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domingo, 26 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12637: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (45): Carta de condução

1. Em mensagem do dia 27 de Junho de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais algumas das suas curiosas histórias, desta vez subordinadas ao tema carta de condução:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

45 - Exame de condução
(Complementando o texto do Zé Castro Lopes.)

Em tempos idos fazer exame de condução era uma aventura tremenda, tendo em conta o exame em si e a competente preparação, culminando com a deslocação até terras de longe.
Eu tirei a minha carta (militar) na Guiné em Abril de 1966; no fim do mesmo mês, embarquei de regresso a Lisboa, no navio Uíge, o mesmo que me havia levado para a Guiné, dois anos antes.

Outro alferes e eu deslocámo-nos de avião até à capital da província (por via terrestre era impensável, pois a estrada Farim/Bissau estava em boa parte do percurso, totalmente vedada ao turismo vedada ao Turismo).
Aqui chegados dirigimo-nos ao QG para fazer a inscrição de candidatura ao tal exame.

Os camaradas que nos proporcionaram os papeis que havíamos de preencher, tiveram o especial cuidado de nos informar, em off, que só havia dois oficiais examinadores: um capitão e um alferes. Transmitiram também que o capitão examinava todos os oficiais candidatos; o alferes ocupava-se da maior parte dos menos graduados (sargentos e praças).
Soubemos também, pela mesma fonte, que em cerca de 16 meses de comissão, aquele capitão havia reprovado, todos os oficias que lhe haviam aparecido pela frente, à primeira vez.
Ficámos um tanto alarmados!

Uma outra fonte, na messe de oficiais, confirmou que aquela informação era absolutamente verdadeira. O alferes Mendonça, meu companheiro de infortúnio, na Guiné, no mato e no exame de condução – já conduzia o carro do pai, lá na sua quinta em Felgueiras; às escondidas, arriscava, de vez em quando, uma escapadela pelas estradas da região, para se exibir perante as garotas.
Nunca foi apanhado pelas autoridades. Entre os oficiais subalternos da nossa companhia (a CCaç 675) ele era, portanto, o mais experimentado naquelas lides.

A minha única experiência de condução, antes da tropa, foi com carros de bois, pois a minha aldeia, antes da “bronca” (leia-se revolução dos cravos) não era servida por qualquer estrada digna desse nome. No mato, depois da “pacificação” total da nossa zona, os oficiais “podiam” (um pouco às escondidas) usar as viaturas militares para se embrenharem na arte da condução.
A companhia dispunha de 3 jeeps (da 2.ª Grande Guerra), 10 ou 12 Unimogs e 3 ou 4 Mercedes, viaturas de maiores dimensões.
Como os jeeps raramente estavam disponíveis, eu, com a mania das grandezas, habituei-me a conduzir uma caminheta Mercedes, uma viatura anormalmente grande, mas já com direção assistida, uma maravilha!

Perante as informações surpreendentes e assustadoras colhidas no QG, eu tomei logo uma decisão que considerei ser a mais acertada: fazer exame de condução usando um caminhão militar, uma Mercedes que requisitei na Intendência. Deliberei deste modo, por dois motivos:
- 1.º eu estava habituado a conduzir, quase em exclusivo, carros grandes, especialmente a Mercedes;
- 2.º considerei que poderia ser uma boa maneira de escapar ao exame com aquela fera (o capitão). - 3.º era mais económico que alugar um carro na Escola.

Sem perda de tempo, contactámos uma Escola de Condução (a única em Bissau) para adquirir um pouco de prática em estradas civilizadas (leia-se alcatroadas, com passeios laterais, com sinais de trânsito e movimento. Conduzi um “velho carocha” durante meia hora e uma viatura pesada, durante hora e meia. Esta segunda parte foi extremamente útil; o instrutor civil “levou-me” a todos os locais por onde o capitão costumava passar durante o exame. Elucidou-me também sobre as “armadilhas” que ele usava habitualmente: mandar entrar em rua de sentido proibido, ultrapassar com sinal sonoro junto a um hospital, estacionar em local proibido, etc.
Informou também que ele ordenaria que entrasse em determinada rua estreita e que voltasse na primeira à esquerda, entrando numa rua perpendicular e também acanhada.
Chegados a este cruzamento ele mandou parar e explicou: "há apenas uma maneira de sair daqui! Se não fizer como vou ensinar-lhe, não consegue concluir o exame; como vou transmitir-lhe, sai com uma pequena manobra”.

Conduzi como ele ensinou e… tudo bem! Dei a volta ao quarteirão e voltei ao mesmo local para repetir a manobra agora sem ajuda – nenhuma complicação!
De seguida, juntamente com o alferes Mendonça, percorremos, a pé, todas as ruas por onde o capitão haveria de nos “levar” para nos familiarizarmos com os sinais (no mato não havia disso): aqui podemos entrar, ali não, acolá não podemos estacionar, além não podemos voltar à direita, etc.

No dia e hora aprazados, compareceram mais de 20 candidatos dos quais 3 eram alferes; um dos oficiais era candidato apenas à carta de mota. Uns 7 ou 8 chumbaram antes da condução: uns na prova escrita, outros na oral e alguns nos testes psicotécnicos. Qualquer destes exames “parciais” era eliminatório.
Os três oficiais superaram a 1.ª fase, passando à condução. O alferes Mendonça foi o primeiro a ser chamado para ser examinado num “carocha” que alugara na Escola. Entrou na viatura e aguardou a ordem do examinador:
- Ligue o motor! - Se está tudo bem, inicie a marcha!

O Mendonça “arrancou” de tal ordem (os pneus derraparam, levantando poeira a rodos) que o capitão gritou que parasse imediatamente e, com voz doce, informou sarcasticamente:
- Desligue o motor se faz favor e vá à sua vida! O seu exame terminou agora! Com isto não se brinca!

O outro alferes foi chamado para o exame de mota; não sei o que se passou; voltaram pouco depois, e… não conseguiu levar a carta.
Chegou a minha vez!

O capitão ordenou que entrasse e ligasse o motor – de nada serviu o meu estratagema – e se tudo está em ordem siga em direcção à Baixa.
Tudo correu de acordo com os sábios ensinamentos do instrutor civil. Que sorte! Regressados ao QG ordenou que arrumasse a viatura de marcha atrás, num barracão ali existente, entre duas outras que lá se encontravam.
De seguida ordenou que aguardasse. Eu tinha a “certeza”(?) que não tinha cometido qualquer atropelo… mas a minha preocupação era enorme; creio que era mais terror que outra coisa.
Pouco depois, um soldado, por ordem do examinador, informou-me que voltasse depois do almoço e que trouxesse duas fotos tipo passe para a carta de lista branca (penso que era branca) que me seria entregue nesse mesmo dia, mediante pagamento da módica quantia de 10$00 (pesos).

Usei-a durante uns anos; em 1972, quando saí da tropa, troquei-a pela carta civil. Em cerca de 16 meses fui, portanto, o único oficial a conseguir a carta à primeira tentativa… graças aos ensinamentos pertinentes do instrutor civil. Acontecia que àquela data, eu tinha bem mais de 30.000km de condução em estradas e “picadas” onde o que aparecesse estava destinado ao abate.

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Outra estória

Em 1961, conheci em Coimbra, um estudante, natural de Lamego (Britiande) que no ano anterior vivera na mesma casa na qual eu estava hospedado e aparecia lá com certa frequência.
Ele foi chamado a cumprir serviço militar em Mafra (EPI) no início de 1963; em Agosto do mesmo ano eu “bati com o costado” naquela mesma Escola Prática. Ele foi mobilizado para Angola e, pouco depois, eu embarquei para a Guiné.

Em Junho de 1966, regressado da Guerra, fui colocado no Colégio Militar, onde esperava preparar-me para concluir o curso. Em Outubro, o Walter Carvalho, o tal companheiro de Coimbra, encontrou-se lá comigo. Como aos dois faltava fazer quase as mesmas cadeiras, logo combinámos que estudaríamos juntos. Em primeiro lugar tentaríamos duas cadeiras mais simples. Havia um DL que permitia aos ex-combatentes fazer exame em qualquer época do ano; de seguida, já mais ambientados ao estudo e já “esquecidos” das complicações bélicas, tentaríamos uma cadeira nuclear para aquilatar as nossas capacidades psíquicas e psicológicas para continuar os estudos a sério, depois dum interregno de 3 anos em grande parte passados na Guerra de África – outros chamam-lhe colonial.

Um ano mais tarde, o Walter decidiu “tirar” a carta; adquiriu os papeis, preencheu-os e foi entregá-los na D.G.V.
Ao conferir os documentos, um funcionário extremamente zeloso e cumpridor informou, emproado:
- Oficial miliciano não é profissão!
- É disso que eu vivo! Mas se não é aceite… eu sou estudante!
- Também não é profissão!
- Não tenho outra! Estudo e recebo salário como oficial miliciano! Será que não posso obter a carta para se profissional de condução?
- Claro que não!

Devolveram-lhe a papelada! Preocupado com o que estava a acontecer-lhe, decidiu contactar uma Escola de Condução para que tratassem dos documentos de candidatura ao tal exame. Recolheram logo os elementos considerados necessários, mas não perguntaram pela profissão e sugeriram que voltasse no dia seguinte para assinar.
Curioso, logo foi verificar qual a profissão que lhe haviam atribuído. Ao certificar-se que era “agricultor”, comentou, sorrindo:
- Não tenho nada contra os agricultores, mas é tão verdade como afirmar que sou médico ou engenheiro.
- Na verdade, ou aceita ser agricultor, ou outra profissão que não necessite de comprovativo académico (carpinteiro, pedreiro, etc.) ou não pode habilitar-se à carta de condução.

Assinou! Foi essa a sua profissão (apenas na carta) enquanto o documento foi de cartolina; agora, com o cartão substituído por plástico, será diferente.

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Mais uma 

Um jovem frequentava o Liceu em Goa, quando, em finais de 1961, a União Indiana decidiu anexar a, até então, Índia Portuguesa (Goa, Damão e Diu, bem como, os enclaves de Dadrá e Nagar Haveli, escreve-se assim?).

O jovem, com a sua família “sem armas e com pouca bagagem” rumou à capital do Império onde concluiu o curso liceal, matriculando-se de seguida na Faculdade de Medicina. Ainda antes do fim do curso candidatou-se ao exame de condução; seria de bom-tom que o Sr. Doutor conduzisse a sua viatura.

Preencheu os impressos necessários e entregou-os na DGV; solicitaram que apresentasse o diploma da 4.ª classe, habilitação” mínima “exigida na Lei.
- Não possuo tal documento! Fiz esse exame em Goa e, na hora da “anexação” no meio da grande azáfama e perigo, trouxe apenas o que tinha… ali à mão. Estou prestes a concluir o curso de medicina; posso apresentar o certificado do 7.º ano que concluí no Liceu Camões!
- Eu quero apenas o comprovativo da 4.ª classe! O resto é conversa! Não interessa!

É certo que o futuro “galeno” conseguiu a sua carta de condução, mas viu-se obrigado a mover influências – as tradicionais e sempre atuais “cunhas” – para que alguém” sugerisse” ao zeloso funcionário que fizesse o “favor” de não exigir o tal documento… mas ninguém teve coragem de o informar que tinha… vista curta!
Se o candidato tivesse mais habilitações que as “mínimas”...tanto melhor.

Como dizem os nossos irmãos do outro lado do Atlântico: “o que abunda (ou a bunda?) não prejudica”.
Os burocratas esqueciam que era possível tirara um curso superior sem fazer a quarta classe...
Questões… de mangas de alpaca!
Ainda há disso a rodos… nas repartições públicas e Câmaras Municipais emperrando todo o sistema!

Saudações colegiais
Junho 2013
BT
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11496: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (44): A gloriosa CCAÇ 675 foi realmente única

domingo, 19 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12608: Locais e povoações onde gastámos dois anos das nossas curtas mas valiosas vidas - CCAÇ 675 (Belmiro Tavares)

1. Mensagem do nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), com data de 15 de Março de 2013:

Caro Luís Graça:
Atendendo à tua solicitação para aumentar a lista de povoações da Guiné onde gastámos – bem ou mal – dois anos das nossas curtas mas valiosas vidas, envio o meu singelo contributo.

Quanto à longevidade, não tenho que me lamentar, pois tenho um acordo celebrado de boa fé com o S. Pedro, segundo o qual viverei, de boa saúde, até aos 120 anos, porque me foi confiada uma missão importantíssima – colocação de lápides nas sepulturas dos ex-combatentes da Gloriosa CCaç 675. 

Duas povoações da minha zona já constam da lista:
Binta, sede da companhia e Guidage que foi o alvo apetecido no aproximar do fim da Guerra.

Cito outros nomes da minha zona e de terrenos limítrofes:
- Uália
- Sambuiá
- Sambuiadim
- Malibolon
- Udasse
- Santancoto – aqui foi ferido o então Cap. Tomé Pinto
- Banhima *
- Mansália
- Fajonquito
- Quenhato
- Buborim – limite oeste da nossa zona
- Sansancutoto – aqui deixámos um cunhete de munições armadilhado; levaram-no mas nunca soubemos o que aconteceu
- S. João – nossa primeira operação com tiros
- Genicou Mandinga** – a dois passos daqui reconstruímos uma ponte onde deixámos uma placa informativa: “atenção – há armadilhas” – funcionou em pleno
- Genicon Mancanho **
- Lenquetó – o batismo de fogo da CCaç 675
- Massacundá**
- Caurbá
- Faer
- Temanto
- Dungal
- Ufudé
- Fodé Siraia
- Sanjalo
- Tambandinto
- Tambato
- Cansenha – aqui morreu o nosso guia Pathé Balde
- Caurdim
- Canicó
- Fátima
- Tancroal
- Olossato
- Safim
- Cuntima (colina do norte)
- Cajambari
- Barro

 * - já desactivadas quando lá chegámos
** - destruídas pelo PAIGC nas brigas intestinas

Nota: - As povoações que eles não destruíram, nós riscámo-las do mapa; em contrapartida, reconstruímos a Grande Binta – Vila Capitão de Binta – e repovoámo-la com as pessoas que se haviam refugiado no Senegal e que regressaram quando se aperceberam que nós dominávamos a situação; também (re)construímos Guidage.

Aquele abraço
BT

domingo, 28 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11496: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (44): A gloriosa CCAÇ 675 foi realmente única

1. Mensagem do nosso camarada Belmiro Tavares, (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), com data de 15 de Abril de 2013:

Caro Carlos Vinhal, Será isto uma doença?
Caso afirmativo… não tenho cura!

Somos levados a concluir que a gloriosa CCaç 675 foi realmente única; não, é claro, por não haver outra com este número, mas porque ela foi realmente diferente, para melhor, em comparação com a grande maioria das unidades que “guerrearam” (sem ódio) nos três teatros de operações.

O Jero, eu e outros temos apregoado intensamente que fomos e continuamos a ser ímpares – perdoem a nossa vaidade. A verdade é como o azeite: vem sempre à superfície.

Quem leu os nossos textos no blogue e os deliciosos livros do Jero ficou a conhecer, em parte, as razões do nosso orgulho.


Prestem atenção: 

- 1º - Tivemos um capitão sem par! Grande parte da nossa obra é consequência disso mesmo.

- 2º - Limpámos completamente a nossa zona e mantivemo-la sem “intrusos” até ao fim da nossa comissão.

- 3º - Os nossos militares distinguiam-se, no aquartelamento, no mato ou na cidade, pela sua valentia, coragem e pelo seu comportamento e disciplina.

- 4º - Recuperámos milhares de civis que, para fugirem à guerra, se refugiaram no Senegal vizinho; voltaram quando se aperceberam que ali já havia paz e condições “ótimas” para viver.
Por ação direta, dedicada e intensa do nosso capitão conseguimos sementes para as suas “lavras”. Tiveram uma colheita “astronómica”; foram “ensinados” que era necessário semear e colher o máximo para alimentar também os que ainda haviam de voltar – e vieram muitos.

- 5º - Mais de três dezenas de militares habilitados apenas com a 3ª classe de adultos frequentaram, nos intervalos a guerra, as “nossas aulas” regimentais e concluíram em Farim a 4ª classe.

- 6º - Construímos uma Igreja e duas pistas de aterragem.

- 7º - Para uso dos nativos, edificámos um posto de Primeiros Socorros e preparámos pessoal de enfermagem; construímos uma escola para a miudagem nativa.
Um dia, Domingo, os miúdos, alinhados por alturas compareceram frente ao comando da companhia; enquanto a Bandeira subia garbosa, ao topo daquela haste tosca, eles cantaram, donairosos, o Hino Nacional. Não se tratou de ordem ou sugestão nossas; foi decisão do professor “improvisado” que trouxemos de Farim.

- 8º - Transformámos uma singela e ruim picada de 12Km em estrada e reconstruímos duas pontes.

- 9 - Custeámos a trasladação dos nossos três mortos em combate.

- 10 - Além de vários louvores e condecorações individuais, a CCaç 675 recebeu dois merecidos louvores coletivos.


Depois do regresso, continuámos a nossa senda de diferenças: 

A) Todos os anos, em Maio, sem falha, realizamos o nosso almoço de confraternização sem esquecer a missa pelos nossos mortos, de lá… e de cá.

B) Nos intervalos dos almoços anuais tem havido as chamadas “mini 675”, com 3; 5; 10; 20 ou mais de sessenta convivas.

C) Desde a 1ª hora, os nossos familiares participam nas nossas reuniões; os familiares de alguns dos nossos mortos fazem questão de confraternizar connosco.

D) Há alguns anos, iniciámos a colocação de lápides nas sepulturas dos nossos “elos” falecidos. Este rol, longo, mas por certo, incompleto, veio a lume na sequência do lembrete para requerer as medalhas em epígrafe; acontece que todos nós, oficiais, sargentos e praças somos detentores de tais insígnias que nos foram presenteadas pela própria CCaç 675, a gloriosa.

Belmiro Tavares e José Eduardo Oliveira (JERO) juntos de um "Elo" falecido

Eis mais um tema que não consta do rol.
Obrigado, Carlos, pelo tempo roubado, mas no que à CCaç 675 diz respeito, nós sentimos sempre ganas de agarrar o mote.
Não nos levem a mal por isso!

Aquele abraço!
BT
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Notas do editor:

- Quem quiser conhecer a história da CCAÇ 675, além de ter de ler o livro do nosso JERO, "Golpes de Mãos - Memórias de Guerra", podem ler aqui no Blogue as Histórias e memórias de Belmiro Tavares e Histórias do JERO

Último poste da série de 7 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11355: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (43): Eu, aprendiz de perfeito, apresento-me

domingo, 7 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11355: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (43): Eu, aprendiz de perfeito, apresento-me

1. Em mensagem do dia 25 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

43 - Eu, aprendiz de prefeito, apresento-me!

Em Setembro de 1960, fiz, em Aveiro, a minha última cadeira do 7º ano, Literatura Portuguesa, ficando, assim o curso liceal concluído. No mês seguinte candidatei-me a caloiro na Faculdade de Letras de Coimbra; o exame de aptidão correu mal e… mandaram-me voltar lá no ano seguinte.
Uma grande injustiça! Digo eu, claro!

Para me preparar para o mesmo exame de aptidão à Universidade, em Janeiro de 1961, voltei ao COA. Entendi que não seria necessário passar lá um ano lectivo completo, pois o meu trabalho – aprender mais umas coisas de Inglês e Alemão – o suficiente para não borregar de novo, não exigiria – imaginei – tanta dedicação, tanta azáfama que me ocupasse todo o tempo de que dispunha, entre as 07h e as 22h; claro que neste espaço de tempo estava incluído o tempo de recreio e para comer. Mesmo assim, haveria tempo para uma qualquer ocupação extra-curricular que pudesse proporcionar-me algum benefício material.

Conversei com o Sr. Almeida – Homem que sempre admirei, mesmo tendo em conta as duras regras que nos eram impostas – e por quem tive sempre grande admiração, estima e respeito. Dada a minha maneira muito pessoal de transmitir factos, poderá haver quem pense o contrário por essa minha pecha ou por esconsos motivos indecifráveis.
Seja como for, o melhor é conversar e pôr os pontos nos ii.

Propus (roguei) ao Sr. Almeida que me arranjasse um “tacho” mesmo que pequeno, pois um grande “tacho” não estaria disponível para mim. A sua resposta foi imediata e precisa, de tal maneira que me passou pela cabeça que ele já teria ponderado aquele assunto; certamente, não teria, mas ficou mesmo essa imagem.

Eis a sua douta decisão:
- Ficas como adjunto do Sr. Correia, substituindo-o, na sua ausência, se estiveres disponível; sempre que no salão de estudo houver mais alunos que lugares, principalmente das 17h00 à 19h00, tomas conta de um grupo de alunos mais novos numa das salas da Primária, no piso de cima; depois do almoço, enquanto o portão dos rapazes estiver aberto, ficas incumbido de não permitir que os alunos se aglomerem lá, implicando com as alunas que por ali vão passando; em contrapartida, não pagas alojamento nem alimentação – Está bem assim?

Respondi que concordava com as condições propostas e que iria cumpri e fazer cumprir as regras habituais emanadas da direcção.
Ordenou que o acompanhasse e, na minha presença, transmitiu ao Sr. Correia, o prefeito, as condições acordadas… verbalmente. Tudo funcionou, talvez melhor, do que se houvesse papel passado – nada melhor do que a boa fé entre as partes envolvidas.

Pareceu-me que o negócio não era mau de todo, embora eu, pessoalmente nada ganhasse com ele; o único beneficiado era o meu pai que deixou de pagar determinada verba. Mas… avante!

O mais interessante das minhas incumbências era afastar a rapaziada dos terrenos próximos do portão para que não molestassem as garotas com os seus despropositados (ou não) piropos. Eu sentava-me numa fiada de pedras mais afora da parede do edifício principal e, no cumprimento da minha superior missão, fumava (apenas queimava) o meu cigarro (felizmente nunca soube o que era o vício do fumo); logo apareciam uns voluntários para me fazer companhia – “lavavam” ali os olhos e fumavam sem ser obrigados a deslocar-se ás instalações sanitárias.
Lembram-se, certamente, que, apenas os alunos do 3º ciclo e os mais crescidos do 5º ano, podiam fumar… mas apenas nas instalações sanitárias.

Antes da construção do ginásio, havia um sanitário único para todos os alunos; ficava na parte mais alta do antigo recreio, frente ao salão de estudo, e de “costas voltadas” para o quintal com laranjeiras (e que boas eram aquelas laranjas!) do senhor arquiteto Gaspar; era um dos mestres simpáticos e divertidos e que um dia me disse que o meu desenho “estava com iterícia”; teve a sua graça – pois… toda a gente se riu!

Ao fundo do edifício ficava a “sala de fumo”. Os próprios alunos mais velhos não permitiam que a malta mais nova fumasse – outros tempos! Fumar fora daquele local era absolutamente proibido… arriscado e ninguém ousava sair do ritmo.

Logo estabeleci que só podia estar junto de mim um aluno de cada vez. Fumava o cigarrito e logo dava o lugar a outro. Quando foi acrescentado mais um piso ao internato, eu passei a dormir lá com não sei quantos alunos. Deste modo foi “inventado” o quarto adjunto do velho Correia (e também este temporário).

É justo recordar que o Sr. Almeida nunca me chamou a atenção (repreendeu) por qualquer desmando, desvario ou incumprimento do contrato verbal entre nós estabelecido.

Como aluno universitário visitei o COA várias vezes; cumprimentava os nossos directores e tinha “direito” a almoçar ou jantar lá e creio que uma vez também lá dormi.

Em meados dos anos 70, depois da revolução dita dos cravos (ou dos cravas) passei pelo COA.
A menina Dina, na sua Livraria e Papelaria, informou-me da recente transformação do colégio em Liceu. Solicitei-lhe o endereço do Professor Santos e visitei-o também; senti-me lisonjeado porque ele logo me reconheceu; puxou-me para junto a janela (a vista já não ajudava) e, com alegria, logo comentou:
- “Tu és o Belmiro”! Sem tirar nem pôr.

Saudações colegiais
Fevereiro 2013
BT
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 24 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11305: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (42): Desporto no COA - Outras modalidades

domingo, 24 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11305: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (42): Desporto no COA - Outras modalidades

1. Em mensagem do dia 25 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

42 - Desporto no COA

Outras modalidades

Há poucas semanas, vários ex-alunos recordaram e transmitiram o de que se lembravam sobre o desporto no COA, citando os nomes mais representativos no futebol, basquetebol e voleibol; mas praticaram-se ainda outras modalidades.

Recordo que na sala por cima do velho laboratório do Dr. Vide - mais tarde era da Dª Maria? Odete - foram colocadas umas mesas de pingue-pongue, creio que emprestadas pelos bombeiros, e ali foram disputados uns tantos jogos. Era a mesma sala onde o Zé Alberto nos presenteou com a exibição de um vídeo muito bem elaborado aquando do almoço de 2012.
Não recordo o nome de nenhum jogador dessa modalidade mas talvez alguém se lembre.

A partir daqueles jogos, no salão de estudo, fazíamos uma “réplica” do ténis de mesa; a carteira dupla dos alunos internos tinha um tampo horizontal e servia de mesa, um livro ou um caderno servia de raqueta; a bola era normal.

Além dos desportos citados praticou-se também, e em larga escala, um outro desporto característico do Norte do país – joga-se também no sul, mas não com a mesma intensidade. Exige dura preparação física, muita concentração e também boa memória, inteligência acima da média; é um desporto de equipa (2 de cada lado) e exige, também treino assíduo. Refiro-me, claro, à “sueca”.

Iniciei-me neste duro desporto no COA. No meu 2º ano, noite após norte, jogávamos na camarata, à luz da vela, até alta madrugada; não recordo se alguma noite fizemos uma “directa” mas, certamente andámos lá perto. Logo que o velho Correia (não é ofensa) se deitava “armávamos a tenda” no canto da camarata, à entrada à esquerda; prendíamos um lençol na janela, na parede e no bloco de cacifos, servindo de quebra-luz; acendíamos uma vela e iniciávamos a jogatina. A nossa camarata ficava ao fundo do corredor, à direita, frente à do prefeito.

Jogávamos a dinheiro vivo! – Ai de mim se o meu pai soubesse! Não me recordo quanto se perdia em cada partida; ganhava quem completasse quatro vitórias.

Recordo que uma noite eu perdi 1$60 (o Valdemar Coutinho conta que só perdi 1$20); o que interessa é que perdi! Na noite seguinte, triste que nem um peru em véspera de Natal, transmiti aos restantes jogadores que desistia de jogar porque, na noite anterior, havia perdido quase uma fortuna.

Lembro que estávamos no início dos anos 50, do século XX e nessa altura o dinheiro não abundava nas nossas magras algibeiras.

Outro membro da minha equipa, o Valdemar Coutinho, e os adversários, ficaram desolados, furibundos; insistiram que eu voltasse à lide. Mantive a minha posição em não jogar. Eles conferenciaram e apresentaram-me a seguinte proposta:
- Nós devolvemos-te o dinheiro que perdeste e tu vens ”trabalhar” connosco. Certo?

Perante tanta insistência e tendo em conta que recuperava o meu dinheiro, dei o dito pelo não dito e voltei às lides. Pode depreender-se que a malta… já estava viciada, ou para lá caminhava.

Os meus adversários arrependeram-se profundamente da sua atitude pois, naquela noite, a “vaca” andava à solta e estava do meu lado. Ganhei, nessa noite 2 ou 3$00; quase ficava rico naquela madrugada.

O Valdemar e eu jogávamos sempre juntos; éramos companheiros inseparáveis… na sueca e não só.

Quando frequentava o 3º ano, entraram no COA vários alunos provenientes da região de Espinho/Vila da Feira; entre eles veio o Hec Sá Rosas (acompanhado pelo irmão mais novo, o “Rositas”) e o Pais Loureiro; estes dois frequentavam o 5º ano. Tomaram conhecimento da nossa nomeada na batota e decidiram desfiar-nos para uma “suecada”; de bom grado aceitámos o repto. Era uma situação nova e complicada para nós; eles eram mais velhos e jogavam juntos (equipe entrosada e batida) havia uns tempos. Medo não tínhamos! E como dizem lá na santa terrinha: - quem nasce bom… é sempre bom.

Iniciado o jogo, logo verificámos que havia equilíbrio de forças. Pouco depois, após a distribuição das cartas, olhei para o meu jogo e só “via duques”; não tinha na mão qualquer carta de valor; apercebi-me que o meu companheiro – sinalética própria da batota – estava também na penúria. Nisto, o Américo, que até tinha bom jogo, cometeu um erro crasso que foi a nossa salvação. Num inglês macarrónico, dando às palavras um tom profundamente gutural, perguntou ao Rosas:
- How many “trunfs” have you?
- I have four! - Replicou o Sá Rosas
- I have six! - Foi a resposta concludente do Américo

Como eu frequentava o 3 ano e portanto já sabia umas tretas de Inglês, coloquei “as cartas na mesa”, alegando:
- Tu perguntaste ao teu companheiro quantos trunfos ele tinha; ele respondeu que tinha 4 e tu acrescentaste que tinhas 6. Isso até é verdade pois nós não temos nenhum. A sueca foi inventada por quatro mudos! Vocês falaram… perderam o jogo! Vitória nossa!

Nos jogos seguintes a “sorte” passou definitivamente para o nosso lado e ganhámos por larga margem. Escreveu-se direito... por linhas tortas. Mas a sorte não era tudo!

Algum tempo depois o Sá Rosas (mano velho) apercebeu-se que o Valdemar e eu éramos companheiros inseparáveis, perguntou:
- Vocês são irmãos? É que nunca vos vi um longe do outro!

Eu respondi:
- Nós somos apenas “meio-irmãos”!

Perante a sua estupefação eu esclareci:
- Somos meio-irmãos porque o meu pai namorou com a mãe dele e o pai dele namorou com a minha mãe; entretanto mudaram de campo; eis a razão porque somos apenas meio-irmãos.

A nossa dupla desfez-se já lá vão uns bons anos!

Na Guiné, nos intervalos da Guerra, joguei bastante, com outro parceiro, claro! Para não haver confusão de galões e divisas, eu jogava com um dos meus furriéis e a outra dupla era também formada por um alferes e um furriel; o prémio era uma cerveja para cada um; uma cerveja “à melhor de três”. Para quem não está familiarizado com a linguagem, eu troco por miúdos: a equipa que ganhasse duas partidas seguidas ou alternadas, recebia duas cervejas, uma para cada jogador.
Acontece que eu não bebia cerveja. Quando perdia pagava ao “cantineiro”; se ganhava ficava crédito da minha conta-corrente. O cantineiro controlava.

Quem bebia o que eu ganhava, eram os meus soldados que não recebiam o suficiente para beber uma cerveja por dia. Para que não haja dúvidas, é bom esclarecer que cada um de nós recebia apenas 1/3 do salário; 2/3 ficavam cá. Mas mesmo assim era uma miséria!

O Valdemar, ainda hoje, é um acérrimo”suequista”. Todos os sábados e domingos, ele desloca-se (1Km) até à taberna do irmão (Mário) e ali passa uma tarde/noite bem passada à volta de uma mesa com as cartas na mão. Ali, a sueca é rainha! Não há por lá um café onde se não pratique este desporto, extremamente exigente, física e intelectualmente. Só não sabe isto quem não joga!

Saudações colegiais!
Fevereiro 2013
BT
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 17 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11268: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (41): O Chissóia e tantos outros que fomos obrigados a abandonar

domingo, 17 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11268: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (41): O Chissóia e tantos outros que fomos obrigados a abandonar

 

1. Em mensagem do dia 21 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), volta a aflorar o doloroso fim de muitos dos camaradas africanos que lutaram ao nosso lado e que foram abandonados à sua sorte aquando da independência dos territórios ultramarinos.



O Chissóia

Este título encabeçava um texto que me foi enviado, há já algum tempo, via mail, por um amigo de longa data que reside, há anos, para lá da outra margem do Atlântico. Logo pensei escrever sobre tão desgraçado tema; eu estava, porém, assoberbado com outro longo assunto… trabalho do dia-a-dia, e o tempo foi passando, inexoravelmente.

Como assunto escreveu: “Homenagem de gratidão ao Chissóia e a tantos outros que fomos obrigados a abandonar”. “Malhas que o Império teceu”!

Faço agora duas perguntas:
- Quem terá sido obrigado a abandonar?
2ª - Foi obrigado por quem?

De seguida relata: extraído do livro "Quinda" de Carlos Acabado, da coleção Império, nº 3.
Mais abaixo, transcreve algumas passagens das páginas do autor acima referido, narrando um pouco da vida dos Chissóias, pai e filho

O progenitor fez-se pisteiro e caçador de elefantes - saber de experiência feito - para proteger (e não só) as culturas do povo da sua aldeia que - sabe-se lá porquê - ficavam na zona de passagem dos paquidermes, à procura da água do rio Lungwebungo, destruíam ou danificavam seriamente, em trânsito, as lavras dos seus vizinhos; com os seus estragos lançavam às malvas o trabalho estrénuo de meses. Destruídas as culturas, o povo pagava as favas… com meses de fome.

Ao mesmo tempo que protegia as sementeiras do seu povo, o pai Chissóia acompanhava também os abastados colonos da região na caça aos elefantes; a carne, às toneladas, era distribuída pela população da aldeia de Lucusse; apenas os dentes, depois de extraídos dos maxilares - tarefa de que o pai Chissóia, de bom grado, se encarregava - eram entregues aos colonos que haviam abatido os animais de… tromba.

Naqueles tempos conturbados - estávamos no início da Guerra Colonial - um grupo de gente armada, pessoas desconhecidas naquela aldeia, entrou em Lucusse para conversar com o soba. Perante a “incompreensão” daquela autoridade gentílica e até de alguma pretensa e/ou manifesta “hostilidade”, o chefe do bando armado, sem mais delongas, e perante a população aterrorizada, fuzilou o soba por ser um “chefe corrupto”; o velho Chissóia foi também barbaramente abatido, por ser “lacaio dos colonialistas”.

O filho Chissóia fugiu à pressa, embrenhando-se na selva protetora e conseguiu chegar a pé, são e salvo, à capital do distrito; procurou o chefe militar português a quem transmitiu a malvada notícia. De seguida, um destacamento militar fixou-se na aldeia e o jovem Chissóia foi colaborador dos militares, ficando para “sempre” ligado à nossa tropa; os seus conselhos e atuação eram cada vez mais imprescindíveis. Veio a ser condecorado com a Cruz de Guerra, por atos heróicos em combate, e, durante a cerimonia, ouviu do general que lha colocou no peito:
- Portugal sente orgulho por ter filhos como tu.

Os anos passaram… lentos; chegou a não menos sangrenta fase de transição para a independência; de novo ocorreram os ajustes de contas, talvez ainda em maior quantidade e, por certo, também mais atrozes.

Alguns elementos da aguerrida equipa de Chissóia foram selvaticamente abatidos; as chacinas generalizaram-se; outros companheiros, porém, tiveram tempo de se proteger na mata, às escondidas, com elevadíssimo risco, mantinham contacto com o chefe.

O Chissóia conseguiu chegar ao comando militar da zona, onde um “tenente de barbas”, depois de saber o seu nome, lhe transmitiu que isso “tinha de acontecer aos lacaios do imperialismo e traidores do povo”. O indígena sentiu o mundo cair dos eixos sobre a sua cabeça; ficou descoroçoado!

No Comando Militar, ele pensava ser absolutamente protegido; afinal ouviu do tal ”tenente de barbas” o mesmo que disseram ao seu pai antes de o fuzilarem: 
- Lacaio dos colonialistas.

Ao seu interlocutor, um militar da FAP, o Chissóia, incrédulo, referiu: 
- Mas, no caso do meu pai, os matadores eram negros… um tenente branco, ao serviço do Exército Português, não podia dizer-me o mesmo! Será que já fui riscado do rol dos portugueses para ser livremente abatido pelos africanos independentistas?!

Solicitou ao mesmo interlocutor o especial favor de, em meio aéreo, o colocar - bem como à sua família ali presente e mais duas mulheres - em determinada pista militar próxima da fronteira e já abandonada; dali eles partiriam, através da mata, ao encontro dos seus companheiros que haviam conseguido debandar antes de serem abatidos. Tinha a certeza que um dos “movimentos” estaria disponível para aproveitar a sua experiência e o seu saber fazer. Com desmedido perigo para as duas partes envolvidas na arriscada viagem, até à dita pista, o Chissóia foi ali colocado e, em poucos segundos, despareceu no soturno silêncio da brava selva africana que a todos, irmãmente, protege.

No dia seguinte, ao proceder-se à limpeza habitual do aparelho voador, alguém encontrou, por baixo do banco usado pelo Chissóia, uma Cruz de Guerra com a qual aquele herói tinha sido agraciado, anos antes. Tê-la-á perdido involuntariamente? Ou terá sido abandonada intencionalmente? Só ele e Deus o sabem. Aquela condecoração poderia ser um elemento comprometedor, pois confirmaria a sua íntima e longa ligação às Forças Armadas Portuguesas.

E mais não disse!

Como português, fiquei profundamente magoado - e como me doeu! - por ficar a saber (aliás já sabia de acontecimentos semelhantes) que alguns portugueses, embora de cor (o que nada significa) fossem maltratados, molestados, abatidos, selvaticamente chacinados, sendo tão portugueses como nós.

Quem assim agiu ou permitiu que se obrasse seria português apenas no BI ou até talvez isso; no coração a nacionalidade seria outra.

Neste momento, apetece-me perguntar às chefias, aos responsáveis no terreno, daquela época:
- Quantos Chissóias criámos nos três teatros de operações durante os longos e funestos anos da nossa guerra do Ultramar, para, no fim, serem cobardemente abandonados à sua triste sina?

A nova força africana... O major Fabião, na altura (1971/73) comandante do Comando Geral de Milícias, e o gen Spínola, passando revista a uma formatura de novos milícias.
Autor da foto: desconhecido. (Reproduzidas com a devida vénia)

Guiné-Bissau > Região Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > 1970 > Pel Caç Nat 54 >
Foto: © Mário Armas de Sousa (2005). Todos os direitos reservados.
 
Militares da 1ª Companhia de Comandos Africanos, comandada pelo Capitão João Bacar Djaló
Foto retirada do nosso Blogue - Poste 6149

Estou a escrever para um blogue de ex-combatentes da Guiné. A esses eu pergunto de outro modo:

- Quantos Malans viveram, lutando sabiamente, corajosamente, lado a lado connosco, como portugueses de rija têmpera? O seu sangue, independentemente da cor da pele, que nada importa, era tão rubro, tão português como o nosso!

Quem saberá informar o que, na verdade aconteceu aos valorosos e portuguesíssimos militares do célebre Batalhão de Africanos, aquartelado em Bissau?

Citei o nome Malan, não só por ser comum na Guiné, mormente entre os mandingas, mas principalmente porque era o nome do brioso, ousado e valente guia da nossa gloriosa CCaç 675; no fim da Guerra terá sido cobardemente abandonado à sua sorte e veio a ser desumanamente fuzilado (sem qualquer sombra de julgamento) no Senegal onde se refugiara, tentando fugir ao destino que lhe traçaram.

Antes da Guerra, por ser muito conhecido e benquisto na região de Farim, o PAIGC tentou arrebanhá-lo. Impossível! O seu puro portuguesismo não o permitia!

Profundo conhecedor da maior parte do território a norte do Cacheu e de boa parte do Oio tornou-se guia da CCaç 675, a primeira companhia a sediar-se em Binta, que ficava a escassa meia dúzia de quilómetros da sua aldeia natal, Genicó Mandinga. Esta tabanca fora incendiada pelos independentistas, bem no início da Guerra e a mãe do guia foi ali cruamente abatida, porque o filho, o nosso querido Malan, não aceitou bandear-se.

Foi uma figura marcante, preponderante, e a ele devemos uma boa parte dos extraordinários sucessos operacionais da sua e nossa CCaç 675.

Com o acordo do então comandante da companhia, eu tentei conseguir, no QG, em Bissau, a necessária autorização para que o Malan pudesse vir passar seis meses na Metrópole, a expensas nossas; o Governo Português apenas seria sobrecarregado com as viagens de ida e volta em navios de transporte da tropa. O requerimento foi indeferido, alegadamente, por “motivos operacionais”. Nada mais se podia fazer!

Nos últimos dias de 1964, o indómito capitão Tomé Pinto decidiu “invadir e destruir” a base de Sambuiá, sita na Península com o mesmo nome (Península porque ficava entre os rios Sambuiá e Malibolon que são tributários do Cacheu); esta era sem dúvida a base inimiga mais poderosa a Norte do Cacheu. Deste modo, o nosso ilustríssimo capitão pretendia vingar a morte do furriel Vilhena Mesquita, abatido pelo rebentamento de uma poderosíssima mina anticarro, no dia 28 de Dezembro de 1964. Já em Janeiro de 1965, a bordo de um Dornier, o Cap. Tomé Pinto fez o reconhecimento aéreo da dita península.

O piloto Honório, homem já muito experimentado nestas andanças apercebendo-se das enormes movimentações de combatentes fortemente armados, perguntou:
- Que efetivos vão atuar nesta zona?
- A minha companhia! - Respondeu secamente o nosso valente comandante.
- Apenas uma companhia? Isso é uma temeridade!

No dia 5 de Janeiro, a CCaç 675, reforçada com alguns homens da frágil guarnição de Guidage (havia ali apenas um pelotão) calcorreou livremente (quase) aquela Península de lés-a-lés; o sucesso da operação só não foi estrondoso (como previsto) porque algo muito grave aconteceu; o Pelotão de Morteiros 980, a quem cabia a missão de proteger (impedir a fuga) a ponte de Malibolon sofreu um gravíssimo revés: um terrível naufrágio em que oito militares, na flor da idade, perderam ingloriamente as suas vidas nas revoltas águas turvas do Cacheu. Assim aquela ponte ficou sem vigilância e foi por ali que os “corajosos” donos da Guerra da base de Sambuiá se escapuliram apressadamente, antes que fosse tarde, colocando-se a seguro em terrenos próximos de Bigene ou no Senegal, ali ao lado.

Anos mais tarde, houve nova tentativa de aniquilar aquela base. O General Spínola apareceu a meio da operação para transmitir mais confiança às tropas. O governador ficou tão agradado coma a atuação do nosso guia, Malan Sissé, que de seguida o galardoou com o Prémio Governador da Guiné - um mês de férias na Metrópole (no Puto).

Os africanos beneficiários daquela benesse ficavam instalados no DGA e faziam ma série de visitas programadas para ficarem a conhecer os locais e os monumentos mais significativos da História de Portugal.
Ao segundo dia da sua estada em Lisboa, o nosso famoso guia foi “raptado” no DGA; durante uma semana ficou “adido” em minha casa; depois andou de mão em mão, sempre acompanhado pelos seus indefetíveis amigos da CCaç 675. Voltou ao DGA na véspera do seu embarque de regresso à Guiné.

Mal tu imaginavas, meu caro Malan, depois de tantos sacrifícios, tanta guerra, tanta manifestação de puro portuguesismo, que virias a ter o mesmo trágico e cobarde fim de tantos outros Malan's... e Chissóia's.

Ficam as perguntas atrás formuladas. Quem saberá responder convenientemente?

A todos um alfa bravo muito cordial neste início de novo ano (já vai ficando velho) de 2013.

Fevereiro 2013
BT
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 10 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11228: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (40): O sr. Dr. Matos

domingo, 10 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11228: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (40): O sr. Dr. Matos

1. Em mensagem do dia 13 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES 

40 - O Sr. Dr. Matos

Li atentamente e gostei bastante do interessante artigo do José Alberto sobre o ilustre médico do Colégio, o Sr. Dr. Joaquim T. de Matos; como é apanágio do autor, deixou pouca margem para acrescentar o quer que seja acerca de tão ilustre galeno. O José Alberto estava noutro patamar – que não nós – e lidava de modo diferente com as pessoas que trabalhavam no COA – e foram muitas e, regra geral, acima da média – connosco não era a mesma coisa! Eu tinha pensado escrever algo sobre o Dr. Matos, mas não descortinei tão ampla matéria que justificasse a minha vontade; isto, talvez, porque eu, Graças a Deus, não fui utilizador assíduo dos seus serviços. Posso afirmar que (não é apenas no caso do Dr. Matos) os médicos em geral não têm tido soberanas oportunidade de enriquecer, desalmadamente, à minha custa. O futuro a Deus pertence!
Acrescento apenas um caso em que ele me acompanhou, desveladamente, durante várias horas, em serviço noturno, a tratar do meu caso; e outro em que, sem nos “encontrarmos” estivemos envolvidos numa decisão tomada pela Dª Adília. Ele agiu, na prática, como fiel da balança.

No dia 11 de Novembro de 1952, durante o intervalo da tarde - hora da merenda - numa louca correria desenfreada no velho e exíguo recreio, antes de haver o ginásio, tropecei não sei em quê ou em quem, caí com o braço esquerdo debaixo do corpo, que, naquela altura, já era pesadinho: fraturei os dois ossos (rádio e cúbito) do antebraço. Não pensem que isto é um estranho caso de memória e elefante! Na verdade, aquele acidente ocorreu àquela hora, no dia de S. Martinho, do ano em que entrei no COA – tão simples quanto isso.

Senti dores horrorosas (mais ou menos), mas para que um qualquer PPC da época não me declarasse piegas, ou que alguém entendesse e manifestasse que eu era mais assustadiço que uma senhora grávida (certamente, àquele tempo eu nem sabia o que aquilo era) decidi engolir em seco e aguentei firme e hirto… como um adulto robusto e serrano. Alguns alunos sentenciaram que não havia osso(s) fraturado (s) porque eu movia, embora muito ligeiramente, os meus dedos tenros.

Cumpri o horário até às 19h00. Depois de jantar, como as dores não davam sinais aceitáveis de abrandar, solicitei a simpática colaboração do meu conterrâneo, Valdemiro, Amaral, (já falecido) para que me ajudasse a despir o casaco. O meu braço, o sinistro, quase não saía da manga, de tão inchado que estava; tinha já ma cor avermelhada… feia q.b.

O prefeito (creio que ainda era o Sr. Fernandes, o antecessor do velho Correia) levou o caso à Direção; avisaram logo o Dr. Matos que ordenou que eu me dirigisse, sem mais delongas, ao seu consultório; ele aguardaria ali até que eu chegasse. O Dr. Matos logo diagnosticou uma fratura. Telefonou a um tal Dr. Fernando, ortopedista, e solicitou a presença do Sr. Almeida que logo compareceu de carro no consultório. Na viatura, fui sempre carinhosamente amparado pelo nosso médico; com palavras meigas, dava-me ânimo e alegava que não era grave, que era coisa passageira.

O consultório do Dr. Fernando ficava numa rua cujo nome nunca soube mas sei que desembocava, vindo de baixo, na Estrada Nacional, junto ao jardim; ficava num 1º andar, no mesmo prédio ou ao lado do velho e já desaparecido Foto Paúl. Há uns meses percorri aquela rua e encontrei, creio que no mesmo rés-do-chão, ou muito próximo, um restaurante bastante razoável e agradável.

A radioscopia pareceu-me uma coisa engraçada. Nunca tinha visto nada assim! Foi divertido ver as quatro metades dos meus dois ossos a “bailarem”, um tanto desconexadamente. O Dr. Fernando não queria que eu olhasse, porque podia assustar-me, mas eu mirei sempre, pois tinha todo o interesse em observar com que “linhas iriam coser-me”. O Sr. Almeida segurava com firmeza o meu úmero esquerdo, junto ao cotovelo; o Dr. Matos puxava com força a minha frágil mão; o Dr. Fernando entrelaçava os dedos e, com as palmas das mãos, comprimia, duramente, o meu braço no local da fratura. Depois de cada aperto/esticadela, eu voltava à radioscopia e achava aquela “caranguejola” sempre engraçada.

Já depois da meia-noite o serviço de corregimento estava concluído. De seguida, envolveram o meu braço desde o meio do úmero até à base dos dedos, com uma espessa e resistente camada de gesso, fazendo um ângulo reto entre o braço e o antebraço.

O Sr. Dr. Matos – nunca esquecerei – acompanhou-me até à camarata e, com muito carinho e cautela, e dedicação, ajudou-me a despir e a deitar. Foi a minha primeira noite de braço ao peito. No dia seguinte, o Sr. Almeida levou-me ao Porto para ser observado pelo então famoso ortopedista Dr. Abel Portal; o exame teve lugar no edifício da Europeia Seguros. Depois da observação cuidada e exaustiva, o doutor ortopedista transmitiu ao Sr. Almeida o seguinte recado: - Diga lá ao Dr. Fernando e ao Dr. Matos que, por muito que se esforcem, nunca mais farão um trabalho melhor que este! Está absolutamente perfeito! Se estivesse melhor… não prestava! As últimas palavras não foram proferidas pelo hábil Dr. Abel Portal, são da minha lavra.! Um certo domingo o Senhor Almeida repreendeu-me , severamente, porque eu fazia de goleiro durante uma brincadeira com bola; nem Keeper podia ser.

Na verdade, depois de me ser retirado o gesso, nunca senti qualquer mazela naquele braço que pudesse ser atribuída à fratura e já lá vão uns anos; até parece que me aproximo da velhice.

O outro caso que vou narrar, é bem diferente. Parece-me que eu frequentava o 5º ano. Mas, seja qualquer for a data, isto ocorreu no ano em que fomos flagelados por um surto alargado da perigosa e fortemente contagiosa gripe asiática.

Alguns alunos (internos e externos) estavam já de baixa faltando, justificadamente, às aulas. O Sr. Almeida estava fora! Talvez nalguma caçada. Um grupo de alunos propôs à Srª Dª Maria Adília que encerrasse o Colégio durante uns dias ou até que o flagelo fosse debelado. Ela não concordou! No dia seguinte de manhã aconselhámos, insistimos, quase obrigámos (ou impusemos mesmo ?!) alguns alunos a não comparecerem às aulas da tarde desse dia. Entretanto mais uns alunos receberam baixa médica. Parecia que a artimanha iria proporcionar bons frutos. Conversámos novamente com a Srª Diretora, enumerando (com exagero) o número de baixas e a sua progressão. A Srª Dª Adília conferenciou com o Dr. Matos e… o Colégio foi encerrado durante não sei quantos dias. Costuma dizer-se que a justiça divina pode tardar… mas não falta! Na verdade, eu fui um dos mais acérrimos defensores do encerramento da escola e consegui manter-me imune à gripe. Quando cheguei a casa, supondo ter uns dias extra de livre brincadeira, adoeci com a dita gripe, passando, na cama, aqueles dias de encerramento do Colégio. Quando tive “alta” estava na hora de voltar ao COA. Triste sina a minha!

Castigo merecido!

Dizem as velhas da minha terra que… “Deus castiga sem pau nem pedra! Mas bem que podia não ser tão rigoroso comigo!

Saudações colegiais.
Fevereiro 2013
BT
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 3 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11184: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (39): Uns alunos foram à matança

domingo, 3 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11184: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (39): Uns alunos foram à matança

1. Em mensagem do dia 13 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

39 - Uns alunos foram à matança

Em princípio de Dezembro de 1960 (poderá ter sido no mesmo mês de 1959, mas de qualquer modo ocorreu há, apenas há uma escassa “meia dúzia” de anos) um grupo de alunos finalistas do COA aceitaram, contentes e alvoraçados, o convite para se deslocarem a Rocas do Vouga, a casa dos meus pais, para participar num almoço diferente do habitual, porque era fora do COA e não só. Esta refeição, chamada localmente, de “rejoada”, ou seja, o prato principal constava de rojões – lombo de porco cozinhado, em nacos de bom tamanho, na própria banha do animal, em panela de ferro e ao lume brando da lareira.

Nos dias de hoje, principalmente no Ribatejo e Alentejo, tal almoço típico, ocorre no próprio dia do abate dos animais (matança) e consta quase só de carne grelhada (febras ou fêveras, costeletas e entremeada).

Naquele tempo, lá na terra, os animais eram abatidos na quinta-feira; ficavam pendurados, para escorrer o sangue, e arrefecer até sábado; neste dia, logo pela manhã, procedia-se à “desmancha” (desfazer, com arte, os animais em pedaços). A carne devidamente cortada era guardada em sal, dentro de grandes arcas (salgadeira) feitas de madeira de pinho ainda verde; não se utilizavam pregos, parafusos ou dobradiças metálicas, pois o salitre corroeria essas peças em tempo curto e as tábuas da arca desconjuntar-se-iam de seguida.

O dia da matança não era escolhido ao acaso; os agricultores tinham em grande conta as fases da lua, não só para matar os animais, mas também para semear cereais e até cortar as árvores cuja madeira eles utilizavam nas suas construções ou reparações.

No espaço de tempo que decorria entre o abate e a própria rojoada, preparavam-se morcelas e chouriças com produtos dos porcos abatidos – morcela com carne e um pouco de sangue; as chouriças eram elaboradas só com carne, tudo temperado a preceito - todos os artigos eram absolutamente frescos, da melhor procedência e de superior qualidade.

O colega José Sá e Sousa, oriundo lá das bandas da Vila da Feira, tinha carro (coisa raríssima naqueles bons velhos tempos); o Armando Figueiredo, creio que não era ainda encartado, mas a mãe emprestou-lhe a sua viatura e lá fomos cinco em cada carro, até quase ao limite interior do distrito de Aveiro.

Quem se lembra de todos aqueles convivas? Eu recordo apenas 8: Sá e Sousa, Reis Ferreira; Armando, Valdemar, Eugénio, Belmiro, Eberl e Ribeiro, havia mais dois; destes o Miller, talvez fosse um deles. Se alguém se lembrar do outro ou se houver imprecisão da minha parte, há que esclarecer.

Chegámos ao local pouco antes da hora aprazada. Solicitei ao Eberl que me acompanhasse até ao canto da eira e perguntei-lhe, apontando para determinada planta ali existente:
- Que arbusto é aquele?

O Eberl ficou surpreendido e comentou:
- Tu não podes ter isto aqui! É absolutamente proibido!
- Não foi isso que eu perguntei! Responde à minha pergunta!
- Isto é a planta do tabaco e não é permitido cultivá-la na Metrópole!
- Eu só pretendia o teu esclarecimento! Sempre ouvi dizer que se tratava de tabaco, mas faltava-me a opinião dum conhecedor.

O Eberl nasceu em Angola, no Pango Aluquem, mais precisamente na fazenda Quenuma Numa e era filho de pais alemães; creio que cultivavam café e tabaco.

Ainda hoje, lá no meu quintal, existem plantas dessas que ali aparecem sem serem semeadas. Até faz lembrar o alecrim. Nesse tempo, a “botica” (remédio de farmácia) tinha por ali pouca utilização; as pessoas vizinhas quando sofriam de determinadas mazelas vinham lá a casa pedir umas folhas de tabaco para curar as suas chagas; diziam que as folhas continham excelentes efeitos curativos.

O padre, como, à época, não podia deixar de ser, também foi convidado. Como era domingo e teria outros compromissos, enviou, em sua representação, a sua irmã que, até era uma solteirona de “profissão”. Bem tentou arranjar partido lá na terra mas não conseguiu.

Logo que nos sentámos à volta da mesa, ela tentou comandar as tropas o que não terá agradado a ninguém. Aí o Ribeiro fez com que ela desistisse da ideia e ela “perdeu o pio”.

Lembras-te, Ribeiro, da anedota que contaste e que a fez encabular? Esta tinha-nos sido narrada pelo Dr. Magalhães Lima, um excelente mestre de matemática do 3º ciclo.

Resumindo: uns anjos, lá no céu, participaram a Jesus que sua Mãe introduzia almas naquele paraíso celeste, clandestinamente, puxando-as por meio de uma corda com nós. Jesus perguntou:
- Sabeis que corda é essa?

E de seguida esclareceu, aquelas celestiais criações:
- É o terço! É através do rosário que as almas pecadoras podem ficar limpas (perdoadas) podendo assim entrar no Reino de Meu Pai!

A senhora Ana, (menina cinquentona), irmã do Padre e certamente conhecedora dos preceitos da Fé, não achou graça alguma ao que ouviu (não lhe chamou blasfémia)! Mas acabado o almoço… desapareceu!

O Reis Ferreira pediu à minha mãe que lhe arranjasse uma “assadura” (um pedaço de carne assada), grelhada nas brasas da lareira; alegou que adorava aquilo e já não comia havia muito tempo.

Iniciou-se o almoço:
1º Prato - cozido à portuguesa – hortaliça colhida no próprio dia e carnes bem frescas.
O meu avô presidia à mesa, ele adorava “passar rasteiras” à malta jovem. De maneira que todos ouvissem, ele avisou:
- Oh! Rapaziada! Isto é o que há! É o nosso almoço e não há mais nada! Cá em casa há só um prato, mas isto dá para todos!

Eu lembrei aos colegas, sem desdizer o meu avô – que participávamos duma rejoada… mas ninguém acreditou no que eu proferi: todos comeram o cozido que nem uns desalmados! Até parecia que no COA se comia mal! Mas aquele cozido era mesmo do outro mundo! Estaria mesmo divinal!

2º Prato – massa meada guisada com carne.
Perante este prato ninguém se alarmou porque… era massa e, como de costume, ninguém apreciava aquilo.

3º Prato – rojões de lombo, arroz do forno, batatas assadas e salada.
O Reis Ferreira foi “aos arames” e comentou descoroçoado:
- Nunca na minha vida fui enganado por um velho, senão hoje! Sinto-me ludibriado; furibundo!

O meu avô adorou aquela brincadeira! Ria-se a bandeiras despregadas, porque tinha enganado os estudantes; durante muito tempo, sempre que se lembrava, comentava comigo aquela “tirada” do Reis Ferreira. Tornou-se célebre! Na verdade, os alunos quase não provaram os rojões, o prato principal que dava o nome ao repasto pois tinham enchido os “bandulhos” com o espetacular cozido.

De seguida colocaram sobre a mesa, à frente do Reis Ferreira, a tal assadura, um bom pedaço de suculenta carne, perfeitamente tostada, doirada, nas brasas da lareira. O jovem Reis Ferreira ficou envergonhado, pois não conseguia comer o que tão delicadamente havia solicitado. No seu estômago não havia lugar para mais… nem uma “assadura” tão desejada.

Todos colaboraram comendo um naco cada um para tirar o Reis Ferreira daquela dificuldade.
Ele sentiu um grande aperto no estômago, mas daquela… lá o safámos.

Já agora a sobremesa também tem de ser citada: castanhas assadas e fruta da época.

Assim terminou um almoço muito diferente do habitual, porque foi servido fora do ambiente colegial e porque, já naquele tempo, a carne dos animais criados em casa era bastante melhor que a carne do talho.

Os porcos abatidos lá em casa tinham sempre mais de um ano e meio quase sempre pesavam mais de 180Kg (limpos) cada; eram umas bestas avantajadas!

Foi um domingo bem passado… em plena liberdade… sem o Correia… nem diretores, professores ou quejandos!

Saudações colegiais
Fevereiro 2013
B T
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 22 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11135: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (38): O Carinhas

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11135: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (38): O Carinhas

1. Em mensagem do dia 6 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

38 - O Carinhas

(1ª parte)

Algumas figuras mais ou menos castiças passaram pelo COA, como não poderia deixar de ser. Existem casos semelhantes em todos os estabelecimentos de ensino; o nosso não foi exceção – não podia sê-lo.

Hoje, o Carinhas, de seu nome completo, Adelino Carinhas Pinto, é o alvo escolhido da nossa escrita. Não nos move qualquer outra intenção que não seja narrar assuntos verídicos ocorridos, durante alguns anos. Nenhum, entre tantos alunos, poderia pretender ser “levado” ao colo durante a sua permanência no COA, pois não haveria braços (nem abraços) para todos – absolutamente impossível!

O Carinhas não terá frequentado o COA durante mais de três anos (creio) mas é certamente um elemento marcante, até pelo seu nome pouco ou nada vulgar; não é, porém, do seu nome que vamos tratar.

O pai do Carinhas era natural de Sever do Vouga e era ali que o Adelino passava alguns fins-de-semana e as férias em casa da tia, irmã de seu pai, durante os anos em que frequentou o COA, e terá continuado.

O progenitor terá “emigrado” para Angola, onde casou com uma senhora nativa. Notava-se claramente que nas veias do Carinhas corria um pouco de “sangue quente” africano; a avaliar pela aparência, a mãe, no entanto, não seria mulata, talvez até nem fosse mesmo uma “cabrita pura”. A sua débil ascendência africana não era tão notória assim.

Quem estudou as “leis de Mendel” – creio que na Biologia do então 3º ciclo – poderá fornecer uma achega mais abalizada (que não a minha) que não enveredei por essa via.

O Carinhas era alto, um tanto esguio, sempre pronto, pelo menos quando acompanhado e desafiado, a entrar pela mini asneira; resposta sempre pronta na ponta da língua, (o pobre podia ir sem esmola, mas não ia sem resposta); era um brincalhão nato; apesar de tudo não deixava de ser um bom rapaz, amigo do seu amigo e também um bom aluno (bem acima da média), pois no 2º ano dispensou de oral e não foi tangencialmente.

Terá entrado no COA em 1955, e no ano seguinte concluiu o 2º ano, integrado numa célebre turma em que 54% dos alunos dispensaram da oral - caso extraordinário. É a prova evidente da elevada qualidade daqueles alunos, mas acima de tudo, da superior eficácia do ensino ministrado no COA já que, nesse ano, a média nacional de dispensados rondou os 20%. A ninguém poderá restar dúvidas!

Terá abandonado o COA no fim do 3º ano, transferindo-se, vá lá saber-se porquê, para o Colégio de Albergaria-a-Velha, vila um pouco a sul de Oliveira de Azeméis, onde continuou os estudos por mais algum tempo – não sei até quando. Consta que teve uma abundante sequência de empregos; que eu saiba, passou pelos CTT, jornalismo, taxista, entre outros, mas parece que nunca terá ocupado por largo tempo qualquer dos cargos.

A história que hoje vamos narrar ocorreu num domingo ao fim da tarde; o Tó Zé e/ou Zé Beto, os filhos dos nossos saudosos diretores, poderão dar, certamente, uma prestante ajuda, pois, o que vai ser contado, ocorreu no dia em os seus avós de Santiago, os pais do Sr. Almeida, comemoraram 50 anos de casados, as bodas de ouro; o banquete teve lugar no COA, mais precisamente, no recém-construído ginásio. Creio que era um dia de inverno e havia por ali muitos convidados, gente estranha para nós. Posso mesmo afirmar que havia no ginásio muitos lugares sentados, segundo tive oportunidade de observar pessoalmente, in loco, como mais à frente se verá.

Durante a tarde desse dia (Domingo) alguns alunos internos saíram do COA, dirigindo-se ao jardim da Vila, para mudar de ares, lavar os olhos e dar umas voltas, vulgo “fazer picadeiro”! A dado momento, o grupo de que o Carinhas fazia parte cruzou com outro grupo – rapazes e raparigas – que não seriam, pelo menos na sua maioria, alunos do COA; uma das moças ia com certeza “bem acompanhada” por um rapaz que os alunos do COA desconheciam. Sem que ninguém se apercebesse que algo de anormal acontecera, o Carinhas caiu desamparado no solo como se fulminado por um violento raio… do qual ninguém se deu conta e que não deixou qualquer rasto… pois o hipotético raio não existiu mesmo.

O Carinhas ficou inanimado no meio daquela rapaziada abismada e atónita; ninguém vislumbrou uma saída prática para pôr termo àquela situação embaraçosa e até potencialmente perigosa. Houve a costumeira confusão própria de casos semelhantes; todos se empurravam para dar uma olhadela ao sinistrado mas ninguém se lembrou sequer de chamar os bombeiros… do nosso caríssimo professor Santos.

Entre os alunos ali presentes havia dois jovens severenses: Eugénio Bastos e Valdemar Coutinho. Por serem conterrâneos, colegas e bons amigos do “sinistrado”, deliberadamente assumiram o encargo (fardo bastante pesado) de “levar” o Carinhas para o COA. Solícitos e corajosos, levantaram a custo “aquele corpo morto” (salvo seja), apoiaram os braços do “doente” sobre os seus robustos ombros jovens e, literalmente arrastaram-no” para o colégio.

Recordo aquela imagem meio caricata, quase cómica, se o caso não fosse sério. O Carinhas era bem mais alto que os acólicos e os pés dele rojavam mais de 1 metro atrás dos amigos auxiliadores. O Carinhas sem prestar qualquer ajuda aos amigos e voluntários (continuava a não dar visíveis sinais de vida) para diminuir o esforço inaudito dos dois companheiros, permitia, inconscientemente, que o arrastassem para lugar seguro.

Assim entraram, já extenuados, no salão de estudo. Os alunos ali presentes rodearam-no, ansiosos por informações sobre o acidentado e acerca do que tinha acontecido. O doente ficou estendido no estrado; havia ali um sobretudo velho e sem dono que, à falta de melhor, serviu de almofada àquela “cabecinha tonta”.

De repente, o Carinhas abocanhou aquele casacão (que lhe servia para apoiar a cabeça) e, agitando freneticamente a cabeça para um e outro lado, fez o dito casacão voar sobre si como se dum delicado lenço se tratasse. De vez em quando, autenticamente “urrava” como qualquer animal feroz.

Alguém se apressou a descer até ao ginásio para avisar os nossos diretores do que estava a passar-se; ali se comemoravam as bodas de ouro dos pais do Sr. Almeida. O Sr. Dr. Matos, o nosso médico, era uma dos convivas e, logo que foi informado, galgou as escadas até ao salão onde se encontrava o “doente” para prestar rápida assistência médica e medicamentosa ao nosso colega que de vez em quando, dava sinais de profunda agitação. Tirou da sua maleta uma seringa e logo lhe aplicou uma daquelas injeções milagrosas. Em breve, o Carinhas deu sinais claros de acalmia mas logo, ainda inconsciente, tinha novos acessos de fúria, ficando profundamente agitado, qual parida leoa à qual “roubaram os filhos enquanto ela alimento lhes buscara”.

A srª Dª Maria Adília, sempre atenta e cuidadosa, ouvido o parecer do médico, ordenou que o paciente fosse transportado para um quarto na zona dos seus aposentos.

Mais uma tarefa complicada de executar que foi conseguida com sucesso total devido à solícita colaboração de vários alunos. A Srª Diretora entendeu que o Carinhas necessitava de acompanhamento que na camarata não poderia ter. Não sei como nem porquê (nunca soube) o Armando Figueiredo e eu fomos incumbidos de acompanhar, vigiar e apoiar o Carinhas naquele quarto por tempo indeterminado; entendeu-se que, no mínimo, ali permaneceríamos até ao fim da festa.

Um pouco mais tarde, o Carinhas, devidamente bem aconchegado na sua nova cama, com a voz ainda muito “arrastada”, tartamudeou, compassadamente: luz!... Luz!

Logo um de nós se abeirou do interruptor e... Fez-se luz!

Ele repetiu: luz!... Luz! Um de nós desligou imediatamente a corrente elétrica!

O Carinhas, porém, com iluminação ou às escuras, com a língua entaramelada, ia repetindo: luz!... Luz!…

O Dr. Matos compareceu no local para se certificar da evolução do estado do “doente”; permaneceu ali durante largos minutos e aconselhou que a iluminação continuasse desligada pelo menos até o Carinhas ficar suficientemente calmo.

Entretanto, alguns colegas passaram também pelo local a fim de colher informação sobre a evolução do estado do companheiro e amigo; estavam todos preocupados… e não era para menos.

Na conversa com as visitas (alunos) recebemos certas informações que se manifestaram cruciais para “ligar as pontas” da estória que se desenrolaria à volta do eixo principal – entendíamos nós – que seria aquele pedido insistente de “luz” quer as lâmpadas estivessem acesas ou apagadas.

Entretanto passou a hora do jantar e ninguém se preocupou se nós, os vigilantes de serviço, estávamos ou não devidamente alimentados; nós éramos jovens de muito alimento – eu falo por mim! Nós porém não nos inquietámos: em primeiro lugar, porque o jantar, como de costume, seria massa de meada guisada com carne, e por tradição ou qualquer outro motivo, ninguém caía de amores por aquele prato; em segundo lugar porque entretanto descortinámos uma saída airosa para saciar o nosso apetite de jovens.

Sem colocar em causa a vigilância ao doente, um de cada vez descia ao piso de baixo onde a funcionava uma cozinha “improvisada” para a festa daquele dia e solicitámos encarecidamente ao pessoal de serviço que nos aconchegasse a “barriguinha”.

Cada um comia no local que lhe era apresentado e levava alimento, também para o outro que continuava de atalaia, no tal aposento.

Com os estômagos minimamente bem compostos – a quantidade, qualidade e variedade dos alimentos ingeridos superavam largamente a quantidade usualmente necessária para satisfazer os nossos estômagos sempre ávidos de alimento – iniciámos a exploração do “filão” que nos havia sido proporcionado pelas informações soltas e desconexas que nos haviam sido prestadas pelos nossos colegas que por ali passaram.

Muito calmamente iniciámos uma profícua conversa com o nosso “doente”. Meio adormecido e com a língua, ainda encortiçada, o Carinhas foi taramelando palavras mais ou menos soltas e que nós fomos encadeando entre si e as informações de que já dispúnhamos, com maior ou menor dificuldade; continuámos a arrancar dele palavras a saca-rolhas, autenticamente, e assim apanhámos o enredo completo do que tinha acontecido e que havia causado aquele atroz sofrimento ao Carinhas e enorme preocupação aos colegas e diretores.

Com a necessária segurança – e pequena margem de erro – concluímos: o Carinhas caiu de amores – paixão puramente platónica – por uma moça que vivia do outro lado da avenida, num prédio em cujo rés-do-chão havia uma oficina onde reparavam, vendiam e alugavam velocípedes (o tal veículo em que a besta puxa sentada!). Segundo apurámos, a tal moça chamava-se Maria da Luz e não tinha conhecimento da tal paixão tão “assolapada” no jovem coração avantajado do Carinhas. Eis o motivo por que ele clamava, tão insistentemente por Luz! (Aqui já era Luz!).

O Carinhas logo que viu, inesperadamente a sua “amada” idolatrada, no jardim “pendurada “num outro rapaz (que não ele próprio) ficou desvairado… caiu desamparado no solo como se fulminado por um raio. A Maria da Luz não sabia que era o alvo de tão profunda e doentia paixão. Já depois da meia-noite, o Carinhas dormia repousadamente como qualquer anjo papudo; apareceu a Srª Dª Maria Adília que logo quis saber novidades sobre o estado do “doente”… e se tínhamos jantado.

À 2ª pergunta logo respondemos negativamente; quanto à 1ª narrámos, com os pormenores possíveis, o que, com paciência de santo, havíamos “decifrado”.

Ela manifestou o seu contentamento pelo nosso trabalho “detectivesco” e convidou-nos a segui-la até ao ginásio; já não havia lá qualquer convidado. “Descobriu” algumas mesas, baixando as pontas das toalhas e ordenou que comêssemos o que quiséssemos de tudo o que ali havia – e eram muitas a iguarias ali à mão de semear.

Bem comidos e bem bebidos – naqueles bons velhos tempos, os jovens até bebiam vinho, e nós tivemos direito, também a espumante – a srª diretora continuava ávida por mais minudências; agradeceu a nossa proveitosa e exaustiva colaboração e decidiu que não nos levantássemos às 6h30, como os outros alunos; apenas devíamos comparecer ao pequeno-almoço – às 8:45 – a que se seguiam as habituais aulas.

Um inesquecível fim de domingo!


(2ª Parte) 

 Como atrás foi dito, o Carinhas transferiu-se para o Colégio de Albergaria-a-Velha, provavelmente no fim do 3º ano. Um amigo comum (meu conterrâneo) que o acompanhou na nova escola contou-me algumas peripécias mais ou menos disparatadas, um pouco trágicas ou cómicas, segundo o ponto de vista dos intervenientes em que o Carinhas, por vontade própria, tomou parte.

Alguns companheiros falavam de cortes de cabelo à “Rosa Coutinho”; o Carinhas, logo se manifestou disponível para rapar a cabeça, com navalha de barba, caso os colegas lhe entregassem uma determinada quantia em dinheiro vivo. Os colegas conseguiram juntar as moedas solicitadas (não sei qual o montante) e de seguida o Carinhas “barbeou” a cabeça. Dada a sua estatura, as feições e a cor de pele, o Carinhas ficou com ares de autêntico palhaço ou mesmo pior que isso. Na noite seguinte, os colegas que perderam a aposta decidiram tornar a situação ainda mais cómica – era a hora da vingança, que sempre se serve… fria.

Comparam um frasco de tintura de iodo e, munidos de penas de galinha para servirem de pincel, enquanto o Carinhas dormia a sono solto, besuntaram a sua cabeça já descabelada; ele ficou com um aspeto quase pavoroso – terrível vingança!

Os alunos internos deslocaram-se às instalações sanitárias para a higiene matinal. Ao verem o Carinhas naquele estado deplorável, todos riram desalmadamente da nova e real aparência do colega. Quando se apercebeu que era ele próprio o alvo de tanta chacota, o Carinhas espumava de raiva; urrava furiosamente; virou fera! Comentou o meu informador: “se, naquela hora, ele imaginasse quem tinham sido os autores de tão severa “vingança” (foram vários), o Carinhas mataria um, tal era o seu estado de fúria; ele parecia um touro indómito, bramando! Saudações colegiais!

PS – há meses que tenho tentado contactar o Carinhas Pinto por telemóvel, mas ele nunca atende. Não sei o paradeiro dele; o telefone chama mas ninguém atende.

Saudações Colegiais
Belmiro Tavares
Fevereiro 2013
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 18 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11113: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (37): A "ida ao toco"

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11113: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (37): A "ida ao toco"

1. Em mensagem do dia 28 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

37 - A “ida ao toco”

No COA, tal como noutras boas escolas, também havia algumas tradições, ainda não profundamente enraizadas, visto tratar-se, àquela data, de uma escola jovem. Falamos da “ida ao toco”.

Creio que inicialmente, se praticava apenas entre alunos internos; com o tempo ter-se-á estendido a todos os alunos e, de vez em quando, aquela prática lá se ia renovando, mas… a tradição a certa altura... deixou de ser o que era!

Creio que não havia data pré-determinada para esta operação; bastava que um pequeno grupo tomasse tal decisão e … um de cada vez, todos eram levados ao “toco”. Quando tal acontecia, normalmente não escapava ninguém – nem os mais velhos!

A tal operação praticava-se do seguinte modo: quatro ou mais alunos (de acordo com o peso e a força de cada um dos visados) principalmente os mais velhos, pegavam uns nos braços e outros nas pernas da “vítima”, conduziam-na até junto do local próprio, e batiam três vezes com o traseiro do aluno no poste de madeira, já carcomida que suportava uma obsoleta e única tabela de basquetebol existente no recreio dos rapazes junto à parede do edifício principal. Esta tabela desapareceu aquando da construção do ginásio.

Significa que, em tempo idos, se praticou basquetebol no COA. Recordo um rapaz de nome Palmares ou Palmaz que visitou o COA algumas vezes no meu tempo. Dizia-se que fora um exímio praticante de basquetebol. Vi-o pegar numa bola de volei e lançá-la à tabela introduzindo-a no aro metálico, pois a rede já não existia. Naquela época o Palmares(?) estava na Base de S. Jacinto.

Poderia dizer-se que “morto o bicho, morta a peçonha” mas tal não aconteceu, pelo menos de imediato; teve de se arranjar substituto para a já desgastada tabela.

Passou, então a utilizar-se para tal fim, os pilares de ferro que suportavam o telhado do alpendre à frente, da garagem onde o Sr. Almeida guardava o(s) seu(s) carro(s) e que cobria também o bebedouro na outra extremidade. Creio que nesta altura, o costume se estendeu a todos os alunos e, de vez em quando, lá se ia renovando a tradição, embora não fosse tão generalizada como quando se tratava só de alunos internos. Questões de números

Quando entrei no Colégio havia pouco mais de trinta alunos internos e todos eram levados ao toco quando tal era decidido; nem os mais velhos escapavam! Os dois casos mais complicados de que me lembro:

a) Um tal Cipriano, natural de Cepelos, fez o 7º ano quando eu fiz o 1º; foi o último da série; exerceu toda a sua força descomunal (em relação à dos miúdos) e agilidade para evitar ir ao “castigo” ; a luta foi dura mas, com a indispensável ajuda prestimosa dos mais velhos, cumpriu-se a “lei”;

) Um jovem, nascido lá para as bandas de Oliveira de Frades, distrito de Viseu, tinha acabado de chegar, como interno; frequentou ali apenas o 5º, 6º e 7º anos. Não recordo se ele ajudou a levar alguns jovens a “ao toco”, mas quando chegou a sua vez, esforçou-se ao máximo para que o mesmo não lhe acontecesse. Muito contrariado, democraticamente, foi obrigado a bater três vezes com o dito no poste. Quando se sentiu livre, sacou do bolso um quase inofensivo canivete (próprio, pela dimensão, para castrar grilos) e ameaçou esfaquear tudo e todos – era só fumaça!

Felizmente não passou à prática! O bom senso imperou! E a vida não acabou ali.

Creio que nos fins dos anos cinquenta do século passado tal uso… terá caído em desuso!

Tradição… já era!

Saudações colegiais
Janeiro 2013
BT
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 7 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11069: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (36): Juramento de Honra

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11069: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (36): Juramento de Honra

1. Em mensagem do dia 28 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

36 - Juramento de Honra

No Coa, por incrível que pareça, também havia destas coisas – não se brincava em serviço. Faziam-se juramentos… e não eram só de amor eterno; havia outros … afinal!

Três bons rapazes – teriam de ser bons cachopos, pois eu era um deles – frequentavam o 5º ano; depois, certamente de alguns considerandos, mais ou menos alargados, de livre e espontânea vontade e de comum acordo, os três bons malandros decidiram que “nenhum deles cortaria a barba antes do início das férias da Páscoa”. Esta ousada decisão terá sido alinhavada na sequência das férias do Carnaval; o ambiente carnavalesco era forte e convidativo a tais deliberações.

A direção do COA, porém, também não brincava em serviço; a disciplina era levada muito a sério – não era palavra vã. Mas, se os alunos -  mesmo apenas três – decidiram... está decidido! Cumpra-se!
Aqueles três galfarros entenderam também que só conversa não era suficiente! Palavras leva-as o vento! Vai daí... escreveram para que constasse!

O assunto ia mesmo passar ao papel! Pegaram numa vulgaríssima folha de sebenta (comezinho bloco de apontamentos com folhas  pardacentas, não pautadas) e nela escreveram um texto bem (ou mal ) alinhavado pelos três artistas, mais ou menos, como se segue: “Nós, F, F1, F2, abaixo assinados deliberámos e juramos pela honra, uns dos outros, que não cortaremos a barba antes do início das férias da Páscoa”.

Teremos certamente acrescentado: “aconteça o que acontecer”, ou ainda “nem que a burra tussa”! Apusemos local e data e as três assinaturas. Só faltou reconhecer as assinaturas no tabelião, que, à época, já era notário. Utilizando como base um reles papel;… nós éramos pessoas (adolescentes) confiáveis e prescindimos do reconhecimentos… até porque esta atuação implicava o pagamento de determinada verba… e o dinheiro não abundava nos nossos bolsos. A decisão acima citada pode parecer caricata aos olhos dos jovens de hoje porque estão habituados ao regabofe que prolifera nas escolas da atualidade; naqueles tempos, tudo era diferente! Havia DISCIPLINA e como ela era ali geralmente dura. Mas isso são contas de outro rosário!

Passadas (não mais de) duas semanas – creio -  surgiram as primeiras dificuldades que iriam fazer ruir o nosso juramento,  um a um, apesar de a nossa barba não crescer tanto assim que se notasse a olho nu, ao fim duma semana,

O primeiro visado foi, parece-me, o Armando Figueiredo, natural de S. Vicente de Pereira, lá para as bandas de Ovar; a Sr.ª Dª Mª Adília não permitiu que ele entrasse na sala de aula (seria, certamente, Geografia de Portugal) “sem lavar a cara”.

Para não começar a somar faltas, sempre perigosas, o Armando houve por bem cortar a barba. Foi a 1ª baixa! Uns dias mais tarde (não recordo  qual o motivo) o Arlindo desligou-se também, unilateralmente, do citado juramento, barbeando-se.

Eu era então o último (único) resistente. Acontecia que eu tinha, como soe dizer-se, “as costas quentes”
A primeira vez que fui a casa, depois de tal promessa rigorosamente escrita, tive o especial cuidado de perguntar ao meu pai se podia deixar crescer a barba; ele respondeu afirmativamente; entendi, não corretamente, que isso seria suficiente para salvaguardar a minha imunidade. Acontecia que a vontade de meu pai não imperava entre as severas paredes do COA! Ali, graças a Deus, imperava a vontade da Direção... e o resto era conversa!

Todos os sábados, durante o estudo da manhã, o Sr. Correia elaborava cuidadosamente uma lista com os nomes dos alunos internos que pretendiam ir passar o fim-de-semana a casa. Pretender ir não era sinónimo de... ser autorizado a ir. Entre uma coisa e outra havia um longo e árduo caminho a percorrer e,  de vez em quando, surgia uma cilada.

O Sr. Almeida, com a citada lista na mão, entrou no refeitório e a cada um ia dizendo se podia ou não sair do COA, nessa tarde; tinha por base as informações sobre o comportamento e/ou aproveitamento escolar. Chegada a minha vez, ele informou em tom (mais) autoritário:
- “vais a casa, mas cortas a barba durante o fim-de-semana”!
- Se não se importa, Sr. Almeida, eu corto-a no início da próxima semana, quando voltar ao Colégio; – comentei eu – era mais um pedido que outra coisa.
- Está bem! Mas não te esqueças! Proferiu o chefe, encerrando o assunto com a sua reconhecida autoridade.

Foi deste modo que o tal juramento – a nossa nobre decisão – redigida e ratificada numa mísera folha de sebenta, foi ao ar. E tudo o vento levou!

Respeito é bonito! Não havia juramento que resistisse à superior e decisória vontade do Sr. António Almeida, o Homem forte daquela casa!

Saudações colegiais,
Janeiro 2013
BT
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 1 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11039: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (35): O perfeito, senhor Correia