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sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24905: Notas de leitura (1640): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
Graças à disponibilidade do nosso confrade José Matos, que me facilitou uma cópia do segundo volume de o Santuário Perdido, inicia-se hoje, e com adaptação ou tradução livre o segundo volume, recentemente dado à estampa. Estamos em 1966, dá-se conta das tremendas dificuldades na operacionalidade da Força Aérea, o PAIGC alargou a sua área de atuação, crescem os efetivos das nossas Forças Armadas, numa tentativa de contrariar as hostilidades, as flagelações, a decomposição económica, a concentração das populações em destacamentos ou aldeamentos em autodefesa. Os autores, na introdução, contextualizam a situação militar e dão um quadro nada risonho do dispositivo da FAP. Como fizemos com o primeiro volume, vamos publicando em pequenas doses, até porque o livro de Hurley e Matos vem profusa e adequadamente ilustrado.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (1)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Contracapa do segundo volume
Texto da contracapa:

De 1963 a 1974, Portugal e os seus inimigos nacionalistas travaram uma guerra cada vez mais intensa pela independência da Guiné “portuguesa”, então uma colónia, hoje a República da Guiné-Bissau. Durante a maior parte do conflito, Portugal desfrutou de uma supremacia aérea praticamente incontestada e baseou cada vez mais a sua estratégia militar e o seu programa de pacificação política na singularidade desta vantagem. A Força Aérea Portuguesa (abreviadamente FAP) desempenhou de forma consequente um papel nevrálgico na guerra da Guiné. Com efeito, durante todo o conflito, a FAP – apesar dos muitos desafios que teve de enfrentar – provou ser o operacional militar mais eficaz e rápido contra o PAIGC, a força de guerrilha que lutava pela independência.

A guerra aérea pela Guiné representa um episódio notável na história do poder aéreo e por várias razões. Por exemplo, foi o primeiro conflito em que uma força de guerrilha utilizou misseis terra-ar. Além disso, o nível em que Portugal dependia do seu poder aéreo era tal que a sua neutralização contundente condenou a estratégia militar na região.

Em última análise, as perdas inesperadas da FAP em combate deram origem a uma cascata de efeitos que acabaram por mitigar a sua própria iniciativa operacional; a eficácia no campo de batalha das forças terrestres estava, até então, bastante dependente do apoio aéreo, era em si um apoio moral e psicológico e assegurava resiliência aos militares portugueses.

A guerra aérea na Guiné portuguesa representa assim uma ilustração convincente do valor – e das vulnerabilidades do poder aéreo, num contexto de guerra de guerrilhas, bem como dos impactos negativos que havia numa confiança excessiva na supremacia aérea.

Este é o segundo de três volumes da minissérie Santuário Perdido, examina a evolução do poder aéreo português e dos sistemas que a guerrilha instalou durante os anos mais ativos do conflito, isto à medida que ambos os lados procuravam meios e métodos para contrariar os esforços do outro. A obra está profusamente ilustrada com fotografias originais e inclui obras de arte a cores, especialmente encomendadas.
Índice
Abreviaturas
Hierarquia militar de oficiais e sargentos


Capítulo 1: Um Comando “Desconfortável”

“O comando que me foi confiado não era ‘confortável’. Era necessário começar por reformar atitudes de espírito, lutar contra rotinas viciosas e criar uma máquina de guerra tão eficiente quanto possível, com os meios disponíveis.” (Coronel José Krus Abecasis, comandante da Zona Aérea da Guiné, 1965-67).

Em meados de 1966, a guerra na Guiné já estava no seu quarto ano e não alcançara os resultados previstos por Lisboa. Apesar do constante aumento de efetivos militares, após a eclosão da luta armada em janeiro de 1963, a guerrilha do PAIGC representava um desafio cada vez mais ousado ao domínio colonial português.

O PAIGC estava altamente motivado, habilmente liderado e cada vez mais bem armado. No verão de 1966 o PAIGC tinha recuperado das perdas sofridas durante as primeiras contraofensivas portuguesas e desencadeou uma contraofensiva de assédio militar a quartéis, destacamentos e aldeamentos em autovigilância, impôs perturbação económica em todo o território, contou com uma mobilização popular que se acolhia em áreas fronteiriças ou em determinados pontos dentro da colónia. Num relatório datado de julho desse ano, Arnaldo Schulz, governador e comandante-chefe das forças armadas na Guiné, escrevia num relatório que o inimigo persistia em ampliar as suas áreas de ação: “Não parece que lhe faltem recursos em termos de armas e munições e não há sinais de que a sua mão de obra se tenha reduzido.”

Nos dois anos anteriores, a atividade do PAIGC conhecera uma constante intensificação, especialmente no Sul, aí estava mais fortemente instalado e propagandeava o controlo de 50% de toda a Guiné. A pequena, inóspita e pobre de recursos Província Ultramarina era tida como o remanescente menos valioso do legado colonial de 500 anos de Portugal. Com efeito, desde a abolição do comércio atlântico de escravos, a Guiné tornara-se um défice permanente para o tesouro português, tinha apenas valor para um punhado de empresas que obtinham lucros com o cultivo do amendoim e do coconote. Apesar deste potencial económico anémico, e de haver um número insignificante de europeus ali a viver, o agravamento da situação representava a mais ameaça militar à continuação do domínio português no seu império, Arnaldo Schulz informou um oficial superior, em agosto de 1966, “se é verdade que a guerra do Ultramar não pode ser ganha na Guiné pode, por outro lado, ser completamente perdida lá.”

Para reprimir a luta armada em expansão, o efetivo das tropas mais que duplicou entre 1963 e 1966, passando de 9650 militares para 20.801, incluindo contingentes de forças especiais, como Comandos, Paraquedistas e Fuzileiros. As forças terrestres na Guiné, no entanto, sofriam de deficiências cronicas em preparação, equipamento e moral, comparativamente aos elementos da guerrilha, perfeitamente adaptados ao terreno e à vida no mato, bem adestrados para este tipo de guerra e dispondo de uma competente direção operacional, isto de acordo com uma avaliação feita em agosto de 1966 pelo general Venâncio Deslandes. Numa tentativa de corrigir este desequilíbrio, Deslandes considerava necessário criarem-se unidades especializadas de artilharia e impulsionar o rearmamento da Marinha, as embarcações navais deviam de expor de fogo intimidador e de apoio às forças terrestres; mas concluía a sua análise dizendo que “a forma mais simples e possivelmente mais rápida de atingir esse objetivo será o reforço do poder aéreo.”

O reforço aéreo iniciara-se em 1963, e daí a 1966 o número de aeronaves atribuídas à Guiné aumentou de 32 para 50. Número enganador, desmentido pelas deficiências sistemáticas que paralisavam a Força Aérea Portuguesa: escassez crónica de pilotos e pessoal de manutenção, insuficientes instalações de base e uma permanente falta de peças sobressalente e munições, isto de acordo com o coronel José Duarte Krus Abecasis, comandante da zona aérea de Cabo Verde e Guiné até janeiro de 1967. Havia escassez de motores para três aeronaves de transporte, os C-47 Dakota, apenas um estava operacional de forma confiável para operações em todo o país. Nesse ano de 1966 teve dificuldades de manutenção, com falhas mecânicas e escassez de peças que se refletiu na capacidade de a Força Aérea abastecer as forças terrestres. Depois de muitos protestos por parte dos oficiais da Força Aérea, a situação tendeu a melhorar no outono de 1967, mas sempre com incumprimentos. De acordo com o secretário-de-Estado para a Aeronáutica, Fernando Alberto de Oliveira, em 1968, “A Força Aérea não estava em condições de realizar regularmente todas as atividades de apoio que por leis lhes competia em exclusividade".

Os aeródromos e instalações conexas revelaram-se inadequados durante a primeira fase da guerra. A instalação principal da FAP e a sede da Zona Aérea em Bissalanca nem sequer fora designada como base aérea permanente, só o foi depois de maio de 1965, dois anos e meio após o início da luta; até então serviu como uma base de aeródromo de segundo nível. Mesmo quando mudou de nome para Base Aérea 12, necessitava de pessoal adequado, alojamento e abrigos para acomodar as novas aeronaves que chegavam ao longo de 1966. As defesas aéreas da base foram consideradas “irrelevantes” apesar do punhado de canhões obsoletos de 40 mm e 12,7 mm atribuídos ao único pelotão aéreo da BA12.
Instalações da Força Aérea Portuguesa na Guiné e Cabo Verde, 1961-1975 (Matthew M. Hurley)
Uma unidade do PAIGC no Sul da Guiné (Arquivo da Família Cristiana)
Arnaldo Schulz, governador e comandante-chefe das Forças Armadas, 1964 a 1968 (Coleção de José Matos)
Aquartelamento do Exército português (Coleção de José Matos)
Imagem com alguns meios navais utilizados na Guiné (Coleção Virgílio Teixeira)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24893: Notas de leitura (1639): Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro (1931-1939) - Parte I: a voz dos colonialistas republicanos nostálgicos e exilados

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24881: Notas de leitura (1636): "A Última Lua de Homem Grande", por Mário Lúcio Sousa, romance finalista do Prémio Leya, publicações Dom Quixote, Maio de 2022 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Trata-se de um lançamento recente, recebo das editoras livros solicitados para fazer recensões, que envio para a imprensa escrita. Contudo, tratando-se de matéria que a todos interessa no nosso blogue, atrevo-me a pôr à vossa disposição esta recensão. Romance é romance, Mário Lúcio Sousa é nome conceituado da literatura cabo-verdiana e nosso orgulho na lusofonia, resolveu, em termos de arquitetura da escrita, fazer um registo ficcionado, com muitos dados plausíveis e confirmados, outros puramente fictícios, do último dia de vida de Amílcar Cabral, como num filme rebobinado somos induzidos a percorrer a sua vida, da infância à morte, os seus amores, os seus ideais, as suas desilusões. Pouco apreciador do acolhimento de inverdades, hoje sem qualquer sentido, como a ligação portuguesa ao seu assassinato, de que não ha uma só folha comprovativa de ligação ao complô guineense, rendo-me a esta linguagem portentosa, os sabores de África, a mestria de compor, recompor, torcer e distorcer para que as palavras ganhem vibração e luminisciência, recomendo vivamente esta leitura.

Um abraço do
Mário



Um belíssimo romance, a crónica de uma morte anunciada

Mário Beja Santos

Não há escritor que não seja tentado em comprimir num dia do calendário a vida de um homem, casos há em quem se lança em tal empreendimento produz revolução na escrita, foi o que aconteceu com James Joyce e o seu "Ulysses". Mário Lúcio Sousa também não quis fugir a esse desafio da compressão do tempo e forja a vida de Amílcar Cabral no dia em que passou ao limiar da eternidade, 20 de janeiro de 1973, data do seu assassinato, e assim temos "A Última Lua de Homem Grande", romance finalista do Prémio Leya, publicações Dom Quixote, maio de 2022.

É um enternecimento imiscuirmo-nos em arquitetura só possível na lusofonia, Mário Lúcio Sousa vem na esteira de outros mestres, como Luandino Vieira, Manuel Rui, Pepetela, Paulina Chiziane ou Mia Couto, que nos ensinaram que a língua portuguesa é desdobrável, pode ser desossada e enxertada de sangue novo, há lavores da sua escrita em todos os continentes, não se pode falar de Amílcar Cabral, um construtor de países, dispensando a matriz cabo-verdiana, nem os referentes daquele território em que se viveu uma tenaz luta armada, tão bem sucedida que ajudou a preparar a libertação de povos, a começar pelo colonizador.

O líder está em Conacri, é visível o seu cansaço extremo, obra do romance antevê ser o seu último dia, cogita diante do espelho: “É hoje que me matam, só me falta saber a hora, o lugar, quem vem, e se me tratarão melhor do que um cão”. Não teme o dia fatídico, por fantasia da escrita, o líder do PAIGC, a quem um coletivo de historiadores de todo o mundo reconhece-o como um dos 20 maiores líderes da História da Humanidade, tem pela frente uma derradeira tarefa, “talvez a mais pessoal, escrever os últimos acontecimentos, na fé de que o universo também conspire e, um dia, lhe traga um imparcial e amoroso cronista, para compendiar todas as alegrias, os sofrimentos, os altos e baixos, as traições e as cumplicidades, as verdades e as desmentiras, para que as gerações vindouras possam conhecer a verdadeira história deste homem e o verdadeiro homem desta história. É tudo quanto almeja”.

Adverte-nos o autor que o romance não é um livro de História, “Verdade é tudo aquilo que o autor consegue provar; no romance, verdade é tudo a que o escritor teve acesso”. E diz estar documentado, mas romance é romance, e neste até se poderão proferir insinuações sem base nenhuma, é ressuscitado o mantra do conluio dos matadores com os portugueses, pôde dar jeito nos tempos subsequentes ao assassinato, hoje, com os arquivos disponíveis, nada consta das propaladas ligações, Spínola não mandou matar, Spínola só dispunha das informações do que se passava em Conacri, a crescente crispação entre guineenses e cabo-verdianos, informações que constam dos arquivos da PIDE/DGS, não há nenhum documento nos arquivos do Ministério da Defesa ou do Ultramar, é rotunda mentira que a Marinha portuguesa aguardava a chegada de um barco com os líderes do PAIGC no limite das águas territoriais da Guiné-Conacri.

E como o próprio romance dá conta que estavam envolvidos, direta ou indiretamente, centenas de guineenses, há quem chegue ao cúmulo do disparate de dizer que Momo Touré era o coordenador do complô, complô esse que o próprio autor diz ser um mistério de quem era o mandante, fizeram-se inquéritos, “testemunharam os embaixadores: uma amnésia corrosiva caiu sobre as Guinés, as páginas da inquirição desapareceram, as gravações foram apagadas, os presos foram a bando dados à guerrilha”. Novo inquérito, coordenado pelo PAIGC, o povo perguntou-se para quê mais um se já se sabia quem morreu, quem matou, quando foi e onde. “Mas, o mesmo povo, revoltado e atento, concluiu que sim, que era mistério saber quem eram os assassinantes de punho e letra, porque os carrascos nominados tinham cérebro para matar, mas ciência para argumentar e esconder uma morte não, nem de uma folha, nem de um bicho, quanto menos de um homem que, vivo, era uma lenda e, morto, estava a galopar sem precedente para o seleto limbo dos espíritos sapientes”.

É a crónica de uma vida, dentro desta simulação de que Amílcar Cabral pressagiava tal morte anunciada, é a sua infância, a adoração pela Mãe Iva, como estudou afincadamente em Cabo Verde e ganhou bolsa para Lisboa, com quem aqui conviveu e os seus dilatados amores por Maria Helena, o seu trabalho na Guiné, e até se inventa que dela foi expulso, elemento útil para martirológio, mas nada comprovado, e depois o sonho de libertar Guiné e Cabo Verde, os desafios postos por Conacri pelos partidos rivais, a fundação da Escola Piloto, a preparação dos guerrilheiros, a chegada do armamento, o líder grato pelo acolhimento de Sékou Touré, de repente aparece-nos o responsável pela segurança, Mamadu Ndjai com a preocupação de avisar o major Silva Pais, pois os insurretos dele receberam algures um plano para fazer desaparecer Cabral sem deixar manchas, outro delírio incomprovado, mas que cabe bem na trama do romance. As horas escoam-se, somos instados a acompanhá-lo na sua vida familiar, com a sua mulher e os seus filhos, nesse entardecer o casal irá a uma receção na Embaixada da Polónia.

Súbito, já estamos 8 meses depois do seu assassinato, lá para as bandas do Boé há a cerimónia da declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau, uma das etapas do plano elaborado por ele para encostar definitivamente a potência colonial à parede. E nesta sarabanda de datas estamos no fim do ano de 1973, como habitualmente ele discursou e anunciou o futuro, é um livro que se intermeia de profecias, de avisos, de solilóquios, há até uma misteriosa agenda azul digna de uma intriga da literatura de crime e mistério, jamais se saberá o seu conteúdo, mas fica no ar a sugestão de que ela continha, qual profecia, a matéria do complô e o rol dos matadores e quem coordenava a operação, hoje investigação insondável, tudo parece rasurado e muito provavelmente o(s) cabecilha(s) viajam pelas estrelas.

É uma empolgante viagem de vida, já estamos na receção da Embaixada da Polónia, fazem-lhe perguntas atrevidas, em flashback ele rememora o período em que se pedia a gente amiga armamento, a chegada deste vindo de Marrocos a Conacri e o pânico que se instalou em Sékou Touré de que era armamento para o derrubar em golpe de Estado.

E como na tragédia grega somos encaminhados para o palco do seu assassinato, à porta de casa, é uma narrativa de fúria a que se interpola recordação daquele líder que vai morrer e que amava as crianças, lembra os amores que teve na vida, só espera que os matadores não lhe matem o povo que ele quis libertar, sabe que carregou uma cruz, andou a amainar a divisão entre os guineenses e os cabo-verdianos, está varado no chão com o primeiro tiro, despede-se da vida em vertigem, é um filme que por ali passa, e antes do tiro fatal recita em silêncio o poema que dedicou à Mãe Iva, constante do livro de curso de Agronomia, é o momento do desenlace: “O soldado Bacar dá mais um passo seco para trás. Ele, Homem Grande, sustém o fôlego. O soldado ombreia a arma. Ele, Homem Grande, levanta a cabeça, despede-se do seu amor, dos seus amores”.

A um belíssimo romance como este muito se pode perdoar de insinuações e de mantras que só podem ser úteis na ficção. E Amílcar Cabral é merecedor desta joia literária da lusofonia.

Mário Lúcio Sousa
Amílcar Cabral, pintura de Noronha da Costa
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24868: Notas de leitura (1635): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24852: Historiografia da presença portuguesa em África (394): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
O seu a seu dono, António Carreira continua a ser de leitura obrigatória para quem estuda Cabo Verde e Guiné. Obviamente que as fontes se têm vindo a diversificar e surpresas não faltam. O nosso mais notável geógrafo do século XX, Orlando Ribeiro, encontrou no Arquivo Histórico Ultramarino memórias de António Pusich, alguém natura de Ragusa (Dubrovnik), que conheceu em Turim o nosso ministro, o conde de Linhares, veio para Lisboa, e fez vida em Cabo Verde, onde foi governador, acabou por sofrer as consequências das lutas políticas do seu tempo. Temos nas suas memórias dados importantes sobre o povoamento, caso das ilhas de S. Vicente e do Sal, uma exposição sobre a qualidade do terreno e do clima, a proveniência dos seus habitantes, a divisão dos terrenos e o modo de os cultivar, tem mesmo pormenores bastante curiosos, cinjo-me a uma citação: "A cultura do milho, feijão e abóbora merece o primeiro cuidado destes insulares. A qualidade este fruto não é igual em todas as ilhas, pois o milho das ilhas do Fogo e da Brava é superior ao das outras ilhas, por ser miúdo, mais pesado e mais farinhoso. O feijão de Santiago e de Santo Antão é também melhor que o das outras ilhas e não se corrompe com tanta facilidade. A abóbora é quase igual em todas elas, e é abundante e mui boa." Temos aqui um retrato altamente impressivo para melhor entender os grandes acontecimentos da História de Cabo Verde do século XIX. O país tem uma história de literatura riquíssima, merecia que a conhecêssemos melhor, é nela que se vê despontar a riqueza do sentimento euroafricano.

Um abraço do
Mário



Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné,
Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2)


Mário Beja Santos

A primeira edição de Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), por António Carreira, data de 1972, é uma investigação de arromba que começa nos contratos de arrendamento, os regastes nos Rios da Guiné, referencia lançados, cristãos-novos, como se obtinham os escravos e quais os seus preços, as mercadorias envolvidas, as companhias monopolistas, o povoamento de Cabo Verde e a formação do crioulo, a abolição da escravatura. Trabalho solitário (obviamente com sugestões preciosas de peritos à altura), que o investigador, sempre tão modesto, apresenta como a pequena história de Cabo Verde. E não se esquece de explicar a capa, utilizou um desenho de “Casa Grande, situada em S. Martinho Grande, nos arredores da Praia, a única sobrevivente da época escravocrata”.

Já se falou um tanto dos primeiros séculos depois do descobrimento (há ainda incertezas de quem chegou primeiro), dos contratos de arrendamento, o tráfico de escravos, as companhias monopolistas, as fomes e secas. É tempo de introduzir o crioulo, tema que merece a António Carreira uma posição um tanto controversa, outros contestam a sua tese.

O povoamento era feito com brancos, nobres e plebeus, degredados e escravos. Ainda no século XV vieram casais do Algarve em companhia de António de Nola. As áreas foram divididas em donatarias e começou o povoamento de Santiago e Fogo, a mestiçagem ia-se processando e dando frutos. O número de brancos nunca foi grande. Carreira observa que a imigração branca (forçada) tomou maior vulto no século XIX. “De 1802 a 1882 (nem em todos os anos) foram mandados para as ilhas 2433 degredados, uma média de 38 indivíduos por ano. O comportamento destes delinquentes, alguns autênticos facínoras, mostrou-se pernicioso e influiu bastante no dos escravos e no dos homens livres – pretos e mestiços. De modo geral, os degredados foram distribuídos pelas várias ilhas, embora em Santiago tivesse ficado o maior número. Adaptaram-se com facilidade e as relações com pretos e pardos seguiram o seu curso.”

É evidente que havia discriminação baseada na chamada “diferença de sangue” (cristãos e judeus). No decurso do tempo, Carreira anota três fases distintas da composição da sociedade cabo-verdiana: diminuto número de europeus e apreciável quantidade de escravos da costa da Guiné; poucos europeus e um pequeno número de estrangeiros, brancos naturais das ilhas, mulatos, escravos nascidos nas ilhas ou trazidos dos Rios de Guiné; reduzido número de europeus, brancos nascidos nas ilhas, um número crescente de mulatos e pretos nascidos e de libertos, uns e outros já nados aqui. De onde vieram esses escravos? Fundamentalmente, da Senegâmbia, os estudiosos, a própria literatura de viagens põe ênfase na Gâmbia, nos Jalofos, nos Rios da Guiné, mas também no rio Senegal e por extensão até à Serra Leoa. A questão é mais importante do que se pensa, chega em entroncar no dado ideológico da unidade Guiné-Cabo Verde, seriam povos irmãos, os contestatários da argumentação de Amílcar Cabral negam que a História seja comum, quer pela formação da sociedade escravocrata e proveniência dos escravos, quer pela língua e o substrato cultural. Nem tudo ficou resolvido com a separação efetiva dos dois países, a discussão ideológica subsiste, mas perdeu o calor que teve nos anos 1980. Agora o crioulo.

“Só as relações mantidas nas ilhas de forma contínua, assídua, pacífica e prolongada dos brancos com os escravos, nas casas-grandes e nas plantações, podia levar à formação de um meio eficiente de comunicação pela palavra falada. Contrariamente, a permanência do branco nos portos fluviais da costa africana foi durante largo tempo precária, sem estabilidade nem continuidade que pudesse permitir relações suscetíveis de dar lugar à formação de uma língua. Em nosso entender, o crioulo foi criado nas ilhas de Cabo Verde e, posteriormente, levado para os portos fluviais do continente, da chamada costa da Guiné, pelos mulatos e pretos-forros, quando os brancos os utilizaram como elo de ligação com os negros não aculturados, e com a finalidade de assegurar as relações comerciais. Mulatos e pretos-forros, todos eles crioulos na língua, com robustez física para suportar os rigores do clima, viraram lançados e, desse modo, tornaram-se os grandes agentes da propagação do crioulo naquele setor da costa.”

E Carreira socorre-se da opinião de Baltasar Lopes: “Suponho que o crioulo falado na Guiné é, não uma criação resultante diretamente do contacto do indígena com o português, mas sim o crioulo cabo-verdiano de Sotavento levado pelos colonos idos do arquipélago.” E Carreira também observa: “O crioulo falado na área Senegal-Gâmbia-Rio Nuno é um tanto diferente de o das ilhas. Não se deve estranhar que assim seja. Mesmo em Cabo Verde o crioulo de Santiago, mais aproximado do do Maio, é foneticamente diferente do do Fogo.” Fiquemos por aqui, a tese é polémica e contestada, basta pensar nos trabalhos de Benjamim Pinto Bull sobre o crioulo da Guiné-Bissau.

A obra de Carreira muda de rumo, fala-nos dos assaltos dos corsários, na situação social na época que antecedeu a abolição da escravatura, como esta ocorreu, e a importância que tiveram os tratados assinados entre Portugal e Inglaterra. Procurando sintetizar o que de mais essencial há neste trabalho de indiscutível envergadura, destaca-se: o período de formação da sociedade cabo-verdiana nas ilhas de Santiago e Fogo (séculos XV e XVI); período de transição para o aparecimento de uma pequena burguesia local (século XVII); o tempo de uma sociedade semilivre e decorrente da abolição da escravatura (inicia-se com a emergência de grupos multirraciais, marcados por estatuto social até ao virar do século XIX, em que se consolidou um classe dominante composta por reinóis, brancos da terra e alguns pretos – é este grupo que possui as melhores terras e controla o sistema económico, tem perto de si a classe intermédia que possuiu uma grande amplitude em Barlavento e reduzido número em Sotavento, na base da pirâmide o campesinato, trabalhadores indiferenciados e escravos ainda não completamente libertos.

O trabalho de Carreira não esquece a emigração, mas também o regresso à terra de origem, pautado pela vontade de quem triunfou lá fora se colocar ao lado dos brancos da terra. Deram-se profundos arranjos e disposições no edifício social, ao longo do século XIX, foi o tempo de um povoamento como jamais acontecera. Carreira também enfatiza a importância do papel do clero. Importa não esquecer que a difusão do ensino nas ilhas ocorreu logo nos primórdios do povoamento, o bispado de Cabo Verde surgiu em 1532 e é tido como primeiro do género em toda a África. Em meados do século, os dignatários desse cabido eram já cerca de três dezenas, abrangiam mestres-escola e mestres de gramática. Moldou-se, assim, um substrato cultural, a par do enraizamento de valores e crenças tradicionais, e o cristianismo conseguiu cobrir o vazio espiritual de populações arrancadas do continente. Este clero contribuiu para uma postura multirracial, que gerou uma dimensão ímpar na identidade cabo-verdiana (e diga-se sem hesitação até hoje).

Igreja da Nossa Senhora do Rosário, Cidade Velha, Cabo Verde, Património Mundial
Ruínas da antiga Sé Catedral da Cidade Velha, retirado do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24831: Historiografia da presença portuguesa em África (393): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24831: Historiografia da presença portuguesa em África (393): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Dificilmente se entenderá o comércio de escravos na ampla faixa da Senegâmbia, a partir do século XV, e depois em espaços mais reduzidos, nomeadamente após o período filipino, sem decifrar a narrativa como tão admiravelmente António Carreira desenvolve na sua magna investigação Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878). 

Os primeiros colonos aportaram à ilha de Santiago em 1462, na Ribeira Grande, ali se fundou uma feitoria, daqui emergiu uma sociedade como nunca o português tinha forjado, com base na miscigenação prolongada, três grupos étnicos foram formando este espaço insular: brancos (os reinóis), negros maioritariamente provenientes da costa africana e de Angola, e mestiços, aqui convivem os "senhores" (portugueses, italianos, espanhós, flamengos...), os brancos da terra (os mestiços) e os escravos (a grande maioria da população). 

Começa-se por habitar Santiago e Fogo, só mais tarde se estenderá a ocupação efetiva das outras ilhas. Como Carreira sublinha, a designação de escravos de confissão ou ladinos irá ser atribuídas àqueles que frequentaram a catequese e que ascenderam a um patamar que se aproximava do modelo civilizacional de então. Como escreve Carreira, o papel dos agentes do Cristianismo em Cabo Verde foi decisivo na formação cultural das populações em missões, colégios e escolas de todo o espaço insular, e os seus frutos são visíveis nos dias de hoje.

Um abraço do
Mário



Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné,
Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1)


Mário Beja Santos

A primeira edição de Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), por António Carreira, data de 1972, é uma investigação de arromba que começa nos contratos de arrendamento, os regastes nos Rios da Guiné, referencia lançados, cristãos novos, como se obtinham os escravos e quais os seus preços, as mercadorias envolvidas, as companhias monopolistas, o povoamento de Cabo Verde e a formação do crioulo, a abolição da escravatura, trabalho solitário, que o investigador, sempre tão modesto, apresenta como a pequena história de Cabo Verde. E não se esquece de explicar a capa, utilizou um desenho de “Casa Grande, situada em S. Martinho Grande, nos arredores da Praia, a única sobrevivente da época escravocrata”.

Atenda-se ao que nos diz na nota explicativa:

“Na redação, como é meu velho hábito, não me preocupei em apurar o estilo. Expressei-me informalmente sem qualquer pretensão de fazer trabalho literário. Fui dominado apenas pela ideia de clareza e da honestidade na exposição e apreciação dos problemas, dando sempre o ‘seu ‘ a ‘seu dono’. 

O tema tratado é ingrato e por motivos diversos não entusiasma a maioria dos leitores. Seja por preconceito próprio de uma educação tradicionalista (no mau sentido do termo), seja por receio descontentar certos setores, tudo quanto envolva a apreciação do tenebroso período da escravatura mexe com a maneira de ser de algumas camadas da nossa sociedade. Todavia é preciso vencer esse sentimento de culpa acerca de um passado para o qual as atuais gerações nada puseram, nem depuseram. E isso só se consegue mostrando as duas faces da questão: a boa e a má, comprovadas por documentação honesta e incontestada. 

É indispensável ver o problema da escravidão no seu próprio tempo e segundo a mentalidade da época.
Neste particular é de apontar o exemplo da Inglaterra. Nenhuma nação negociou tanto como ela em escravos. Com esse negócio amealhou lucros fabulosos. Em certo sentido, e no seu interesse direto, arvorou-se em campeã do abolicionismo. Nessa campanha usou de todos os processos, lícitos e ilícitos. Abusou da sua força. Publicou livros sobre o tráfico, nuns descrevendo os seus horrores e condenando-o; em outros defendendo a sua manutenção. E não parece que haja algum inglês que tenha qualquer sentimento de culpa pelo que os seus antepassados fizeram – e numa escala nunca igualada por nenhum outro povo.”


São incontestáveis os pontos de coincidência, as linhas tangentes nas histórias de Cabo Verde e Guiné. Carreira descreve metodicamente os contratos de arrendamento, o papel exercido pelos mercadores em Santiago; dedica um aprimorado capítulo à figura dos lançados ou tangomaos (em espaço separado aqui se referenciou cuidadosamente o pensamento do autor sobre este fenómeno que acabou por ser marcante sobre a presença portuguesa no continente); situou a atividade de judeus autênticos ou de cristãos novos bem como de fidalgos no tráfico de escravos e tece a seguinte observação:

“As medidas restritivas da fixação de residência de fidalgos e de cristãos novos em Santiago e nos Rios de Guiné, inseria-se no plano manuelino de perseguição de judeus e cristãos novos, e para além da questão religiosa, no receio deles se fixarem e, com o seu conhecido tato comercial, prejudicarem ainda mais o negócio dos cristãos e do próprio monarca.”

Prossegue a exposição sobre as operações de captura e vamos percecionando que o espaço onde se exerce este comércio é inicialmente o correspondente ao da Senegâmbia, mas a área, um tanto aproximada do que é hoje a Guiné, deu um enorme contributo a este tráfico, como ele observa:

“De Arguim ao Gâmbia a melhor mercadoria para a compra de escravos era o cavalo; do rio Gâmbia para Sul passava a ser a manilha de latão. Compreende-se perfeitamente esta preferência. Nas áreas alagadas, na floresta húmida, o cavalo não tinha grandes condições de sobrevivência. A mosca do sono por um lado, o alto grau de humidade, o mosquito e os pastos pouco adequados, por outro, condenavam a sua presença. As populações das rias (do Gâmbia para Sul) não o conheciam nem o sabiam tratar convenientemente. 

Nos primeiros trinta anos de Quinhentos as espécies mais utilizadas e as cotações seguidas variavam consoantes os setores. Assim temos:
- No rio Senegal, terra de jalofos, dava-se 1 cavalo por 10 escravos;
- No rio Gâmbia, ou Cantor, 1 cavalo por 7 escravos. 
- No rio Grande de Buba, terra de biafadas, 6 a 7 cavalos ou 20 a 25 manilhas de latão; ou 10 a 14 cavalos; ou ainda 6 a 7 cavalos por 1 escravo.
- No rio de S. Domingos e na Serra Leoa (1526) segundo os valores estabelecidos nos regimentos dos capitães dos navios do trafico, cada escravo podia ser adquirido por qualquer das seguintes quantidades de mercadorias: 17 ou 18 côvados mouriscos de pano; 38 a 40 alaqueca (pedra semipreciosa); duas mantas de Alentejo; 40 a 50 manilhas de latão; 5 bacias grandes de barbeiro; 1,5 côvados do Reino de pano vermelho (?); 30 a 40 côvados mouriscos de lenço francês.”


E, mais adiante, Carreira refere que em toda a Guiné a valia da cera de 3 quintais por negro era um pagamento corrente (opinião do investigador P. António Brásio). O autor não esquece também do preço dos escravos em moedas quando eram reexpedidos com destino a Lisboa, Antuérpia, Sevilha, Índias de Castela, dá-nos referências de preços até ao fim da escravatura.

Carreira dedica um capítulo para a indicação das diferentes mercadorias levadas à costa africana, que vão desde panos, mantas, contaria e muitas outras. Trata igualmente com cuidado os contratos de arrendamento das áreas dos tratos e regastes. 

O período filipino, abundantemente estudado também no que toca à presença portuguesa na costa ocidental africana, deixa claro como se ia reduzindo a presença comercial, tornara-se precária, cada vez mais distante, a conceção entre Arguim e Cabo Verde, eram holandeses e franceses que usufruíam então a posição vantajosa; aliás, os holandeses irão ocupar a fortaleza de Arguim em 1638. Tentar-se-á animar todo este tráfico com uma sucessão de Companhias e revitalizar a importância de Santiago como placa giratória da reexpedição de escravos.

Vale a pena retomar o discurso de Carreira:

“Cabo Verde e a Guiné atravessaram no final do século XVII aos meados do século XVIII um período difícil, durante o qual se acentuou a decadência: crise de comércio, ausência absoluta de navegação nacional e com tudo isso a progressiva fuga de capitais e de homens brancos, mestiços e pretos, tanto os de Cabo Verde como os de Cacheu.

Todo o período decorrido até à instalação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, ficou marcada pela ruína das vilas e das fazendas agrícolas, pela fuga de homens brancos, pela queda vertical das atividades económicas – desde o comércio de géneros e mercadorias até ao de escravos.”


E há as crises de fome e de epidemias, outra via para o despovoamento, Carreira vai anotando as datas destas calamidades até ao século XIX, é indispensável estar atento a estes acontecimentos para se entender a resiliência e a vontade de emigrar do cabo-verdiano. Obviamente que o autor dedica muita atenção à ocupação e exploração das ilhas, ao braço escravo como força de trabalho, refere o algodão e a urzela como os primeiros géneros da economia destes ilhéus, vem depois a cana do açúcar, a tecelagem, as produções de subsistência, os milhos, os feijões, a batata-doce a mandioca, um pouco de vinho. O pescado era economicamente insignificante, um quase recurso alimentar, faltavam embarcações capazes de permitir uma saída para o largo.

Não menos relevante é a narrativa tecida pelo autor quanto à religiosidade, já que datam da primeira década de 1500 as primeiras leis para a ministração do batismo aos escravos. Aparecem assim os ladinos, batizados e ensinados a trabalhar e a falar a língua portuguesa (certamente que o crioulo. Faziam-se batismos em massa, os missionários não escondiam o que pensavam da escravização injusta, daí as tentativas tendentes a obter a ladinização dos escravos, um dos caboucos que irão fundamentar a identidade cabo-verdiana e a sua cultura. Assim se cristianizaram as gentes de todas as ilhas. 

“E de tal forma a semente deu seus frutos desde os alvores de Quinhentos, que no decurso deste quase meio milénio, a doutrina e a moral cristã, se propagaram de geração em geração radicando-se no espírito das atuais 270 mil almas que povoam o arquipélago. E terá havido algo de parecido em qualquer outra terra portuguesa, nos trópicos ou no equador?”

Igreja da Nossa Senhora do Rosário, Cidade Velha, Cabo Verde, Património Mundial
Ruínas da antiga Sé Catedral da Cidade Velha, retirado do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24813: Historiografia da presença portuguesa em África (392): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)", por António Carreira; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24813: Historiografia da presença portuguesa em África (392): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)", por António Carreira; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Nos preparativos de uma viagem que fiz a S. Vicente e Santo Antão fiz algumas leituras recapitulativas e meti no saco outras que me permitissem entender melhor a presença portuguesa naquele arquipélago. Resolvi reler uma obra indispensável de António Carreira, "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata", com sucessivas edições tanto em Portugal como em Cabo Verde, e foi assim que vi o modo tão bem organizado como este investigador de nomeada refletiu sobre a importância dos tangomaos ou "lançados" a quem Carreira atribui um papel de extrema utilidade. 

Esta obra data de 1972 e prenuncia outros estudos tanto de sua lavra como de outros. Carreira irá escrever sobre o tráfico de escravos, anunciará nesta obra da formação de uma sociedade escravocrata a presença nos rios de Guiné de judeus e cristãos novos, tema que outros autores desenvolverão. Neste trabalho aprofundará o papel das companhias majestáticas e dos seus insucessos. Aborda sempre conceitos todos este comércio negreiro, a partir do século XIX vilipendiado, dentro de um quadro da mentalidade do tempo em que para todos o comércio da escravidão era lícito.

Um abraço do
Mário



Lançados ou Tangomaos, a análise de António Carreira

Mário Beja Santos

Quando publicou em 1972 esta obra ainda hoje referencial, António Carreira já tinha largo percurso historiógrafo, consultara em Cabo Verde o registo de escravos, produzira a importante obra Panaria Cabo-Verdiana-Guineense, As Companhias Pombalinas de Navegação, Comércio e Tráfico de Escravos. No prefácio justifica porque é que o tema é ingrato já que tem a ver com o tenebroso período da escravatura e socorre-se do exemplo inglês: 

“Nenhuma nação negociou tanto como ela em escravos. Com este negócio amealhou lucros fabulosos. Em certo momento, e no seu interesse direto, arvorou-se em campeã do abolicionismo. Nessa campanha usou de todos os processos, lícitos e ilícitos. Publicou livros sobre o tráfico, nuns descrevendo os seus horrores e condenando-o; em outros defendendo a sua manutenção. E não parece que haja algum inglês que tenha qualquer sentimento de culpa pelo que os seus antepassados fizeram – e numa escala nunca igualada por um outro povo.”

Na capa da segunda edição, bem como na primeira edição, de iniciativa do autor, aparece a Casa-grande de S. Martinho, nos arredores da Praia, seria uma das últimas reminiscências da época escravocrata.

Voltei a ler esta obra exemplar em jeito de me preparar para uma viagem que fiz às ilhas de S. Vicente e Santo Antão e verifiquei que,  para além da história dos contratos de arrendamento, da obtenção de escravos, das mercadorias usadas neste comércio, da formação do crioulo e até se chegar à situação social na época que antecedeu a abolição, Carreira tratava com a melhor investigação possível do seu tempo os lançados ou tangomaos, e assim considerei da maior utilidade fazer uma recensão de personagem tão determinante do seu tempo.

“Na fase inicial, os lançados eram constituídos apenas por brancos (cristãos e judeus) estantes em Santiago, e por alguns reinóis não moradores que com aqueles se mancomunavam e faziam parceria nos negócios. Poucos anos volvidos o seu número avolumou-se não apenas pela afluência de mais brancos como pelo surto de mulatos e de pretos-forros, uns e outros de inteira confiança dos brancos. 

Admitimos que a participação de mulatos e de pretos-forros nas atividades comerciais de brancos (compra de géneros e de escravos, venda de mercadorias) nos rios de Guiné só foi possível após a formação de um meio de comunicação válido entre esses dois grupos – de brancos e de pretos e mulatos – ou seja, incontroversamente, a língua crioula.

Independentemente do condicionalismo criado pelas leis de comércio, temos também de considerar como outros dos factores a influir do surto do lançado os resultantes das normas fixadas para a residência de brancos no Ultramar (limitações postas ao fornecimento aos brancos de Santiago das chamadas mercadorias defesas necessárias aos tratos e resgates, política seguida no arrendamento das áreas de comércio e limitações postas à residência de brancos nos rios de Guiné).”


As referências aos lançados surgem no início do século XVI, são tratados como cristãos omiziados. E Carreira questiona de onde vem o nome de lançado e pouco depois o de tangomaos. Todos os cristãos que se instalassem nos rios e portos africanos sem licença régia eram havidos por lançados (de lançar, tomado no sentido de internar-se, avançar pelo sertão a negociar). O teor das cartas de arrendamento é drástico na proibição do que faziam os lançados, deviam ser mortos ou entregues aos capitães dos navios. Da documentação existente regista-se a presença de branco e de provavelmente judeus, e que faziam concorrência ao comércio régio, desarticulando-o, daí a pena de morte e o confisco de bens.

“Aparece nas leis (certamente já como linguagem corrente), um outro vocábulo que define esses mesmos transgressores: o de Tangomao e suas diferentes formas gráficas (Tanguomããos, Tamgo mãos, tangomao, tango-mao, tangosmaus, tangomagos, etc.), sempre com significado igual ao dado a lançado.” 

Carreira afasta qualquer hipótese de se relacionar este termo a uma divindade, refere apreciações da literatura de viagens como Valentim Fernandes, o padre Manuel Álvares que referem ídolos com tal nome, mas não encontra qualquer relação.

A economia mais afetada pela atividade dos tangomaos era a de Santiago, há pedidos constantes da câmara para tirar da Guiné os tangomaos. As ameaças não surtiram nenhum efeito, os tangomaos estavam de pedra e cal. Missionários como o padre Manuel Álvares tinham deles uma opinião que não era nada favorável dizendo que colaboravam com o gentio idólatra. André Donelha, em 1625, aponta a presença de tangomaos entre os Jalofos, na Serra Leoa e no rio de S. Domingos, outros relatos referem-nos nos Bijagós, em Cacheu e em partes de Geba.

E Carreira prossegue:

“No século XIX, e mesmo no atual, alguns autores tentaram esclarecer a origem do termo tangomao. A análise mais remota é de Tavares de Macedo, em 1857 que, depois de aludir às ordenações manuelinas e doações ao Hospital de Todos-os-Santos, cita o jurisconsulto Molina, tangomao é palavra que em terra de pretos significa os que vão pelas feiras e trocam mercancias por negros escravos que trazem aos portugueses a vender.”

Há outros autores que falam de tangomao como Pombeiro ou negociante de escravos. Carreira procura ser pormenorizado e avança com outras opiniões em que inclui Correia Lopes e Teixeira da Mota. Em sua opinião, os que viravam tangomaos não deveriam ser apenas reinóis idos acidentalmente aos resgates. Seriam, na grande maioria, os tais brancos estantes em Santiago e no Fogo e outros conluiados. Inicialmente tentou-se uma política de brandura para impedir a formação destes bandos de tangomaos, não resultou e mais adiante procurou-se a aplicação de sanções pecuniárias e depois a pena de morte.

E Carreira dá-nos o seguinte entendimento:

“Os lançados serviam de intermediários entre o traficante não estante, nacional e estrangeiro, e os chefes locais e as cáfilas procedentes do interior, vendedores de escravos e de géneros. Fixaram-se próximo do interior ou nos locais de concentração das caravanas, em regra junto aos portos de mar ou fluviais. Para atuar mais eficazmente valeram-se do seu conhecimento do meio e das línguas nativas. Esses homens duros e resolutos adaptaram-se facilmente a cada meio africano. Não se importaram de sacrificar a sua moral, a sua educação, a sua religião. Não temeram o clima de África, de si esgotante, nem a floresta ou as terras. O isolamento obrigou-os a ceder perante enormes forças sociais. Para se integrarem nos mais diferentes aspetos das sociedades onde viviam juntavam-se facilmente à mulher africana. Abjuravam da sua religião para seguir o chamado paganismo; aliavam-se a chefes amigos para combater e dominar inimigos. Não se intimidaram com a excomunhão. A onda de tangomaos cresceu por todo o século XVI e mais ainda na centúria seguinte, na proporção em que surgiam mais interessados no tráfico. Os primeiros a aparecer na competição foram os franceses, logo seguidos pelos ingleses e estes, a curto intervalo, pelos holandeses. De todos eles os tangomaos se tornaram clientes prestimosos.”

Em jeito de conclusão, os lançados ou tangomaos eram portugueses que violaram as ordens régias indo de Lisboa ou Santiago para os rios de Guiné na mira de enriquecer, adaptaram-se, socorreram-se de cerimónias mágicas para meter medo aos seus cativos, procedimento que deixou rasto, os escravos que irão para as ilhas de Cabo Verde manterão superstições (como aliás também muitos brancos) haverá nas ilhas feiticeiros e adivinhadores.

O caso mais célebre de tangomao que se conhece é de João Ferreira, natural do Crato, chamado pelos negros o Ganagoga, o que quer dizer na língua dos biafadas homem que fala todas as línguas. 

“Da ação dos tangomaos resultou, em parte apreciável, a ruína do comércio português em todos os setores do tráfico. Mas, a eles ficou devendo em grande medida o conhecimento pormenorizado de vastas regiões, do curso dos rios, das gentes e seus costumes e práticas, dos processos de comércio seguidos, das mercadorias preferidas, das produções locais de maior interesse. Difundiram costumes e concorreram para a formação e difusão do crioulo e do português. E ao fazer um balanço desapaixonado, tudo quanto se lhe aponta de nocivo fica compensado pelo que de bom e de útil fizeram.”
António Carreira, indiscutivelmente o mais influente e importante historiador de origem cabo-verdiana da sua geração. A sua obra "Cabo Verde, Formação e extinção de uma sociedade escravocrata", 1972, continua a ser incontornável na investigação universitária
Imagem constante no texto A poderosa "Bebiana Vaz" e o aparecimento dos "gans" Vaz e Gomes em Cacheu, por Celina Tavares, com a devida vénia
Imagem alusiva às “Signares”, que tiveram um papel determinante na construção do mundo moderno africano, a Guiné não escapou à sua influência, caso de Aurélia Correia
Imagem antiga da colonização portuguesa
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24793: Historiografia da presença portuguesa em África (391): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (6) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24784: Notas de leitura (1627): "Dos Sonhos e das Imagens, A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau", por Catarina Laranjeiro; Outro Modo Cooperativa Cultural, 2021 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
Reconheça-se a abordagem original desta tese de doutoramento sobre as representações históricas e políticas dos homens e mulheres que vão aparecer na filmografia que tanto impressionou todos aqueles que apoiavam a luta anticolonial, mostravam-se infraestruturas de educação e saúde, um povo que era encenado como homogéneo e totalmente representativo de todas as etnias, eram uma Nação na forja, um quase-Estado, um incontestável líder com reputação internacional, enfim filmografia apologética a uma nova sociedade, eram estas as imagens que circulavam pelos auditórios e que correspondiam, na íntegra, à estratégia diplomática idealizada por Cabral.

A pesquisa de Catarina Laranjeiro é de ir ao fundo da questão, saber se estes homens e estas mulheres estavam e ficaram cientes da uniformidade do projeto político que o PAIGC propunha implementar. Como veremos, há respostas assustadoras, e veremos que os horrores e pesadelos que esta propaganda do PAIGC atribuía aos portugueses era inteiramente vivida e sofrida pelas crueldades perpetradas nas chamadas zonas libertadas, logo com os recrutamentos forçados. Peço ao leitor que acompanhe o desenvolvimento do trabalho da Catarina Laranjeiro, deixa uma ampla margem de reflexão, abre espaço para novas investigações.

Um abraço do
Mário



A construção e a desconstrução das imagens sobre a Guerra de Libertação da Guiné-Bissau (1)

Mário Beja Santos

O livro Dos Sonhos e das Imagens, A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau, por Catarina Laranjeiro, Outro Modo Cooperativa Cultural, 2021, baseia-se na tese de doutoramento da autora, é um misto de inventário historiográfico, análise sociocultural da imagem e trabalho etnográfico que a autora realizou em Unal, no Sul da Guiné, entre setembro de 2015 e abril de 2016, aqui voltou entre setembro de 2019 e fevereiro de 2020.

A investigadora esclarece:

“A montante do trabalho etnográfico, esta investigação propus analisar os filmes realizados durante a guerra em tabancas das zonas libertadas, entre as quais o Unal foi escolhido como arquétipo (…) Este livro é sobre as imagens produzidas no decorrer da luta da Libertação da Guiné-Bissau e particularmente sobre os filmes documentais. 

Genericamente, estes filmes mostram como o PAIGC desenvolvia uma ação militar eficaz contra o exército colonial português enquanto construía uma nova sociedade, nas zonas libertadas, precursora da nação por vir. Enquanto instrumento de Luta, o cinema tinha por missão primeira construir uma memória documental e, em última instância, um arquivo; isto é, o que deveria ser dito no futuro sobre o presente quando este se tornasse passado (…) 

Esta investigação é movida pela vontade de compreender como uma imagem provoca outra, dispositivo fundamental da linguagem cinematográfica. Concretamente, como as sucessivas crises e a instabilidade política procederam uma Luta de Libertação particularmente promissora que assegurava estar a ser construída uma auspiciosa sociedade nas zonas libertadas. Para tal, importa considerar quem é que, antes e depois da independência, reclamou o poder de construir todas estas representações, quer as de sucesso, quer as de fracasso. Trata-se de debater a legitimidade e a autoridade que os processos históricos adquirem quando se tornam visualmente percetíveis”.

A autora quis ir mais longe, trabalhou em Unal, bastião do PAIGC, obteve inúmeros testemunhos.

“Com estes testemunhos, levei a cabo um exercício de contrastes com as narrativas fílmicas, de forma a aceder a outras narrativas, em particular as ligadas à cosmologia, enquanto arena de resistência política, cultural e militar. Através deste exercício, examinei como a história da Luta da Libertação tem sido instrumentalizada para legitimar ou confirmar versões dos acontecimentos que carecem de discussão”.

Dando primazia ao quadro colonial e à luta pela independência, Catarina Laranjeiro dá-nos uma síntese da presença portuguesa, a alvorada dos movimentos emancipalistas, o crescente predomínio do PAIGC na Luta de Libertação, é indiscutível que leu algumas das obras mais relevantes, isto sempre num quadro convencional em que infelizmente cai a generalidade dos historiadores, nem uma palavra sobre o hiato que vai entre o início da guerra e a chegada de Spínola, é o tal buraco que só será preenchido quando os doutos investigadores se lembrarem que existem arquivos da Defesa Nacional e do Ultramar que, no caso vertente, superam o que possa constar no Arquivo Salazar ou documentação existente noutros arquivos idóneos, como a documentação de Amílcar Cabral na Fundação Mário Soares e Maria Barroso. Paciência, melhores tempos virão.

A autora destaca, e reconheçamos vem a propósito, o papel dos Balantas na guerrilha, o papel das mulheres na Luta, a questão animista com a qual Cabral contundia com cuidado, tratando-a por “liquidação progressiva dos restos de mentalidade tribal”, ele suponha que a cultura da Luta superasse o sistema religioso da grande maioria da população guineense, devota a espíritos que em crioulo se designam de Irãs, reconheça-se que a autora prima no campo da inovação das investigações trazendo para a mesa da discussão estas forças religiosas que não vão aparecer na filmografia propagandística que percorreu mundo.

Ainda dentro desta síntese histórica, a autora dá-nos um quadro sumário sobre a violência política pós-independência, as propostas ideológicas de Cabral para a descentralização e para a participação das populações vão sendo sucessivamente ignoradas, as populações rurais acabaram entregues à sua sorte, viraram as costas aos comités das tabancas, isto enquanto o país avançava para o colapso económico e a miséria recrudescia, dá-se o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, é a separação da Guiné de Cabo Verde, não abranda o clima de violência política, vai ser retomada a questão Balanta, que terá o seu ponto alto nas execuções de Paulo Correia e outros, temos seguidamente o conflito político-militar, e a autora anota bem que “Finda a Luta de Libertação, a rebeldia e a resistência da população guineense deixaram de ser valorizadas quer pelas vanguardas políticas que apoiaram o PAIGC, quer pelo próprio partido”

Gradualmente, o farol revolucionário que era atribuído à Guiné-Bissau apagou-se e a Guiné foi incluída nos circuitos do narcotráfico e tratada até hoje como um Estado falhado.

A segunda vertente do trabalho de Catarina Laranjeiro é da interpretação das imagens, como hoje se vê aquele passado, imagens muitas vezes encenadas, muito ao gosto do que via ser passado para emocionar as plateias, sobretudo aquelas que apoiavam a luta anticolonial, a autora revela-se bem conhecedora da história das imagens e do seu desempenho e o papel do mito, os seus significados sociais, a nossa perceção pelo visual, a dupla temporalidade da imagem e da memória, a representação das cenas de combate ou daquela atividade humilde de transportar à cabeça munições ou alimentos, mostrar esses anónimos como figurantes do entusiasmo da luta. 

E essa representação cénica até pode vir a incluir as imagens dos encontros entre as tropas portuguesas e o PAIGC, as iniciais revelando um misto de desconfiança e acanhamento, posturas rígidas, mesmo quando alguns dos protagonistas conversam com o semblante ameno, os outros em expetativa, mesmo fugindo com o olhar à objetiva.

Esta reflexão sobre a imagem é uma inovação nos estudos, abre a porta ao questionamento do que se pretendia passar para o exterior e vir a utilizar o interior como apêndice histórico. E daí o mergulho que a autora procede no Cinema de Libertação na Guiné-Bissau, indo mesmo aos acervos existentes no INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, onde se guardam imagens da administração colonial, buscando a sua utilidade: 

“O grande propósito destas imagens era promover, na sociedade metropolitana, sensações de proximidade e pertença, tornando próxima e aparentemente segura uma guerra que acontecia numa terra que, supostamente, lhe pertencia”

Em contrapartida, o PAIGC criava a sua máquina de propaganda, dava a sugestão das atrocidades cometidas pelo Exército Português, desvelavam-se as infraestruturas nas zonas libertadas, afluíram à Guiné cineastas estrangeiros, vieram nomeadamente da Argélia, Suécia e Cuba.

A autora resume a principal filmografia e interroga-nos sobre o que se mostrava externa e internamente: a construção de um Estado por vir. Vale a pena ter em consideração os comentários tecidos pela autora.


(continua)
Amílcar Cabral
Casal de combatentes
Preparação do canhão

Três imagens retiradas de Os esboços da nação guineense em Madina Boé (1968), de José Massip

Um dos primeiros cineastas guineenses, Sana Na N’hada, fotografia é retirada do Jornal O Democrata, Guiné-Bissau, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24775: Notas de leitura (1626):"Portugueses em África, Uma Breve História, Da Conquista de Ceuta à Descolonização", por Pedro Rabaçal; Marcador Editora (Editorial Presença), 2017 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24746: Historiografia da presença portuguesa em África (389): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2023:

Queridos amigos,
O correspondente na Guiné da Revista Ilustrada "As Colónias Portuguesas" lá vai dizendo as suas verdades com punhos, fala repetidamente num quadro de decadência, a perda do Casamansa, observa ele, fez disparar o contrabando e reduzir à ninharia o comércio português; dá-nos observações certeiras das permanentes rebeliões, tanto nos Bijagós como no continente, só se vive com alguma segurança dentro das fortificações, a política fiscal, observa também ele, é ruinosa, as construções feitas em Bolama a partir de 1879 são totalmente desajustadas à realidade local, o dinheiro enviado pelo governo de Lisboa só serve para pagar o funcionalismo, não há estradas, não há quaisquer infraestruturas, este correspondente matraqueia permanentemente que era preciso mudar de política. Recorda-se ao leitor que esta preciosa publicação vai fenecer em 1891, a crise financeira iniciada no ano antes era devastadora, só será atenuada nos finais de 1892, talvez tenha sido a crise que levou ao desaparecimento desta publicação de quem se pode dizer que traz uma outra luz para esclarecer a nossa presença frágil neste ponto da costa ocidental africana.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na publicação As Colónias Portuguesas, Revista Ilustrada (4)

Mário Beja Santos

A publicação As Colónias Portuguesas, Revista Ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. Não posso esconder o entusiasmo que sinto ao folhear estas páginas, elas comportam informações que, por um lado, corroboram o que a historiografia vai lavrando, e, por outro lado, temos inesperadamente acesso a testemunhos que se afiguram genuínos, um dos redatores efetivos, António A. F. Ribeiro terá montado uma rede de contactos e o que vai aparecer sob a forma de correio parece-me de insofismável valor.

Vamos hoje falar do que se escreve sobre a Guiné em 1889, em exceção ainda é um texto de 1888 a que concedo importância, o leitor verá porquê; devo uma explicação a quem vai acompanhando esta incursão por uma revista digna da melhor atenção dos investigadores, não encontrei uma só imagem alusiva à Guiné, e como considero que a qualidade gráfica desta publicação é altíssima, decidi-me por uma seleção aleatória de imagens que têm a ver com Angola e Moçambique, compreensivelmente as duas colónias mais referenciadas.

O que se escreve na Revista Ilustrada são crónicas, há um correspondente, não se sabe se nesta altura o correspondente ainda é Augusto Barros, pois não há nenhuma assinatura. Temos agora um texto datado de setembro de 1888, em Bolama, diz o seguinte:
“É bem triste missão a de um correspondente ter sempre que dizer mal. É necessário insistir em pedir providências para que esta colónia ou se levante do abatimento em que está ou se lhe dê outra classificação própria a libertá-la dos grandes encargos que comprometem o seu orçamento e estiolam o seu desenvolvimento.
A falta de governo e de um plano de administração colonial tem prejudicado todas as províncias, porque os governadores, cada qual por seu lado a arquitetar trabalhos, não fazem coisa nenhuma, ou dormem ou alimentam a intriga e arranjam galões, desfazendo estes o que era da iniciativa daqueles, e tornando-se, portanto, prejudicialíssimos ao andamento regular do progresso das colónias.
Esta colónia, de baldão em baldão, tem hoje por seu chefe superior o senhor contra-almirante Teixeira da Silva. É um oficial de Marinha honradíssimo, mas está muito distante de poder ser bom governador, porque não tem saúde para opor ao clima malsão da terra e segue para Cabo Verde em gozo de licença da junta, deixando em seu lugar o seu secretário, que não pode resolver questões de magnitude.
A Guiné de dia para dia vai em decadência progressiva; o seu negócio diminui e decrescerá consideravelmente se a metrópole não cuidar de atenuar com vigo e força este mal-estar permanente de uma colónia, que a continuar assim ficará irremediavelmente perdida.
Sabemos todos que o concelho de Cacheu fica paredes meias com o Casamansa. Pois quando ainda tínhamos o presídio de Ziguinchor o contrabando que nos entrava pelos esteiros para o rio de S. Domingos era enorme. Agora, que o rio está em poder dos franceses, poderemos calcular a invasão do contrabando na nossa província, porque não há fiscalização no rio de S. Domingos, os esteiros que o ligam ao Casamansa estão livres e desertos de vigilância, e por consequência, quem fica prejudicado é o comércio português.

E o governo que na convenção de limites franco-luso, devia prever este estado de coisas, não lhe prestou atenção, e deixa a província mais abandonada do que no tempo que ela era simplesmente um distrito. Porque o facto de pagar mensalmente à colónia o subsídio de 4 contos e 500 mil reis, absorvidos pelo funcionalismo não é coadjuvá-la mas comprometê-la, e a província devia antes regular o seu pessoal pelos próprios recursos. A metrópole poderia satisfazer mensalmente até 4 contos ou mais, mas para obras de importante necessidade, como ponte cais, aberturas de estradas, construção de faróis e balizagem dos rios, despesa com exploradores no arquipélago dos Bijagós, estudos minuciosos das riquezas agrícolas, florestais e mineralógicas da colónia. Tem o governo feito alguma coisa neste sentido? Nada. A província conserva-se aberta ao contrabando dos negociantes estrangeiros que abandonaram as nossas povoações e recolheram a Carabane, de onde lançam sobre o nosso território uma rede de caixeiros viajantes a fazer as permutações gentílicas, de forma que apanham todas as promoções do nosso sertão. Se o governo se resolver a tomar medidas enérgicas tendendo-se ao fim de regenerar a província, pois ela ainda pode ser salva. Com portarias e ofícios de perguntas e respostas não se administram colónias. O Ministério da Marinha precisa de um movimento novo, sobretudo no que diz respeito a questões de fazenda, que não podem continuar à mercê dos que nem merecem o título de utopistas ou sonhadores, mas de tolos e maus.
As edificações que aqui se fizeram para quartéis, igreja e hospital, são cópias, mais ou menos perfeitas, de quem desconhecia completamente a vida na Guiné e lançou no papel o que nunca se realizou na prática.”


Quem assim escreve, volta a lamentar-se em janeiro de 1889: “É muito pouco o que hoje podemos dizer a respeito da situação desta província, mas, em todo o caso, não deixaremos de chamar a esclarecida atenção de Sua Excelência o Ministro para as palavras que acabámos de ler num jornal francês: ‘Não obstante os imensos recursos de toda a natureza que possui esta província portuguesa, o sistema de imposto até ali introduzido é, neste momento, a sua completa ruína. É co imenso pesar que vemos que os portugueses não procuram levantar esta província, tirando-a da desgraçada situação em que ela está, pois que acabaram recentemente de estabelecer mais um direito de 12 francos por cada kg de tabaco estrangeiro, o que em lugar de lhes aproveitar, é, ao contrário, um meio de animar o contrabando e de lhe acabar com este ramo de negócio’”.

Os meses passam e o nosso correspondente mantém as suas tiradas de fel e amargura:
“Desta província, infelizmente, não podemos ter quase nunca notícias favoráveis. A sua decadência é visível, e cada vez mais urge acudi-la com providências prontas, que melhorem ao mesmo tempo a sua situação financeira e a sua situação económica.
Não nos parece que devamos esperar que todo o comércio se transfira para as colónias vizinhas, que as relações com os povos indígenas do interior se tornem cada vez menos frequentes, que fiquemos reduzidos a defender-nos apenas em alguns pontos fortificados das correrias e dos ataques do gentio, para então cuidarmos de salvar o que já não tiver remédio.
Por agora estamos reduzidos a receber de vez em quando notícias de uma dessas guerras, em que gastamos dinheiro, despendemos forças e poucas vezes aumentamos o nosso prestígio. E é ainda às vezes para proteger os estrangeiros que temos de nos empenhar nessas lutas. Ainda o último paquete nos trouxe notícia do ataque feito pelos indígenas de Canhabaque ao navio francês Père Guignard. Tivemos de castigar o gentio, e lá foi a canhoneira Guadiana bombardear várias povoações e tabancas da ilha. Também foram bombardeadas duas povoações de balantas na margem do rio Geba e percorrido em diferentes direções o rio de Cacheu. Enfim, fizeram-se grandes proezas que decerto não contestamos, mas a isto se reduz infelizmente a nossa ação atual na Guiné. Parece-me pouco, principalmente se olharmos para o que nos custa esta província.”


Prepare-se o leitor, esta jeremiada vai ter continuidade, o correspondente na Guiné da Revista Ilustrada não dá tréguas à verdade dos factos.

Este foi o Ministro dos Negócios Estrangeiros que aguentou o ultimato britânico, em 1890
Não deixa de surpreender como a Igreja da Nossa Senhora da Conceição em Lourenço Marques tem este aspeto tão revivalista, ao tempo dizia-se eclético, o que terá levado o arquiteto a implantar o templo religioso marcadamente gótico em África?
Escola de Artes e Ofícios em Moçambique
(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24724: Historiografia da presença portuguesa em África (388): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", revista ilustrada (3) (Mário Beja Santos)