Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro1972/74
1. Mais uma estória do camarada Juvenal Amado (1) nos chegou. É também uma homenagem aos
meninos de suas mães que deixaram a vida prematuramente.
Cancolim > Abrigo do Morteiro 81O MORTEIRO NO MEIO DA PARADA
CANCOLIM Nunca consegui compreender, o porquê da colocação do abrigo do morteiro 81 mm no meio da Parada.
Tal localização obrigava os apontadores e municiadores de Cancolim, a correrem debaixo do fogo inimigo, mais de trinta metros pela parada, sem qualquer protecção.
Esta Companhia não teve sorte em terras da Guiné.
Estava há talvez 15 dias em Cancolim, quando sofreu a primeira flagelação. Oito dias depois sofre outra. E precisamente oito dias depois, sofre um violento ataque de morteiros 82.
Tudo indica que as duas primeiras flagelações foram só para marcar o alvo e assim direccionar o tiro pesado desse dia.
Ia pernoitar em Cancolim como de costume, após coluna de reabastecimento.
Mal conhecia o destacamento, pois só lá tinha ido uma vez e ainda estávamos naquele período de adaptação operacional, enquadrados pelos
velhinhos que íamos render.
Conhecia vagamente o Apontador de Morteiro Correia, amigo do meu
irmão Ivo. Mas esse pequeno elo foi o suficiente para ser por ele
adoptado sempre que ia em coluna, lá.
Estavam a construir umas instalações sanitárias junto à caserna do lado direito, para quem entrava no destacamento. Até aí, as nossas mais prementes necessidades fisiológicas tinham que ser feitas nuns buracos junto ao arame farpado e para tal, tínhamos que avisar a sentinela.
Tinha anoitecido há pouco, estava de conversa com alguns camaradas, junto das valas como era hábito. Naquele destacamento ninguém se recolhia antes das dez horas da noite.
De tempos a tempos ouviam-se tiros e rajadas dadas pelos sentinelas. Aquilo incomodava-me, pois era impensável que tal se fizesse em Galomaro.
Quando se pesca à cana, temos duvidas se o peixe morde se é o mar que faz estremecer a cana, mas quando é peixe mesmo não há duvida nenhuma. Assim é com um ataque. Ao primeiro som não temos duvidas.
O som das saídas de morteiro 82 do IN não deixam lugar para o talvez. Deixámo-nos cair para dentro das valas e abate-se sobre nós um dilúvio de ferro e fogo.
As explosões são seguidas, pois um apontador experiente pode pôr quatro ou cinco granadas no ar. Quando elas começam a cair, o efeito é devastador.
Penso que o nosso organismo tem meios de nos fazer ignorar parte do que se está a passar, pois ao ficarmos surdos, deixamos de ter a total percepção do inferno em que estamos.
Uns disparam as suas armas, outros choram e apelam para Nossa Senhora de Fátima (*), eu lá ia disparando a minha arma, estou aterrorizado.
O nosso morteiro responde ao fogo desde o primeiro momento, alguns camaradas atravessam a correr, em campo aberto, transportando cunhetes de granadas para municiar o morteiro.
Como invejei essa valentia.
Não sei quanto tempo durou, mas sei que foi demais.
Pouco a pouco, a violência do ataque abrandou.
O fumo, o pó e o cheiro, manteve-me muito tempo sem me mexer. Espreitava pelo bordo da vala para ver se descortinava o que se passava.
Havia mortos e feridos, foi a noticia que começou a correr pelas valas.
A madrugada com a sua luz redentora, mostrou-nos a destruição e os estilhaços espalhados por todos o lado.
Cancolim > Depois do ataque, não faltavam embalagens vazias de granadas espalhadas junto ao abrigo do morteiro 81Estavam três camaradas mortos dentro de uma vala. Uma granada tinha rebentado dentro. Os seus corpos destroçados foram, como possível, depositados nos sanitários em construção.
Foi uma triste inauguração.
Essas obras ficaram muito tempo por concluir em memória dos nossos mortos. Havia feridos, falou-se num dos
velhinhos ter ficado cego de um dos olhos e o próprio capitão novo (**), foi ferido ainda que ligeiramente no pescoço por um estilhaço.
Foram os nossos primeiros mortos em combate. A morte em combate nunca é limpa, ao contrário do que até ali tinha visto, nos filmes de
cowboys e de guerra
made in América.Não os conhecia em vida e a imagem que guardo deles, é daqueles corpos desfeitos no chão das casas de banho por acabar.
Faz-me lembrar um poema sobre a Guerra, em que se fala no
menino de sua mãe (***), também ali estavam estendidos os meninos de suas mães. Como a maioria nós nem barba tinham.
Tombaram assim no campo de batalha os nossos camaradas e é em memória deles esta estória.
José António Paulo - natural de Mirandela
João Amado - natural de Vieira de Leiria
Domingos de E. Santos Moreno - Natural de Macedo de Cavaleiros
(*) Também do lado dos guerrilheiros nos momentos de aflição se chamaria possivelmente por Fátima, neste caso a filha de Maomé.
(**) O capitão ferido veio a desertar logo de seguida, numa viagem que fez à Metrópole. Era um miliciano bastante querido pelos seus soldados e a imagem que tenho dele, é de um homem sensível que não foi talhado para guerreiro. Onde estiver desejo-lhe a melhor sorte.
Não foi culpado de maneira nenhuma pelo o que aconteceu e o que viu foi demais para ele.
Foi substituído mais tarde pelo Capitão Rosa também miliciano.
Este homem ficou famoso entre nós pela sua intervenção na reunião havida em Galomaro com o General Spinola.
O General, no seu discurso aos oficiais disse em dado momento que devíamos à Pátria o sacrifício, até das nossas vidas.
O então Capitão Rosa, dando voz ao que muitos pensavam, respondeu que a nossa Pátria é a que nos dá paz, bem estar e futuro e, aquela que o General referia, não era de modo algum essa.
Não posso jurar que tenham sido rigorosamente estas as palavras mas o fundamento foi o mesmo
(***)
O MENINO DE SUA MÃE No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece
De balas trespassado
Duas, de lado a lado
Jaz morto, e arrefece
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
O menino de sua mãe.
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
É boa a cigarreira.
Ele é que já não serve
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
Que volte cedo, e bem!
(Malhas que o Império tece)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe(Fernando Pessoa)
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Nota de CV:
(1) - Vd. último poste da série de 4 de Agosto de 2008 >
Guiné 63/74 - P3110: Estórias do Juvenal Amado (13): Pela calada da noite