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sexta-feira, 10 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17123: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (6): Vida e morte de Simão Mendes, vítima de bombardeamento, pela FAP, da base central do Morés, em 20 de fevereiro de 1966




O nosso colaborador assíduo do blogue, Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Especiais da CART 3494. Xime e Mansambo, 1971/74): tem já mais de 110 referência no nosso blogue; ainda está no ativo, é professor universitário, doutorado em ciências do desporto. Este texto, a publicar em duas partes, foi submetido ao blogue em 4 de janeiro de 2017]


1. Introdução

Apresentei no início deste ano uma resenha histórica, dividida em duas partes por questões editoriais, relacionada com a realização do I Congresso do PAIGC, organizado nos arredores da tabanca de Cassacá (Frente Sul), entre 13 a 17 de Fevereiro de 1964 [P16991 e P16998].(*)

Nela dei conta, com particular destaque, à importância social da saúde e da instrução literária,. analisadas um mês depois, em 21 de março, na Base Central (Morés), por iniciativa dos responsáveis dessa Frente [Norte], Ambrósio Djassi [nome de guerra de Osvaldo Vieira, 1938-1974] e Chico Té [nome de guerra de Francisco Mendes, 1939-1978], cumprindo deste modo as resoluções aprovadas no encontro de Cassacá.

Nesse âmbito, e no que concerne à área da Saúde, Simão António Mendes [enfermeiro de formação], seu principal responsável na Região Norte, apresentou um relatório [normas ou regulamento] com dez pontos, que foi aprovado por unanimidade.

Hoje, ao ler o P17119, da responsabilidade do camarada Jorge Ferreira (**), onde se faz referência a Simão [António] Mendes, nome com que foi baptizado o Hospital Nacional de Bissau [imagem acima], “antigo enfermeiro da época colonial, militante do PAIGC, morto em combate no Morés, e sobre o qual se sabe muito pouco”, tomei a iniciativa de partilhar convosco o que apurei sobre este tema.


2. SIMÃO ANTÓNIO MENDES – As suas funções e a sua morte

2.1. O que apurei

Como fonte de investigação bibliográfica, utilizei para este caso os arquivos da Casa Comum da Fundação Mário Soares.

Confirma-se, pela nota abaixo reproduzida, que Simão António Mendes fazia parte, de facto, da Direcção de Saúde do PAIGC.

No documento, por si assinado, enviado à Direcção Central do PAIGC em 24 de Março de 1964, ou seja, três dias após ter apresentado na Base Central (Morés) as normas de funcionamento da sua estrutura, pode ler-se:

I – Junto se remete a requisição dos medicamentos e mais artigos para um trimestre para consumo de guerrilheiros e povo da zona libertada por esses últimos não poderem deslocar a outra parte à procura de assistência sanitária.

II – Tomámos boa nota da última carta do nosso camarada Lourenço Gomes [responsável no exterior (Senegal; Base de Samine) pelo acompanhamento dos evacuados do interior da Guiné], sobre doentes a enviar para a fronteira que passarão a ser só os feridos por arma de fogo, tais como fracturas e certos casos graves que não podemos resolver cá, por falta de recursos.

Cumprimentos cordiais. 

Simão António Mendes e João Augusto Costa

Citação: (1964), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35806 (2017-3-09)

Fonte: Casa Comum

Instituição: Fundação Mário Soares

Pasta: 04613.065.155

Assunto: Remete a requisição de medicamentos e mais artigos para os guerrilheiros e população (para um trimestre). Refere que tomaram boa nota das indicações de Lourenço Gomes de enviar para a fronteira apenas os feridos com arma de fogo.

Remetente: Simão António Mendes, João Augusto Costa.

Destinatário: Direcção do PAIGC.

Data: Terça, 24 de Março de 1964.

Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência 1963-1964 (dos Responsáveis da Zona Sul e Leste).

Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral.

Tipo Documental: Correspondência

(Reproduzido com a devida vénia...)


2.2. A sua morte em 20 de fevereiro de 1966

De acordo com o comunicado da Base Central (Morés), a morte de Simão António Mendes ocorreu no dia 20 de fevereiro de 1996, domingo, sendo descrita nos seguintes termos:

“No dia 20 de fevereiro [de 1966] o inimigo apoiado por 8 caçadores [caça-bomdeiros  T 6 ? ou companhias de caçadores ?] invadiu a Base Central [Morés]. O combate que durou 6 horas de tempo, teve como resultado a retirada em debandada inimiga que caiu em 3 emboscadas sucessivas.

O inimigo,  não podendo realizar o plano, reforçou a aviação. Com o fim de bombardear a base, onde os nossos camaradas de armas anti-aéreas deram uma grande prova de corage,  não os deixando realizar o plano.

Depois de duas horas de combate, só conseguiram lançar uma bomba dentro da Base causando a morte a 3 camaradas entre os quais o responsável da saúde do C.I.R.N., Simão António Mendes.

Dois aviões foram atingidos pelo fogo da D.C.K. [metralhadora pesada de 14.5 mm]

Região Oío, Zona Morés, Base Central.





Citação: (s.d.), "Comunicado [Região 3]", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40720 (2017-3-09)

Fonte:  Casa Comum

Instituição: Fundação Mário Soares

Pasta: 07065.068.011

Título: Comunicado [Região 3]

Assunto: Comunicado da Base Central, na Região de Oío, Zona de Morés, dando conta da invasão desta Base pelo exército e aviação portugueses, tendo sido atingidos dois aviões pelos combatentes do PAIGC, munidos de armas antiaéreas.

Data: s.d.

Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Exército Popular Zona Norte (Comunicados)

Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral.

Tipo Documental: Documentos.

(Reproduzido com a devida vénia...)


Mapa da Região do Oio - Base Central (Morés)


2..3. A versãodo cmdt Bobo Keita:

A antiga glória do futebol guineense, Bobo Keita (1939-2009), nas suas memórias, tem  uma versão um pouco mais detalhada sobre a vida e a morte de Simão Mendes:

(i) "trabalhou na administração colonial como responsável pela saúde" (sic), em Binar ou Bissorã ("não tenho a certeza");

(ii) numa das suas deslocações, "caiu num emboscada montada pelo camarada Agostinho Cabral d'Almada", o famoso "Gazela";

(iii) essa emboscada foi já "perto da base de Morés";

(iv) "foi levado como prisioneiro" (sic)  para o Morés e aí explicou que já há tempo "procurava estabelecer contactos" com o PAIGC;

(v) ingressou, deste modo pouco ortodoxo, no Partido;

(vi) "morreu,  mais tarde, no intenso bombardeamemnto da base de Morés ocorrido no dia 14 de novembro de 1964" [, aqui é que a data não bate certo com a do comunicado, acima reproduzido, que refere 20/2/1966, ou seja um ano e três meses depois...];

(vii) nesse bombardeamento, "os camaradas Juvêncio Gomes e  Tiago Aleluia Lopes foram atingidos por estilhaços", na cabeça (o Tiago) e  nas mãos e parte do rosto (o Juvêncio).

Fonte: CARVALHO, Norberto Tavares - De campo em campo:  dos estádiso de futebol à luta de libertação nacional dos povos da Guiné e de Cabo Verde; conversas com o comandanet Bobo Keita. Edição de autor, Porto, 2011, p. 244.
_____________________


Obrigado pela atenção.
Um forte abraço de amizade com votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

09MAR2017.
______________

Notas do editor:

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16562: (De)Caras (47): Ainda o enigma dos ferimentos de Mamadu Indjai [N'Djai] e a missão do Bobo Keita na mata do Fiofioli (Jorge Araújo)


Mamadu Indja (ou N'Djai), "herói e vilão", membro dos  serviços de segurança e chefe da guarda do secretariado do PAIGC, "ainda em convalescença", numa rara (e desfocada) foto, em Conacri, s/d, (c. 1973)... Recuperada de fotograma de vídeo da RTP, série "A Guerra", de Joaquim Furtado, 2007  (com a devida vénia...). Trata-se do episódio do assassinato do Amílcar Cabral e da prisão de Aristides Pereira.

[E, a propósito, diga-se que a série "A Guerra" é um trabalho ciclópico, sério e honesto de investigação, feito pelo Joaquim Furtado e a sua equipa, da RTP, que merece todo o nosso apreço e reconhecimento, independentemente de inevitáveis falhas, erros, omissões  e contradições. Isto,  sim, é verdadeiro  "serviço público". É pena que os vídeos não estejam disponíveis "on line", no sítio institucional da RTP, para o público lusófono em geral e os ex-combatentes em particular, e andem por aí pirateados... Vd. aqui a lista com resumo das 4 séries, em 42 episódios, transmitidos pela RTP, de 2007 a 2013, disponibilizada  por  http://www.macua1.org/guerrajf/aguerra.html ] (LG)




O nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo: 


(i) nasceu em 1950, em Lisboa; 
(ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 
(Xime e Mansambo, 1972/1974); 
(iii) é doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009),  
 em Ciências da Actividade Física e do Desporto;
(iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), 
Portimão, Grupo Lusófona; 
(v) coordena o ramo de Educação Física e Desporto, 
da Licenciatura em Educação Física e Desporto.


Mensagem do Jorge Araújo com data de 3 do corrente:

Caro Camarada Luís,

Bom dia.

Na sequência da leitura da acta da reunião do Conselho de Guerra, realizado em Conacri, em maio de 1970, permitiu-me chegar a novos dados sobre o tema em epígrafe. (*)

Porque acrescentam mais alguma coisa ao já divulgado, tomei a iniciativa de os organizar em nova narrativa, que anexo. (**)

Boa semana.

Um abraço, Jorge Araújo.



GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE: AINDA O EMIGMA DOS FERIMENTOS DE MAMADU INDJAI [N’DJAI] E A MISSÃO DE BOBO KEITA NA MATA DO FIOFIOLI



1. INTRODUÇÃO

A presente narrativa tem por base fontes de informação «(d)o outro lado do combate» (título utilizado igualmente no projecto dos médicos cubanos, ainda não concluído), onde novos factos considerados fiáveis, nomeadamente no que concerne ao enigma relacionado com os ferimentos em combate do comandante Mamadu Indjai [N’Djai], nos permitem ficar mais próximo da verdade e que, pelo seu valor sócio-histórico, decidimos partilhá-los convosco.

Em simultâneo, e no desenvolvimento da investigação que continuamos a fazer, daremos conta também de outros acontecimentos relevantes tendo Bobo Keita (1939-2009) por protagonista, na medida em que entre ambos existem pontos em comum, de que um exemplo é o de terem sido nomeados comandantes da Frente da Mata do Fiofioli, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, cada um em tempo diferente, no mínimo entre os anos de 1969 e 1970.



2. O CASO DE MAMADU INDJAI  


Como foi referido no P16506 (*), ficou provado que Mamadu Indjai era responsável pela segurança pessoal de Amílcar Cabral (1924-1973), não se sabendo desde quando foi tomada tal decisão, e que em 19/20 de janeiro de 1973 é acusado de ter estado envolvido no assassinato do secretário-geral do PAIGC, vindo a ser executado alguns dias depois por esse motivo.

Disso dá-nos conta Beja Santos no seu espaço «Notas de leitura: Fernando Baginha e o assassinato de Amílcar Cabral» onde cita:

[…] “Cabral avisou o então responsável pela sua segurança para que tomasse precauções. Ele era Mamadu N’Djai [Indjai], herói nacional, comandante da Frente Norte, três vezes ferido em combate e, de [naquele] momento, em Conacri, precisamente em convalescença do seu último ferimento” (P11001).

Valoriza-se nesta passagem o facto de Mamadu Indjai ter sido ferido três vezes ao longo da sua actividade de combatente na guerrilha. Não se sabe, porém, quando, como e onde terão acontecido as duas primeiras, bem como a dimensão de cada episódio, aceitando-se que a última vez [a terceira] seja a ocorrida durante o ano de 1972.

Entretanto, com a ajuda do nosso amigo Cherne Baldé, a quem agradecemos, ficámos a saber que Mamadu Indjai era um Guineense, do grupo etnolinguístico Biafada, natural do sector de Injassane (Ndajassane), ao norte de Buba, região de Quínara. Soube, através de um antigo combatente, que Mamadu Indjai foi um dos mais antigos elementos da guerrilha. As suas acções/tarefas/missões consistiam na sabotagem de telecomunicações e vias de comunicação através de abatizes, factos realizados num tempo anterior ao início da guerra [comentário ao P16519].

Pelo exposto conclui-se que Mamadu Indjai contabilizou uma experiência de guerra de mais de uma década. Durante esta fracção de tempo, sofreu ferimentos em combate no decurso da “Op Nada Consta”, em 18 de agosto de 1969. Porém, fica-se sem saber se esta foi a primeira ou a segunda vez.

Nesta data, o cmdt Mamadu Indjai foi gravemente ferido ao fim da tarde, depois da acção inicial de grupos de paraquedistas do BCP 12 que efectuaram um heli-assalto de surpresa a uma base IN de que resultou a sua destruição, a captura do roqueteiro Malan Mané e do seu RPG2 e de outras baixas (P23 + P2683).

De acordo com a última informação elaborada por Torcato Mendonça [que também lá estava], parte do grupo de Mamadu Indjai cairia numa emboscada montada pelo 3.º Gr Comb da CART 2339 (Carlos Marques dos Santos),  no itinerário Mansambo-Xitole, próximo da ponte sobre o Rio Bissari.

Durante essa noite ouviu-se no rádio, e de forma clara, os apelos do IN para tentarem ajudar a saída para Conacri [ou Boké, que ficava mais perto] do cmdt Mamadu Indjai.

Em função dos diferentes relatos acima, considera-se historicamente válido o nome da “Op Nada Consta”, enquanto a “Op Anda Cá”, referida no P9011, não faz o mínimo sentido naquele contexto, pois nunca existiu [Torcato Mendonça].

Aproximadamente nove meses depois destes ferimentos, Mamadu Indjai considerou-os, de facto, graves, referindo-se a eles na Reunião do Conselho de Guerra (alargado), realizada entre 11 e 13 de maio de 1970, em Conacri, na presença de altos dirigentes do PAIGC, incluindo o seu líder, Amílcar Cabral.

A propósito dessa ocorrência, no final da sessão da noite do primeiro dia dos trabalhos, Mamadu Indjai fez uma intervenção, a qual ficou exarada em acta, de cujo conteúdo dá-se conta abaixo [p 11], bem como a sua fonte.



Citação:
(1970-1970), "Acta informal das reuniões do Conselho de Guerra em Conakry", CasaComum.org, Disponível HTTP:http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34125 (2016-10-01).


Transcrição da intervenção de Mamadu Indjai, manuscrita por Vasco Cabral (1926-2005), secretário da reunião do Conselho de Guerra

Mamadu N’Djai (Indjai) – Agradeceu à Direcção do Partido o grande apoio que lhe deu para salvar a sua vida. Está pronto para retomar o trabalho, em qualquer momento. Pede uma missão entretanto, para não estar mais parado.

Amílcar Cabral – Esclareceu que ele não esteve parado. Convalescença não é estar parado. Podemos mandá-lo, por exemplo a Koundara [território da Guiné-Conacri, conforme imagem abaixo], “onde pode dar uma ajuda aos camaradas”.

(interrompeu-se a reunião às 00h00. Continua amanhã (12 de maio) às 16h30 da tarde. Nota: Amílcar propõe que depois de amanhã toda a gente deve preparar-se e quinta-feira partir).








3. O CASO DE BOBO KEITA


Sobre o estado de saúde de Mamadu Indjai e da sua posterior e natural substituição pelo comandante Bobo Keita (1939-2009-01, em Lisboa), Luís Graça, no seu espaço «Manuscrito(s): Por aqui passou Mamadu Indjai, o terrível», cita:

 “Depois do ferimento grave de Mamadu Indjai, "operado de urgência na zona 7", o Amílcar Cabral não sabia quem o deveria substituir... O Bobo Keita ofereceu-se, em Boké, para substituir o Mamadu Indjai "por 15 dias", por sugestão de Amílcar Cabral... Acabou por lá ficar nove meses, ou seja, até ao fim do 1.º semestre de 1970... A "zona 7 (...) ficava nas regiões de Xime, Bambadinca e Xitole", diz o Bobo Keita, nas suas memórias "De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita", de Norberto Tavares de Carvalho, edição de autor, 2011, 303 pp. (P16444).

Por outro lado, Beja Santos, em nova «Notas de leitura: De campo em Campo, de Norberto Tavares
de Carvalho»: refere:

[…] “Bobo Keita é um guerrilheiro da Frente Norte, anda por Binta e Guidage, a base era Sambuia. Em junho de 1968 é ferido e evacuado para Moscovo e depois regressa [quando?] à frente Norte. No ano seguinte (1969), frequentou seminários em Conacri e depois foi para a [ex] Jugoslávia. No regresso [agosto de 1969?], ofereceu-se para ficar nas regiões do Xime, Bambadinca e Xitole, aqui passou nove meses [provavelmente até finais de maio de 1970?], vinha substituir provisoriamente [?] Mamadu Indjai.

Sobre o Bobo Keita temos 15 referências
no nosso blogue (incluindo
 transcrições das suas memórias)
Reorganizou a quadrícula: “a primeira medida que tomei no Leste foi acabar com a base central [em Mina / Fiofioli ] onde se concentrava toda a guerrilha e que daí procedia a longas marchas para ir atacar os quartéis.

Além disso, na base central concentravam-se as milícias e havia uma certa confusão. Existia também o risco de que qualquer ataque do inimigo pudesse causar muitas baixas na base, devido a tamanha promiscuidade. Formei três destacamentos [?] e um comando móvel.

Da análise às informações divulgadas por Bobo Keita, Beja Santos acrescenta: trata-se de “um relato com muitos altos e baixos. (…) Há notoriamente silêncios, beliscadelas e sentimentos feridos. (…) Estes comandantes recebiam documentação, mas nunca a invocam e muito menos a exibem. O que nos leva permanentemente a questionar como é que se vão cozer todas estas peças constituídas por depoimentos que mais ninguém valida” (P9137).

Daí que a expressão: “acabou por lá ficar nove meses, ou seja, até ao fim do 1.º semestre de 1970” diz-nos pouco; é ambígua, pois não refere o(s) motivo(s) da sua saída: foi de sua iniciativa ou foi decidida superiormente… imposta?

As respostas a estas interrogações fomo-las encontrar na acta da Reunião do Conselho de Guerra acima referida, e que seguidamente se apresentam:




Transcrição da intervenção de Amílcar Cabral, manuscrita por Vasco Cabral (1926-2005), secretário da reunião do Conselho de Guerra, sobre Bobo Keita

[…] Quanto a Xitole-Bafatá há um problema a resolver com bastante urgência. Parece que Bobo [Keita] com António Fiaz [Gomes] a coisa não está bem. Informa-se que Bobo nunca está lá, faz daquela fronteira [Leste] como uma fronteira do Senegal. Diz que não pára lá. Vamos investigar. Pede a Osvaldo [Vieira] que se encarregue de saber da situação neste Sector, que é um Sector-Chave para nós. Sobre Bafatá-Gabú (Sul) fizemos algumas operações, passaram o rio. Pensa que Baro Seidá só é que deve ficar lá. […]




Transcrição das intervenções de Osvaldo Vieira, Pedro Pires e Amílcar Cabral, manuscritas por Vasco Cabral (1926-2005), secretário da reunião do Conselho de Guerra, sobre a situação no Sector 2 (Leste)

Osvaldo Vieira (1938-1974) – Informa sobre a situação no Sector 2. António Fiaz [Gomes] está aborrecido com Bobo [Keita]. Bobo criou uma situação incómoda, porque combinou um encontro com os camaradas mas ele, Bobo, não apareceu. Refere que Mamadu [Cassamá], na frente Leste [viria a morrer em Copá, em 07 de janeiro de 1974 - P16317], os outros camaradas não queriam lá a sua presença. Ele faz lá reuniões. Foi em três bigrupos. Os camaradas levados por José Sambú recusaram-se a seguir as indicações de Mamadu. […]

Pedro Pires (n. 1934) – Fala sobre a situação de Bafatá-Gabú (Sul). Humberto tem lá dois bigrupos mas confronta-se com dois problemas: as distâncias e o rio [Corubal]. Ele está um bocado em baixo. Sobre a questão dos bigrupos há um problema: é que os comandantes não estão à altura, querem só estar fora. Isso não pode ser. Refere o exemplo do Papa-Soares. Humberto lamenta-se que não foi ouvido e está abatido.

Amílcar Cabral (1924-1973) – Quanto ao Humberto, de facto põe-se o problema da distância. Há ou não há população. São os próprios combatentes que têm de transportar o material. Explica como proceder em relação ao Humberto. Humberto está abatido porque não queria sair da reinança de Quinara. Ele não tem razão para afirmar que houve acusações injustas. “Há que mudar os comandos dos bigrupos ou mesmo os bigrupos. Devem agir rápido para evitar encrencas entre António Fiaz [Gomes] e Bobo Keita”. Refere o caso de Luís Gomes.

Infere-se deste último parágrafo que Bobo Keita (1939-2009), enquanto comandante de um bigrupo instalado na região da Mata do Fiofioli foi substituído na sequência da decisão tomada na Reunião do Conselho de Guerra de 11 e 13 de maio de 1970, e por este omitido no seu livro de memórias.



Nota: Para a elaboração deste texto foram utilizadas como fontes bibliográficas o Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné [ou blogue da Tabanca Grande]  e portal «Casa Comum – Fundação Mário Soares», com a devida vénia, de acordo com as seguintes referências:




Instituição:
Fundação Mário Soares

Pasta: 07073.129.004

Título: Acta informal das reuniões do Conselho de Guerra em Conakry

Assunto: Acta informal das reuniões do Conselho de Guerra, de 11 a 13 de Maio de 1970, manuscrita por Vasco Cabral.

Membros Presentes: Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, João Bernardo Vieira (Nino), Osvaldo Vieira, Francisco Mendes, Pedro Pires, Paulo Correia, Mamadu N'Djai [Indjai], Osvaldo Silva, Suleimane N'Djai

Secretário: Vasco Cabral

Data: Segunda, 11 de Maio de 1970 - Quarta, 13 de Maio de 1970

Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios 1960-1970.

Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral

Tipo Documental: ACTAS
___________


(**) Último poste da série > 2 de outubro de  2016 > Guiné 63/74 - P16549: (De)caras (46): Ainda sobre a morte do alf mil Linhares de Almeida (1942-1967), nascido em Bissau e sepultado em Vila Nova da Barquinha (Domingos Gonçalves, ex-alf mil inf, CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68)

terça-feira, 19 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16317: Controvérsias (132A): Quem conta um conto, acrescenta-lhe sempre um ponto... A morte do comandante Mamadu Cassamá,e as viaturas blindadas, em Copá, em 7/1/1974 (confrontando duas versões, a do guineense Bobo Keita, "o comandante dos tanques anfíbios" e a do escritor cubano Ramón Pérez Cabrera)

1.  Depoimento de Bobo Keita, comandante do PAIGC (1939-2009) sobre a morte de Mamadú Cassamá(*), em Copá, em 7/1/1974:


"Mamadú Cassamá morreu no ataque a Copá. Tomei parte nesse ataque, juntamente com o camarada Paulo Correia. O Mamadú era dos que ainda acreditavm na 'força' dos amuletos... Avançou muito e foi até aos arames  que circundavam o quartel,  Pegou nos arames e fez força para os arrancar. Foi localizado e um tiro cverteiro silecncoiu-o de vez. O Mamadú Cassamá era o camdante daqule zona".

In: Norberto Tavares de Carvalho, De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita. Edição de autor, Porto, 2011. (Impresso na Uniarte Gráfica, SA; depósito legal nº 332552/11). Posfácio de António Marques Lopes. p. 244.


Bobo Keita, já antes, noutra passagem se tinha referido a Copá e à utilização de viaturas blindadas;(p. 193):

"Para o assalto a Copá, que fica a uns trinta quilómetros da cidade senegaleas de Wassadou,  peguei em dois dos meus tanques (sic), constitui um comando e fomos à emboscada.  A operação em Copá contou com Quemo Mané, comandante de infantaria. Copá também não foi fácil para os tugas, Alinhámos um número razoável de combatentes, menor que Guileje e Guidaje, e o objetivo era o de isolar os colonialistas. A tomada do quartel não nos interessava, queríamos somente convencê-los  de que não tinham mais nenhuma escapatória e que deviam partir da nossa terra".

Infelizmente, Norberto Tavares de Carvalho, nas longas conversas com Bobo Keita, não explorou devidamente o fato de este ter sido nomeado, ainda em vida de Amílcar Cabral, " comandante dos tanques anfíbios" (sic) ou   "chefe dos blindados",  em substituição do Inocêncio Cani (1938-1973), antigo comandante da marinha do PAIGC, que iria ser o carrasco do  líder do PAIGC, em 20/1/1973 (vd. pp. 165 e ss.)...

No início do cap. XII, pode ler-se (p. 177): "Depois do funeral do Amílcar, realizado no dia 1 de fevereiro de 1973 em Conacri, fui tomar conta dos tanques anfíbios (sic)", tendo seguido depois  "de Boké para o Leste em março de 1973".

Em conclusão: o PAIGC já tinha viaturas blindadas anfíbias e vai usá-las contra Copá, em janeiro de 1974, de acordo com o testemunho (insuspeito) do nosso camarada António Rodrigues, um dos bravos de Copá (*). 

Mas fica a dúvida por esclarecer:  o PAIGC  tinha duas ou mais "viaturas blindadas" de tipo anfíbio  ? Eram mesmo do PAIGC ? Ou eram emprestadas pelo Sékou Touré ? Seriam do tipo  BRDM-2 ? Se sim, por que é que o Bobo Keita não se faz transportar nelas,  na "viagem triunfal" até Bissau,  em setembro de 1974 ?

2.Excerto de: Ramón Pérez Cabrera - "La historia cubana en África: 1963-1991: pilares del socialismo en Cuba" (edição de 2005), p. 1979


[Com a devida vénia...Sublinhados nossos] [Extensas partes do livro podem ser consultadas, em modo de pré-visualização, no portal da Kilibro]


3. Aristides Ramón Pérez Cabrera (n. 1939) não é nem jornalista nem historiador, e muito menos um investigador independente.  É um "homem de partido", é um homem do regime castrista, que chegou ao comité central do Partido Comunista, pelo que se não pode esperar do seu livro "La historia cubana en África", publicado em 2003, uma obra isenta, objetiva, imparcial, crítica, etc. Tal como muita da tralha "chauvinista", "trauliteira e patrioteira" que todos  nós escrevemos e continuamos a escrever sobre o glorioso passado dos nossos países europeus (nós, os portugueses, os espanhóis, os franceses, os ingleses, os alemães, os italianos, os suecos, os russos, etc.).

Muito menos foi, tanto quanto sei, o nosso Cabrera,  um combatente "internacionalista" que tenha arriscado o coirão nas bolanhas da Guiné ou nas savanas do sul de Angola... Os elementos que juntou para escrever "La historia cubana en África" e as informações que publicou, devem ser tomadas com as naturais reservas... É um trabalho de pesquisa bibliográfica e de recolha de testemunhos, que tem alguém interesse documental.  

Não tendo formação (científica) em história, é natural que corra o risco de descambar para o panegírico, a propaganda, a tirada patrioteira, sem grande preocupação com o rigor factual e o respeito pela verdade, o contraditório, a triangulação, a exploração  de outras fontes documentais, etc.

É o caso, por exemplo,   do nome do comandante das forças que atacaram Copá em janeiro de 1974... O homem que morreu em 7/1/1974 não era Mamadou Cassamba (sic), mas sim Mamadu Camassá... E não terá morrido a tripular uma das "quatro" (sic)  viaturas  blindadas BTR (ou BRMD) que o PAIGC não devia ter na altura, mas sim de um tiro certeiro, talvez no coração ou noutro órgão vital... disparado pelo nosso António Rdorigues ou algum outro dos bravos de Copá.

O Ramón Pérez Cabrera estava a milhares de quilómetros de distância, provavelmente em Havana, não viu o horror e o heroísmo desses dias em Copá, nem cita fonte idónea... Inclino-me mais facilmente para aceitar, como versosímil,  a versão do  Bobo Keita, que afirma ter estado em Copá nessa noite, tal como o comandante da Frente Leste, o Paulo Correia, valente guerrilheiro balanta, com várias  e importantes funções políticas a seguir à independência, que irá morrer muito mais tarde, em 1986, fuzilado, depois de barbaramente torturado  pelos esbirros do 'Nino' Vieira, na sequência de uma inventona....

Enfim, tudo indica que o  Cabrera, ingénua ou deliberadamente,  terá inventado um versão "heróica" para a morte (estúpida) de um comandante de guerrilha que nem sequer devia ter "carta de condução" de BTR (ou BRDM)... 

Aliás, o Bobo Keita, velha glória do futebol no tempo dos "tugas", não parece ter grande consideração pelo seu camarada Mamadu Cassamá: dele diz, com ironia, que  "era dos que ainda acreditavam na 'força' dos amuletos", a exemplo do próprio 'Nino' Vieira (leia-se, dos "mésinhos" que tornavam o "corpinho de bó" impenetrável às balas do "tuga")...

Moral da história: quem conta um conto, acrescenta-lhe sempre um ponto...  LG

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Vd. poste anterior:

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Guin é 63/74 - P11005: Efemérides (119): A morte do comandante Vitorino Costa, um revés para o partido de Amílcar Cabral, em 1962, ainda antes do início oficial da guerra


(1962), Sem Título, CasaComum.org, Fundação Mário Soares, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=04604.039.127 (2013-1-25)



Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta:  04604.039.127
Remetente:  Gil Fernandes
Destinatário:  Amílcar [Cabral]
Assunto:  Morte de Vitorino Costa. Curso de "Liberal Arts". Actividades de alguns traidores em Boston.
Data:  Sábado, 1 de Dezembro de 1962
Observações:  Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência 1962 (interna PAIGC, MPLA, FRELIMO, UGEAN, CONCP).Fundo:
DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Correspondencia

(Reprodução com a devida vénia...Sublinhados, a vermelho, da nossa responsabilidade)

1. Carta do futuro diplomata do PAIGC e da República da Guiné-Bissau, Gil Fernandes, a estudar em Boston, datada de 1/12/1962, dirigida a Amílcar Cabral. Começa nestes termos:

"Caro Amílcar: Foi com grande consternação que recebi a sua última carta relatando a morte de Vitorino Costa. Eu e ele fomos grandes amigos e fui por algum tempo seu explicador. A sensação de choque  que se recebe perante acontecimentos desta natureza é absolutamente  indescritível, este é mais um crime que mais tarde os portugueses terão que dar conta. Imagino em que estado é que o Amílcar se deve encontrar, mas confio inteiramente na sua perseverança, agora é que é preciso mais coragem" .(...)

Já aqui falámos de Vi(c)torino Costa, Victorino Domingos Costa, irmão de Manuel Saturnino da Costa (, futuro primeiro ministro da República da Guiné-Bissau), que foi morto, numa emboscada em 1962, antes do início oficial da guerra, por um grupo da CCAÇ 153, comandado pelo Cap Inf José Curto, na região de Quínara, nas proximidades de Darsalame.

Sobre esta época, de 1962, em que o PAIGC começou a fazer trabalho de formação político-militar, sobretudo nas regiões de Quínara e de Tombali, sabemos ainda muito pouco. Faltam os testemunhos, orais e escritos. Faltam os relatórios. Faltam as fotos. De resto, era ainda escassa a presença do exército português. Por tudo isso, é um período que se presta à especulação. O filme do George Freire ainda  mostra uma Guiné relativamente idílica, calma, tranquila, onde se pode viver e viajar tranquilamente, em segurança, nomeadamente no leste, no chão fula. Mas por quanto tempo ? Quando deixa Nova Lamego e é colocado em Bedanda, em novembro de 1962, com a sua 4ª CCAÇ, o cap Jorge Freire ainda leva consigo a esposa. Mas em dezembro ela é obrigada a regressar a Portugal, por razões de segurança. O que se terá passado ?

Tudo indica que o comandante Vitorino Costa terá morrido  na sequência de uma "acção punitiva" do nosso exército, depois de um conhecido comerciante de Empada ter sido assassinado barbaramente na estrada, no regresso de Darsalame para Empada.

Vitorino e Manuel Saturnino são dois dos históricos militantes enviados para a China para receber treino político-militar, juntamente com João Bernardo Vieira (Nino), Francisco Mendes, Constantino Teixeira, Pedro Ramos, Domingos Ramos, Rui Djassi, Osvaldo Vieira e Hilário Gomes, tendo sido recebidos pelo "grande timoneiro", Mao Zedong, em 1961.

Da leitura da carta que acima reproduzimos, dá para entender que Vitorino Costa era um homem muito próximo de Amílcar Cabral e que a sua morte foi sentida como um sério revés para a guerrilha, em preparação. Também Bobo Keita se refere ao seu nome, na sua biografia "De campo em campo", escrita por Norberto Tavares de Carvalho, ed. autor, 2011 É um dos seus vinte camaradas que morreram de morte violenta, e que ele evoca, no final do seu livro (p. 237):

(...) "Victorino Costa era responsável pela mobilização da zona de Quínara, Fulacunda, Tite, S. João.  Em plena campanha de recrutamento, foi pernoitar numa tabanca cujo chefe colaborava com os portugueses. (...) foi denunciado. (...)"

Não encontrei fotos de Vitorino Costa no Arquivo Amilcar Cabral que, em boa hora, passou a estar disponível, para consulta, a partir de 20 de janeiro de 2013.

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Nota do editor:

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9512: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (1): O caso de Buruntuma e o ultimatum de Bobo Keita, comandante do PAIGC


p. 222




p. 223


p. 224

 p. 225




p. 226

Reprodução de excertos do livro de Norberto Tavares de Carvalho, De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita. Edição de autor, 2011, pp.  222-226. Sublinhados, a vermelho, de L.G.



Capa do livro de Norberto Tavares de Carvalho, De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita. Edição de autor, Porto, 2011, 303 pp. (Impresso na Uniarte Gráfica, SA; depósito legal nº 332552/11). Posfácio de António Marques Lopes.


1. Os acontecimentos acima referidos por Bobo Keita (ou Queta) passam-se com as NT estacionadas em Buruntuma (sector de Pirada), mas também na Ponte Caium (que dependia do batalhão de Piche). Os interlocutores portugueses aqui referidos deveriam ser o capitão de Buruntuma e o tenente-coronel que comandava o batalhão sediado em  Piche (já que o destacamento de Caium dependia de Piche).

Em 25 de Abril de 1974, havia o batalhão,  com comando e sede em Pirada, era o BCAV 8323/73: mobilizado pelo RC 3, partiu de Lisboa em 22/9/1973 e regressou a 10/9/1973. Comandante: ten cor  cav Jorge Edurado Rodrigues y Tenório Correia Matias.

Deste batalhão faziam parte:  

- a 1ª C/BCAV 8323/73, que guarnecia Bajocunda (Comandantes: Cap Cav Ângelo César Pires Moreira da Cruz; Cap MIl Cav Fernando Júlio Campos Loureiro);

- a 2ª  C/BCAV 8323/73, que esteve em Piche, depois Buruntuma e de por fim de novo em Piche. depois da retirada de Buruntuma, em 5 de juolho (Comandantes: Cap Mil Cav Aníbal António Dias Tapadinhas; Alf Mil Cav António Jorge Ramos Andrade);

- e ainda 3ª C/BCAV 8323/73, que esteve (sempre) em Pirada (Comandante: Cap Mil Cav Ernesto Jorge Sanches Martins de Brito).

O batalhão que estava em Piche, em julho de 1974, era o BCAÇ 4610/73, que foi render o BCAÇ 3883 (Piche, 1972/74).  Mobilizado pelo RI 16, partiu para o TO da Guiné em 11/4/1974 e regressou a 14/10/1974. Esteve em Bissau, Piche, Bula e Bissau. Comandantes: ten cor inf Paulo Eurico de Lacerda e Oliveira Martins; ten cor inf César Emílio Braga de Andrade e Sousa.  

Terá sido um destes dois oficiais superiores que terá proferido ameaças ao Carlos Fabião (último Governador da Guiné, de 7 de maio a 15 de outubro de 1974, com-chefe do CTIG, além de representante da Junta de Salvação Nacional na Guiné), a acreditar no depoimento do Bobo Keita. 

 

O BCAÇ 4610/73 era constituído por 3 companhias:

- 1ª C/BCAÇ 410/73: esteve em Camajabá, Piche, Bissau, Nhamate e Bissau. Comandante: Cap Mil Inf Manuel Cunha Pereira Machado;

- 2ª C/BCAÇ 410/73: esteve em Camajabá, Piche, Bissau, Tite e Bissau. Comandante: Cap Mil Inf José Emídio Barreiros Canova;

- 3ª C/BCAÇ 410/73: esteve em Piche, Bula e Bissau. Comandante: Cap Mil Inf Marcos António Blanch Machado.

Buruntuma foi a primeira guarnição da zona leste a ser desocupada pelas NT e ocupada de imediato pelo PAIGC, por  uma força comandanda pelo Bobo Keita, em 5 de julho de 1974. Camajabá e Canquelifá foram desocupadas a seguir, a 6 e a 7 de julho, respetivamente. 

As restantes guarnições do leste só foram desativadas em Agosto e Setembro, respeitando os planos de retração do nosso dispositivo militar (aprovado pela 3ª Rep/QG/CCFAG) :  

Madina Mandinga (20 de agosto), 
Paunca (21), 
Bajocunda (22), 
Pirada (25), 
Piche (25), 
Saltinho (27), 
Cancolim (1 de setembro), 
Contuboel (2), 
Fajonquito (2), 
Nova Lamego (4), 
Galomaro (5) 
e Bafatá (7).

Também faziam parte da "zona leste", tal como o Saltinho, Galomaro e Cancolim, mas aparecem na "zona sul" (, no relatório da 2ª rep, certamente por lapso, ) as seguintes guarnições: Mansambo (2 setembro), Bambadinca e Xime (9 de setembro).

Os fatos acima relatados pelo Bobo Keita são confirmados pelo relatório da 2ª rep. O ultimatum de Bobo Keita às NT em Buruntuma é vista uma clara violação ao acordo de cavalheiros estabelecido pelas NT e o PAIGC no que respeito à retirada, planeada, ordenada e concertada (a nível local), dos nossos aquartelamentos e destacamentos. Alega-se que Bobo keita estaria "mal esclarecido" sobre esse acordo e os seus trâmites. Por outro lado, as instalações das NT eram particularmente apetecidas pelos combatentes do PAIGC, na zona leste, mais árida, com menos vegetação do que no sul, e em plena época das chuvas. No relatório da 2ª rep, diz-se explicitamente que o comportamento indisciplinado dos homens de Bobo Keita se devia também, em parte, ao facto de serem "periquitos", de serem novos na região e na guerrilha, viverem em condições precárias e estar-se na época das chuvas.

Por outro lado, o capitão de Buruntuma deveria ser Cap Mil Cav Aníbal António Dias Tapadinhas (que, por curiosidade,  foi camarada do nosso camarigo A. Marques Lopes, no 2° Pelotão da 3.ª Companhia do Curso de Oficiais Milicianos do 1.º turno/janeiro de 1966, na EPI, Mafra).

 



Reprodução de um excerto das pp. 52/53 do Relatório da 2ª Rep / CCFAG: de 1jan73: relativo ao período de 1jan73 a 15out74 (*)


Confirma-se que a força do PAIGC que cercou Buruntuma era comandada Bobo Queta (ou Keita), sendo Eduardo Pinto muito provavelmente o comissário político. Nas entrevistas nunca é referido, por Bobo Keita, o nome de Eduardo Pinto. No supracitado relatório, avança-se com a tese da existência de 2 linhas dentro do PAIGC, no que diz respeito ao processo de transferência de soberania: (i) uma mais dura, que se manifestou no leste (com as pressões sobre Buruntuma, Canquelifá, Dunane, Camajabá, mas também Madina Mandinga, Dara, Pirada, Bajocunda, além das barragens de controlo das nossas colunas militares) e que foi protagonizada por Bobo Keita; e (ii) uma linha mais conciliatória e sensata, que terá sido seguida no sul.

Apesar de "todo o processo de retração do dispositivo e desocupação dos aquartelamentos das NT" ter sido "fértil em diferendos com os grupos das FARP ocupantes" (veja-se o caso de Buruntuma),   foi sempre possível evitar incidentes de maior, recorrendo-se ao diálogo em vez da confrontação direta. Em suma, imperou o bom senso e fez-se valer a capacidade de negociação e comunicação das duas partes.

Bobo Keita acabou por ser 'desautorizado'  por Aristides Pereira e por 'Nino' Vieira, que reprensentavam o poder político a que se deviam subordinar os operacionais do PAIGC. (Vd. a pp. 197/198, do livro do Norberto Tavares de Carvalho,  as apreciações críticas que o Keita faz sobre os defeitos de caráter do 'Nino'). 

Recorde-se, por outro lado,  que Bobo Keita é um dos três comandantes que integram a delegação do PAIGC na primeira ronda de negociações de paz em Londres (de 25 a 31 de Maio) e depois em Argel (13-14 de junho): ele representava a Frente Leste, os outros comandantes eram o Lúcio Soares (Norte) e o Umaru Jaló (Sul). O chefe da delegação era o Pedro Pires. Entretanto, a 8 de setembro Bobo Keita é o primeiro a entrar em Bissau com os seus homens (não sabemos quantos), vindos do leste. Aqui, e até à partida do último governador português do território, em 13 de outubro, a relação do Bobo com as NT parece ter sido correta e até cordial. 



Reprodução de um excerto da pág. 51 do relatório da 2ª rep (*)

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de

15 de fevereiro de 2012 >
Guiné 63/74 - P9486: Situação Militar no TO da Guiné no ano de 1974: Relatório da 2ª REP/QG/CTIG: Transcrição, adaptação e digitalização de Luís Gonçalves Vaz (Parte VIII): pp. 37/46

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9505: Memória dos lugares (176): Buruntuma, lá no "cu de Judas"...




Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Carta de Buruntuma (escala 1/50 000)> 1957  > Detalhe > A estrada, a vermelho, que se vê no mapa, atarvessava todo o leste, desde o Xime, Bambadinca, Bafatá, até Nova Lamego, Piche e Buruntuma (na fronteira com a República da Guiné-Bissau). O aquartelamento (e povoação) de Buruntuma foi ocupado pelo PAIGC em 5 de julho de 1974.


1. Escreveu Luís Graça em comentário ao poste P9499:


(...) "O caso de Buruntuma merece um poste com destaque para a destemperada atuação do comandante da Frente Leste, o antigo futebolista Bobo Keita (ou Queta), de que já aqui falámos diversas vezes, a propósito do livro de Norberto Tavares de Carvalho ("De campo em campo: conversas com comandante Bobo Keita", edição de autor, 2011).


"O Bobo Keita tinha feito parte da delegação do PAIGC, na 1ª ronda de negociações de paz, em Argel... Depois de Argel, regressou à Frente Leste. E deve-lhe ter subido à cabeça a mania do protagonismo...


"Aqui, no leste, foi claramente 'mais papista que o Papa'", passando a perna à direção política do PAIGC. Foi ele quem teve a iniciativa de (i) colocar barragens para controlos dos nossos veículos militares, nas estradas do leste, (ii) forçar a desocupação do quartel de Buruntuma... para além de (iii) ter resolvido, através do terror (3 fuzilamentos e diversas prisões), um conflito em Paunca com mílicias (ou não seriam antes os militares da CCAÇ 11 ?)...


"Ele próprio reconheceu, antes de morrer, na altura em que foi entrevistado para o livro, que a chantagem feita aos tugas de Buruntuma era mero bluff, que não era sua intenção atacar nenhum quartel...


"A verdade é que este homem podia ter originado uma tragédia de consequências imprevisíveis e incalculáveis... A sua atitude de fanfarrão obrigou à intervenção pessoal do Fabião e do Juvêncio Gomes (delegado do PAIGC em Bissau)...


"Veja-se o seu depoimento nas pp. 222 e segs."


2. Disse o cor cav Carlos Matos Gomes:


(...) "Pois. Porque Buruntuma era o pior sítio da Guiné. Aliás, quando lá esteve o general Schultz, Buruntuma era o 'cu de judas' da Guiné. É no vértice superior direito do [mapa] e era, de facto, um buraco infecto onde os soldados deviam pedir aos inimigos para os mandarem embora. [Apartes sobre Buruntuma e a sua localização] ".


[In: Arquivo de História Social. [Em Linha] ICS -Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2011. Estudos Gerais da Arrábida: A descolonização portuguesa: Painel dedicado à Guiné (29 de Agosto de 1995). Depoimentos do General Mateus da Silva, Coronel Matos Gomes, José Manuel Barroso e  Coronel Florindo Morais. [Consultado em 18 de fevereiro de 2012]. Disponível em http://www.ahs-descolonizacao.ics.ul.pt/docs/guine_1995_08_29.pdf ]


3. Temos poucas referênicas a Buruntuma. Menos de duas dezenas. Temos poucos camaradas que lá tenham estado ou por lá tenham passado. Conheci um, em tempos, ex-operário da Sorefame, na Falagueira. Falámos de Buruntuma num dia que, por acaso, era o Dia Mundial da Poesia. O Carlos Matos Gomes, por seu turno,  chama-lhe o "cu de Judas da Guiné". 


Não sei, nunca lá estive. Mas ouvi dizer, ouvi contar histórias... Eu estava na outra ponta da zona leste. E como a Guiné era pequena, 36 mil quilómetros quadrados, 8 mil de água, 28 mil de terra!... (Ou não era assim tão pequena quanto isso ?!). Não, nunca fui a Buruntuma.  


Procurei na Net.  Encontrei, no nosso blogue, o nosso camarada Luís Guerreiro, ex-Fur Mil, emigrado no Canadá, que andou um mês por terras de Buruntuma com o seu Pel Caç Nat 65, "Os Leões Negros", no 1º trimestre de 1970... E de Buruntuma tenho aqui uma foto dele, junto à capela, ao pau da bandeira e aos monumentos das companhias que por lá passaram... É pena que seja em formato pequeno, e portanto tenha fraquíssima resolução...


Na Net, e num blogue de família, encontrámos duas fotos de 1973: são de um camarada que vive no Porto, Manuel Cortez Lopes. Espero que ele, e o editor do blogue, não levem a mal a reprodução das imagens... É por uma boa causa. E, por outro lado, talvez alguém se lembre deste camarada, que pertence à família Cortez..







Manuel Cortez Lopes, Buruntuma, 14 de Junho de 1973 ("ao fundo, a República da Guiné Conakri")


[In: Blogue Família Cortez >  15 de fevereiro de 2011 > Manel, 1973. Reproduzido com a devida vénia...]
 
Quem também passou por Buruntuma, mas nos primórdios da guerra, em 1962, foi o nosso camarada Alberto Nascimento. É um dos velhinhos do nosso blogue, ainda do tempo da Mauser e do caqui amarelo... 


Que estas imagens, e estas referências, despertem ao menos a curiosidade e a vontade de mais camaradas, enriquecendo o nosso arquivo de memórias sobre este topónimo... Buruntuma era mesmo no "cu de Judas" ? (LG)


Guiné > Zona leste > Região do Gabu > Buruntuma > CCAÇ 84 > Fevereiro ou Março de 1962 > "Na zona dos Bucurés, a malta da companhia, com a G3"




Foto (e legenda(: © Alberto Nascimento (2008). Todos os direitos reservados.



  _______________
 
Nota do editor:
 
 Último poste da série > 8 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9459: Memória dos lugares (175): Gadamael em 1969 (Luís Guerreiro)

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9365: O último Chefe do Estado-Maior do CTIG, Cor Cav Henrique Gonçalves Vaz (Jan 1973/ Out 74) (Parte V): 'Decifrado' o nome do comandante do PAIGC, Bobo Keita (Luís Gonçalves Vaz)

1. Mensagem de hoje, do nosso tabanqueiro Luís Gonçalves Vaz:

Data: 17 de Janeiro de 2012 16:24

Assunto: Esclarecimentos da nota do Coronel Henrique Vaz do dia 11 de Outubro de 1974

Caro Sousa de Castro, caro Luís Graça:


Consegui "decifrar" dois dos nomes dos Comandantes do PAIGC que reuniram com o meu pai no dia 11 de Outubro de 1974, para planearem a entrega de Aquartelamentos ao PAIGC. Como tal peço-vos o favor de substituir a nota em questão (*) pela seguinte:

Bissau, 11 de Outubro de 1974

"... Tivemos às 15H00, na Amura uma reunião com os comandantes do PAIGC, comandante Gazela, comandante BOBO KEITA e o comandante ... (... do próprio) Correia, sobre a entrega dos quartéis de Sta Luzia e outros. ..."

"... Fomos jantar ao Palácio, julgo que todos ou a maioria dos oficiais do Quadro Permanente presentes na Guiné. Jantar volante, simpático e descontraído, num ambiente alegre e ... . Anedotas contadas pelo Coronel Lemos e pelo Major Lemos Alves. ..."

Coronel Henrique Gonçalves Vaz

(Chefe do Estado-Maior do CTIG)
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Nota de LGV:

Comandante BOBO KEITA: Fez parte de todas as delegações do PAIGC que negociaram o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau, depois do 25 de Abril. Morreu em Lisboa em Janeiro de 2009.

Comandante GAZELA:  Cabral de Almada, conhecido por "Comandante Gazela" (na nota do coronel Henrique Vaz só o refere como GAZELA)


Abraço
Luís Beleza Vaz (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 DE DEZEMBRO DE 2011 > Guiné 63/74 - P9203: O último Chefe do Estado-Maior do CTIG, Cor Cav Henrique Gonçalves Vaz (Jan 1973/ Out 74) (Parte III) (Luís Gonçalves Vaz): Set / Out 1974


(**) Último poste da série > 5 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9317: O último Chefe do Estado-Maior do CTIG, Cor Cav Henrique Gonçalves Vaz (Jan 1973/ Out 74) (Parte IV): Agosto de 1974: ainda o caso do BCAV 8320/72 (Bula, 1972/74) (Luís Gonçalves Vaz)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9259: Notas de leitura (315): De Campo em Campo, por Norberto Tavares de Carvalho (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 21 de Dezembro de 2011:

Viva Carlos,
Envio ao teu critério a minha breve opinião sobre a interessante biografia de Bobo Keita, que li por gentileza do Virgínio Briote.

Para ti e para o Tabancal envio um abraço com votos de Boas-Festas.
JD


Li no Blogue a extensa recensão sobre a biografia de Bobo Keita, um comandante do PAIGC, que resultou do conjunto de conversas com Norberto Tavares de Carvalho, autor da edição. Aquela amostragem no Luís Graça e Camaradas da Guiné, estendeu-se por três episódios e, talvez fruto da extensão, não terá sensibilizado os leitores para a excelente exposição feita sobre aquele partido, tendo em conta que deriva das lembranças de quem viveu o período colonial e, por via disso, juntou-se ao movimento emancipalista, participou na organização e em acções de guerra, tendo atingido um lugar de destaque na estrutura e, portanto, revela variados momentos e acontecimentos que contribuem para uma melhor avaliação histórica.

Sensibilizou-me a correcção dos discursos em relação à potência colonial, sem preconceito, sem ódio nem azedume, até com uma ingénua simplicidade, como quando se refere à ausência de direitos de uma grande parte da população - os gentios - que, no seu caso, por não ter nome de aculturado, não podia ter bilhete de identidade e, em consequência, não podia frequentar a escola. Disse-o sem rancor ou qualquer animosidade, embora aqueles gentios, sob aquele regime, estivessem sujeitos a perpétua subalternidade e impossibilitados de serem parte em actos administrativos. Não eram escravos, mas eram ostracizados. O regime viria a corrigir a situação mais tarde, para todo o território ultramarino, provavelmente em consequência da evolução social e política, mas também para dar resposta ao crescimento do bem estar e ao estabelecimento de novas formas comerciais.

Valeu-lhe uma missão católica e o bom padre que lhe deu o nome de Henrique dos Santos Keita, para que tivesse tido oportunidade para frequentar a escola, que iniciou aos nove anos. As conversas revelam que o jovem não só estudava, como se iniciava na aprendizagem e ajuda à profissão de alfaiate que o pai exercia. E porque o pai era muçulmano, dificultava-lhe a vida aos domingos para que o Bobo não tivesse oportunidade de frequentar a igreja, preocupação de que sairia aliviado, quando expôs a questão ao mesmo padre que o dispensou das missas e lhe permitiu concluir os estudos primários em condições de alguma normalidade. Hoje, adultos, devemos levar em consideração a influência destes acontecimentos na formação moral e ética de um jovem, que correu contra a exclusão na sua própria terra.

Outra nota muito subtil sobre a formação do carácter e o determinismo pessoal, aconteceu quando o Bobo já era ídolo na cidade de Bissau. De facto, enquanto estudava e ajudava o pai, também praticava futebol e desenvolveu habilidades que o levaram ao Benfica local (apesar de ser o Sporting o clube do coração). Aos dezassete anos, para representar a selecção da Guiné, deram-lhe nova identificação com a idade de dezoito, e passou a deslocar-se para participações em torneios africanos. Aos jogadores era destinada uma pequena verba, talvez para despesas de representação ou pequenos gastos pessoais, com a qual os dirigentes se locupletavam. Reclamavam os futebolistas, mas não havia nada a fazer. Até que num torneio, no Gana, em 1959, que celebrou a independência da antiga colónia britânica com a designação de Costa do Ouro, o presidente Nkrumah exaltou a libertação dos povos oprimidos. Mais tarde, sobre uma deslocação à Nigéria, refere: "no balneário e no hotel, começámos a reflectir nas nossas condições de existência em relação aos outros futebolistas com que nos cruzávamos nesse torneio internacional de Lagos". "Começámos então a manifestar a nossa insatisfação , a acantonar-nos numa certa reserva em relação aos dirigentes da selecção". E o cachet, nicles! Numa deslocação seguinte à Gâmbia os jogadores ameaçaram não participar se não lhes dessem o dinheiro. Em consequência dessa actitude colectiva foram chamados à PIDE que os intimidou, uma prática da "justiça" dominante.

Nesta senda, Bobo e alguns companheiros de futebol decidem abalar para Conakri onde se modelava a oposição. Não foi um guerrilheiro romântico que saiu de Bissau, mas um jovem conhecedor das duas faces da vida que, apesar de se estar a afirmar como futebolista, continuava a sentir as dificuldades da ascendência humilde, em termos que lhe feriam a dignidade. Nem por isso, no entanto, deixa escapar qualquer expressão de ódio ou desprezo em relação aos portugueses. E é também sem qualquer traço de soberba, insulto ou desdém, antes, consciencioso e com sentido das responsabilidades, que Bobo vai fazer o seu exercício de memórias sobre a guerra pela independência.

Sobre o congresso de Cassacá confirma as razões da convocatória e a aplicação da lei marcial. Parece-nos brutalidade (e foi), mas quantos de nós ainda hoje não manifestamos vontade de pendurar em postes públicos ou nos pelourinhos os corruptos de Portugal? Faz-nos descrições interessantes sobre a vida no mato, e nas chamadas zonas libertadas (aquelas onde os portugueses bombardeavam e só passavam em percursos operacionais), bem como os relatos de vários episódios de graça e de guerra, e histórias de intrigas no seio do partido, ou de contactos com os portugueses, quase todas caldeadas de informações complementares e esclarecedoras.

Relativamente à morte de Cabral, Bobo conta-nos sobre a percepção do líder relativamente ao atentado, e a sua convicção (de Bobo) sobre a responsabilidade partilhada por Inocêncio Cani (que iria substituir no comando dos blindados), Mamadu Injai, Momo Turé (primo do Bobo) e Aristides Barbosa, todos concominados com a PIDE, que pretendia a captura dos líderes, e apostava na divisão étnica entre guineenses e cabo-verdianos, e revela o forte indicio de Inocêncio (o autor do primeiro tiro) ao comandar um barco em fuga para Cacine com Aristides Pereira prisioneiro e escondido a bordo. Foi apanhado em Boke, aparentemente para se reabastecer de combustível ou vingar-se de José Pereira que o denunciara de mau carácter. "Os cabo-verdianos estiveram ali nas frentes de combate durante todo o período da luta", refere Bobo desmistificando teorias elitistas no PAIGC relativamente aos guineenses. "Os que defendem esta tese, ou fazem-na de propósito para criar a divisão entre guineenses e cabo-verdianos ou então não conhecem a história da luta". Ora, neste capítulo, dá-se conta de algumas tentativas para eliminação de Cabral.

À morte de Cabral o partido reagiu e declarou a independência, enquanto recebia novos equipamentos para a prossecução da guerra. De entre esses destacaram-se os mísseis Strela. Reorganizados e reequipados, levaram a cabo a operação "Amílcar Cabral". "Lá onde não podiam pôr os pés, porque a guerrilha estava presente em força, mandavam os seus aviões que lançavam bombas semeando o pânico e a destruição para depois fazerem avançar os seus soldados ao assalto, protegidos por tanques blindados e helicópteros de combate. A correlação de forças encontrava-se desequilibrada e a favor deles. Por isso é que a nossa luta durou tanto. Mas na operação multi-direccionada (Guileje-Copá-Guidaje) o uso massivo e sem recuo de canhões de artilharia, foguetões e morteiros fizeram oscilar a balança". E acrescenta sobre a evolução na formação militar: "Com a aquisição da nova força das armas, do cálculo dos artilheiros, muitos de nós certificámo-nos ainda mais de que não eram os 'mésinhos' que determinavam as nossas vidas ou mortes. Compreendemos que uma vez que a bala mortal rompesse a pele e se incrustasse na carne não havia remédio algum que possa salvar. Vi qual era o valor das trincheiras, dos abrigos, do amontoamento de areias à volta das bases". "O primeiro reflexo do guerrilheiro que antes era pôr-se de pé e disparar a peito nu contra o inimigo, confiante no 'mésinho' pendurado à volta do pescoço ou nas coxas... passou a ser a escavação de abrigos, a formação de montes de terra para se proteger do assalto inimigo, a codificação do espaço, a disciplina quotidiana, uma maior concentração nos indícios, a melhor utilização do terreno geográfico, etc.. Éramos combatentes e não feiticeiros ou jambacuses".

Bobo também se refere ao protagonismo e aos privilégios de Nino durante o período da luta, e não lhe foi simpático.

Spínola, o "desmancha prazeres". "É verdade. ...Mas não se esqueça que à frente dele estava também um dos mais prestigiados líderes da revolução africana, Amílcar Cabral! E o braço de ferro entre eles, apesar da morte de Cabral, saldou-se na derrota de Spínola, que acabou por reconhecer que tudo o que fez na Guiné não deu resultado, não conseguiu vencer-nos". Repare-se na delicadeza de trato deste comandante relativamente ao mais famoso adversário. E tece a seguinte consideração: "Spínola estava numa perfeita contradição entre a sua visão neocolonialista de uma autodeterminação e independência da nossa terra debaixo da bandeira de Portugal e o estado avançado em que a luta do Partido se encontrava e de onde já não podíamos recuar". Poderiam os portugueses ter rebatido? Acho que sim, e hoje sabemos de algum abrandamento diplomático dos países ocidentais contra Portugal, mas os portugueses não souberam tomar em tempo devido as medidas aglutinadoras, e cansaram-se da guerra.

Parece um depoimento sério, que aborda várias questões que rivalizaram o PAIGC com Portugal, antes, durante e depois do período da "luta". Não escamoteia o confronto com outras teses conhecidas, antes contribui para novas abordagens sobre essas relações entre duas partes que se reclamavam da legitimidade para governar o povo da Guiné. Aconteceu, porém, que os portugueses desistiram, e Bobo, que comandou a frente leste depois do 25 de Abril, apressou a retirada dos portugueses daquela região, com recurso a estratégias que aproveitavam a desorganização e "desmobilização" da tropa metropolitana.
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Notas de CV:

Vd. postes da recensão deste livro feita por Luís Graça, de:

24 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8941: Notas de leitura (290): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho

25 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8947: Notas de leitura (292): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte II): Futebol e Nacionalismo (Nelson Herbert / Luís Graça)

27 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8952: Notas de leitura (294): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte III): Cupelom, Pilum, Pilom, Pilão..., um bairro que dava de tudo, fervorosos muçulmanos, bajudas giras, futebolistas talentosos, destacados militantes do PAIGC, bravos comandos africanos... (Luís Graça)

29 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8961: Notas de leitura (296): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte IV): Os 'Portuguis Nara' de Boké e de Conacri (Luís Graça)
e
31 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8968: Notas de leitura (297): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte V): Início desastrado e desastroso da luta de guerrilha no chão fula, em 1963 (Luís Graça)

Vd. postes da recensão deste livro feita por Mário Beja Santos de:

5 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9137: Notas de leitura (308): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (Mário Beja Santos)
e
9 de Dezembro de 2011 Guiné 63/74 - P9162: Notas de leitura (310): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (2) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9254: Notas de leitura (314): Recortes da História da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)