha, os sonhos que tem, alguns passam por viajar até ao Canadá ou Massachusetts ou San Diego, quando vierem da guerra, ali não há ilusões que o nosso destino é África.



A minha filha traz-me uma bandejinha em prata, está lá gravado “Lembrança do 5.º Pelotão” por trás vem o nome da ourivesaria em Ponta Delgada. Esta imagem já a publiquei no blogue, não ilude a boa disposição reinante. Eu estou a ajaezar o Botas, era um moço, pasme-se, que nunca tinha vindo até Ponta Delgada, quando no fim da recruta, com autorização superior, meti esta malta toda numa camioneta e viemos ver ao cinema Lord Jim, de Richard Brooks, com Peter O’Toole, James Mason e Curd Jürgens, o Botas estava siderado, tinha lágrima no olho, quis voltar. Não sei se voltou, sei que estávamos todos a crescer e a mudar, foi uma alegria esta experiência de duas recrutas, se já trazia o corpinho preparado para as grandes andanças aqui se revelou o que se guardava como enigma: a capacidade de liderança, uma forma de autoridade natural, sempre a dar o exemplo, dispensando a gritaria e o palavreado brutal. Liderar é um dom que se burila, com a vantagem de se poder dispensar, quando se pretende passar para o anonimato, viver sem chefiar.


A disposição do quartel terá que surpreender muita gente, se não lhe conhecer os antecedentes. Na presunção de que os Açores podiam vir a ser invadidos, na II Guerra Mundial, criou-se aqui um quartel-hospital, se se reparar bem organizaram-se enfermarias que, quando chegou ao tempo da guerra de África, rapidamente se adaptaram a casernas. Naquele longínquo dia de outubro de 1967, quando acordei com os toques do corneteiro, saindo de uma cama com as mantas todas molhadas, e vim à porta, não eram estas as nuvens, era a bruma, que desapareceu a meio da manhã, e todo o esplendor daquela terra fértil, verdejante, pejada de vacas, encheu o meu olhar. À volta, estradas em paralelepípedos basálticos, por aí se farão marchas e corridas, passando por sítios belíssimos, como S. Vicente Ferreira, ainda no concelho de Ponta Delgada, e Fenais da Ajuda, já no concelho de Ribeira Grande.


Os jovens micaelenses duvidarão desta história, de pungente miséria. Os Arrifes, acima de Ponta Delgada, eram uma freguesia muito populosa, casais com muitos filhos, vivendo em condições da máxima indigência. Apanhávamos um transporte no Largo 2 de Março, perto do Palácio da Conceição, e vínhamos por aí acima, até aos Arrifes, a vida militar começava pelas 8:30 da manhã. O período de almoço era curto, de modo a concluir-se o dia de faina pelas cinco da tarde, voltava-se a tomar transporte de regresso a Ponta Delgada, não dava para conhecer o que era a vida do povoado. Mas havia as funções de oficial de dia, e então, inopinadamente, surgiu a realidade das grandes carências. Findo o jantar, surpreendeu-me um conjunto de crianças junto à porta de armas, traziam umas latas na mão. Perguntei na cozinha o que era aquilo: vinham à espera de sobras, sopa, restos de batatas e de pão. Dirigi-me ao responsável, mandei abrir uma lata de atum e tirar peças de fruta da dispensa. O homem olhou-me boquiaberto, como é que o meu aspirante vai descalçar a bota com o vagomestre. Não te preocupes, hei de encontrar uma justificação. Que se conseguiu, havia felizmente no dia seguinte instrução noturna, justificou-se como comida suplementar. Iremos ver mais imagens destas crianças, virão regularmente pedir-me para eu ser oficial de dia, queriam jantar reforçado. Ninguém suspeita nos dias de hoje a miséria que havia na região.


Também este postal já apareceu no blogue, enviei-o à minha mãe, para lhe mostrar a vida dos Arrifes, aqueles moinhos que porventura foram trazidos por bretões ou flamengos. Fiz amizades para toda a vida. Com as inevitáveis perdas. O Capelão dos Arrifes era o Padre Agostinho do Couto Tavares, quis saber como é que eu passava os fins de semana, achou que havia para ali isolamento a mais, e tudo fez para me apresentar a uma família que, como veremos, teve um papel relevantíssimo naquele meu tempo micaelense.


Monsenhor Agostinho do Couto Tavares, o guardião do Senhor Santo Cristo

(Continua)
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quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20471: Tabanca Grande (489): Alexandre Margarido, ex-cap mil grad inf, op esp / ranger, último cmdt da CCAÇ 3520 (Cacine, Cameconde, Quinhamel, 1972/74)...Senta-se à sombra do nosso poilão sob o nº 801


Guiné > região de Tombali > Cacine > CCAÇ 3520 > 1973 > Uma pausa no rio Cacine, nos "turbulentos acontecimentos" de Guileje / Gadamael, em maio e junho de 1973. Alexandre Margarido CCAÇ 3520

O Alexandre Margarido, novo membro da Tabanca Grande, com o nº 801

Fotos (e legendas): © Alexandre Margarido (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Setor de Cacine > Cameconde > 1968 > Disparo noturno do obus 8.8 > Foto do álbum do António J. Pereira da Costa, que era na altura alferes QP da CART 1692/BART 1914 (Cacine, Cameconde, Sangonhá e Cacoca, 1967/69).

Foto (e legenda): © António J. Pereira da Costa (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso camarada Alexandre Margarifo, ex-cap mil op esp / ranger, último comandante da CCAÇb 3520 (Cacine, Cameconde, Guileje, Gadamael e Quinhamel, dez 1971-mai 1974).

Data - terça feira, 17/12/2019, 21h17
Assunto -  Adesão à Tabanca Grande

Caro Luis Graça,

Tenho acompanhado este Blog, com regularidade e considero do máximo interesse todo o trabalho, até aqui desenvolvido, para que não se percam, nos meandros dos interesses, que jogam com os ex-combatentes, as suas memórias e as experiências de vidas, aqui tão bem representadas.

O meu nome Alexandre Augusto Martins Margarido, fui o último Capitão Miliciano, da Companhia Independente de Caçadores nº 3520, com a Especialidade de Operações Especiais.

Estive na Guiné desde Dezembro de 1971 a Maio de 1974, tendo a minha Companhia, passado por Cacine, Cameconde, Guileje, Gadamel e finalmente Quinhamel, até ao seu regresso ao Funchal, onde se tinha formado.

Conforme as normas da Tabanca, envio duas fotos, uma actual, a outra tirada no Rio Cacine, numa pausa dos acontecimentos turbulentos de 1973, solicitando a entrada, e prometendo o envio de uma das muitas histórias, que fizeram parte dessa minha estadia, por terras da Guiné.

Forte abraço,

Alexandre Margarido
Ex-Capitão Miliciano Ranger

2. Resposta do editor Luís Graça:

Alexandre, és recebido de braços abertos, e muito provavelmente serás o último (**)  a franquear, este ano  o "hall" de entrada da Tabanca Grande (, digo "hall", porque não temos portas, nem janelas, nem porta de armas, nem  cavalos de frisa, nem fiadas de arame farpado, nem valas, nem abrigos, nem espaldões...).

Como sabes, somos uma "comunidade virtual" de antigos camaradas de armas, que passaram pelo TO da Guiné, de 1961 a 1974, fazendo a guerra e a paz...Costumamos dizer que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!... O que é verdade, temos gente, amigos e camaradas da Guiné, um pouco por toda a parte, dos Estados Unidos à Austrália, de Ponte de Lima ao Funchal, de Faro a Bissau, passando por Macau, Cabo Verde, França, Brasil, Alemanha, e por aí fora...

Da tua companhia, a CCAÇ 3520, "Estrelas do Sul" (que nome poético!), tu passarás a ser, se não me engano, o terceiro representante, depois do José Vermelho, nosso grã-tabanaqueiro nº 471, fur mil (CCAÇ 3520 - Cacine, e CCAÇ 6 - Bedanda, CIM - Bolama, 1972/74) e depois do Juvenal Candeias, alf mil at inf, que entrou para a Tabanca Grande  em 6 de maio de 2009

Mas, deixa-me lembrar-te, tu já nos tinhas feito uma "visita" em 2013 (*), comentando esse "resort" turístico que era Cameconde no teu/nosso tempo... Na altura, a Tabanca Grande "partiu mantenhas" contigo e convidou-te  para te sentares "aqui, debaixo do nosso mágico e fraterno poilão"... Não entraste em 2013, entras agora no final de 2019.  E o lugar que te calha é já o 801.. (Já podes ver o tem nome, na lista alfabética, de A a Z, que consta na coluna do lado esquerdo do nosso blogue.)

E vais concerteza ajudar-nos a manter viva e sempre fresca esta "fonte de memórias" onde vem beber a rapaziada que esteve na Guiné, em "comissão de serviço", uns no "back office", outros no "front office"... Partilhamos memórias (e afetos), contamos as nossas histórias... sem censura, sem juízos de valor, sem picardias, sem ressentimentos, procurando contar a verdade e só a verdade.

Senta-te, desfruta a nossa companhia, vai dando notícias, vai participando (com textos, comentários, fotos...) e, entretanto, faz o favor de ser feliz e tem um bom e santo Natal.


Guiné > Mapa geral da província ( 1961) > Escala 1/500 mil > Posição relativa de Cameconde, a guarnição militar portuguesa mais a sul, na região de Quitafine, na estrada fronteiriça Quebo-Cacine... Em 1968 era o batalhão que estava em Buba (BART 1896, 1966/68) quem defendia esta importante linha de fronteira...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)


3. Sobre a CCAÇ 3520, eis aqui a  ficha da unidade, segundo a Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 7º vol - Fichas das Unidades, Tomo II (Guiné), Lisboa, EME/CECA, 2002:

 (i) Mobilizada pelo BII 19 (Funchal);

(ii) Parte para o TO da Guiné em 20/12/1971 e regressa a 37/3/1974;

(iii) Passou por Cacine (mas também Cameconde) e Quinhamel;

(iv) teve quatro comandantes: cap inf Herberto Amaro Vieira Nascimento; cap mil Jaime Cipriano da Costa Rocha Quaresma; cap mil inf Armando Pimenta Cristóvão; e cap mil grad inf Alexandre Augusto Martins Margarido.
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Notas do editor_

(*) Vd. poste de 21 de fevereiro de  2013 > Guiné 63/74 - P11129: (Ex)citações (213): Cameconde, hoje seria um lugar de absurdo, de pesadelo e de loucura... (Alexandre Margarido, ex-cap mil, CCAÇ 3520, Cacine e Cameconde, 1972/74)

(...) Cameconde era um daqueles locais onde apenas os combatentes portugueses conseguiam manter-se durante anos, sem enlouquecerem, face à falta de condições mínimas de subsistência. Inclusive a água e os mantimentos tinham que ser transportados, numa coluna diária por um trilho rasgado na selva.

As altas temperaturas dentro dos abrigos, os insectos, as cobras que deslizavam da selva durante a noite, procurando o calor dessas fortificações, autênticos fornos, a exposição a atiradores e às flagelações por RPG, tudo isso, recuando 40 anos nas minhas memórias, era impensável ser suportado nos dias de hoje.

Obrigado por manterem vivas essas memórias.(...)


(**)  Último poste da série > 21 de novembro de  2019 > Guiné 61/74 - P20369: Tabanca Grande (488): Miguel José Ribeiro da Rocha, ex-Alf Mil Inf.ª da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845 (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70), tertuliano com o número 800 da nossa Tabanca

sábado, 27 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18260: Os nossos seres, saberes e lazeres (250): À sombra de um vulcão adormecido (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 7 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Havia um sentimento profundo subjacente a esta jornada açoriana, era uma autêntica peregrinação de saudade, sem detrimento do que sempre deslumbra cada vez que aqui se arriba. Um amigo franqueara as portas de sua casa em pleno Vale das Furnas, não havia que hesitar um local de encantamento, havia mesmo necessidade de passeios pedestres e de horas de recolhimento em leitura frutuosa. 
Em termos de saldo, só notas positivas, dentro da afabilidade até se voltou a visitar as estufas de ananás, cobertas de vidro caiado, com os seus alboios para regular a temperatura, de alguém a explicar as etapas sucessivas daquela morosa cultura, pois o ciclo completo dura 18 meses. 
E, como num passo de mágica, minutos depois fomos depositados no aeroporto. 
Adeus, até ao meu regresso. 

Um abraço do 
Mário


À sombra de um vulcão adormecido (5)

Beja Santos

O viandante tomou um autocarro (a “urbana”) e veio a Ponta Delgada, há amigos a visitar, sítios a rememorar, cabem dentro do termo da saudade. Esta fachada situa-se na Rua do Frias n.º 101, aqui viveu o último dos poetas do Orpheu, Armando Cortes Rodrigues, é hoje a sede do Instituto Cultural de Ponta Delgada. Aí para Fevereiro de 1968, o poeta convidou o viandante para jantar, recebeu-o numa indumentária excêntrica, volumoso, encantador, dotado de um vozeirão de sílabas soltas, canalizou a conversa para usos e costumes micaelenses, o poeta seguramente passará à história como grande etnógrafo, sem hesitações. À saída ofereceu dois livros, um deles impressionou muito o viandante, era a correspondência dele com Fernando Pessoa, foi através da leitura destas cartas que ficou a saber que o autor de "Mensagem" vivia permanentemente em apuros financeiros. Impossível deixar no limbo tal jantar e tal serão.



Era necessário vir fazer uma consulta no Arquivo e Biblioteca de Ponta Delgada, casa de grande conforto e com funcionários altamente prestáveis. Finda a leitura, preferiu-se a escada ao elevador, deparou-se esse painel de azulejos e, sabe-se lá porquê, lembrou-se o viandante do mar dos Açores.


Em frente à Biblioteca e ao Arquivo há um aprimorado jardim, tem no centro um monumento alegórico a Antero de Quental, o que naquele caso importava era visitar o jardim antes que desabasse uma carga de água. Atraído por tanta pétala no chão, desconhecedor do nome da árvore, perguntou ao jardineiro. “Senhor, é uma macaqueira”. Já procurou no dicionário, nada aparece para o esclarecer. O assunto também não tem importância, os dicionários também não trazem a palavra bagacina, o que é de todo incompreensível, bagacina é o que não falta por todo o solo açoriano. Saúde-se a macaqueira por nos oferecer este tapete digno de uma importante procissão.


O casco histórico de Ponta Delgada tem destas surpresas, aqui estacionou muita fidalguia, antiga do tempo dos povoadores e de extração mais recente, como o liberalismo. Diante destas armas, deu o viandante a meditar na fidalguia de caráter, a de grandes princípios, e pronto lhe veio à mente um nobre fidalgo republicano, Manuel Arriaga cujo civismo devia ser ministrado nos bancos da escola, o exemplo modelar de quem servia e não se servia, insensível às tentações do uso indigno do poder.


As últimas recordações vão para os Arrifes, sede do BII 18, sigla para o Batalhão Independente de Infantaria n.º 18, foi aqui que o viandante aterrou e deu duas recrutas, foi gerente de messe até ser despedido por ser sovina e estar indisponível para cavalarias altas, quem não tem dinheiro não tem vícios, se em Mafra descobrira que podia puxar pelo corpo e estava preparado para as futuras grandes canseiras, aqui descobriu, quase atónito, que saber liderar é um misto de ciência e dom e da prática de cuidar. Por isso sorria feliz, dava e recebia confiança, imbuído de respeito e aprendiz curioso destes padrões culturais que os recrutas transmitiam. Olhando estas fotografias, o que daria o viandante para abraçar estes homens, cinquenta anos depois.


Sabe-se lá por que escrutínio um dia foi chamado ao comandante e dada a ordem de preparar o discurso do juramento de bandeira, a parada repleta, os ilustríssimos convidados abancados na tribuna, os familiares em redor, era preciso dizer coisas como dever, amor à Pátria, e algo mais. Foi o que se tentou fazer, sem quaisquer cedências ao jargão propagandístico. De acordo com a opinião alheia, tudo correu bem e sem subserviência.


Os Arrifes eram uma freguesia populosa e com pobreza indisfarçável. Logo da primeira vez que esteve de oficial de dia, o cabo rancheiro perguntou se podia distribuir a sobra das batatas. O aspirante a oficial miliciano pediu explicações: “Estão lá fora as crianças que aqui vêm a esta hora, levam batata, ou massa, às vezes couves, são sobras e agora não temos aqui no quartel nem porcos nem galinhas”. Foi ver as crianças e tocou-lhe a sua candura e o olhar famélico. Mandou abrir latas de atum, distribuir pão e peças de fruta, conduta que lhe podia ter custado caro. A criançada saiu dali mais aconchegada, e ao fim do dia de instrução, prestes a regressar a Ponta Delgada, era sacramental perguntarem-lhe se amanhã não estaria de oficial de dia…



Última recruta, última fotografia de conjunto, a partir de agora o destino é incerto para todos nós, com este corpinho fomos todos parar à guerra. Prometemos um dia voltar à fala, o que não aconteceu. A importância, para o viandante, é olhar com ternura esta fotografia e o que ela encerra. E ponto final. E aqui acaba a viagem, mostra-se um bilhete-postal dos arrifes daquele tempo, o viandante mandou à sua mãe, fala de alegria, de boa saúde e de muito entusiasmo. Alegria e entusiasmo que tanto o ajudaram ao longo da vida.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18232: Os nossos seres, saberes e lazeres (249): À sombra de um vulcão adormecido (4) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14879: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (2): Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda

1. Continuação da apresentação do trabalho do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72), intitulado "3 anos nas Forças Armadas", enviado ao nosso Blogue em 28 de Junho de 2015:


3 anos nas Forças Armadas (2)

Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda

Tibério Borges

Lembro-me alguns pormenores da minha chegada a este quartel. Fizeram-me e a outros a recepção da praxe. Na altura não entendi este método e não fiquei bem disposto. Sei que nos sentaram à volta duma mesa de sala de estar, sem comer, enquanto eles, os organizadores desta cena, comiam lautamente. Depois perguntaram se o barman podia fornecer martini em nosso nome. Eu que não tinha dinheiro para mandar cantar um cego e mal disposto com esta recepção a resposta foi um não. Tive pena, passados tempos, de não ter ido na jogada. Teria sido mais engraçado.

Outro episódio foi o de um preso ter arrombado o tecto da prisão para fugir. O episódio foi comunicado ao comandante que com a sua experiência pediu calma e mandou uma viatura com alguns soldados mas sem armas a casa do fugitivo para o trazer de regresso. Ainda me lembro de lhe ter dito para não me criar problemas e regressar ao quartel mas ele foi peremptório na resposta que regressava só porque não vinham armados como de outras vezes. E veio nas calmas.

A disciplina era muito rigorosa mas havia quem se estava a marimbar para a vida. Morrer por morrer Marquês de Pombal.

Mas a companhia foi-se formando. Muitos treinos debaixo de chuva, frios, vento… fora deles eram outra vida fora do quartel. Os continentais alferes como eu dormiam fora do quartel. Já nem me lembro onde ficava se dentro ou fora. Esta minha memória está de rastos. Sei que andava a namorar e todo o tempo que tinha era para estar com a minha namorada. Não foi fácil este namoro. Mas aconteceu.

Finais de sessenta e nove, Ponta Delgada mais parecia uma aldeia e sem condições. O pouco que havia de restauração fechava depois das horas de expediente. Vida nocturna só em particulares. Quem tinha o privilégio de entrar num grupo estava safo. O contrário era uma situação difícil pois o micaelense era demasiado fechado. Apenas um pequeno grupo desta sociedade tinha regalias porque eles próprios as criavam. Havia muito sangue azul. Mas havia pequenos grupos já da futura classe média que se reuniam para patuscadas cujo convívio são era muito agradável. O sair de casa à noite era um prestígio. Tudo era diferente comparativamente com 2008 onde o inverso existe. Foi passar dum extremo ao outro depois do 25 de Abril de 1974.
Se lerem “Gente feliz com lágrimas” vão entender bem a sociedade que existia na altura.

O que é certo é que depois da companhia formada embarcamos rumo a Setúbal onde tirámos o IAO cujas iniciais já não me lembro o significado. Era o passo anterior à ida para a Guiné, local destinado à nossa companhia. Já nem me lembro porque não era batalhão.

Setúbal era na altura uma cidade simpática porque conseguimos entrar num pequeno grupo local com o qual passamos bons momentos. O mundo era diferente, muito diferente de Ponta Delgada. Havia muitos locais onde se podia comer. E lembro-me de uma vez termos ido comer a uma tasca onde começamos pelo pão enquanto se esperava pela refeição. Foram vinte e dois papos-secos que quatro ou cinco pessoas devoraram num pouco. O homem da tasca ficou estupefacto a olhar para nós pois não sabia que éramos açorianos.

Em Setúbal

O mundo aqui era mais largo. Disso já me tinha apercebido quando vim estudar para o continente. Em vésperas de embarcar de Lisboa para Bissau o nosso capitão Magalhães deu-nos a noite livre mas marcou uma hora para formar e ninguém podia faltar. Era ver toda a malta ir já não sei como para Lisboa. Fomos para a “night”. Percorremos uma série de pubs e sei lá que mais. Bebeu-se, comeu-se e depois cada um terminou-se. Também já não me lembro como regressamos a Setúbal. Só sei que no dia seguinte, 11 de Abril de 1970, estávamos em Lisboa a fazer a marcha de despedida às altas patentes.

 Desfile antes do embarque

Depois de estarmos no navio, o Ana Mafalda, tivemos oportunidade de ver um mar vasto de gente com lenços brancos, gritando de dor a despedida do seu ente querido que o mais certo era não o tornar a ver. Era arrepiante constatar esta dura realidade. Era deprimente. Era este cenário que Salazar evitava publicar. Largamos debaixo de gritos profundos de dor e rumamos a mar alto com destino a Bissau.

Despolitizado, como éramos todos, não tinha a noção da verdadeira realidade. Lembro-me que quando tinha aulas nos Jesuítas, ali para os lados de Sete Rios, pois apanhava o comboio em Sta Iria, falava-se a boca fechada ou dava-se a entender muito sobre o regime de Salazar. O Cardeal Cerejeira era muito badalado. Havia uma revista que era muito lida pelo clero e que era muito discutida. Soube mais tarde que a PIDE expulsou de Portugal padres que pertenciam à Congregação onde estudei, Sagrados Corações de Jesus e Maria. Os meus professores eram holandeses.

A bordo do Ana Mafalda

Uma semana em alto mar deu muito para pensar e escrever. Na altura estava a namorar e eu escrevia longas cartas. Tinha tido quase dois anos de filosofia e isso dava-me campo para de uma frase expandir as minhas ideias. Lembro-me de ter tido um diário de 4 anos sem falhar um dia mas como apanhei meu pai a lê-lo e achei que aquilo era só meu decidi queimá-lo. Mais tarde arrependi-me mas já era tarde. Muitos pormenores da minha vida desapareceram, simplesmente. Mas eu estava em alto-mar. E neste percurso lembro-me de um soldado se querer atirar borda fora. Foi uma situação crítica e foi dado conhecimento ao capitão.

Foi um tempo de antevéspera à crueza duma guerra sem sentido como todas as guerras. Já o Padre António Vieira dizia: “É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro”.
A nossa literatura está cheia de escritos sobre a corrupção de quem lidera a nação. O mesmo Vieira escrevia: “O maior jugo de um reino, a mais pesada carga de uma república são os seus imoderados tributos. Se queremos que sejam leves, se queremos que sejam suaves, repartam-se por todos". Está muita coisa inventada e dita. É uma questão de interpretação. E tudo isto dito no século dezassete.

E mais. O Vieira era o imperador da língua Portuguesa segundo Fernando Pessoa. Sobre as conquistas pelos holandeses de terras portuguesas no Brasil: “Se esta havia de ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para que foi o trabalhar, para que foi o servir, para que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue nestas conquistas? Para que abrimos os mares nunca dantes navegados? Para que descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? Para que contrastámos os ventos e as tempestades com tanto arrojo, que apenas há baixio no oceano, que não esteja infamado com miserabilíssimos naufrágios de portugueses? E depois de tantos perigos, depois de tantas desgraças, depois de tantas e tão lastimosas mortes, ou nas praias desertas sem sepultura, ou sepultados nas entranhas dos Alarves, das feras, dos peixes, que as terras que assim ganhámos, as hajamos de perder assim! Oh!, quanto melhor nos fora nunca conseguir, nem intentar tais empresas!”.
Para quê mais comentários? E no Séc XIX ainda teimávamos em ficar com terras africanas.

E lá íamos a caminho de África teimar em combater por ficar com aquilo que não era nosso. Uma semana num barco a caminho de Bissau. Soldados mal acomodados como gado de exportação. E para tudo se inventava uma desculpa esfarrapada para não se dar melhores condições a quem ia defender a Pátria. Mas seria realmente a Pátria que ia defender? Não. Ainda hoje vivo revoltado com toda esta situação. A Pátria grita por justiça! Abram os olhos! Ex-combatentes! Agora é altura de defender a Pátria. Mas somos nós que tomámos as rédeas do rumo da Pátria.

Estava um calor húmido terrível. Antes de desembarcarmos ficamos horas esperando ordem para o desembarque. Tudo era estranho. Outro mundo. Tudo diferente.

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro parte inserta no poste de 8 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14850: Tabanca Grande (469): Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726 (Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72)

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14850: Tabanca Grande (469): Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726 (Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72)

1. Mensagem do nosso camarada e novo amigo Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72, com data de 28 de Junho de 2015:

Caro Vinhal

Sou Tibério Borges que esteve na Companhia de Caçadores 2726 em Cacine de 70 a 72 e, pelo que sei do Luís Paulino, viajámos no mesmo barco, Ana Mafalda, de Lisboa para Bissau.

Posto militar: Alferes Miliciano

Especialidade: Infantaria

De S. Miguel fui estudar para a Terceira. Daqui para o Continente. Regressei a S. Miguel de onde tive que ingressar na Tropa, Mafra e daqui para os Comandos em Lamego.

De seguida fui para Tancos tirar minas e armadilhas. Regressei a S. Miguel para formar companhia no BII 18.

Antes de embarcarmos para a Guiné passamos por Setúbal para tirar o IAO. Depois do desembarque em Bissau fomos para Cacine / Cameconde onde alternávamos mensalmente.

Fui deslocado para Gadamael mais de um mês assim como para Bedanda.

Feita a tropa passei à vida civil e depois de alguns meses em S. Miguel fui para Luanda onde estive 3 anos na vida civil.

Regressei a S. Miguel em Junho de 75. Trabalhei 3 anos na CTM (Companhia de Transportes Marítimos) tendo concorrido à TAP onde estive 20 anos.

Reformei-me por imposição aquando o fecho da delegação em Ponta Delgada em princípios de 2000.
Neste longo espaço de tempo em S. Miguel estive no Brasil (Rio e S. Paulo), Canadá (Mississauga), América (Nova Inglaterra com artesanato).  Portugal de Norte a Sul. Europa: Itália, Suiça, Checoslováquia, passando por Zurique, França (S. Genis Laval – Lyon), Espanha (Rio de Honor).

Com um abraço
Tibério

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2. Comentário do editor

Caro camarada Tibério Borges_

Bem aparecido na nossa tertúlia onde és recebido de bom grado.

Em poucos dias és o segundo português insular a apresentar-se no Blogue. Felizmente temos entre nós alguns açorianos (assim de repente só me lembro de um madeirense, o Inácio Silva, meu camarada da CART 2732) que prezamos especialmente, por serem pessoas também especiais, já que vivem em pequenas ilhas dispersas no Atlântico, para muitos pequenas demais, que os leva à emigração. Por esse mundo fora, especialmente no continente americano, honram o nome de Portugal, e por isso a nossa especial estima e consideração.

O meu particular apresso também aos madeirenses, com que convivi cerca de 28 meses, e entre os quais fiz amizades para a vida.

Não só as nossas Companhias viajaram juntas a partir do Funchal, no "paquete" Ana Mafalda, até à Guiné, como nós os dois nos devemos ter cruzado em Tancos - Casal do Pote - no mesmo Curso de Minas e Armadilhas, o XXXIII, entre 20 de Outubro e 28 de Novembro de 1969.

Mandaste no teu mail de apresentação um excelente texto de memórias, ilustrado com muitas fotos, a que chamaste "3 Anos nas Forças Armadas", que comecei aqui mesmo a publicar.

Que mais te posso dizer? Que espero te sintas em casa e participes comentando o que por aqui se vai escrevendo. Não sei as tuas memórias se esgotam no texto que agora enviaste, se não, esperamos a continuação das mesmas.

A partir de hoje tens mais umas centenas de amigos para trocar impressões e conversar sobre aquilo que nos marcou, e que os "outros" já estão fartos de ouvir.

Deixo-te um abraço de boas-vindas em nome da tertúlia e dos editores Luís Graça, Magalhães Ribeiro e eu mesmo.

Ao teu dispor
Carlos Vinhal

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3 anos nas Forças Armadas (1)

Tibério Lopes

Após os estudos que fiz fiquei um ano esperando por ser chamado a cumprir o serviço militar obrigatório. Neste ano de espera estive a trabalhar na Clínica do Bom Jesus. Em Março de 1969 fui para Mafra a fim de fazer a recruta.

Tenho fotos de há quarenta anos e muita coisa já não me lembro. Meu irmão Mariano e eu entramos ao mesmo tempo para Mafra. Tínhamos acabado de estudar. Por isso entramos mais tarde para a tropa. Lembro-me de nos terem ido buscar a Lisboa aonde chegamos de barco dos Açores. As portas do quartel estavam fechadas e tivemos que esperar. Ao entrarmos uma alta patente falou-nos das nossas instalações que cheiravam a bafio. Algo de muito esquisito pairava no ar. Começava a minha odisseia. Sabia-se que morria muita malta nova no Ultramar. No dia seguinte foi a distribuição da farda. Foi vestir o que nos deram. Tudo ficava desproporcional.

Tibério e Mariano Borges

Ouvia-se falar de muita coisa sobre o que era ou não regulamentar usar. Do lado de fora do quartel os comerciantes vendiam quépis o que era mais atraente do que o que nos davam adentro muros. Lembro-me de um dos militares do quadro nos encontrar fora e nos avisar que deveríamos portar-nos de maneira a não deixar mal o militar, isto referindo-se ao nosso vestir. De facto mais parecíamos uns fantoches do que militares. Mas era o que nos davam. As nossas mães não estavam ali do lado de fora do quartel prontas a intervirem no arranjo da roupa. Sei que houve um grupo que adquiriu quépis que não eram regulamentares mas quando saíamos, acabávamos por o usar às escondidas.

Pelotão de Mafra

Os Exercícios começaram. Era ainda inverno. Sair da camarata onde se dormia em beliches era tomar uma lufada de ar fresco. Mas estava frio. E as ordens eram para se cumprir. Deitar no chão! Nem que fosse em cima de lama ou água. Uma ética completamente diferente daquela a que estávamos habituados. Era a preparação para a guerra. Tudo era estranho e um mundo completamente diferente nos esperava. Claro que é preciso enquadrar tudo isto no tempo. Mas como muita coisa já está escrita sobre o antes vinte e cinco de Abril dispenso esse enquadramento.

Foram cerca de três meses a tirar a recruta. Os nossos fins de semana eram no quartel. Via os continentais a saírem para as suas famílias e regressarem no Domingo à noite. Num desses muitos fins de semana lembro-me dum colega de pelotão me levar até sua casa em Santarém e para a refeição desenterrar uma garrafa de vinho. Acho que se conservava mais fresco. As finanças não abonavam pelo meu lado e como tal era tudo dentro do quartel. Meu irmão e eu lá saímos mas com rédea muito curta. Tempos muito difíceis. Penso que pedi uns dinheiros ao meu pai para lhe pagar depois. Mas os treinos eram puxados. O nosso instrutor era um tenente. O meu fito era não perder a recruta porque fazer a tropa abaixo de oficial, no meu caso, era mau. Por isso dei tudo por tudo e foi de tal ordem que a dada altura o instrutor veio dizer-me que me preparasse para ir para os Comandos em Lamego. Ora eu não fazia a mínima ideia do que me estava a dizer. O que me lembro foi que tirei informações de colegas que me foram elucidando do que já tinham ouvido falar sobre essa tropa. Pintaram-me o quadro de negro e fui ter com o tenente a dizer que não queria ir para Lamego. Mas foi o mesmo que nada. Ele já tinha decidido. Estavam a pedir elementos para os comandos e eu já estava incluído nesse grupo. Mal sabia eu o que me esperava. No final da recruta fomos a Ericeira fazer o almoço de despedida.

 Almoço de despedida

Três meses depois estava em Lamego. Guia de marcha para o Porto e daqui de comboio para a Régua. Era a vapor. Lento mas bonita a paisagem. Fui admirando a natureza numa mística que eu nem sabia qual. Ah! Lembro-me de ter parado em Coimbra. Uma colega da Clínica estava a tirar o curso de parteira e parei para darmos uns dedos de conversa. Seria a minha futura mulher. Coisas do destino. Em Lamego estive uma semana sem nada fazer pois a especialidade só começaria depois. Passeei. Conheci Lamego.

Lamego

Foi uma boa semana mas o que se iria passar a seguir não era rebuçado nenhum.

O Capitão Jaime Neves estava a presidir esta unidade. O Carapeta era instrutor. Um sargento que esteve na Índia aquando o colapso de Goa, Damão e Dio. Outros. Havia um outro sargento que fisicamente parecia o Golias. Pois isto aqui era a doer. Os exercícios começaram. Era de dia de noite a qualquer hora. Carreira de tiro com fogo real. Simulação de guerra com fogo real. Até petardos. Foi aqui que fiquei sem o tímpano dum dos ouvidos. Ainda hoje sofro as consequências disso. Vestidos de farda, arma, cartucheiras, munições (acho que granadas, também) e botas, lá marchávamos de noite desde Lamego para a Régua onde no rio nos banhávamos em águas paradas a cheirar mal e cheias de rãs. Também passávamos por buracos onde as tripas de animais faziam parte da merda a que ficávamos a cheirar. Visitas ao cemitério depois da meia-noite fazia parte do programa. Aqui o terror era o tema e lembro-me que ao saltar os muros logo de início afocinhei, resultado dum arame no caminho para logo de seguida apanhar uns bons socos com luvas de boxe do tal sargento Golias. Vozes a surgirem das campas. Mas para a frente era o caminho. Estava escuro como breu. No fim do cemitério saltei para cima dum muro e logo apareceu uma voz de comando para saltar para o incerto e tenebroso vácuo. Era baixo ou alto? Aquela sensação de pensarmos que vamos saltar para muito alto quando afinal não era. Uma sensação terrível. A “psico” era ambientada com a música “Mãezinha” sei que estás a chorar… não chores. Deitados de papo para o ar na parada a olhar a estrelas e a ouvir esta música. Destruir, preparando a malta para uma guerra de guerrilha. Três dias deixados no mato sem sabermos onde estávamos e apenas com coordenadas para regressarmos a casa depois de termos que passar por objectivos. Eram os dias da “sobrevivência”.

Lembro-me que neste trajecto fomos parar a um sítio onde um homem estava em obras numa casa. Soubemos que tinha estado no ultramar pois fomos lá pedir de comer. A fome era negra. Rato como já era, o dono da casa e nós ao entrarmos dentro e ele ao ir buscar algo para enganar a fome, um dos nossos elementos ia vasculhar mas não deu tempo porque o dono logo deu meia volta e nos avisou para estarmos sossegados. Depois de uma cavaqueira amena continuamos o nosso percurso comendo a fruta que apanhávamos por aqueles sítios. Sei que era verão e muita água bebi duma canalização de alimentação de águas para a rede pública. Como consequência apanhei uma insolação. Três dias de cama a tremer de frio em pleno verão.

Foram três meses de duro exercício. Sei que me correspondia com uma senhora minha amiga e minha segunda mãe, Maria Teves. Por ter tido um filho na Guiné foi avisando-me que onde eu estava era bom não me deixar levar pelo espírito que cultivavam nestas unidades porque depois no terreno a morte estava esperando por nós. Estávamos a ser formados para tropa de intervenção. Sei que foi aqui que andei pela primeira vez de helicóptero. De facto o espírito de camaradagem que adquirimos era fora de série. E no meu interior comecei a desenhar o meu sofisma. Chegar ao fim da recruta era meu objectivo. Três minutos antes de acabar um balde de água fria gelou o nosso espírito. Um dos nossos colegas, um furriel, tinha acabado de levar um tiro apanhando a aorta num exercício final de meia lua onde os homens da ponta cruzaram fogo entre si. Uma hora depois estava morto. Um exercício mal efectuado pelo sargento que tinha estado na Índia. A malta ficou mesmo em baixo. Acho que nem ao funeral fomos. Já nem me lembro.

Um papel chegou até nós para o assinarmos. Dizia que éramos voluntários. Bolas!
Assinei o “não” e todos ficaram a olhar de lado para mim.
E foi assim que deixei de ser comando.

Enviaram-me para Tancos a fim de tirar minas e armadilhas.
Devo ter estado em Tancos cerca dum mês. Ensinaram-me a técnica de manejar explosivos, mostraram-me algumas minas e a maneira de as armar e já não sei que mais.

Tancos - Casal do Pote

Uma coisa é certa. Fui bem preparado para ir para o ultramar. Pelo menos para me defender. A vitória duma guerra baseia-se no medo que cada tem e que faz tudo para se defender. Existem pessoas que através de leis se aproveitam desta situação para juntar milhares de pessoas que as colocam num determinado terreno para matar outros. Tirando algumas excepções na história da humanidade impor ideais numa guerra é utopia. O medo é a base da guerra. Todos têm o buraquinho no fundo das costas. O resto é fanfarronice.

Mas a filosofia da guerra é discutível e como tal vamos a factos. Enquanto estive em Tancos andei a conhecer os arredores. Lembro-me de ter ido ao Castelo de Almourol e à Barquinha. Aqui havia um café onde se podia passar umas horas aos fins-de-semana que se convertiam sempre em ver os continentais irem para junto da família e eu, Açoriano, a ficar nos aquartelamentos.

Terminado este tempo de instrução enviaram-me para S. Miguel a fim de ingressar nos métodos de formação de companhia. Disponibilizaram-me vinte e cinco homens e dois furriéis em vez de três para dar formação. Era inverno. Arrifes, BII 18.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14834: Tabanca Grande (468): José Jorge de Melo, ex-Alf Mil da CCAÇ 1498/BCAÇ 1876 (Có, Jolmete, Ponate, Bula e Minar, 1966/67)

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13522: Unidades Militares mobilizadas nos Açores para a Guerra no Ultramar (1961-1975). Notas para uma investigação (3) (Carlos Cordeiro)




Terceira parte do trabalho do nosso camarada Carlos Cordeiro (ex-Fur Mil At Inf CIC - Angola - 1969-1971), Professor na Universidade dos Açores, na situação de Reforma, intitulado "Unidades Militares Mobilizadas nos Açores Para a Guerra no Ultramar (1961-1975) - Notas Para Uma Investigação











OBS: - Clicar em cima das imagens (horizontais) dos quadros para as ampliar

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13518: Unidades Militares mobilizadas nos Açores para a Guerra no Ultramar (1961-1975). Notas para uma investigação (2) (Carlos Cordeiro)

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13518: Unidades Militares mobilizadas nos Açores para a Guerra no Ultramar (1961-1975). Notas para uma investigação (2) (Carlos Cordeiro)




Segunda parte do trabalho do nosso camarada Carlos Cordeiro (ex-Fur Mil At Inf CIC - Angola - 1969-1971), Professor na Universidade dos Açores, na situação de Reforma, intitulado "Unidades Militares Mobilizadas nos Açores Para a Guerra no Ultramar (1961-1975) - Notas Para Uma Investigação















(Continua)
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 19 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13513: Unidades Militares mobilizadas nos Açores para a Guerra no Ultramar (1961-1975). Notas para uma investigação (1) (Carlos Cordeiro)